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O trabalho infanto-juvenil na agricultura paraibana: o caso da lavoura canavieira

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Academic year: 2021

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O TRABALHO INFANTO-JUVENIL NA AGRICULTURA PARAIBANA: o caso da lavoura canavieira*

Emilia de Rodat F. Moreira" Ivan Targino Esse trabalho tem como objetivo estudar a inserção precoce de crianças e adolescentes no processo produtivo do setor agropecuário paraibano, com destaque para o subsetor da lavoura canavieira. A análise é centrada nos efeitos do consumo e da reposição da força-de-trabalho do menor, sobre as suas condições de saúde e de vida. O estudo toma a Zona da Mata paraibana como ponto de observação.

A discussão sobre a participação de crianças e adolescentes no mercado de trabalho vem ganhando corpo no Brasil. Ainda que não seja uma discussão nova, ela tem obtido proeminência seja pela pressão dos movimentos sociais internos, seja pela pressão de órgãos internacionais como a 011 Esse é um problema concreto que aflige a sociedade brasileira e que não foi superado, mas agravado pelo modelo econômico de desenvolvimento adotado no país.

Assiste-se, no final do século XX, a mais de 7 milhões de crianças e adolescentes (entre 10 e 17 anos) engajados nos mais diversos processos produtivos rurais e urbanos com destaque para: o corte da cana, o trabalho nos campos de sisal, a colheita da laranja, a produção de cacau e de café, a confecção de carvão vegetal, o

• Este texto lei construido com base no relatório de pesquisa desenvolvida com apoio do CNPq, por pesquisadores e bolsistas de iniciação científica da área de Saúde e Trabalho Rural do cERE5AT/NE5C e do Departamento de Geociências da UFPB, sobre as condições de vida, saúde e trabalho de crianças e adolescentes canavteiros da Zona da Mata paraibana. ** Professores dos Departamentos de Geoclências e de Economia da UFPB e integrantes do grupo de pesquisa sobre Saúde e Trabalho do cERESAT/NE5c/uFPB/cNPQ.

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O trabalho infanto-juvenil na agricuhura paraibana: o caso da lavoura canavicira

fabrico de sapatos, sem falar no trabalho de biscateiros, jornaleiros, engraxates, etc. E aqui não se inclui um número não desprezível de menores de 10 anos que se iniciam na vida do trabalho como auxiliares dos pais e que não são computados em nenhuma estatística.

Esse engajamento dá-se em desacordo com os preceitos legais: o Estatuto da Criança e do Adolescente reconhece a criança

como 'sujeito de direitos' e como pessoa em desenvolvimento. Também proíbe o trabalho para crianças menores de 14 anos e determina que o trabalho do adolescente só se dê na condição de aprendiz e sob proteção legal. (Gieti: 1996). Os meninos e as meninas do Brasil engajam-se precocemente no mercado de trabalho, fazendo, via de regra, o que fazem os adultos, com jornadas de trabalho semelhantes, submetidos ao stress e aos riscos também semelhantes, porém

remunerados diferentemente: como "aprendizes". Enquanto tais, justifica-se o salário de meio-homem pago a crianças que executam trabalho equivalente, muitas vezes, ao de um homem e meio! E a lei aqui usada para garantir o abuso! Isso sem falar no grande número de crianças e adolescentes que trabalham sem perceber qualquer tipo de remuneração.

É preciso deixar claro que o trabalho infanto-juvenil no Brasil é discriminatório. Ele restringe-se às crianças e adolescentes pobres. Mesmo quando tem o caráter profissionalizante, "ele separa o adolescente pobre para o trabalho e o tico ou abastado para o estudo"

(Gieti, 1996).

Esse quadro nacional se reproduz no Estado da Paraíba. Segundo dados da PNAD/96, 72% da PEA paraibana tinham entre dez e quatorze anos e 14,6% tinham menos de 18 anos de idade. A situação do trabalho infanto-juvenil no campo é ainda mais grave. Com efeito, em 1996, das 579 mil pessoas economicamente ativas, residentes na zona rural, 77 mil tinham entre 10 e 14 anos e 54 mil tinham entre 15 e 17 anos, o que representa uma taxa de participação dessas faixas etárias no total da PEA rural de 13,3% e 9,3%, respectivamente.

Face à condição de pobreza da maioria da população paraibana (56,2% da população ocupada percebia até 2 salários mínimos mensais em 1996; acrescentando-se as pessoas ocupadas mas sem rendimento e as que recebiam somente benefícios esse 344 Cad. Est. Soe. Recife. v. 14, n. 2, p. 343-366, julldez., 1998

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percentual elevava-se para 79%), aquelas taxas parecem constituir um indicador da existência de um padrão de utilização da força-de-trabalho infanto-juvenil como estratégia de complementação da renda familiar.

Na zona rural, a participação de crianças no processo produtivo agrícola não constitui um fato novo. O que chama a atenção é a dimensão crescente que tem adquirido essa participação nas últimas décadas. Segundo dados dos Censos Agropecuários, na Paraíba, a população ocupada na agricultura com idade entre 10 e 14 anos apresentou um crescimento da ordem de 47,6% entre 1970 e 1985. Essa participação ocorre tanto no seio das grandes quanto das pequenas unidades de produção. A forma de inserção dessa população na atividade laboral porém difere em cada uma delas.

Na pequena unidade camponesa, voltada para a produção de subsistência, a inserção da criança no mundo do trabalho dá-se de duas maneiras: como auxiliar dos pais na execução de tarefas maneiras e; como responsável pelo seu próprio roçado, na medida que se aproxima dos 10, 12 anos de idade. Em ambos os casos o pequeno trabalhador ainda detém o controle do tempo e do ritmo de trabalho. Embora acorde muito cedo para acompanhar os demais membros da família ao roçado, ele não é obrigado a executar tarefas pesadas nem é submetido a jornadas de trabalho muito longas. Além disso, dado ao fato dessas pequenas unidades produtivas, na sua grande maioria, não se encontrarem subordinadas a um padrão técnico moderno, as crianças são menos expostas a riscos de acidentes, inclusive os de contaminação por agroquímicos. Por outro lado, o padrão alimentar inclui alguns produtos como o leite, a carne, o ovo e legumes produzidos nos roçados, inexistentes na mesa do assalariado rural, habitante na periferia urbana, o que contribui para um quadro de saúde melhorado, onde as crianças apresentam um menor grau de desnutrição e anemia.

