• Nenhum resultado encontrado

Bioética e o principialismo: um estudo a partir de Wittgenstein

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Bioética e o principialismo: um estudo a partir de Wittgenstein"

Copied!
129
0
0

Texto

(1)

BIOÉTICA E O PRINCIPIALISMO: UM ESTUDO A PARTIR DE WITTGENSTEIN

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

FLORIANÓPOLIS 2008

(2)

DAIANE MARTINS ROCHA

BIOÉTICA E O PRINCIPIALISMO: UM ESTUDO A PARTIR DE WITTGENSTEIN

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito final para a obtenção do título de Mestre em Filosofia, sob orientação do Professor Dr. Darlei Dall´Agnol.

FLORIANÓPOLIS 2008

(3)

DAIANE MARTINS ROCHA

BIOÉTICA E O PRINCIPIALISMO: UM ESTUDO A PARTIR DE WITTGENSTEIN

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Darlei Dall’Agnol - UFSC - Orientador Profª. Dra. Maria Clara Dias - UFRJ - Examinadora Prof. Dr. Delamar José Volpato Dutra - UFSC - Examinador

Prof. Dr. Selvino José Assmann - UFSC - Suplente

FLORIANÓPOLIS 2008

(4)

RESUMO: Este trabalho busca explorar as contribuições de Wittgenstein para o tema bioética e suas principais abordagens, examinando, em especial, o principialismo, por elucidar importantes elementos da moralidade na área da ética biomédica. Ao mesmo tempo, é feita uma reconstituição dos primórdios da bioética no sentido amplo. Segue uma discussão a respeito do progresso e da tecnologia representando, quando baseadas em uma visão cientificista do mundo, possíveis ameaças à vida como um todo. Isso mostra as limitações do conhecimento científico frente ao âmbito dos valores.

Palavras-chave: Wittgenstein. Ética. Bioética. Ciência.

ABSTRACT: This work aims at exploring Wittgenstein’s contributions to the subject of bioethics and its main approaches, examining specially principialism because it elucidates important moral aspects in the biomedical field. At the same time, it reconstructs the beginnings of bioethics in its wide sense. It follows a discussion on progress and technology threatening, when based on a scientificist view of the world, life as a whole. It shows the limitations of scientific knowledge concerning the sphere of values.

(5)

Agradecimentos

Às amigas do curso de Letras-Alemão, Laura, Julliana e Stéphanie, que não me ajudaram a esclarecer o que Wittgenstein indica sobre o sentido da vida, mas elas

próprias me deram este sentido;

ao professor Dr. Alessandro Pinzani, que sempre me deu palavras de incentivo, muitas vezes confiando mais em minha capacidade de produzir um bom trabalho que eu mesma;

à Francielle Petry, sempre solícita aos meus apelos por materiais e esclarecimentos; a Luciano Bierhals, paciente e encorajador companheiro em todos os momentos;

à Grasieli C. dos Santos, amiga certa das horas incertas;

aos meus pais, Edir e Madalena Rocha, mestres eternos que com seu amor e apoio me ajudaram a superar todas essas etapas;

a Jonas Tenfen, pela revisão deste trabalho, que apesar do curto tempo, fez o possível para me auxiliar;

ao meu paciente e bem humorado orientador, Dr. Darlei Dall’Agnol, que frente às minhas defesas mais esdrúxulas de interpretação, sempre encontrava tempo para discutir

e algum texto para me auxiliar;

agradecimento em especial à Capes, agencia fomentadora da

pesquisa em todo país, pois sem o incentivo desta, tal investigação não seria possível; enfim, a todos e todas que direta ou indiretamente me ajudaram a superar esta ‘escada’ rumo a uma melhor compreensão do mundo e de mim mesma: anseio de todo filósofo ou

(6)

“Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido”. (Charles Chaplin)

(7)

Índice

INTRODUÇÃO ... 8

1. WITTGENSTEIN E BIOÉTICA? ... 10

1.1POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES DE WITTGENSTEIN À BIOÉTICA... 10

