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A construção de Canudos e a busca pelo direito a uma cidade em os Sertões de Euclides da Cunha

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS CAMPUS UNIVERSITÁRIO DE ARAGUAÍNA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA E TERRITÓRIO

FERNANDA RODRIGUES LAGARES

A CONSTRUÇÃO DE CANUDOS E A BUSCA PELO DIREITO A UMA CIDADE EM

OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA

ARAGUAÍNA (TO) 2018

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FERNANDA RODRIGUES LAGARES

A CONSTRUÇÃO DE CANUDOS E A BUSCA PELO DIREITO A UMA CIDADE EM OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos de Cultura e Território (PPGCULT) da Universidade Federal do Tocantins (UFT) como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Estudos de Cultura e Território.

Orientador: Prof. Dr. Euclides Antunes de Medeiros.

ARAGUAÍNA (TO) 2018

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L173c Lagares, Fernanda Rodrigues.

A construção de Canudos e a busca pelo direito a uma cidade em Os Sertões de Euclides da Cunha. / Fernanda Rodrigues Lagares. – Araguaína, TO, 2018.

160 f.

Dissertação (Mestrado Acadêmico) - Universidade Federal do Tocantins – Câmpus Universitário de Araguaína - Curso de Pós-Graduação (Mestrado) em Estudo de Cultura e Território, 2018.

Orientador: Euclides Antunes de Medeiros

1. Os Sertões. 2. Narrativa. 3. Configurações territoriais. 4. Direito à Cidade. I. Título

CDD 306 TODOS OS DIREITOS RESERVADOS – A reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio deste documento é autorizado desde que citada a fonte. A violação dos direitos do autor (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

Elaborado pelo sistema de geração automatica de ficha catalográfica da UFT com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

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A você, mãe. Por sempre ter permitido que eu me descobrisse e fluísse sem nunca deixar de por mim zelar. Sem a senhora eu não seria quem sou. Sem a senhora nada disso seria possível

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AGRADECIMENTOS

A trajetória na pós-graduação é sempre associada à solidão e, de fato, a escrita de uma dissertação é um trabalho solitário – somente possível a partir de renúncias, as quais incluem a companhia dos que amamos. Mas, ao mesmo tempo, é uma trajetória que não se pode percorrer sozinho, um trabalho que só se constrói com a colaboração de muitos, em intenção e em ação. Aos que estiveram comigo nesse percurso, eu agradeço.

Agradeço aos professores e colegas do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura e Território (PPGCULT) pelas discussões realizadas e amadurecimento proporcionado. À professora doutora Olívia Macedo Miranda de Medeiros por, de forma extremamente generosa, ter me apresentado caminhos e me ofertado instrumentos que me auxiliaram na construção e no seguimento do meu próprio; à professora doutora Luiza Helena O. da Silva por, a partir da disciplina Semiótica do Espaço, também generosamente, ter apontado alguns percalços existentes no caminho que eu construía e, principalmente, por ter me apresentado instrumentos que colaboraram para a reforma em que nele realizei; ao professor doutor Márcio Melo, pelas contribuições já feitas na qualificação.

Aos meus colegas de turma Sheyla, Ítalo, Cassyo, Katiúcia, Vinicius, Mariana, Izarete, Aloísio e Fernando, obrigada pelas contribuições nas discussões e pelo compartilhamento de angústias, medos e planos. Ninguém nos compreenderia tão bem quanto nós mesmos.

Conciliar trabalho e mestrado torna essa trajetória ainda mais árdua. É tempo dividido, mas preocupações e responsabilidades multiplicadas. Assim, me foi fundamental o suporte recebido da equipe de trabalho a qual integro, a Gerência Administrativa do Hospital de Doenças Tropicais da Universidade Federal do Tocantins (HDT-UFT) e, de forma ainda mais concreta, do Setor de Administração. Agradeço a compreensão e o apoio permanentes de toda a “equipe de ouro”. E, de maneira especial, agradeço ao Pedro Alves e à Cynthia Barros por entenderem o processo em que eu estava inserida e aceitarem suprir minhas ausências.

Agradeço ao Eduardo Amorim por ter trilhado comigo boa parte do caminho construído e ter se colocado disposto a me auxiliar em todo o restante. Primeiro incentivador e leitor, ainda na fase da elaboração do projeto foi com ele que tive aquelas que talvez foram minhas interlocuções mais determinantes para as

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definições dos rumos dessa trajetória. Obrigada por isso. Pela generosidade e pelo respeito para com a minha trajetória.

Aos meus pais, Horton e Lúcia; aos meus irmãos, Giselly e Gabriel; minha cunhada e sobrinhos, Milena, Helena e Henrique, agradeço compreenderem minhas ausências – inclusive aquelas em que o corpo estava presente. Aqui incluindo minha tia France, agradeço acreditarem em minhas escolhas e no meu potencial para concretizá-las. Agradeço me incentivarem e se colocarem dispostos a colaborarem, quando não possível de forma prática, através de orações. Vocês são a minha força.

Aos meus amigos Jannine, Aninha, Uallace, Rick, Suzy, Aurélia, Yasmim, Livia, Ítalo, Suzana e Alex; Cássio e Ana; Fernanda, Géssika e Marciléia, agradeço terem continuado a me fazer convites, mesmo diante das minhas repetidas recusas. Agradeço por acreditarem em mim, por entenderem, respeitarem e apoiarem minhas escolhas – ainda quando elas me distanciavam de vocês. Agradeço por me manterem em suas vidas e deixarem a minha mais leve sempre que nos encontramos.

Por fim, agraço especialmente ao meu orientador, o professor doutor Euclides Antunes de Medeiros. Agradeço ao profissional sério, comprometido e respeitador que me concedeu liberdade para traçar o meu próprio caminho na pesquisa, bem como o suporte intelectual necessário para que eu a concretizasse. Agradeço também ao ser humano generoso, pela maneira com que conduziu todo o processo de orientação, por ter sido sensível às minhas dificuldades e por ter acreditado em minha capacidade. Por ter me chamando de pesquisadora antes mesmo que eu me reconhecesse como tal. Sua competência, generosidade e força me trouxeram aprendizados para além da vida acadêmica. A sua dedicação à educação e sua luta pela história da Região dos Vales dos Rios Araguaia e Tocantins são inspiração. Obrigada também por isso.

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RESUMO

Em Os Sertões, Euclides da Cunha constrói narrativamente a paisagem do sertão, especialmente de Canudos. Bem como se dedica a categorizar e avaliar o sertanejo e, mais especificamente, o sertanejo que residia e resistia em Canudos. Ele ainda representa, conforme o que teria presenciado e experienciado no sertão baiano, a relação do sujeito sertanejo com o sertão de Canudos. Provocados por isso, neste trabalho, pretendemos refletir sobre como a obra constrói narrativamente as configurações territoriais de Canudos e em que medida estas revelam pistas da busca pelos seus habitantes do direito ao território e a construção de uma “cidade” enquanto “devir”. Para o alcance desse objetivo, compusemos uma metodologia interdisciplinar com base nos saberes demandados pelo próprio objeto de pesquisa. Metodologia iniciada a partir da consciência de que a reflexão, com base em uma narrativa, exigia de nós a lida com significações, finalidades e valores do autor da obra. Assim como, de aspectos construídos socialmente a partir dela e das nossas próprias experiências enquanto pesquisadores. Escolhemos lidar de forma prioritária com a 5ª edição do livro, publicada pela editora Francisco Alves, em 1914, por esta ser tida como a edição definitiva e por entendermos que os significados da obra se revelam também em sua forma. Tratamos o livro como um projeto político civilizacional instituído pela construção de uma linguagem polifônica em diversas dimensões. Para a análise, adotamos a categoria “paisagem” nas perspectivas de Schama (1996) e Santos (1998); a categoria “território” concebida por Saquet (2013), Raffestin (1993) e, principalmente, Fontanille (2014) e a categoria de “lugar” na perspectiva de Tuan (2013). Nos baseamos na “estrutura de sentimento” desenvolvida por Williams (1979) e na ideia de “stimmung” concebida por Gumbrecht (2014). Por fim, fazemos uso da concepção de território enquanto um Devir e inspirados no Direito à Cidade, teoria político-filosófica desenvolvida por Lefebvre (1968) defendemos Canudos como um território que poderia vir a se tornar uma “cidade diferente”. Sendo o “direito à cidade” para aqueles sertanejos, a objetivação do direito a um território, moldado de acordo com seus interesses, seus ideais e suas condições. O que o tornaria um “lugar” para chamar de seu.