Na pequena unidade mercantil de produção agrícola, a inserção da criança na atividade laboral diferencia-se sobretudo pela maior exposição desta aos ristes impostos pelo padrão técnico utilizado, sem qualquer observação dos cuidados que devem ser seguidos nos seu manuseio. E o caso por exemplo, da pequena produção hortifrutigranjeira irrigada do Estado, com destaque para a produção do tomate, da acerola, da banana, etc. Pesquisa recente, efetuada em áreas de pequena produção de tomate no município de Boqueirão, dá conta não só da exposição como da contaminação efetiva de crianças por agrotóxicos derivados de organo-fosforados.

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No campo, as crianças embora não apliquem agrotóxicos, elas pisam o solo encharcado com tais produtos e molham-se com eles ao acompanharem os pais no momento da aplicação. A situação é tão mais grave quando se constata doses alteradas de colinesterase em crianças menores de 10 anos e, inclusive, com menos de 6 anos. Esse fato preocupa os pesquisadores pela possibilidade de disseminação de doenças como o câncer.

Embora sejam as unidades de produção familiar apontadas como as maiores absorvedoras dessa mão-de-obra, já é muito grande no Estado o número de jovens entre 10 e 17 anos (e até com menos de 10 anos) incorporado ao mercado de trabalho assalariado no campo, sobretudo na atividade canavieira. Nas grandes propriedades, o trabalho do menor pode assumirtrês formas básicas: trabalho assalariado direto, trabalho assalariado indireto, enquanto trabalho complementar à do chefe de família e força-de-trabalho familiar nos casos de parceria e de arrendamento, formas que predominavam na cultura do algodão nas zonas semi-áridas do Estado. As formas assalariadas do trabalho do menor predominam na zona canavieira da Paraíba. Aí, às condições de vida já precárias dessa população, soma-se uma condição de trabalho desumana que tem sido constantemente denunciada por órgãos e entidades diversas, como será retratado nos demais itens desse trabalho.

Privados do direito a uma vida saudável, a uma alimentação digna, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, essa parcela da população trabalhadora incorporada à atividade canavieira vem se transformando num exército mirim de heróis maltrapilhos e esfomeados:

É a face desesperada de um país onde a sede de lucro contrasta com a agudeza da miséria e da tome. Espetáculo dantesca, onde a pujança da cana serve de cenário para os movimentos repetitivos e extenuantes de corpos esquálidos de crianças e adolescentes. Ao suor de seus corpos adere a fuligem dos canaviais, caracterizando uma legião de caras pintadas que ainda não conseguiu fazer valera sua cidadania. (Moreira etalii:1995)

O estudo das condições de vida e trabalho da população infanto-juvenil ocupada na atividade canavieira pode constituir uma contribuição para o movimento sindical, para os órgãos públicos e para a sociedade civil em geral, enquanto um documento-denúncia 346 Cad. Est. Soe. Recife. v. 14, & 2, p. 343-366, julldez., 1998

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e um grito de alerta no sentido de levá-los a tomar posição frente à realidade constatada.

1. Aspectos teórico-metodológicos

O esforço de apreensão das condições de vida, saúde e trabalho de crianças e adolescentes, bóias-frias da atividade canavieira, impõe algumas reflexões acerca do método de pesquisa escolhido. No caso desse estudo, decidiu-se por abordar a realidade objetiva da vida e do trabalho infanto-juvenil na atividade canavieira, tomando por base um marco teórico capaz de analisar o processo de consumo/reposição da força-de-trabalho a partir da sua inserção no movimento geral de acumulação do capital na agricultura.

A investigação teve como ponto de referência o movimento de acumulação e reprodução do capital a partir do estudo das transformações recentes sofridas pela atividade canavieira na Paraíba (1970190). Nesse contexto, procurou apreender os fatores determinantes da inserção da população infanto-juvenil no trabalho agrícola da cana, as formas dessa inserção e os desdobramentos sobre o consumo e a reposição dessa força-de-trabalho.

A unidade investigada foi a família, e, nela, o menor trabalhador da cana. A área geográfica da pesquisa correspondeu à principal subunidade espada! da Zona Canavieira do Estado: a Zona da Mata Paraibana. Cinco municípios componentes dessa região constituíram o espaço de investigação: Pedras de Fogo, Caaporã, Santa Rita, Cruz do Espírito Santo e Sapé. Um estudo mais aprofundado foi realizado em Pedras de Fogo. Em Cruz do Espírito Santo, Sapé e Santa Rita só foi possível realizar uma enquete qualitativa, baseada em entrevistas, com o apoio dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais. Foram entrevistados menores trabalhadores tanto em suas residências, como em alojamentos no interior das propriedades (galpões).

Com base na metodologia adotada pelo Grupo de Saúde e Trabalho do Estado da Paraíba (GESTAR-PB) na pesquisa que tratou das condições de saúde e trabalho do trabalhador da cana e do abacaxi no município de Sapé, o consumo e a reposição da força-de-trabalho foram investigados a partir dos seguintes aspectos: jornada de trabalho, tarefas realizadas, mobilidade do trabalho, condições de transporte, formas de remuneração, padrão alimentar e habitacional, nível educacional, padrão sanitário e condições de saúde.

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Esta sistematização permite recuperar, dentro de uma visão de totalidade, o consumo e a reposição da força-de-trabalho, no âmbito do movimento de acumulação e reprodução do capital.

Para levar a efeito tal proposta de trabalho, uma série de processos, técnicas e instrumentais foram utilizados tais como: trabalho de campo que envolveu aplicação de questionários e realização de entrevistas; levantamento de dados secundários junto à FOGE (Censos Agropecuários e Demográficos da Paraíba, Anuário Estatístico do Brasil, Produção Agrícola Municipal e PNAD) e â Sudene.

Como se trata de um estudo exploratório, foram aplicados 29 questionários na zona urbana de um dos municípios, o de Pedras de Fogo, e efetuadas 42 entrevistas estruturadas com residentes tanto na zona rural quanto urbana de todos os municípios, assim como com menores procedentes de outras regiões do Estado, alojados em galpões no interior das propriedades de Usinas e Destilarias, sem obedecer a um desenho amostral previamente estabelecido, uma vez que não se tinha uma delimitação precisa da população a ser investigada. Desse modo os resultados obtidos devem ser tomados muito mais como indicativos de uma realidade do que como uma apreensão detalhada da mesma. Foram também entrevistados pais e representantes sindicais. Algumas dessas entrevistas foram filmadas em VHS.