1.1.1 O modelo de evidência formal e o modelo de julgamento especializado ... 12

1.1.2Fatos e sensibilidade em bioética... 17

1.1.3 A dinâmica da moral em relação aos cuidados no fim da vida ... 18

1.1.4 Consciência e linguagem: o caso dos pacientes em estado vegetativo persistente... 21

1.1.5A problematicidade do conceito de pessoa e a ética: como agir em relação a crianças com graves problemas neurológicos? ... 23

1.1.6 A (não) aceitação do especialista moral: há um modo correto de agir? ... 26

1.1.7A suposta impossibilidade da justificação moral e a proposta particularista ... 29

1.1.8Possíveis (e impossíveis) implicações do pensamento de Wittgenstein para a ética animal .... 32

1.1.9Felicidade e julgamento moral... 34

2. CONTRIBUIÇÕES DE WITTGENSTEIN PARA A BIOÉTICA NO SENTIDO ESTRITO.. 36

2.1AS OBSERVAÇÕES DE WITTGENSTEIN SOBRE SEGUIR REGRAS... 36

2.2BIOÉTICA NO SENTIDO ESTRITO:BEAUCHAMP E CHILDRESS E O PRINCIPIALISMO... 45

2.2.1 O papel das virtudes morais ... 51

2.2.2 Tipos de teoria moral ... 53

2.2.3 O utilitarismo ... 54

2.2.4 A ética de Kant...61

2.2.5 A casuística...67

2.3BENEFICÊNCIA E PATERNALISMO... 69

2.4O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA E O CONCEITO DE PESSOA... 74

2.5CONDIÇÕES PARA O CONSENTIMENTO INFORMADO... 76

3. CONTRIBUIÇÕES WITTGENSTEINIANAS PARA A BIOÉTICA EM UM SENTIDO AMPLO ... 78

3.1BIOÉTICA NO SENTIDO AMPLO:POTTER... 78

3.2O ANTICIENTIFICISMO (OU NÃO-CIENTIFICISMO) TRACTATIANO... 79

3.3A INFLUÊNCIA DE SPENGLER... 84

3.4A ÉTICA FRENTE ÀS LIMITAÇÕES DA CIÊNCIA E DA TÉCNICA... 87

4. WITTGENSTEIN E O PRINCIPIALISMO ... 90

4.1COMO JUSTIFICAR CONCLUSÕES MORAIS? ... 90

4.2O NIILISMO NORMAL, FORMAS DE VIDA E A ‘DOENÇA FILOSÓFICA’ ... 92

4.3UM OLHAR WITTGENSTEINIANO SOBRE O PRINCIPIALISMO... 103

4.4CRÍTICAS AO PRINCIPIALISMO E ALGUMAS RESPOSTAS... 105

4.4.1A crítica de L. Pessini ao principialismo (ou ética made in USA) ... 106

4.4.2As críticas de Pellegrino e de Engelhardt ao principialismo... 108

4.4.3Ética clarificatória versus princípios... 112

4.5UMA LEITURA ‘CLARIFICATÓRIA’(OU WITTGENSTEINIANA) DOS PRINCÍPIOS... 115

CONCLUSÃO ... 119

(8)

INTRODUÇÃO

A proposta central deste trabalho é examinar as contribuições de Wittgenstein para se pensar a bioética hoje, em especial, para fomentar a discussão crítica da abordagem principialista. Paralelamente, buscaremos examinar a proposta inicial da bioética, que tratamos por ‘bioética no sentido amplo’ e seus desdobramentos na ética biomédica hoje, aos quais nos referimos como ‘bioética no sentido estrito’. Tudo isso a partir de uma visão wittgensteiniana, e com contribuições em temas específicos e gerais que identificamos nesse autor, como no que se refere à linguagem, ética, cultura, anticientificismo, e técnica. Assim, estaremos não apenas analisando a abordagem principialista, que propõe para a ética biomédica os princípios da beneficência, justiça, autonomia e não-maleficência, mas chamando a atenção do leitor às várias questões pertinentes à ética e à bioética.