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ABSTRACT

In Os Sertões, Euclides da Cunha narratively constructs the landscape of the backlands, especially of Canudos. As well as dedicating himself to categorizing and evaluating the sertanejo and, more specifically, the sertanejo who resided and resisted in Canudos. He still represents, according to what he would have witnessed and experienced in backlands of the Bahia, the relation of the sertanejo to the backlands at Canudos. For this reason, in this work, we intend to reflect how the work constructs narratively the territorial configurations of Canudos and how these configurations reveal clues of the searching of their inhabitants for the right to the territory and the constructioning of a “city” while “becoming”. To reach this goal, we composed an interdisciplinary methodology based on the knowledge demanded by the research object itself. Methodology started from the awareness of that reflection, based on a narrative, required us to deal with meanings, purposes and values of the author of the book, and of aspects built socially from it and from our own experiences as researchersas well. We chose to analise primarily the 5th edition of the book, published by Francisco Alves, in 1914, because it is considered as the definitive edition and because we understand that the meanings of the work are also revealed in its form. We treat the book as a civilizational political project instituted by the construction of a polyphonic language in several dimensions. For the analysis, we adopted the “landscape” category in the perspectives of Schama (1996) and Santos (1998); the category “territory” conceived by Saquet (2013), Raffestin (1993) and, mainly, Fontanille (2014) and category of “place” in the perspective of Tuan (2013). We are based on the “structure of feeling” developed by Williams (1979) and on the idea of “stimmung” conceived by Gumbrecht (2014). Finally, we make use of the concept of territory as a “Becoming” and inspired by the “Right to the City”, a political-philosophical theory developed by Lefebvre (1968), we defend Canudos as a territory that could become a “different city”. The "right to the city" is for those sertanejos, the objectification of the right to a territory, molded according to their interests, their ideals and their conditions, what would make it a "place" to call his own.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ... 9

2. PAISAGENS E TERRITÓRIO NARRADOS: CANUDOS ... 19

2.1. A narrativa de Euclides da Cunha ... 24

2.2. A construção imaginária da paisagem sentida e narrada ... 36

2.2.1. As dimensões do território de Canudos vazadas pela paisagem construída narrativamente ... 47

3. O SERTANEJO DE CANUDOS: DO PENSAMENTO À LINGUAGEM DE EUCLIDES DA CUNHA ... 58

3.1. A influência da ciência na compreensão do brasileiro por Euclides da Cunha ... 63

3.2. Entre a ciência e a experiência ... 77

3.2.1. A representação do sertanejo de Canudos por Euclides da Cunha ... 88

4. A LUTA: ENTRE O SERTÃO E O LITORAL ... 100

4.1. Projeto civilizador: Da guerra de Canudos à obra de Euclides da Cunha . 107 4.2. A guerra narrada ... 116

4.2.1. Era a luta da sucuri flexuosa com o touro pujante ... 120

4.3. A luta do sertanejo ... 128

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 147

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1. INTRODUÇÃO

Na introdução da 4ª edição da obra Os Sertões de Euclides da Cunha, publicada na coleção A Obra-prima de Cada Autor pela editora Martin Claret em 2015, o professor Adelino Brandão afirma, dentre outras coisas, ao seu respeito:

[…] Campanha militar narrada, porém, de tal maneira, analisada de tal modo, discutida com tal sapiência positiva, lucidez, espírito crítico, implicações científicas, imparcialidade ante os fatos, e ao mesmo tempo, tamanha exaltação na defesa dos direitos das vítimas e na condenação dos responsáveis por aquela tragédia nacional, em uma linguagem de força artística tão original e superior, que dariam a Os Sertões o título de "Bíblia da nacionalidade", como obra prima da épica em prosa, na língua portuguesa, em todos os tempos. Não à-toa, seria dito mais tarde: Euclides da Cunha ficou para nós como Homero para os gregos, Dante para os italianos, Cervantes para os espanhóis, Shakespeare para os ingleses, Sarmiento para os argentinos, Goethe para os alemães. Sem deixar de ser também, como o observara José Veríssimo, um vasto e profundo tratado de ciências humanas, inovador nos métodos, nas teorias e nas conclusões, nas pesquisas de campo e na reformulação dos conceitos, sobre os estudos do homem, do meio e da sociedade e cultura brasileiros, especialmente os sertanejos. (BRANDÃO, A. 2005, p.19 e 20).

O texto de Adelino Brandão disposto acima, como se viu, sintetiza a complexidade da obra e o prestígio conquistado por seu autor. Assim, ele sinaliza a razão de Os Sertões servir de objeto para tantas pesquisas. Como se viu, ele enaltece a obra ao mencionar a riqueza da linguagem narrativa de Os Sertões e a classifica como um vasto e profundo tratado de ciências humanas. Tratado responsável pela reformulação dos conceitos sobre os estudos do homem, do meio, da sociedade e cultura brasileiros, especialmente do sertanejo.

Não é por acaso que, mais de um século após sua publicação, ainda haja discussões acerca da classificação da obra. Obra ora apresentada como literatura, ora como tratado científico de geografia, de história ou de botânica; ou, ainda, parábola da história brasileira. Euclides da Cunha, além de engenheiro e jornalista, projetou-se enquanto literato e intelectual por meio de Os Sertões. Isso se deu em detrimento da mobilização de diversas teorias científicas em voga na época e também por o autor deixar vazar, por meio de uma linguagem artística, constituída por ritmos, figuras de linguagem e poética, diferentes perspectivas em sua narrativa.

Esse escritor foi enviado ao sertão da Bahia pelo jornal O Estado de São Paulo como correspondente para cobrir a Guerra de Canudos. Entretanto, mais do que narrar e analisar os acontecimentos da guerra, em Os Sertões, Euclides da

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Cunha constrói imaginativamente a paisagem do sertão nordestino (especialmente de Canudos). Assim como se dedica a categorizar (e avaliar) o sujeito correspondente a tal território: o sertanejo (e, mais especificamente, o sertanejo que residia e resistia em Canudos). O autor também representa, conforme o que teria presenciado e experienciado no sertão baiano, a relação do sujeito sertanejo com o sertão.

Tudo isso instiga pesquisadores de diferentes campos do saber. Nós, particularmente, fomos provocados pelo o desejo de refletir sobre como a obra constrói narrativamente as configurações territoriais de Canudos. Bem como em que medida estas configurações revelam pistas da busca pelo direito ao território de Canudos, por parte de seus habitantes, e da construção de uma “cidade” enquanto devir.

Além disso, o exame da obra nos despertou a certeza de que tal reflexão só se torna possível através da composição de um processo interdisciplinar. Especialmente no que tange aos procedimentos teóricos e metodológicos. A heterogeneidade da obra faz com que a inobservância de diversos dos seus elementos, por simplesmente serem tradicionalmente atribuídos a outras disciplinas e não àquela a que a pesquisa está ordinariamente vinculada, implique uma perda irreparável do escopo de significação do texto.

Juntamo-nos a Pombo (2008, p.24) quando ela afirma que “Há […] objectos que uma única tradição disciplinar não poderia abarcar nem sequer constituir como objectos de conhecimento, isto é, que só existem como objectos de investigação porque, justamente, é possível pôr em comum várias perspectivas interdisciplinares”. Cremos, portanto, que Os Sertões, plural desde o título, como coloca Souza (2003), seja um deles.