A população investigada era composta apenas por menores do sexo masculino, pois nas visitas às famílias e aos galpões não foi encontrada nenhuma trabalhadora. A idade dessa população variou entre 7 e 17 anos e meio.

2. O processo recente de acumulação de capital na atividade canavieira

Não obstante os fortes benefícios concedidos pelo Estado à agroindústila açucareira ao longo do tempo, este setor encontrava-se, no início da década de 70, mergulhado numa forte criencontrava-se, considerada crônica por muitos estudiosos. Entre os fatores responsáveis por essa crise estão a ociosidade e a obsolescência do parque industrial, o baixo poder de competição com a produção do Sudeste, etc. A saída para esta crise surgiu mais uma vez pela mediação do Estado, através da criação, em 1975, do Programa Nacional do Álcool (Proalcool), que visava estimular a produção do álcool como combustível substituto da gasolina. E importante 348 Cad. Est. Soe- Recife. v. 14, n. 2, ,. 343-366, julldez., 1998

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ressaltar, que este programa reforçou o processo de modernização conservadora da agricultura brasileira, e, em particular, da agricultura paraibana.

A partir de então, inicia-se uma nova fase de expansão da atividade canavieira no Estado consubstanciada: no aumento da área cultivada com a incorporação de mais de 100.000 hectares de terra pela cana, entre 1975 e 1986; na elevação da quantidade de cana produzida de 1,4 milhões em 1970 para 10,7 milhões em 1986; no incremento da produção de álcool de 806 mil litros na safra de 19751 76, para 229 milhões de litros na safra de 84185; e na ampliação do parque industrial com a instalação de 10 novas destiladas anexas ei ou autônomas.

Os impactos dessa expansão se fizeram sentir: a) na economia agrícola estadual, cujo desempenho passou a depender fortemente dessa atividade; b) na base técnica da produção, com o aceleramento da mecanização e quimificação do processo produtivo; c) no emprego rural, com a retração de antigas relações de trabalho, em particular do sistema morador, e intensificação do trabalho assalariado, de modo especial, do assalariamento temporário, que cresceu 94% entre 1975 e 1985 na Zona Canavieira; d) no recrudescimento do êxodo rural, fenômeno catalizador dos efeitos das transformações ocorridas na organização do processo produtivo sobre a dinâmica da população.

A desruralização da população não implicou, contudo, na sua desvinculação da atividade canavieira. Passando a residir nas periferias urbanas ou nos novos habitats rurais concentrados (agrovilas e vilarejos), essa população migrante continuava encontrando na lavoura canavieira, a sua principal, para não dizer única, fonte de ocupação. Nesse novo estágio, fazia-se necessário a arregimentação de toda força-de-trabalho familiar para suprir as necessidades de manutenção da família. Desse modo, assiste-se a expansão do emprego feminino na Zona Canavieira paraibana, da ordem de 39,5% no decênio 75185 e do emprego infantil (entre 10 e 14 anos) de 35,0% no mesmo período.

As transformações processadas no espaço canavieira do Estado da Paraíba em decorrência do Proalcool se, de um lado, representaram a retomada da acumulação do capital materializada no espaço pela homogeneização da paisagem através do verde dos canaviais, de outro lado, não corresponderam a uma melhoria efetiva da condição de vida da classe trabalhadora. Estudos realizados na primeira metade dos anos 80 mostraram que a renda média mensal

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das famílias dos trabalhadores da cana situava-se abaixo do salário mínimo vigente na época, donde o baixo padrão alimentar detectado, a deterioração das condições de saúde, o baixo nível educacional, a precariedade das condições de habitação (Gestar:1985, Sedup: 1984).

A organização dos trabalhadores reagiu a essas mudanças basicamente de duas formas: a) resistência ao processo de expropriação, donde a eclosão de inúmeros conflitos sociais como manifestação da luta pelo direito de ficar na terra e; b) fortalecimento do poder sindical com a intensificação da luta por melhores condições de salário e de trabalho, propiciando a deflagração de várias greves no início dos anos 80 e as negociações nos dissídios coletivos de trabalho que resultaram em ganhos para os trabalhadores. (Moreira eTargino, 1997: Cap.8).

A expansão da atividade canavieira vai sofrer solução de continuidade na segunda metade dos anos 80 como resultado da crise econômica nacional que determinou uma drástica redução do crédito subsidiado e abundante, elemento primordial da política instituída pelo Proalcool. Mais do que isso, a crise financeira e fiscal obrigou a cobrança das dívidas do setor para os cofres tanto da União, quanto do Estado, o que representou um abalo forte sobretudo no segmento arcaico da atividade sucro-alcooleiro estadual. Desse modo, a partir de 1986, registra-se uma nova crise de acumulação que se exprime pela redução na quantidade produzida de cana (de 1017 milhões em 1986, declina para 7,9 milhões em 92), pela queda da produtividade (de 60 ton/ha em 1986 para 52 ton/haem 1992) e, em particular, pelo fechamento sucessivo de usinas e destilarias nos últimos anos.

Essa crise teve um efeito forte sobre o volume e a composição do emprego na lavoura canavieira. Observa-se uma redução na demanda de trabalho como conseqüência da retração da área cultivada, como também da sua substituição por atividades com menor poder de absorção da força-de-trabalho, a exemplo da pecuária (Moreira e alii, 1997). Além disso, para fugir da fiscalização sindical, as usinas incrementaram o sistema de galpão, utilizando-se de mão-de-obra de outras regiões e, em muitos casos, dando preferência ao trabalho infanto-juvenil.

Pelo exposto, pode-se concluir que a dinâmica recente da acumulação do capital na lavoura canavieira quer no momento de expansão, quer no momento de crise, em um movimento aparentemente contraditório, aumenta o grau de atividade da força-350 Cai Est. Soe. Recife. v. 14, n. 2, p. 343-366, jul/dez., 1998

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de-trabalho de crianças e adolescentes. Na expansão, a incorporação desse contingente de trabalhadores dá-se em função do aumento da demanda de trabalho e da necessidade de garantir a sobrevivência da unidade familiar. Na crise, a tentativa de resgatara lucratividade pela utilização de uma mão-de-obra mais disponível e de melhor desempenho físico, assim como de menor poder de barganha e de representatividade sindical, leva os empresários a intensificar o emprego de menores. Em qualquer dos momentos, no entanto, o uso dessa força-de-trabalho se faz com um elevado grau de exploração como veremos a seguir, com maior detalhamento. 3. Condições de vida e de trabalho do menor

A inserção do menor trabalhador no processo produtivo é responsável pelas formas e intensidade de consumo e de reposição da sua força-de-trabalho, isto é do conjunto de suas faculdades físicas e mentais utilizadas na produção de valores de uso. Durante o processo produtivo, o trabalhador está submetido a um desgaste de suas capacidades físicas e mentais. Tal desgaste depende da quantidade e da intensidade do esforço despendido na execução das tarefas que lhe são atribuídas. Esse desgaste é entendido como o consumo da força-de-trabalho.