Considerando a constante preocupação ética de Wittgenstein, percebemos em seus escritos importantes questionamentos, relevantes ao tema bioética, partindo de sua posição antiteórica no que se refere à ética, sua indizibilidade, a ética como uma posição diante da vida, a forma de vida, e sua discussão sobre seguir regras ou uma suposta indeterminação dessas. Estes temas nos chamaram a atenção precisamente porque, o que se costuma ter como bioética hoje é uma espécie de ciência da ética biomédica, visto a ocorrência, em países como os Estados Unidos, de um profissional chamado ‘bioeticista’, o que, sob o ponto de vista de Wittgenstein, nos causa um grande desconforto. Assim, tendo em vista esclarecer o papel que a bioética poderia ter hoje, da perspectiva desse autor, passamos a examinar as principais questões concernentes a este tema juntamente com os principais assuntos problematizados pelo autor.

No capítulo 1, visamos esclarecer o leitor sobre a pertinência de estudarmos a bioética a partir das preocupações éticas de Wittgenstein, e para isso mostraremos como vários autores já têm escrito a respeito deste assunto. Com o exame de alguns trabalhos, identificaremos e argumentaremos a respeito de temas que julgamos serem pertinentes quanto a contribuição de Wittgenstein à bioética segundo alguns comentadores e acrescentaremos ainda outros temas que acreditamos serem relevantes à discussão nos capítulos que seguem.

(9)

No capítulo 2, trataremos do principialismo a partir da discussão sobre a suposta indeterminação das regras, onde também faremos uma análise de algumas teorias bioéticas, mostrando seus êxitos e suas limitações em comparação com a abordagem principialista, além de tratarmos de como o principialismo delibera em alguns casos específicos abordando temas tais como paternalismo, autonomia e consentimento.

No capítulo 3, trataremos da bioética no sentido amplo, retomando as origens desta que deveria ser uma “ciência da sobrevivência” e as principais preocupações apontadas por Potter, onde complementaremos com a abordagem de Wittgenstein sobre técnica, progresso e ética.

No capítulo 4, concluímos e justificamos nossa abordagem do principialismo a partir de Wittgenstein, destacando como a abordagem principialista resolveria o problema da justificação moral, servindo de cura à ‘doença filosófica’ apontada por Elliott. Por fim, exploramos algumas das críticas mais freqüentes feitas à abordagem principialista e algumas propostas que decorrem destas, entre elas, a de uma ética clarificatória, que nos traz, além de elucidações sobre a ética, motivações para futuras pesquisas.

(10)

1. WITTGENSTEIN E BIOÉTICA?

1.1 Possíveis contribuições de Wittgenstein à bioética

Por mais inusitado que pareça, o pensamento do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein tem estado presente em muitas discussões sobre bioética, mesmo que esta seja um campo posterior ao trabalho dele, pois o teor anticientificista de seus escritos e suas afirmações sobre a impossibilidade de proposições éticas, por exemplo, abrem caminho para discutir não só os dilemas éticos que ocorrem diariamente, mas a própria aceitação do status que a bioética freqüentemente requer.

Considerando a contribuição encontrada tanto no chamado “primeiro” Wittgenstein quanto no “segundo”, vários autores têm explorado seu pensamento a fim de clarificar questões de bioética, afinal: “A filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento do nosso intelecto pelos meios da nossa linguagem1”, de tal modo que o papel da filosofia seria de discutir as várias abordagens que se pode ter do mesmo caso e perceber o maior número possível de fatores envolvidos e não simplesmente dar uma resposta aos dilemas, como se houvessem proposições éticas que expressassem algum valor absoluto no mundo, algo tratado por Wittgenstein no Tractatus. Além disso, pensar que a bioética possa dar respostas objetivas aos dilemas éticos, como se fosse uma ciência, não pode ser menos que um enfeitiçamento de nosso entendimento, conforme sugere o pensamento do autor supracitado.

Com essa motivação temos autores como Carl Elliott, James C. Edwards, Larry Churchill, James L. Nelson, Grant Gillett, David DeGrazia, Cora Diamond, Paul Johnston, Margaret O. Little, Knut Erik Tranöy, que encontram no pensamento de Wittgenstein um apoio para pensar nesta forma de ética tão peculiar. E, embora hoje a palavra ‘bioética’ costume designar mais particularmente questões de ética biomédica, referida como bioética no sentido estrito, alguns destes autores tratam da bioética como englobando uma ética da vida, ao que se chama bioética no sentido amplo, envolvendo desde dilemas clínicos até questões sobre o que se tem denominado ética animal.