Por isso, mesmo conscientes do risco de sermos apontados como “violadores do estatuto científico”, decidimos por nos desprender da ideia limitadora de que existem propriedades privadas. Sejam elas objetos, teorias ou métodos de cada disciplina. Assim, nos comprometermos, antes e acima de qualquer coisa, com o objeto de nossa pesquisa. Consideramos a primazia do objeto sobre a teoria, pois é este quem “demanda” determinados saberes e/ou técnicas. Isso porque, de outro modo, e em qualquer investigação, o objeto não seria outra coisa senão um “pretexto” ou um “coadjuvante” para a comprovação ou a refutação de ideias e valores. Postura que ignora as especificidades e provocações teórico-metodológicas

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advindas do próprio objeto de pesquisa. Especificidades as quais, devemos ressaltar, são os elementos fundamentais para o avanço e aprofundamento de qualquer área do conhecimento. Para nós, a forma com que o pesquisador busca lidar com essa questão é o que mantém disciplinas “vivas” ou as “condena” ao ostracismo. Conforme Brandão, L. (2016) abaixo, é assim que agem os pesquisadores das humanidades na lida com objetos interdisciplinares:

Ao despir-se da disciplina, o pesquisador da Ciência ou das Humanidades elege o objeto como seu compromisso primeiro. É com ele que estabelece sua aliança e somente por ele que recorrerá às disciplinas quando julgar necessário. A elas restará o papel de ferramentas suficientemente importantes, mas jamais acima dos objetos do mundo. (BRANDÃO, L. 2016, p.13).

No entanto, ao não “sujeitarmos” nossa pesquisa a uma disciplina ou campo do saber específico, não nos desobrigamos de seguir uma metodologia em sua realização. Acreditamos na metodologia como elemento garantidor de credibilidade, validade, legitimidade e relevância na pesquisa. Pois, somente a aplicação de procedimentos metodológicos diferencia saberes alcançados pela pesquisa daqueles construídos em outros espaços e conjunturas sociais, culturais e materiais. O que defendemos é a legitimidade de se compor uma metodologia interdisciplinar com base no objeto de pesquisa.

Em nosso caso, essa composição se inicia a partir da consciência de que a reflexão com base em uma narrativa, sobretudo de grande visibilidade, caso de Os Sertões, exige a lida com significações, finalidades e valores não apenas do autor da obra. Mas também com as construídas socialmente a partir dela e das que nós mesmos, investigadores, construímos/reproduzimos com base em nossas formações. Isso, no entanto, não acarreta que seu resultado seja menos “seguro” do que se se tratasse de uma outra espécie de representação.

Entendermos não existir diferença substancial entre quaisquer tipos de narrativas, mas diferenças de valoração. Sabemos que a precariedade do trabalho com relatos/registros/narrativas é sempre a mesma. Assim, tal situação, em razão da cultura disciplinar em que estamos inseridos, nos remete à discussão acerca de qual seria o estatuto da obra Os Sertões: científico, detentor da veracidade ou literário, associado à ficção. Sobre ela, nos posicionamos, em razão da necessidade de que

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se tenha clareza da composição metodológica interdisciplinar a nós exigida por nosso objeto de pesquisa.

Antes, porém, explicamos porque entendemos não existir diferença substancial entre as narrativas. Conforme White (1994), o discurso narrativo histórico é supostamente um relato preciso de determinados acontecimentos e usualmente tomado como seguro e confiável. Contudo, na verdade, como toda e qualquer narrativa, ele dá a conhecer a perspectiva de um determinado sujeito ou grupo (pertencentes a determinadas estratificações sociais e culturais). Perspectiva que, por sua vez, possui ideologias, interesses, valores e saberes axiomáticos necessariamente parciais. Parcialidade referente à própria natureza do discurso, como nos aponta Bakhtin (2006). Isso implica que a narrativa possui, a exemplo de qualquer outro produto da atividade comunicativa humana, elementos eminentemente relativos e, em certa medida, de ficção.

Também nesse sentido, Latour e Woolgar (1997) defendem que os fatos científicos são socialmente construídos. Portanto, existem características literárias no fazer científico. Especialmente relacionadas à busca dos cientistas pela capacidade de convencimento e aos motivos e influências individuais e sociais que os conduzem aos seus objetos de pesquisa. Ou seja, todos esses elementos envolvidos no fazer direcionam a maneira como eles os mobilizam.

Assim, todo(a) e qualquer registro/narrativa admitido(a) como “verdadeiro(a)” têm, em sua estrutura formal e de conteúdo, os mesmos elementos daquele(a)s tomadas enquanto ficção ou mito. O valor a ele(a)s atribuído (de verdadeiro, falso ou mitológico) é fruto de efeitos de sentido inteiramente dependentes, no limite, de suas relações com outras narrativas e sujeitos/grupos.

A própria natureza da relação entre o homem e o mundo, conforme aponta Bakhtin (2006), é sempre mediada pela palavra. De modo que, mesmo termos e noções caras às áreas que se propõem a uma abordagem pretensamente objetiva do mundo, serão sempre produtos de atividades discursivas. Por seu turno, toda atividade discursiva – não somente aquelas estritamente linguísticas e literárias – sempre é contingenciada pelos contextos de produção, circulação e recepção. Além de incluir valores e saberes vinculados aos sujeitos envolvidos na comunicação. Isso implica que tais atividades têm um caráter irrevogavelmente subjetivado, por um lado, mas também dependente do outro, conforme demonstra Bakhtin (2006).

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Considerando isso e os elementos que compõem a narrativa de Euclides da Cunha, nos posicionamos quanto à discussão acerca do estatuto científico ou literário de Os Sertões. No desenvolver desta dissertação consideramos, sem que houvesse subordinação de uma pela outra, que o seu texto combina características dessas “duas maneiras de conhecer o mundo”. Duas maneiras mobilizadas para representar o sertão, o sertanejo e a guerra de Canudos. Forma de proceder que vai ao encontro do apontado por White (1994) sobre a história possuir elementos de ficção e a ficção possuir elementos de verossimilhança. Assim, ela vai ao encontro do esclarecimento realizado por Frye (1973), também, no sentido de que, embora não seja necessariamente envolvida com os mundos do fato e da verdade, a literatura também não se afasta necessariamente deles. Ou seja, ela pode entrar em todo tipo de relações com eles: do mais ao menos explícito.

Feitos esses esclarecimentos, passemos à breve apresentação de como foi tecida esta dissertação. Pesquisa nascida a partir da crença de que, para refletir sobre a abordagem territorial, é preciso dar destaque à atuação do homem. Com base nessa ideia, pensamos que a narrativa de Euclides da Cunha pode contribuir para o reconhecimento do próprio homem enquanto sujeito que atribui sentido às práticas que empreende. E, portanto, capaz de erigir novos territórios conforme suas necessidades e seus valores.

Entre os nossos objetivos estão: problematizar sobre como a obra Os Sertões constrói narrativamente as configurações territoriais de Canudos. Bem como, refletir em que medida estas configurações revelam pistas da busca pelos sertanejos do direito ao território de Canudos e à construção de uma “cidade” enquanto devir. Para isso, fazemos uso da 5ª edição da obra, publicada em 1914 pela editora Francisco Alves, e da edição publicada pela editora Martin Claret Ltda na coleção a Obra-prima de Cada Autor em 2015.

A escolha pela 5ª edição se deu em razão de ser ela considerada a edição definitiva da obra. Assim como, por trazer as últimas emendas realizadas pelo próprio Euclides da Cunha e apontadas em um exemplar da 3ª edição encontrado, após sua morte, entre seus livros. Exemplar que contava com a indicação em seu anterrosto: “livro que deve servir para a edição definitiva (4ª)” (CUNHA, 1914). Esclarecemos que antes desse exemplar ser encontrado em 1914, após a morte do autor (ocorrida em 1909), a 4ª edição já havia sido publicada em 1911. O que explica o fato do material preparado por Euclides da Cunha para a 4ª edição vir a compor

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apenas a 5ª edição da obra. No entanto, esta edição não contém a nota preliminar do autor. Em razão disso, e considerando ser de grande valia para a análise de Os Sertões o texto dessa nota, fazemos uso também da edição publicada pela editora Martin Claret Ltda na coleção A Obra-prima de Cada Autor.