Vale destacar que esse consumo está na base da acumulação do capital. Quanto maior for esse consumo, maior a extração da mais-valia e, em conseqüência, as possibilidades de acumulação ampliada do capital. Porém, se ao capital interessa esse consumo, ele não pode avançar até o limite de extenuação da força-de-trabalho, caso contrário, extinguiria a fonte do seu crescimento. Assim, é preciso a reposição das capacidades física e mental desgastadas afim de que o trabalhador possa continuar inserido no processo de geração de valor. Essa reposição está diretamente relacionada ao nível de remuneração auferida (entendendo-se a renda como a matriz de reposição da força-de-trabalho), das condições de alimentação, de habitação e de assistência à educação e à saúde (Targino: 1992). Com base nesse enfoque serão analisadas as formas de consumo e de reposição dos trabalhadores menores de 18 anos na lavoura canavieira.

3.1. O consumo da força-de-trabalho

Os canavieiros mirins da Paraíba começam a trabalhar muito cedo. A maior parte das crianças que compõem a amostra

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se no trabalho antes dos 14 anos, muitas delas a partir dos sete anos de idade. Várias foram introduzidas no trabalho rural ajudando o pai no roçado (19% dos menores que compuseram a amostra); outras começaram desde a mais tenra idade no corte da cana, ajudando o pai a completar sua tarefa mais rápido, ou como trabalhador independente, responsável por uma tarefa (22,4% da amostra), ou, ainda, ajudando o pai noutras atividades agrícolas como plantando capim, limpando mato, etc.

A justificativa corrente apresentada para essa entrada precoce no mundo do trabalho prende-se à necessidade de contribuir para a

renda familiar, uma vez que o "ganho do pai não dá pro sustento"

Essa contribuição pode ocorrer: a) de forma indireta, ajudando o pai

a realizar a tarefa: "Eu venho ajudar meu pai no corte, pois ele não consegue fazeruma tarefa e aia cabo bota ele para ftra" (depoimento

de Vicente, 14 anos, trabalhador da cana no município de Cruz do Espírito Santo); b) de forma direta, quando o menor é contratado e entrega o salário para ajudar nas despesas domésticas:

Minha mãe trabalha numa casa. Prá lá ela leva meus dois irmãos mais novos. Eu fico em casa com meu pai e venho trabalhar todo o dia. O que eu ganho eu dou para ajudar minha mãe prá ela fazeros arranjos da semana. A metade, ou menos, eu fico prá comprar uma sandália, uma roupa

(depoimento de Cristiano, 10 anos, trabalhador da cana no município de Santa Rifa).

No que se refere à jornada de trabalho, observou-se que a grande maioria dos entrevistados acorda muito cedo: entre 4 e 5 horas da manhã. Saem de casa entre 5 e 6horas, seja para pegar o transporte, seja para ira pé diretamente ao local de trabalho. A maioria chega ao lugar onde vai trabalhar às 7horas da manhã, começando o serviço logo em seguida.

Durante o dia de trabalho eles têm direito a uma pausa, em torno de 30 minutos, para alimentação. Essa consiste, freqüentemente, em uma papa feita de fubá, água e sal, regionalmente denominada de 'quarenta". Ou então, uma das seguintes combinações: farinha com peixe seco; farinha e feijão; arroz e macarrão. Após o almoço, retornam ao trabalho e, entre 3 e 4 horas da tarde, finalizam as tarefas. A partir daí ficam aguardando o caminhão que os levará de volta. O transporte não tem hora certa para chegar. Tanto pode passar entre 16:30 e 17:00 horas, como 352 Cad. Est. Soc. Recife. v. 14, n. 2, p. 343-366, julldez., 1998

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depois das 18:00 ou até mesmo às 21:00 horas. Depende da quantidade de cana que tenha para transportar do campo para as usinas. Normalmente, os menores chegam em casa por volta das 19:00 horas ou, quando o caminhão atrasa, depois das 20:00 horas.

Os que moram nas agrovilas e trabalham perto de casa não param para almoçar. Trabalham direto das 7:00 às 13:00 horas e voltam a pé para casa, onde fazem sua refeição. Nos períodos de pique da atividade podem voltar até às 15 ou 16 horas. Nesse caso, levam um lanche para o trabalho, mas preferem almoçar ao voltar A jornada média de trabalho das crianças e dos adolescentes é de aproximadamente 8 horas, podendo, em alguns casos, alcançar 10 horas. A essa carga horária, acrescente-se o tempo gasto com a locomoção de casa até o local do trabalho e vice-versa. Segundo os dados colhidos, algumas crianças e adolescentes chegam a gastar 14 horas diárias, contando o tempo de trabalho e o tempo de locomoção entre casa/local do trabalho/casa.

No que se refere á locomoção para os locais de trabalho, existe uma diferença entre os moradores de agrovilas e os da cidade. Isto porque na zona rural os jovens entrevistados trabalham em propriedades próximas às vilas e/ou locais onde residem e costumam ir para o trabalho a pé. Para os residentes da zona urbana a realidade é outra. Utilizam predominantemente como transporte, caminhões conhecidos na região como "gaiolães" e tratores. Chama-se atenção para os riscos de acidentes e para o desconforto desChama-ses tipos de transporte, onde os instrumentos cortantes de trabalho são conduzidos, sem acondicionamento especial, junto com os trabalhadores.

O transporte é fornecido seja pela empresa, seja pelo empreiteiro ("gato"). Regra geral, quem faz o contato e contrata o trabalho dos jovens da zona urbana ou dos residentes na zona rural, fora das vilas das usinas, é um empreiteiro. Isso contribui para descaracterizar a relação entre a usina e o trabalhador. Muitas vezes, o trabalhador não chega sequer a saber o nome da propriedade onde está ocupado e, muito menos, o nome do proprietário. Ao chegar no canavial, o feitor de campo é quem determina a tarefa a ser realizada. Regra geral, ela é superior à negociada e aprovada no dissídio coletivo.

