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2 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS RELACIONADOS À PRISÃO

2.1 Princípios constitucionais relacionados à Prisão Preventiva

2.1.1 Dignidade da Pessoa Humana

As medidas cautelares possuem o objetivo de preservar o processo de conhecimento ou de execução. Entretanto, conforme destaca Nicolitt (2015), elas não podem ser lesivas ao homem que se encontra por trás do processo. Nessa senda, refere o autor que, apesar da função utilitária e instrumental de tais medidas, elas possuem como primeiro limite o princípio da dignidade da pessoa humana. Esse princípio faz do homem fundamento e fim da sociedade e do Estado (MIRANDA, 2000, p. 180-181).

Previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, cujo objetivo principal é garantir aos indivíduos um mínimo de direitos que devem ser respeitados pela sociedade e pelo poder público. Acerca deste princípio, cumpre registrar a lição do jurista português José Joaquim Gomes Canotilho (2003, p. 225):

Perante as experiências históricas de aniquilação do ser humano (inquisição, escravatura, nazismo, stalinismo, polpotismo, genocídios étnicos) a dignidade da pessoa humana como base da República significa, sem transcendências ou metafísicas, o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Nesse sentido, a República é uma organização política que serve o homem, não é o homem que serve os aparelhos políticos-organizatórios.

Sarlet (1988) pontua que, desde a época em que predominava o pensamento clássico, há um consenso de que a dignidade da pessoa humana é um valor inerente aos indivíduos, uma vez que é irrenunciável e inalienável. O autor ensina que tal princípio é qualidade integrante e irrenunciável da condição humana que deve ser reconhecida, respeitada e protegida. Nessa linha de raciocínio, o autor, portanto, conclui que o princípio da dignidade da pessoa humana é

a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições

existenciais mínimas para uma vida saudável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 1988, p. 62).

A pessoa humana, na sua condição natural de ser, se destaca no meio e se diferencia do ser irracional em razão de sua inteligência, bem como devido à possibilidade de exercer sua liberdade. Chaves Camargo (1994, p. 27-28) assevera que as referidas características

expressam um valor e fazem do homem não mais um mero existir, pois este domínio sobre a própria vida, sua superação, é a raiz da dignidade humana. Assim, toda pessoa humana, pelo simples fato de existir, independentemente de sua situação social, traz na sua superioridade racional a dignidade de todo ser.

A dignidade é abordada por Kant (2006) a partir da autodeterminação ética do ser humano, tendo em vista que a autonomia é o alicerce da dignidade. O ser humano é capaz de autodeterminar-se e agir conforme as normas legais, segundo a teoria da autonomia da vontade. Essa qualidade é encontrada apenas em criaturas racionais e, portanto, todo ser racional existe como um fim em si mesmo e não como um meio para a imposição de vontades arbitrárias. Nessa mesma ótica, ensina o autor:

No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisas tem um preço, pode por-se em vez dela qualquer outra como equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade (KANT, 2006, p. 131).

Contribui para o entendimento deste princípio o pensamento de Ingo Wolfgang Sarlet (2004, p. 124):

Poder entender, portanto, que o princípio da dignidade da pessoa humana constitui o reduto intangível de cada individuo e, neste sentido, um estreito entrelaçamento entre os direitos fundamentais. Salienta-se que para além da tríada vida, liberdade e igualdade, também há outros direitos fundamentais que podem ser reconduzidos e considerados como exigência ao princípio da dignidade humana.

De maneira objetiva, Kloepfer (2009) esclarece que, independentemente de cor, etnia, sexo, idade ou nacionalidade, a dignidade é um valor intrínseco de todo e qualquer ser humano. Assim, é irrelevante que o titular seja consciente de sua dignidade: ela começa com a existência humana e termina com a sua morte. Dentro desse contexto, Flávia Piovesan (2004, p. 92) pontua que “é no valor da dignidade da

pessoa humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido”. Refere a autora que tal princípio é o ponto de partida e seu ponto de chegada na tarefa de interpretação normativa.

No universo do processo penal brasileiro, o princípio da dignidade da pessoa humana visa a garantir ao acusado – sobre o qual recai a persecução penal – o recebimento de um tratamento digno, apropriado e respeitável por parte do Estado. Nessa senda, para Guilherme de Souza Nucci (2006, p. 28):

O processo penal lida com liberdades públicas, direitos indisponíveis, tutelando a dignidade da pessoa humana e outros interesses dos quais não se pode abrir mão, como a vida, a liberdade, a integridade física e moral, o patrimônio, etc.

Assim, para o autor, o processo penal deve ser estudado conjuntamente com os direitos e garantias fundamentais, considerando que estas restringem a possibilidade de o Estado praticar excessos contra o indivíduo. Nesse viés, sustenta Gemaque (2006) que ocorre violação ao princípio da dignidade da pessoa humana ao se verificarem medidas cautelares aplicadas com o intuito de antecipar a pena ou ainda compelir o indivíduo a cooperar com a investigação. Esse mesmo autor conclui que as prisões cautelares injustas devem gerar o direito à indenização por erro judiciário, como forma de combater esse tipo de atuação violadora de direitos fundamentais e, desta forma, promover a garantia da dignidade da pessoa humana.

Explica Carvalho (2007) que, por representar um valor supremo no ordenamento jurídico, o princípio da dignidade da pessoa humana exerce influência sobre o Direito Penal e Processual Penal, de modo que todos os atos praticados nessa esfera jurídica devem estar de acordo com esse princípio, como os relacionados às sanções penais, custódias cautelares, execução penal, entre outros institutos. O mesmo autor observa que as ações dos agentes públicos e órgãos que atuam contra a criminalidade devem ser regidas pela Constituição com o intuito de preservar a dignidade. Tal cenário de preservação do princípio em análise se concretiza, por exemplo, quando são cumpridos os requisitos legais para a aplicação da prisão cautelar no caso concreto.

Assim, o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana fundamenta a transmutação do sistema inquisitivo para o acusatório e confere ao acusado o direito de ser julgado de forma justa.

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