Entendemos que os significados da obra se revelam também em sua forma. Isso, além de motivar nossa escolha pela adoção da 5ª edição da obra para as análises, também foi considerado na maneira como conduzimos nossa reflexão. Levando em consideração o determinismo expresso na divisão do livro em três partes: A Terra, O Homem e a Luta, onde cada uma constrói-se em decorrência lógica da anterior, acreditamos que promover uma reflexão a partir desse mesmo ordenamento ajuda-nos a compreender o sertão, o sertanejo e o território de Canudos. Território construído por este sertanejo a partir desse sertão e da luta que nele acontece. Por isso, optamos em seguir a mesma ordem na apresentação de nossos capítulos.

Assim, esta dissertação será composta de três capítulos. No primeiro deles, refletimos sobre como é urdida a narrativa de Euclides da Cunha; assumimo-la como um projeto político civilizacional instituído pela construção de uma linguagem polifônica em suas diversas dimensões; identificamos os elementos pelos quais ela é composta e a forma com que estes são mobilizados e nos propomos a investigar a construção narrativa da terra em Os Sertões. Para isso, selecionamos algumas passagens que construíram narrativamente a paisagem do sertão baiano e passamos a interpretá-las a partir dos elementos compositores da narrativa. Elementos identificados a partir de uma leitura completa da obra. Leitura que compreende as influências do naturalismo literário e os efeitos de iconicidade nela produzidos. Além de, de um modo especial, salientarmos os elementos que exploram a experiência que Euclides da Cunha teria vivido no sertão baiano. Como, por exemplo, a atuação da atmosfera e do clima do lugar sobre ele. Condições (re)construídas narrativamente a posteriori de modo a alcançar seu leitor, nos termos da ideia de Stimmung desenvolvida por Gumbrecht (2014).

Optamos por selecionar, inicialmente, passagens que figuravam paisagens naturais da terra para, a partir da interpretação delas, passarmos a refletir e selecionar passagens que figuravam a paisagem artificial1 do sertão baiano. Bem

1 Milton Santos, aqui de forma breve, explica ser a paisagem natural aquela ainda não mudada pelo

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como, as que traziam as configurações territoriais de Canudos construídas narrativamente por Euclides da Cunha e os significados por elas vazados. Para isso, adotamos a categoria “paisagem” nas perspectivas de Schama (1996) e Santos (1998), as quais alinham cultura e natureza e a categoria “território” concebida por Saquet (2013), Raffestin (1993) e Fontanille (2014) de forma integradora: material e imaterial. A partir da narrativa, também passamos, de forma breve, pela discussão acerca de “territorialização” realizada por Haesbaert (2004) para então chegarmos à categoria de “lugar”, entendida na perspectiva de Tuan (2013) como espaço de significação e, mais do que isso, de afeto e percepção.

No segundo capítulo, consideramos a discussão realizada no primeiro. Discussão que toca tanto acerca da construção narrativa da terra, pelos motivos já apresentados, quanto da forma com que é tramado todo o texto de Os Sertões. A partir disso, então, nos propomos a estudar a construção narrativa do sertanejo.

Para isso, novamente, selecionamos passagens da obra para buscar entender a elaboração do sertanejo. Primeiro, a partir do pensamento inicial de Euclides da Cunha, quando foi dado destaque às teorias científicas apontadas na obra como formadoras de suas concepções. E, depois, a partir de sua narrativa e das mudanças propostas por tal. Quando o autor indica que o mestiço do sertão não se enquadrava nas concepções prévias que possuía sobre ele. Momento em que é dado destaque a sua experiência no sertão. Fazemos isso a partir da ideia de “estrutura de sentimento” desenvolvida por Williams (1979).

Feito isso, passamos a analisar a alegoria Hércules-Quasímodo, empregada pelo próprio Euclides da Cunha para caracterizar o sertanejo, entendendo-a na narrativa como ideia-força2. Categoria analítica que busca entender o sentido de

uma representação construída intelectualmente e expressa retoricamente. 2 Expressão mobilizada por Abraham Magendzo (2009), segundo esse autor as ideias-força “Estão

fortemente enraizadas no tempo histórico, entendido como criação, como produção de diferenças e diversidades, como transformação, como movimento, em definitiva, como um processo”. Tomamos aqui ideia-força no sentido de uma representação de algo por meio do pensamento, expresso retoricamente, com vistas a uma proposição. Ou seja, representação construída intelectualmente e dotada de uma intencionalidade que produza ação, no caso de Euclides da Cunha, o anseio de civilizar o sertão. Nesse sentido o enraizamento no tempo histórico das representações do atavismo do sertanejo e a oposição entre litoral civilizado e sertão “bárbaro” são mobilizados porEuclides da Cunha por meio de metáforas que enunciam um desejo civilizador. MAGENDZO, Abraham. Pensamiento e ideas-fuerza en la educación en derechos humanos en Iberoamerica Santiago (Chile).OIE-Chile; CREALC-UNESCO, 2009.

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Representação dotada de uma intencionalidade de que se produza na ação, no caso em questão, o anseio de Euclides da Cunha de civilizar o sertão.

No terceiro capítulo, realizamos uma análise acerca dos significados do sertão e do litoral no final do século XIX e presentes na obra. Por conseguinte, refletimos sobre as oposições litoral/sertão, civilização/barbárie e cultura/natureza presentes na base de Os Sertões. E, a partir das reflexões promovidas nos dois capítulos anteriores, realizamos o reconhecimento de Canudos. Território construído narrativamente por Euclides da Cunha tendo como base um espaço por ele próprio figurado. Figuração que tem como foco uma terra não categorizada por Hegel3 e a

defesa do sertanejo como o cerne da nacionalidade brasileira. Nesse capítulo, em poucas palavras, tratamos da intenção civilizatória de Os Sertões. Assim como, do sentido de “missão civilizadora” dado à guerra em determinados momentos da narrativa e do projeto político que constitui o seu próprio texto. Nesse capítulo, damos também destaque às transformações que teria sofrido Euclides da Cunha através do processo de territorialização vivida no sertão da Bahia.

Também nesse capítulo, abordamos a guerra construída narrativamente por Euclides da Cunha. Bem como, os motivos trazidos na sua obra como tidos pelos homens do litoral para combater Canudos e os apontados como possuídos pelos canudenses para lutar em resistência ao ataque do Estado. Ainda refletindo sobre o significado da guerra, exploramos a construção da narrativa euclidiana enquanto plasmagem entre as atmosferas e as estruturas de sentido/sentimento referenciadas culturalmente em uma formação científica e literária do escritor. E, finalmente, analisamos mais um momento de Os Sertões que entendemos como ideia-força: a metáfora da luta da sucurti flexuosa com o touro pujante.

Por fim, nos focando na luta do sertanejo, retomamos a discussão promovida por Fontanille (2014) acerca de território. Discussão introduzida no primeiro capítulo através da mobilização das dimensões de território por ele debatidas. A partir daí, fazemos uso, por meio dessas mesmas dimensões, da defesa do território como um Devir. Por meio desse raciocínio, perseguimos com a hipótese de que a narrativa de

3 Segundo Antonio Filho, F. D. (2003), Euclides da Cunha compreende que, em razão das

peculiaridades que apresenta, o sertão (enquanto paisagem biogeográfica) não se enquadra em nenhuma categoria de Hegel. Com base na ideia de que as sociedades podem ser explicadas pelo tipo de paisagem geográfica e física em que vivem, Cunha cria o subtítulo: “Uma categoria geográfica que Hegel não citou” para apresentar os caracteres físicos e naturais que tornam o sertanejo das caatingas uma “sub-raça” exclusiva.