Um dos principais autores que procuram explicitar os modos nos quais Wittgenstein pode nos ajudar a pensar sobre bioética é Carl Elliott2. Ele ressalta que,

1 Wittgenstein, L. Investigações Filosóficas. Trad. Marcos G. Montagnoli São Paulo: Nova Cultural, 1996, § 109.

2

(11)

para Wittgenstein, ética era uma ocupação intensamente pessoal, profundamente séria, que não é simplesmente sobre boa conduta e bom caráter, mas sobre o sentido da vida, o estado de uma alma, ou como ele freqüentemente expunha, sobre ser decente. Porém, a forma que a bioética freqüentemente toma é a de um tipo de documento escrito, anônimo, impessoal, pelo qual se adverte como as pessoas devem se comportar. Assim, ainda com Elliott, a combinação entre Wittgenstein e a bioética pode não ser tão excêntrica quanto inicialmente parece. Enquanto é verdade, por exemplo, que Wittgenstein produziu poucos escritos formais sobre ética, existe também um forte senso de que a ética permeia a totalidade de seu trabalho. De fato, ele reivindica que o ponto do Tractatus Logico-Philosophicus, apesar da aparência de um denso tratado de lógica e linguagem, era fundamentalmente ético3.

Elliott nos chama a atenção para o fato de que Wittgenstein trabalhou em um hospital durante a Segunda Guerra Mundial, e por um tempo considerou seriamente desistir de seu cargo de professor de filosofia para ir a escola médica4. Elliott sustenta ainda que mesmo que esta informação possa ser vista como um fato relativamente trivial sobre a vida de Wittgenstein, está associada a uma profunda sensibilidade do autor, e mostra que era desejo dele fazer um trabalho que fosse útil5. Segundo Elliott, Wittgenstein desencorajava seus estudantes a fazerem filosofia e algumas vezes os persuadia, ao invés disso, a fazerem trabalhos manuais6. Wittgenstein desistiu de filosofia depois de escrever o Tractatus e tornou-se um professor de uma escola onde lecionava para filhos de camponeses na área rural da Áustria. Precisava fazer um trabalho útil, que parecesse estender sua visão de filosofia como bem. Em uma carta a Norman Malcolm, Wittgenstein escreveu: “Qual é o uso do estudo de filosofia se tudo que este faz por você é torná-lo capaz de falar com alguma plausibilidade sobre algumas complicadas questões de lógica, etc., e se isto não faz melhorar seu pensamento sobre importantes questões da vida cotidiana?7”.

Para Elliott, a bioética, mais que muitas áreas da filosofia, almeja ser útil. Mesmo o mais especulativo trabalho em bioética pretende melhorar nosso entendimento sobre a vida cotidiana. Portanto, Elliott escreve que seus trabalhos de produção e

3 Conforme se sabe pela carta escrita a Von Ficker antes da publicação do Tractatus, onde Wittgenstein diz que a parte mais importante dessa obra é justamente a que não está escrita: “Meu trabalho consiste em duas partes: uma que é apresentada aqui, mais tudo aquilo que eu não escrevi. E é precisamente esta segunda parte que é a importante” (In: Crary, A. & Rupert, R (ed.), 2000, p.152, tradução nossa).

4 Cf. Elliott, 2001, p. 2.

5 Monk, R. Ludwig Wittgenstein: The duty of genius. New York / London: Penguin Books, 1990, p. 425. 6

Cf. Elliott, 2001, p. 2. 7

(12)

organização de artigos sobre Wittgenstein, medicina e bioética não almejam dizer qual é a visão de Wittgenstein ou seu caráter, ou mesmo o que ele possa ter pensado sobre bioética, mas como o trabalho de Wittgenstein pode nos ajudar a pensar melhor e mais claramente sobre bioética e prática médica.