No campo, essas crianças e adolescentes desenvolvem um trabalho muito árduo e perigoso. Em geral, elas executam serviços iguais ou até superiores ao efetivado por trabalhadores adultos, comprometendo com isso, o pleno desenvolvimento do seu corpo

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em virtude do esforço físico e dos baixos padrões alimentares, não compatíveis com a energia dispendida no dia-a-dia.

Quando indagados sobre o número de braças de cana-de-açúcar (2,2 metros, na Paraíba) cortada em um dia de trabalho, cerca de 30% afirmaram que chegam a cortar entre 30 e 60 braças e 38% entre 80 e 100 braças. Segundo eles, quem consegue cortar um maior número de braças em um dia de trabalho (no mínimo uma tarefa e meia, de acordo com o tamanho determinado pelo cabo de turma) recebe, como prêmio, o almoço do dia seguinte. Em virtude do ritmo e da intensidade do trabalho e do fato dessas crianças utilizarem instrumentos cortantes, no mais das vezes de tamanho desproporcional ao seu corpo, são freqüentes os acidentes de trabalho.

Além do corte da cana, alguns menores são utilizados para a aplicação de agrotóxicos sem receber qualquer orientação técnica

para tanto: "Nós recebe a bomba nas costas e vai aplicara veneno":

A falta de preparo é agravada pela ausência de material ou equipamento de proteção. Alguns menores fizeram menção também ao trabalho no lambaio, ou seja, trabalhar "apanhando cana atrás da

máquina à noite", de 18 horas às 6 horas da manhã. Afirmaram já ter trabalhado ou estar trabalhando neste sistema que, segundo eles, é muito comum na atividade canavieira.

Esse longo e extenuante trabalho do menor é submetido a um regime rígido de controle. Perguntados sobre como era feito o controle do trabalho, mais precisamente, quem mede a tarefa, qual o instrumento usado na medida, quem determina o tamanho da tarefa e se havia fiscalização do sindicato local ou de outros, foram obtidas as seguintes informações:

a) 69,3% dos entrevistados afirmaram que o controle do trabalho é feito pelo feitor de campo; 19% porém confirmaram que onde trabalhavam quem controlava o trabalho era o "gato";

b)a vara é o instrumento usado para medir as braças que formam a tarefa;

c)quem determina o tamanho da tarefa é quem controla o trabalho, ou seja, o feitor ou o gato. Regra geral, é o cabo quem faz a medição. Para tanto, ele joga a vara de qualquer jeito e determina a tarefa de cada um, sem fiscalização;

d)35% dos entrevistados falaram que havia castigo quando não conseguiam terminar a tarefa determinada. Um dos castigos era o pagamento incompleto da tarefa. Além desse controle externo sobre o trabalho, não se deve esquecer que é inerente ao sistema 354 Cad. Est. Soc. Recife. v. 14, n. 2, p. 343-366, jutldez., 1999

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de contrato por produção, a interiorização do controle por parte do trabalhador. Isto é, ele próprio tem interesse em trabalhar mais e melhor a fim de aumentar a sua remuneração e garantir sua permanência no emprego.

No que se refere à fiscalização sindical, num dos municípios investigados, nunca viram ninguém do sindicato fiscalizando as tarefas. Nos demais foi confirmada essa fiscalização. Todavia, segundo os entrevistados, ela deveria ser diária e em todos os campos para ser eficiente.

Em resumo, observa-se que o processo de trabalho a que estão submetidas crianças e adolescentes é exaustivo, fatigante e arriscado, podendo ser caracterizado por a) inserção precoce no mundo do trabalho; b) longas jornadas com ritmo intenso de trabalho, requerendo esforço físico considerável, além de manuseio de instrumentos cortantes; c) contato com agroquímicos que pode acarretar agravos à saúde. O que vale dizer que, ao se submeterem desde muito cedo a um sistema de trabalho intenso e sujeito a riscos diversos, as crianças e adolescentes sofrem um desgaste de sua força-de-trabalho, resultando em problemas de saúde diversos e no envelhecimento prematuro, já que a reposição do desgaste se faz aquém das necessidades, como será analisado na seção seguinte. 3.2. A reposição e manutenção da força-de-trabalho

Para fazer face ao intenso desgaste sofrido, os menores trabalhadores contam quase que exclusivamente com os proventos adquiridos pela venda da sua força-de-trabalho e de seus familiares. Fazendo uma análise dos dados referentes às condições de salário e renda, nota-se que dois fatores concorrem para o estreitamento das possibilidades de reposição da força-de-trabalho: a) níveis baixos de remuneração apesar da extensão e da intensidade da jornada de trabalho. Em agosto de 1995, para cortar uma tarefa diária que variava de 35 a 50 braças, o menor percebia R$1,58; b) sazonalidade do emprego, pois a mão-de-obra só encontra trabalho no período de agosto/setembro a janeiro/fevereiro. Chama-se a atenção para a redução do período de colheita em virtude da crise de produção por que passa o setor.

No tocante à renda familiar, do total das famílias entrevistadas, a quase totalidade percebe menos de 2 salários mínimos para garantir a sobrevivência de, em média, 7,5 pessoas. Ressalte-se que este nível de renda corresponde ao período de maior emprego na região.

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O trabalho infanto-juvenil na agricultura paraibana: o caso da lavoura canavicira

No que conceme às despesas, observa-se que 75,6% da renda é despendida com gastos em alimentação. O restante da renda é distribuído com pagamentos de água, roupa, remédio, querosene, energia elétrica, etc. Obviamente que a renda recebida não cobre o total das necessidades dessas famílias. Daí o endividamento permanente nas bodegas. Embora os preços aí praticados sejam mais elevados do que nas feiras livres e nos supermercados, a sistemática de "comprar fiado" garante, parcialmente. a "normalidade" do consumo familiar.