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Euclides da Cunha dá pistas de que a luta do sertanejo é pelo território de Canudos. Especialmente através das diversas denominações atribuídas à ele. Isto é, em diversos momentos Canudos é percebida pelo autor como uma “cidade” e, portanto, designada como tal diante do leitor de seu livro. Por isso, daremos ênfase no Devir que seria Canudos. Uma cidade diferente das pensadas e das existentes até aquele momento. Em última instância, um território que não se “encaixa” na própria definição de cidade cristalizada em vários campos disciplinares.

Acerca das definições e reduções praticadas pelos campos disciplinares, Lefebvre (2006) escreve:

A redução? Ela pode ir longe. Pode “depositar-se”, na prática. As pessoas, dos diversos grupos e classes, sofrem - desigualmente - os efeitos de múltiplas reduções pesando sobre suas capacidades, suas idéias, seus “valores” e, no final das contas, sobre suas possibilidades, seu espaço e seu corpo. Os modelos reduzidos, construídos por tal ou qual especialista, nem sempre são abstratos, de uma vã abstração; construídos em vista de uma prática redutora, com um pouco de sorte eles conseguem impor uma ordem, compor os elementos dessa ordem. Por exemplo, no urbanismo e na arquitetura. Em particular, a classe operária sofre os efeitos dos “modelos reduzidos”: de espaço, de consumo, da “cultura”, como se diz. (LEFEBVRE, 2006, p. 156-157)

Assim, consideramos o efeito redutor de sentidos dos modelos de cidade construídos e/ou reconhecidos nos campos disciplinares apontado por Lefebvre acima. Da mesma maneira que as múltiplas reduções sofridas pelos sujeitos nos espaços edificados e/ou identificados como cidade a partir de tais modelos. Consequentemente, nos distanciamos dos modelos redutores nesta investigação e somos inspirados pelo direito à cidade, plataforma político-filosófica desenvolvida por Lefebvre (2016). Forma de conceber que aponta para a possibilidade de os sujeitos assumirem a condição de “donos da cidade”, de modo a criarem e reorganizarem-na de acordo com suas ideias, necessidades e desejos.

Desse modo, ao nos inspirarmos no direito à cidade para refletir acerca da luta do sertanejo de Canudos, não defendemos a existência de uma vida urbana naquele lugar. Assim como, a princípio, também não a classificamos como uma cidade, conforme os parâmetros acadêmicos atualmente adotados. Trabalhamos com o entendimento de que Canudos é um território que pode se tornar uma “cidade diferente”, ou mesmo, “bárbara”, conforme a construção narrativa de Euclides da Cunha. Figurada como “urbs monstruosa”, Canudos ainda pode representar, conforme o texto de Os Sertões, um território que seja a materialização da

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esperança de seus construtores e moradores. Trabalhamos, sobretudo, com o direito dos sertanejos sobre Canudos como território. O direito de possuí-lo, defendê-lo e reconstruí-lo conforme seus desejos e necessidades. Os quais podem e, aparentemente, são em muitos aspectos, distintos dos de outras comunidades. Inclusive daquela a que pertence Euclides da Cunha.

Nesse sentido, o “direito à cidade” para aqueles sertanejos, e em nossa opinião, seria a objetivação do direito a um território, moldado de acordo com seus interesses, seus ideais e suas condições. Feito que o tornaria um “lugar” para chamar de seu. Concordamos com Brandão, L. (2016) quando diz que nas Humanidades “não se escreve apenas o que já se sabe, o que já se pensou, mas se escreve para saber, para pensar” (BRANDÃO, L. 2016, p.7). Para nós, na maioria das vezes, diferentemente do que ocorre nas ciências ditas naturais, o texto não tem apenas a função de comunicar a pesquisa, já que ele é parte do próprio processo e que o “ato de escrever seria o laboratório de pensamento do pesquisador” (BRANDÃO, L. 2016, p.7).

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2. PAISAGENS E TERRITÓRIO NARRADOS: CANUDOS

Abordando a Guerra de Canudos, ocorrida entre os anos de 1896 e 1897, no sertão da Bahia, o livro Os Sertões foi lançado em dezembro de 1902, cinco anos após o fim do trágico episódio representado em seu texto. O reconhecimento da obra pelo público e pela crítica foi imediato, de modo que, diante do grande êxito de vendas, várias edições foram publicadas em um curto intervalo de tempo.

O mencionado sucesso trouxe uma série de discussões acerca da obra e de seu autor. Salientamos que o propósito principal deste trabalho não é analisar a recepção de Os Sertões. Entretanto, entendemos, em razão da forma com que conduzimos a reflexão promovida nesta dissertação, que um dos pontos debatidos já pela crítica da época do lançamento do livro merece ser aqui enfatizado. Esse ponto é, ainda hoje, objeto de discussões por parte de especialistas e, portanto, merece ser por nós tratado, a saber: o do enquadramento da obra como científica ou literária.

As discussões em torno do reconhecimento de Os Sertões como obra científica ou artística são extensas. De modo rápido, a alegação de que ela seja científica defende que é portadora de um discurso dotado de veracidade. Justificativa que se assenta, principalmente, na defesa de que seu texto aborda um acontecimento histórico nacional e conta com um conteúdo rico e variado de diversas disciplinas disposto ao longo de sua narrativa. Enquanto a alegação de que seja literária defende que possui indícios de ficcionalidade, ao mesmo tempo em que é construída de forma artística ao apresentar ritmo, figuras de linguagem e poesia. Fatores que ressaltariam o traço estético de sua escrita.

Regina de Abreu (1998), ao versar sobre tal questão, se posiciona no sentido de que, em Os Sertões, temos a ciência em serviço da literatura. Já Luiz Costa Lima (1997), representando os estudiosos do outro lado da questão, sem deixar de considerar a expressão artística do livro, defende que na sua composição há uma hierarquia de modalidades de discursos, cabendo ao literário o lugar de ornato.

Apesar desses posicionamentos, a corrente mais aceita é a que trata Os Sertões como um livro híbrido, isto é, marcado pelo consórcio entre ciência e arte. Entendimento iniciado com a tese de dupla inscrição levantada por José Veríssimo logo após o lançamento da obra e, a nosso ver, fortalecido pelo ingresso de Euclides

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da Cunha tanto na Academia Brasileira de Letras (ABL) quanto no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).

Em um artigo publicado no jornal Correio da manhã de 03 de dezembro de 1902, José Veríssimo escreveu:

O livro, por tantos títulos notaveis, do Sr. Euclydes da Cunha; é ao mesmo tempo o livro de um homem de sciencia, um geographo, um geologo, um ethnographo; de um homem de pensamento, um philosopho, um sociólogo, um historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista, que sabe vêr e descrever, que'vibra e sente tanto aos aspectos da natureza, como ao contacto do homem, e estremece todo, tocado até ao fundo d'alma commovido até ás lagrimas, em face da dôr humana venha elladas condições fataes do mundo physico, as « seccas » que assolam os sertões do norte brazileiro, venha da estupidez ou maldade dos homens, como a campanha de Canudos. (VERÍSSIMO, 1904, p.22-23).

Em seu artigo, José Veríssimo indica a utilização da linguagem por Euclides da Cunha, em Os Sertões, de três modos diferentes: como a exposição dos “fatos em si”. Modo atribuído à ciência e representado por conhecimentos como a geografia, a geologia e a etnografia. Bem como, a linguagem como relato de seus pensamentos ou interpretações. O que o crítico faz apontando para a filosofia, a sociologia e a história. E, finalmente, a linguagem como a exploração de sentimentos. Razão pela qual o autor é chamado de poeta, romancista e artista por Veríssimo.

A atribuição de diversas facetas ao Euclides da Cunha por José Veríssimo não se dá sem críticas. Embora principalmente enalteça Os Sertões, esse último escritor (1904) também aponta vícios na linguagem e no estilo daquele. Muito embora realize as críticas de modo a minimizar tais fragilidades na obra em face da conjunção do “homem de ciência” com o “homem de pensamento” e com o “homem de sentimento”. Ao escrever sobre a falta de simplicidade, em sua concepção a maior virtude de qualquer estilo, na escrita de Euclides da Cunha, Veríssimo finaliza afirmando que esse é um defeito de quase todos os cientistas que fazem literatura.

A censura de Veríssimo aos “modos de dizer” (VERÍSSIMO, 1904, p.23) de Euclides da Cunha é explicada por Dias (2013) a partir da concepção restrita de literatura do primeiro escritor. Para ele, literatura era sinônimo de boas ou belas letras, ou seja, escrito elaborado com os artifícios de invenção e de composição, visando a despertar prazer intelectual no leitor. Assim, por infringirem o zelo com a linguagem requerido às belas letras, os modos de dizer de Euclides da Cunha não

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poderiam ser considerados “nem necessários, nem bellos” (VERÍSSIMO, 1904, p.23).

Dias (2013) também faz entender que a tese de Veríssimo é de dupla inscrição, apesar de este crítico destacar três e não duas facetas do autor de Os Sertões. Isto ocorre em razão de ser adotado por Veríssimo o critério retórico das belas-letras que não diferenciava o gênero literário e a escrita histórica. Essa não diferenciação por parte dos críticos do começo do século XX entre literatura e história é um dos argumentos utilizados por Lima, C. (2009) para ir contra o reconhecimento da dupla inscrição de Os Sertões apesar do posicionamento de Veríssimo. Segundo aquele, uma obra não pode ser simultaneamente historiográfica e literária, pois tal entendimento implicaria em ignorar tanto o trabalho dos antiquários quanto a concepção romântica de literatura.

Contudo, Veríssimo não parece ignorar tais aspectos ao indicar as diversas facetas de Euclides da Cunha em Os Sertões. Quanto à literatura, sua presença é reconhecida pelo crítico através da exploração que Euclides da Cunha faz de sentimentos em sua obra. Veríssimo chega a nomear o autor de Os Sertões de romancista, além de artista e poeta, em sua crítica. Quanto à história, o que Veríssimo faz em relação a ela é relacioná-la ao “homem do pensamento”, juntamente com a filosofia e a sociologia. Constatação que não ignora ou desvaloriza o trabalho dos antiquários, como sugerido por Lima, C. (2009), mas que reconhece a liberdade criativa do escritor (liberdade, em algumas épocas, mais rígida). Em sua tese de dupla inscrição de Os Sertões, Veríssimo aponta que a história aparece no livro associada aos pensamentos e às interpretações do seu autor, o que vai ao encontro do apontado por White (1994) de que a história possui elementos de ficção, assim como a ficção possui elementos de verossimilhança.

Assim, nem a explicação de Lima, C. (2009) para a impossibilidade de uma obra ser simultaneamente historiográfica e literária, e nem a classificação da história como relato estritamente verídico e da literatura como narrativa ficcional, são argumentos que se sustentam. Apesar de reconhecermos serem distintos o gênero literário e a escrita histórica, a construção de um texto que una literatura e história nos parece absolutamente possível.

Sobre o último argumento, trazemos o que White (1994), no ensaio O texto como artefato literário, escreve sobre elementos de ficção na história:

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Os acontecimentos são convertidos em estória pela supressão ou subordinação de alguns deles e pelo realce de outros, por caracterização, repetição do motivo, variação do tom e do ponto de vista, estratégias descritivas alternativas e assim por diante - em suma, por todas as técnicas que normalmente se espera encontrar na urdidura do enredo de um romance ou de uma peça [...] Considerados como elementos potenciais de uma estória, os acontecimentos históricos são de valor neutro. Se acabam encontrando o seu lugar numa estória que é trágica, cômica, romântica ou irônica (...) isso vai depender da decisão do historiador em configurá-los de acordo com os imperativos de uma estrutura de enredo ou mythos, em vez de outra (WHITE, 1994, 100 e 101.)

White aponta para a presença de elementos de ficção na história ao dissertar sobre o modo de composição de uma trama. Faz isso ao alegar que o acontecimento histórico, de valor neutro, é convertido em estória de acordo com a configuração decidida pelo historiador. Elaboração que, segundo o autor, aproxima a narrativa histórica da urdidura do enredo de um romance ou de uma peça. De modo que hoje se reconhece que os fatos históricos são compostos de um estrato profundo de ficcionalização; muito embora, como defendido por Ginzburg (2007), a narrativa historiográfica possua um princípio de realidade que se constitui como evidência da coisa em si.

Com uma linha de raciocínio não muito distante da que levou White (1994) a reconhecer e defender a presença de elementos de ficção na história, Latour e Woolgar (1997) defendem que os fatos científicos são socialmente construídos. Para isso, afirmam existir características literárias no fazer científico. Nas palavras dos autores, isso ocorre em razão especialmente da busca dos cientistas por convencimento e influências de motivos individuais e sociais (extracognitivas) sobre as atividades e escolhas deles.

É preciso endossar que Latour e Woolgar (1997) não negam a “realidade”, mas se posicionam no sentido de afirmar que a ciência não é “pura”, a-histórica ou não-humana. Quanto a isso, eles mesmos afirmam: “longe de nós a idéia de que os fatos - ou a realidade – não existem. Neste ponto, não somos relativistas. Apenas afirmamos que essa ‘exterioridade’ é consequência do trabalho científico, e não sua causa” (LATOUR; WOOLGAR, 1997, p. 199).

Já o oposto, a presença de elementos de verossimilhanças na literatura, área tradicionalmente relacionada com ficção em razão da liberdade de criação imaginativa que permite aos seus autores, também ocorre. Northrop Frye (1973), sobre isso, esclarece: apesar de não ser necessariamente envolvida com os mundos do fato e da verdade, a literatura também não se afasta necessariamente de desses

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elementos, podendo entrar em todo tipo de relações com eles, do mais ao menos explícito (FRYE, 1973, p.95 - 96). No mesmo sentido, Tuan (2013) destaca o poder da arte literária de “[...] chamar a atenção para áreas de experiência que de outro modo passariam despercebidas” (TUAN, 2013, p.200).

Apesar disso, quando relacionada à verdade e/ou à produção de conhecimento, a literatura ainda é frequentemente tratada com descrédito, diferentemente dos conhecimentos científicos e históricos. Considerando isso, como estratégia metodológica nos distanciamos do critério retórico das belas-letras, supostamente adotado por Veríssimo na construção da tese da dupla inscrição de Os Sertões, o qual não diferenciava o gênero literário e a escrita histórica, e entendemos inclusa a história no modo de ver o mundo da ciência apresentado por Fiorin (2008).

Na obra Em busca do sentido, Fiorin (2008) escreve: Há duas maneiras de conhecer o mundo. Uma é a da ciência, que vê a realidade como um espaço em que tudo está catalogado e separado. Denotativa e parcial, define e distingue sempre de maneira incompleta (FIORIN, 2008, p.83). A outra é a da literatura que, vinculada ao mundo dos sentimentos, é uma visão com cores intensas e sensações táteis muito vivas. Ela é a atividade humana que “apreende os sentimentos contraditórios que movem os homens” (FIORIN, 2008, p.83).

Considerando tal explicação, entendemos que Euclides da Cunha combinou características dessas “duas maneiras de conhecer o mundo” para representar o sertão, o sertanejo e a guerra de Canudos. Comumente explicada no resultado de uma inclinação literária desde cedo apresentada, de uma formação cientificista recebida na escola militar e de uma experiência marcante em Canudos, o autor de Os Sertões utiliza com frequência termos técnico-científicos e recursos literários em sua aparente busca de decifrar e representar com precisão o sertão e o sertanejo, por exemplo, “catalogando” as espécies da flora sertaneja e definindo o homem do sertão através da sua distinção do homem do litoral. Essa combinação de maneiras faz pensar que o autor de Os Sertões buscou autoridade perante seus pares revelando (inclusive através da citação a cientistas e teorias) influências do positivismo, determinismo e naturalismo.