O fato das despesas com alimentação consumirem aproximadamente 314 da renda familiar não garante um padrão nutricional adequado. Com efeito, a partir do levantamento do recordatório alimentar do dia anterior, constatou-se que na zona urbana, o café da manhã das crianças e adolescentes canavieiros restringe-se ao pão ou à bolacha com café, ou simplesmente o quarenta com café, portanto uma alimentação com baixíssimo valor protéico e calórico, não compatível com o esforço que elas despendem no corte da cana-de-açúcar. O quadro nutricional, na verdade é mais grave, pois 27% dos entrevistados não haviam tomado café da manhã no dia anterior ao da realização da entrevista. Durante o almoço, a situação desses menores não muda muito. Apenas 27% tinham consumido algum tipo de carne (cama bovina, peixe seco, galinha, etc); 51% não comeram carne no almoço, que constou de uma das seguintes combinações: o arroz e macarrão; feijão com quarenta; ou simplesmente o feijão ou simplesmente o quarenta; 22% não haviam almoçado no dia da entrevista por absoluta falta do que comer. No jantar foi observado novamente a ausência do consumo de carne. Apenas 25% dos entrevistados responderam positivamente. Os demais só jantaram um único tipo de alimento (ou bolacha, ou quarenta, ou pão com café, ou batata-doce, ou arroz) e 18% das crianças entrevistadas não haviam jantado.

Quanto às refeições feitas no próprio local de trabalho, constatou-se que 74% das crianças e adolescentes levavam o alimento de casa em marmita de plástico. Regra geral, esses menores bóias-frias levavam como alimento o quarenta com peixe seco, ou simplesmente o quarenta.

Os trabalhadores da zona rural possuem um padrão alimentar um pouco mais variado. A sua dieta alimentar inclui também alimentos como macaxeira, batata-doce, inhame e cuscuz. Os que têm acesso à terra incluem um consumo de cama bovina e, sobretudo, de aves.

A qualidade da água consumida no local de trabalho é

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bastante crítica. Quase todas as crianças e adolescentes entrevistados afirmaram que transportavam a água de beber em recipientes de plástico, provenientes da utilização de produtos químicos usados nos próprios canaviais, ou seja, recipientes de pesticidas, herbicidas, fungicidas, etc.

Em suma, o padrão alimentar pobre em proteínas e vitaminas dos jovens canavieiros é nitidamente insuficiente para repor o desgaste físico sofrido no processo de trabalho. Assim, não surpreende a anemia e as baixas estaturas, caracterizando um padrão de insuficiência nutricional crônica, conforme constatado nos exames médicos realizados.

O quadro habitacional é também gravoso à reposição do desgaste sofrido pelo trabalhador. A área construída das residências varia de 15 a 49 metros quadrados para abrigar em média 7,5 pessoas. Além disso, verificou-se que o tipo de construção das casas é muito precário. Em geral, elas são construídas de taipa com cobertura de telha, muitas delas com chão de terra batida. O número de cômodos varia de 3 a 5. Algumas casas, possuem quintal. Os sanitários são localizados fora da casa e as fossas são todas sépticas. Em várias ruas da periferia urbana, onde residem os trabalhadores entrevistados, os esgotos correm a céu aberto. Algumas casas são conjugadas, verdadeiros "quartos pregados uns nos outros" em forma de vilas; regra geral, são alugadas. Muitas residências não possuem luz elétrica nem água encanada; a água utilizada é retirada de chafariz ou de lavanderias públicas.

Quando argüidos onde gostavam mais de morar, os pequenos canavieiros foram unânimes em afirmar que preferiam o

campo "porque lá tinha espaço pata brincar terra para trabalhar e comida pata comer

A precariedade do padrão alimentar e habitacional retrata de forma inequívoca a situação de "apartação" sócio-econômica em que estão mergulhados os trabalhadores mirins da palha da cana. A exploração do menor, gestada pela dominação do capital no campo, leva a uma situação tragicamente paradoxal: como o salário insuficiente é fundamental para a sobrevivência da unidade familiar, a não-exploração em decorrência do desemprego constitui uma realidade mais temida que a exaustão dos corpos e o embrutecimento das almas decorrentes do trabalho do eito. Antes explorado que desempregado!

No que tange à questão da educação, o índice de freqüência à escola guarda uma correlação negativa coma extensão da jornada

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de trabalho. Esta afirmação apóia-se na constatação de que o cansaço de um dia de trabalho não permite que o jovem trabalhador vá à escola durante o período noturno. Aproximadamente 213 das crianças investigadas não freqüentavam a escola. Os motivos alegados remetem à incompatibilidade do trabalho com o estudo, à falta de recursos para adquirir roupa e calçado para ir à escola e à falta de interesse.

Como reflexo deste baixo índice de freqüência à escola tem-se um elevado número de crianças analfabetas. Com efeito, 52,7% dos integrantes da amostra urbana declararam que não sabiam ler nem escrever. Em alguns casos foi possível identificar várias crianças e adolescentes que haviam terminado a 21 série do 1 0 Grau Menor mas que ainda não se encontravam alfabetizadas.

O problema do analfabetismo e do acesso à educação toma-se mais grave nas vilas rurais afastadas da toma-sede municipal. Em algumas delas, como por exemplo Bela Rosa e Jatiúca, em Pedras de Fogo, as escolas existentes só funcionam até a ja Série do V Grau Menor. Assim, todas as crianças dessas vilas, inclusive as que não trabalham, ficam impedidas de completarem a primeira fase do 1 0 Grau.

As condições educacionais dessas crianças e adolescentes, colocam sérias restrições às suas possibilidades de qualificação profissional. Isto sem entrar no mérito da qualidade de ensino ministrado nas escolas municipais decorrente das precárias condições de funcionamento das escolas, do baixo nível de qualificação e remuneração dos professores. Colocando de outra forma, até a possibilidade de mobilidade social através do sistema educacional é negada a essas crianças e adolescentes.

4. Impactos sobre a saúde do trabalhador

Segundo a OMS, saúde é o estado do indivíduo cujas funções orgânicas, físicas e mentais se encontram em perfeito funcionamento. Vários são os requisitos, indispensáveis para uma boa saúde: alimentação adequada e suficiente; condições de higiene; educação; lazer; assistência médica e odontológica, habitação; trabalho saudável; salários dignos, entre outros. Isso é apreendido corretamente pelos jovens trabalhadores quando afirmam que "saúde é ter um bom salário, ter alimentação, ter limpeza, ter remédio, ter vida":

Nessa percepção, o viver e o morrer não são fenômenos 358 Cad. Est. Soe. Recife. v. 14, n. 2, p. 343-366, jul/dez., 1998

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puramente biológicos, mas são socialmente determinados. O problema da saúde é uma problema social, fortemente condicionado pela forma de inserção no processo produtivo. Em grande parte, a saúde do indivíduo está relacionada às condições de vida e trabalho, sendo que este último aspecto exerce importante significância. Isto porque o trabalho tanto pode ser sinônimo de prazer, beleza, criatividade e segurança, como pode representar exploração ao extremo, insegurança, doença, invalidez e morte prematura.