Por outro lado, a narrativa da obra em questão é capaz de despertar no leitor ”sensações táteis muito vivas”; ao mesmo tempo em que manifesta em “cores intensas” sua sensibilização e admiração acerca do sofrimento e da força do

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sertanejo. Nela são percebidos elementos da ciência, da história e da literatura. Assim sendo, o que justifica a tese da dupla inscrição da obra é essa hibridez que ela apresenta e que justifica a forma como a mesma é classificada atualmente.

No entanto, é preciso considerar que a narrativa de Os Sertões não traz apenas a abordagem de teorias científicas traduzidas em uma linguagem poética por parte de um observador que esteve in loco. Ainda que o próprio Euclides da Cunha tenha estado, por poucos dias, no “cenário” de um acontecimento que existiu, ou seja, a Guerra de Canudos, a obra não se trata de uma pura descrição histórico-geográfica. A tessitura de Os Sertões possibilita ao seu leitor “ver” o “mundo” construído narrativamente de uma maneira que não se encaixa comodamente na classificação supracitada de Fiorin (2008). Isso porque, mais do que reunir duas formas de entender o mundo, em muitos momentos, a obra propriamente as funde.

Assim, Euclides da Cunha urdiu um discurso de persuasão que contribuiu de forma relevante para a construção do pensamento social brasileiro acerca do sertão e do sertanejo. Ideias relacionadas à civilização do sertão são apresentadas através de estratégias retóricas que parecem buscar convencer da viabilidade e da proficuidade de modernizar o sertão e civilizar o sertanejo.

Nesse sentido, entendemos a narrativa de Os Sertões não só como um discurso híbrido, formado pela presença de elementos científicos, históricos e literários. Mas, principalmente, como um projeto político, civilizacional, instituído pela construção de uma linguagem polifônica em suas diversas dimensões. De modo que, na análise realizada nesta dissertação, não focamos na classificação da obra. Nosso olhar está voltado essencialmente ao texto de Os Sertões, “isto é, o tecido dos significantes que constitui a obra” (BARTHES, 2007, p.16).

2.1. A narrativa de Euclides da Cunha

Em consonância com essa linguagem polifônica, Euclides da Cunha promove em seu texto a interação da razão e da imaginação. Isso é feito ao construir narrativamente na primeira parte de Os Sertões, intitulada A Terra, e nas outras duas, O Homem e A Luta, em menores proporções, as paisagens do caminho que supostamente percorreu ao cumprir com a missão de cobrir a Campanha de Canudos e demais territórios que apesar de não ter acessado fisicamente, por terem

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servido de cenários à guerra ou a acontecimentos relacionados à ela, lhes teriam sido apresentados por fontes orais e/ou documentais.

Souza (2003) defende a tese de uma “geopoética” em Euclides da Cunha. Isto é, uma poética da terra construída a partir do consórcio entre ciência e arte na narrativa dele. O autor afirma que para o escritor de Os Sertões não basta observar a terra com a ótica monocular dos conceitos solidificados, pois nele, “Necessário se torna conciliar dinamicamente a imaginação poética e a observação científica. Se não se dissolve a solidez dos conceitos na fluidez das imagens, não se obtém uma visão genuína da terra” (SOUZA, 2003, p.18).

Essa necessidade de Euclides da Cunha em conjugar ciência e arte, defendida por Souza, parece ser demonstrada em Os Sertões logo no início da primeira parte do livro, ao, enquanto defende a unicidade e a grandiosidade do meio físico brasileiro, trazer em um mesmo parágrafo o escritor Sebastião da Rocha Pita e o historiador Henry Thomas Buckle:

A terra sobranceia o oceano, dominante, do fastigio das escarpas; e quem a alcança, como quem vinga a rampa de um majestoso palco, justifica todos os exaggeros descriptivos – do gongorismo de Rocha Pitta às extravagancias geniaes de Buckle – que fazem deste paiz região privilegiada, onde a natureza armou a sua mais portentosa officina. (CUNHA, 1914, p.4).

Entendemos que se fundamentando na experiência vivida perante a natureza brasileira, o que é apontado pela expressão “quem a alcança”, e enfatizado através da comparação, que se dá entre a experiência vivida e a superação da rampa que distanciava “um majestoso palco”, onde a natureza seria como este palco ou como um próprio espetáculo nele apresentado, Euclides da Cunha defende ser legítimo ou ao menos compreensível tanto os ”exaggeros descriptivos do gongorismo de Rocha Pita4”, o que demonstra sua relação com à literatura, quanto “às extravagancias

geniaes de Buckle5”, o que indica sua vinculação à ciência. A referência ao escritor

4 Sebastião da Rocha Pita (1660-1738), é o autor de História da América Portuguesa, publicado em

1730. Sua obra, escrita, conforme Lemos (2000), através de uma retórica barroca, foi considerada a primeira História do Brasil, ou seja, o primeiro relato sobre a maior parte da então colônia portuguesa desde a chegada dos lusitanos, em 1500, até as vésperas de sua publicação, em 1724.

5 Henry Thomas Buckle (1821-1862), cujo projeto de uma história científica fundamentada numa série

de “leis”, entre as quais figura preeminentemente o determinismo do meio sobre o homem, exerce, grande influência no pensamento de Euclides. Para uma compreensão mais completa sobre tal influência, ver LemosMaria Alzira Brum. O doutor e o jagunço: ciência e cultura em Os Sertões. São Paulo: UNIMAR, Arte&Ciência, 2000. 224p. (Coleção Estudos Acadêmicos).

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Sebastião da Rocha Pita e ao historiador inglês Henry Thomas Buckle sugere que, no entendimento das condições singulares da natureza brasileira, é necessária uma abordagem ao mesmo tempo precisa e sensível. Tais referências nominais acrescidas da mencionada figura de linguagem (comparação) antecipam a maneira como Euclides da Cunha construirá o seu texto, bem como salientam sua intenção em promover uma abordagem concreta e, ao mesmo tempo, poética do sertão.

Souza (2003) destaca a participação de Euclides da Cunha no sertão da Bahia para a construção de sua narrativa. O autor, ao discorrer sobre a conjugação entre ciência e arte em Os Sertões, traz a influência das narrativas de viagens do naturalista Alexandre von Humboldt6. Ele faz isso ressaltando o procedimento de

composição de tal geógrafo que, apesar de tradicionalmente associado à ciência, também promoveu o consórcio da razão e da imaginação. Assim, Souza (2003) defende a sua já mencionada tese da geopoética euclidiana.

A busca por uma “visão genuína da terra”, a influência de Humboldt e da literatura de viagem, o caráter de observador do autor de Os Sertões como viajante no sertão da Bahia, a interação entre homem e natureza, a abordagem crítica à realidade social do sertão e do Brasil como um todo, e demais outros argumentos trazidos por Souza (2003) na defesa da geopoética euclidiana, indicam a presença de recursos do naturalismo literário do final do século XIX no estilo narrativo de Euclides da Cunha.

Na construção da proposta naturalista de Émile Zola para a literatura, encontramos uma explicação sobre o movimento:

O naturalismo, nas letras, é igualmente retorno à natureza e ao homem, a observação direta, a anatomia exata, a aceitação e a pintura do que existe. A tarefa foi a mesma tanto para o escritor como para o cientista. Um e outro tiveram de substituir as abstrações por realidades, as fórmulas empíricas por análises rigorosas. Assim, não mais personagens abstratas nas obras, não mais invenções mentirosas, não mais absoluto; porém, personagens reais, a história verdadeira de cada uma, o relativo da vida cotidiana. Tratava-se de recomeçar tudo, de conhecer o homem nas próprias fontes de seu ser. (ZOLA, 1979, p.72)

6 Alexander Humboldt (1769-1859), segundo Lemos (2000), foi considerado um naturalista romântico.

Ele foi um notório defensor do Novo Continente, sua experiência na América durou de julho de 1799 a abril de 1804. Em suas andanças anotou, descreveu, mediu e comparou diversos aspectos da natureza americana, notadamente da flora. Suas ideias sobre este continente estão em grande parte alicerçadas naquilo que ele concebia como a pedra-de-toque da ciência: fatos, números e medidas, não apenas especulações e hipóteses. Para uma compreensão mais completa sobre sua influência na obra Os Sertões, ver: Lemos Maria Alzira Brum. O doutor e o jagunço: ciência e cultura em Os Sertões. São Paulo: UNIMAR, Arte&Ciência, 2000. 224p. (Coleção Estudos Acadêmicos).

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Zola foi autor da obra considerada o marco inicial da estética naturalista, a saber: Germinal (1885). Segundo Ventura (2002), ele era uma das leituras preferidas de Euclides da Cunha. Ventura (2002), por sua vez, ao explicar o naturalismo literário, esclarece que o movimento, que recebeu forte influência de teorias científicas, considerava fenômenos sociais para conceber seus romances. Tais obras literárias, por conseguinte, acabaram se tornando instrumento de análise da sociedade e não apenas itens de entretenimento. Assim, na literatura naturalista não ocorreu a idealização da realidade, pois esta era construída a partir de cenários e personagens “reais”, bem como por histórias “verdadeiras”7.

Em Os Sertões, percebemos a presença de elementos apresentados por Zola. Ao adentrar o sertão nordestino como correspondente do Jornal O Estado de São Paulo, para cobrir o desenrolar da Guerra de Canudos, Euclides da Cunha faz uso de diversas teorias cientificas e filosóficas, como o determinismo e o evolucionismo. O escritor retorna à natureza e ao homem para explicar a guerra em seu livro. Ao fazê-lo, não se limita a tratar do sertão e do sertanejo, pois, ao mesmo tempo em que se dirige ao interior do Brasil, regressa às origens da terra e, em seguida, às origens da formação étnica do brasileiro.

Nesse sentido, ao que tange ao trato específico do sertão e do sertanejo por Cunha, trazemos um excerto da seção Um sonho de geólogo de Os Sertões disposto após a afirmação de que há escassez de dados quanto à região sertaneja, que demonstra a abordagem da origem do sertão:

Acredita-se que a região incipiente ainda está preparando-se para a Vida: o lichen ainda ataca a pedra, fecundando a terra. E luctando tenazmente com o flagellar do clima, uma flora de resistência rara por alli entretece a trama das raizes, obstando, em parte, que as torrentes arrebatem todos os principios exsolvidos — accumulando-os pouco a pouco na conquista da paragem desolada cujos contornos suaviza — sem impedir, comtudo, nos estios longos, as insolações inclementes e as aguas selvagens, degradando o solo. (CUNHA, 1914, p.21)

Essa passagem selecionada, como se observa, acaba “Retornando à natureza e tratando de conhecer o homem nas próprias fontes de seu ser” (ZOLA, 1979, p.93). Ela é uma, dentre várias, que contribui com a construção narrativa da

7 Vale destacar que essa realidade dos cenários e personagens, e essa veracidade da história,

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visão da terra americana como emergida das águas. Ponto de vista que, de forma mais direta, é trazido logo no início da seção mencionada: “Vae-se de bôa sombra com um naturalista algo romantico, imaginando-se que por alli turbilhonaram, largo tempo, na edade terciaria, as vagas e as correntes”. (CUNHA, 1914, p.12).

Fazendo uso da ligação do naturalismo com o cientificismo de Auguste Comte8, citado de forma expressa em outro momento de Os Sertões, e na crença de

que o mundo social poderia ser explicado a partir das forças da natureza, é possível perceber na passagem a presença de uma compreensão evolutiva, através da qual parece ser pensado todo o texto do livro. Essa percepção se dá através do retorno à origem do elemento abordado: a terra. O evolucionismo de Comte postulava a existência de diferentes estágios evolutivos da natureza. Nessa mesma linha de raciocínio, a narrativa de Euclides da Cunha apresenta um período anterior, mais precisamente a idade terciária, em que o sertão do nordeste era mar. Outro dado importante é que, na obra, a natureza funciona como metáfora do homem. Construção que, em alguns momentos, possibilita a leitura do sertanejo como sujeito em fase evolutiva atrasada.

Ainda é possível perceber, mais uma vez, a unção entre imaginação e razão em Os Sertões. Além da mobilização de teorias científicas, se tem na urdidura da narrativa termos geológicos, como “insolações” e “agua”, os quais, por sua vez, são acompanhados de adjetivos, como “inclementes” e “selvagens” e constroem como conteúdo: o sertão percebido e revelado como um mar, em outros momentos, extinto.

Corroborando com esse sentido, há o próprio título da seção: Um sonho de geólogo. Nele há a presença simultânea da imaginação e de sentimento. Mescla que se configura através da palavra “sonho”, que tem seu significado associado à fantasia e/ou à paixão. Enquanto a ciência e a razão estariam representadas pela

8 Auguste Comte (1798-1857) foi um filósofo francês. Atribui-se a ele a criação da disciplina

Sociologia, bem como a corrente filosófica, política e científica conhecida como Positivismo. Segundo Lemos (2000), “Euclides da Cunha toma emprestado de Comte uma espécie de esquema conceitual e metodológico, o qual, perpassado pela associação entre os espíritos progressista da ciência e moralizante da tradição, se caracteriza pela utilização da natureza como paradigma, pela noção de unidade da humanidade e pela equivalência no texto entre narrador, sociólogo e reformador da humanidade. Este empréstimo seria responsável pela ambiguidade do pensamento social de Euclides” (p.80). Para uma compreensão mais completa sobre tal influência, ver Lemos Maria Alzira Brum. O doutor e o jagunço: ciência e cultura em Os Sertões. São Paulo: UNIMAR, Arte&Ciência, 2000. 224p. (Coleção Estudos Acadêmicos).

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palavra “geólogo”, que se refere ao estudioso da origem, da história, da vida e da estrutura da terra.

Outro ponto valioso da obra consiste no fato de ela ser dividida em três partes: A Terra, O Homem e A Luta. A sequência organizacional sustenta o raciocínio segundo o qual as características do meio físico sertanejo teriam determinado os caracteres do homem do sertão e que isso, mais tarde, teria gerado o conflito em Canudos.

Em consonância com o evolucionismo de Spencer, segundo o qual o processo de evolução é baseado na passagem das formas mais simples as mais complexas, Euclides da Cunha descreve a região como ainda em fase de preparação para a vida. O sertão é caracterizado na narrativa como determinador de um homem ainda em processo de formação intelectual e moral, ou seja, não civilizado. Segundo o escritor, estando a terra em luta tenaz “com o flagellar do clima” e tendo “uma flora de resistencia rara” (CUNHA, 1914, p.21), o sertanejo está em “lucta aberta com o meio” (p.139) e “é, antes de tudo, um forte” (p.114). Na obra, a terra é classificada como “ignota”, desconhecida e o sertanejo é apontado como um mestiço diferente dos demais (p.110).

No entanto, por ser o mestiço diferente dos demais, o escritor deixa de analisá-lo conforme teorias científicas. Elaborações que, segundo a narrativa, ainda não conseguiam apreendê-lo bem. Em função disso, Euclides da Cunha passa a analisá-lo diretamente a partir de suas próprias experiências no sertão baiano (1914, p.113).

Desse modo, as teorias científicas, apesar de continuarem presentes, são relativizadas pela observação direta na obra. Euclides da Cunha coloca sua experiência, mais do que as teorias científicas, como a base do projeto político civilizacional que constitui a sua narrativa. Tal troca pode ser compreendida a partir do naturalismo literário, movimento encabeçado por Émile Zola (1979), como anteriormente enfatizado, e que propunha a substituição das abstrações por realidades9. A permuta das abstrações científicas pelas experiências do próprio

autor produz, a nosso ver, o tão discutido efeito de veracidade do texto.

9 Em Lettre à la Jeunesse (1879), Émile Zola defende que o cientista é o poeta que substitui as

hipóteses da imaginação pelo estudo exato das coisas e dos seres (ZOLA, 2004, p.28). A partir disso, e considerando a defesa feita pelo autor da importância de se utilizar procedimento científico na criação ficcional, entendemos as “abstrações” como as hipóteses criadas pela imaginação e a

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