Segundo apontam os estudos do Grupo de Saúde e Trabalho na Área Rural da Paraíba (Gestar),

a saúde do trabalhador, enquanto questão social na Paraíba, nos últimos anos, vem se expressando principalmente pela denúncia dos trabalhadores da construção civil, canavieiros, têxteis, bancários, da telefonia e da saúde, sobre suas condições de trabalho, que resultam, em muitos casos, em mortes súbitas e precoces por acidentes de trabalho, em invalidez, em sofrimento por doenças que não têm cura, ou doenças como distúrbios mentais, hipertensão arterial e gastrites que, embora decorrentes do trabalho, não são relacionadas diretamente com ele. (GestarINESCIUFPB: 1994).

No que conceme à saúde e à segurança nos ambientes de trabalho, são poucas as empresas rurais no Estado que cumprem rigorosamente a legislação. Por outro lado, os órgãos, governamentais ou não, responsáveis pela fiscalização, têm se mostrado insuficientes e ao mesmo tempo, incapazes de fazer cumprira lei e garantira saúde e a segurança nos locais de trabalho.

Na zona rural da Paraíba é ainda grande o número de trabalhadores, em particular crianças e adolescentes, que estão executando atividades perigosas, pesadas e insalubres, contradizendo os artigos 67 do Estatuto da Criança e do Adolescente e 405 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Segundo esses

dois artigos, "é proibido o emprego de menores em locais pei'igosos, prejudiciais à moralidade, executando serviços pesados ou em horários que comprometam a saúde dos mesmos'

Do total de crianças e adolescentes canavieiros que compuseram o universo amostral da pesquisa, 63,2% já apresentaram algum problema de saúde, relacionado ao trabalho precoce, exaustivo e penoso que desenvolvem cotidianamente no corte da cana-de-açúcar. Além das exaustivas tarefas nos canaviais,

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foram constatados fatos ainda mais graves, ou seja, crianças e jovens trabalhando na aplicação de produtos químicos no campo. Dos 25 menores que aplicavam algum tipo de agroquímico, dois eram menores de 14 anos e ambos começaram a manusear veneno com apenas 5 anos de idade, ajudando os pais na aplicação. Dos menores entrevistados com idade entre 14 a 17 anos, 26% trabalhavam com adubo e herbicida; 17,4% com herbicida; 13% com adubo e 43,6% não identificaram o tipo de produto químico que utilizavam.

Quanto aos equipamentos utilizados na aplicação de agroquímicos, dos menores de 14 anos entrevistados, nenhum utilizava equipamentos de proteção. Eram crianças que estavam em contato direto com os produtos químicos. Eles falaram que ao aplicar o herbicida no campo, ficavam muito molhados com o produto, porém, não tinham consciência da gravidade do problema. No grupo de 14 a 17 anos de idade, 13,6% disseram que utilizavam apenas a luva e a bota; 17,4% utilizavam luva, bota e máscara; 43% não indicaram qual o tipo de equipamento utilizado na aplicação e 26% não utilizavam nenhum tipo de equipamento.

De todos os menores que trabalhavam com produtos químicos, 28% não recebiam nenhum tipo de instrução para trabalhar com esses produtos. Apenas um entrevistado declarou sentir algum problema ao aplicar agroquímicos. Segundo ele, sentia tontura e queimor nos olhos.

Como se pode ver, os fatos mencionados anteriormente vão radicalmente de encontro ao que atesta a legislação atual.. Porém, os órgãos reponsáveis pela fiscalização e cumprimento da lei alegam estarem desaparelhados tanto em recursos materiais, quanto humanos, para exercerem sua função. Sua atuação mais efetiva dá-se no âmbito da empresa tendo-se comprovado nesse nível, como resultado da ação mais eficaz do Ministério do Trabalho, a redução e até mesmo a erradicação do trabalho de crianças menores de 14 anos. O problema continua sem solução porém nas propriedades de fornecedores onde a fiscalização tem mais dificuldade de ter acesso. Aqui vai a critica também extensiva a muitos Sindicatos de Trabalhadores Rurais da Zona Canavieira da Paraíba que, como foi constatado pela pesquisa, não vêm atuando na fiscalização e denúncia da situação a que estão submetidos os bóias-frias mirins da cana, e a precária situação de saúde à qual estão vivenciando. Os mais atuantes como por exemplo os de Sapé, Santa Rita, Cruz do Espírito Santo e Caaporã, têm sofrido sanções da classe patronal

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que, para enfraquecê-los, usam como estratégia a transferência do recolhimento das contribuições sindicais dos seus empregados para os municípios onde os sindicatos são menos atuantes.

Entre os incômodos sentidos durante o trabalho, os mais referenciados pelos jovens entrevistados foram: o sol quente, a palha da cana e a fome. Estes problemas são responsáveis também por uma série de sintomas sentidos no exercício do trabalho, quais sejam: dor de cabeça, coceira, tontura, irritação nos olhos, dor no pescoço, dor nas costas, queimor no estômago, sonolência, dor no corpo, sensação de peso na cabeça, fraqueza, sensação de desmaio e dor nas pernas.

A dor de cabeça, a sensação de peso na cabeça e a sonolência são em parte sintomas decorrentes da longa exposição durante o trabalho ao sol causticante, associado ao esforço físico despendido muitas vezes com o estômago quase vazio. A irritação dos olhos é devida principalmente à fuligem da cana queimada. A coceira na pele é proveniente do contato com o pêlo da palha da cana. Este sintoma é apontado como um dos mais irritantes no processo de trabalho. A tontura, o queimor no estômago, a fraqueza e a sensação de desmaio acham-se principalmente relacionados à fome que é citada como um dos maiores incômodos. Como foi visto anteriormente, a maioria leva em geral o "quarenta" para comer no horário de descanso. É preciso também frisar que esses sintomas podem estar relacionados a outros problemas de saúde gerados pela associação da fome com o esforço físico, longo tempo de

exposição ao sol forte, etc.

-Por último, a dor no pescoço, nas costas, no corpo e nas pernas, são provocadas pela posição no exercido do trabalho e pelo esforço físico despendido, regra geral, superior à capacidade das crianças.

Além de todos esses problemas de saúde, as crianças e adolescentes apresentavam sinais visíveis de anemia e desnutrição protéico-calórica, decorrente de uma alimentação inadequada e insuficiente, não compatível com a faixa de idade e com o esforço físico despendido no penoso dia de trabalho, contribuindo assim, para o envelhecimento antecipado dessa população. Foi observado também que muitos chefes de família apresentavam todas as características de envelhecimento precoce.

São eles hoje e seus filhos amanhã, uma população vitimada pelas duras jornadas de trabalho e pela insuficiência e má qualidade do padrão alimentar. (Costa: 1994; 22).

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Na maioria dos casos, os agravos à saúde dessa população trabalhadora não são compensados pelo acesso aos serviços de saúde (hospitais, postos médicos, remédios, etc), em virtude da precariedade dos mesmos e do estado de miséria a que esses trabalhadores estão submetidos.

Dos menores de 14 anos entrevistados, 33,3% afirmaram que não procuravam nenhum tipo de assistência quando adoeciam e se tratavam em casa. Dos menores com idade entre 14 e 17 anos,

36,6% disseram que quando adoeciam não recebiam nenhum tipo de assistência; 10% se tratavam em casa; 10% em postos de saúde; 10% nas usinas e/ou propriedades e apenas 3,4% procuram os hospitais da região.

Em suma, tem-se que a baixa ingestão de alimentos, associada às péssimas condições de trabalho nos canaviais, contribui para minara saúde desses menores trabalhadores, podendo retirá-los antecipadamente do mercado de trabalho. Todos os fatos mencionados anteriormente contradizem frontalmente as leis de proteção à infância e à adolescência, como por exemplo, a Constituição Federal de 1958, que em seu artigo 227 afirma:

É dever da família, da sociedade e do estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discrimi-nação, exploração, violência, crueldade e opressão. S. Conclusão

O estudo realizado na Zona Canavieira do Estado da Paraíba, permitiu constatar e vivenciar fatos que afrontam radicalmente as leis de proteção à infância e à juventude:

• Crianças que trabalham no corte da cana-de-açúcar com menos de 14 anos de idade, não na condição de aprendiz, mas na condição de adulto, enfrentando trabalho pesado, perigoso e insalubre e percebendo salários subnormais, inferiores aos adultos;

• Crianças e adolescentes que executam trabalho noturno, no chamado "lambaio", juntando cana no ritmo da máquina por 12 horas consecutivas. Muitas ainda manuseavam agroquímicos, sem nenhum tipo de instrução e de equipamento para a aplicação dos produtos nos canaviais;

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•Adolescentes que, em grande maioria, não possuem seus direitos trabalhistas e previdenciários assegurados, como carteira assinada, 13° salário, férias remuneradas, fundo de garantia, etc;

• Jovens que não conseguem freqüentar a escola, em virtude de enfrentarem uma longa e estafante jornada de trabalho. Crianças e jovens analfabetos e semi-analfabetos engrossam as fileiras dos excluídos.

• Crianças e jovens cujos corpos esquálidos manifestam a precariedade das condições de saúde resultantes das extenuantes condições de trabalho e das precárias condições de vida.

Diante de tal quadro, que caminhos, que ações apontar para erradicar este estigma, para prevenir o agravamento dos efeitos do trabalho precoce sobre o desenvolvimento psíquico e físico das crianças e adolescentes, para priorizar ações de intervenção nos setores da produção que oferecem mais riscos?

E preciso antes de tudo, deixar claro que esta questão é polêmica e é percebida pela sociedade de forma contraditória. De um lado, posicionam-se aqueles que defendem o trabalho infanto-juvenil como estratégia, tanto de combate à delinqüência e à infração, quanto de aquisição de habilidades para o mundo do trabalho. Posição oposta é defendida por aqueles que o consideram, particularmente nas condições em que ele é exercido no campo, uma fonte de impedimento ao pleno desenvolvimento da personalidade e das capacidades físicas e mentais das crianças e adolescentes. Exemplifica essa última posição a campanha: "lugar

de criança é na escola".

-A posição dos pais pode ser sumariada da seguinte forma: de um lado, sofrem em ver os filhos submetidos às mesmas situações de exploração já vivenciadas por eles e gostariam de poder-lhes propiciar uma vida melhor, de outro, sentem-se constrangidos por não poderem prescindir da contribuição precoce dos filhos para a formação de uma renda familiar que garanta, ainda que precariamente, a sobrevivência e o atendimento das necessidades familiares.

Acima dessas posições conflitantes, é preciso que se defenda a extinção do trabalho infantil enquanto mecanismo de complementação de renda e enquanto fonte de impedimento ao desenvolvimento pleno das crianças. Pode-se até ser mais radical e defender, pura e simplesmente, a erradicação do trabalho de crianças e adolescentes. Mas isso só não basta.

E preciso que se estruture um processo educacional onde a escola não esteja descolada da realidade da vida rural. Isto é, o

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processo educativo deve dar-se a partir da realidade concreta e voltado para o aperfeiçoamento e desenvolvimento dessa mesma realidade. Retirara criança do mundo do trabalho e inseri-la na escola tal como existente hoje (classes multiseriadas, professores sem a qualificação devida, escolas desequipadas, sem projeto pedagógico, etc.), não pode ser considerado como um encaminhamento adequado para o problema.

Uma proposta pedagógica para a zona rural, deve ir além do provimento das condições mínimas de seu funcionamento. Deve ser elaborada de modo que a vida no meio rural se constitua no ponto focal de sua construção. Nesse contexto, o trabalho não deve ser visto como uma oposição à escola, mas como um elemento essencial na dinâmica da formação afetiva, emocional, cultural e técnica, preparando para o desempenho pleno da cidadania. Em outras palavras a escola deverá desenvolver uma proposta educativa onde a criança e o adolescente não sejam afastados do contato com os cuidados com a roça, com a criação, etc. mas que incluam essas atividades na sua prática pedagógica tomando dessa forma o trabalho em elemento estruturador do processo educacional e formativo.

Além da reformulação da escola, o combate ao trabalho de crianças e adolescentes deve compreender uma proposta de reestruturação socioeconômica que contemple mudanças profundas na estrutura fundiária, no melhoramento da base técnica da produção adaptada às pequenas e médias unidades produtivas de modo a favorecer o emprego e a geração de renda.

No bojo desse processo, está a luta por um modelo de desenvolvimento que não exclua a classe trabalhadora do direito à cidadania plena, isto é, ao direito a uma vida digna onde a família não precise se manter às custas do trabalho dos seus filhos. Onde a criança possa ser criança e possa estudar, brincar..., sonhar os sonhos dos que têm casa, escola, transporte, diversão. Enfim, sonhar o sonho dos que não têm fome.

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