Apresentaremos a seguir, alguns autores que, inspirados em questões presentes nas obras de Wittgenstein, desenvolvem artigos sobre questões pertinentes a bioética de um modo geral.

1.1.1 O modelo de evidência formal e o modelo de julgamento especializado

James L. Nelson, em seu artigo Unlike Calculating Rules?8, escreve que, devido à indeterminação das regras9 para a tomada de decisões morais, não se pode simplesmente utilizar uma fórmula, mas deveria ser desenvolvido um senso para considerar o significado das circunstâncias particulares da situação dos pacientes e de suas doenças. Para defender sua posição, o autor lembra a phronesis aristotélica, invocando a sabedoria prática como importante para discernir qual a melhor ação ou escolha numa determinada situação, uma vez que a resolução de problemas éticos requer a capacidade de julgar.

Conforme salienta Nelson, agir com sabedoria prática é não se restringir à mera aplicação algorítmica de procedimentos de decisão, e mesmo que uma pessoa, para fazer um bom julgamento, precise alguns conhecimentos, como por exemplo de regras e princípios envolvidos, tomar uma decisão correta na ética biomédica é uma questão de julgamento que exige percepção das particularidades do caso, visto que se tratam de pessoas e situações diferenciadas10. Ter o máximo de informações sobre o paciente seria outro ponto importante para um melhor julgamento, por ampliar o senso do médico das opções clínicas viáveis.

Nelson fala a respeito de dois modelos de tomadas de decisões: o modelo de evidência formal (formal evidence model), cujos defensores são chamados de formalistas e o modelo de julgamento especializado (expert judgment model). Os formalistas são adeptos de um modelo pelo qual, através de pesquisas, é feito um

8

Nelson, James L. “Unlike Calculating Rules”? Clinical Judgment, Formalized Decision Making, and Wittgenstein. In: Elliott, 2001, pp. 48-69.

9 Sobre indeterminação de regras, conferir adiante no cap. 2, que trata, entre outros temas, da visão de Wittgenstein sobre seguir regras e a indeterminação destas.

10

(13)

levantamento das ocorrências de um caso clínico e de que formas ele foi resolvido, e a partir deste levantamento, estipulam qual forma de tratar o caso foi a mais eficaz. Assim, o modelo de evidência formal tomaria como procedimento padrão as atitudes que tiverem obtido melhores resultados em um caso anterior, resolvendo todos os posteriores da mesma forma, ou seja, criando uma regra para a resolução de todos os casos semelhantes que ocorrerem. Sobre os formalistas, Nelson escreve que “se pressionados, eles podem admitir que regras derivadas de tal pesquisa não são suficientemente capazes para determinar qualquer decisão clínica”11. Desse modo, o autor busca demonstrar a limitação deste modelo, e complementa que é lamentável que a arbitrariedade dessas regras baseadas em evidências possa passar despercebidamente por cima da deliberação e decisão. Pois, para Nelson, uma boa prática clínica deve esforçar-se para compreender a maior quantidade de fatores envolvidos possível, e para isso, um profissional que queira tomar decisões de forma competente deve saber quais procedimentos para quais indícios são mais bem sustentados pelos estudos controlados e outras formas de pesquisa.

Para o segundo modelo apresentado, o de julgamento especializado, “tomar uma boa decisão clínica envolve um tipo de integração entre informação científica e modelos científicos com experiências clínicas e, talvez mais amplamente, compreensão cultural e experiências de vida12”. Segundo este modelo, uma situação clínica não pode ser transformada em informação codificada, explicada em termos de uma regra explícita, pois podem se tratar de pessoas, com crenças, vontades e situações diferentes, de modo que apenas um modelo de tomada de decisões que levasse em conta o maior número de fatores envolvidos estaria sendo justo com essas pessoas.

Assim temos aqui confrontados dois modelos possíveis para se pensar nos casos clínicos de ética em pesquisa: o de julgamento especializado e o de evidência formal, que James Nelson elucida a partir de observações sobre os escritos de Wittgenstein. Ele vê três temas nos trabalhos de Wittgenstein que podem auxiliar nestas questões sobre bioética e prática médica: i) suas observações sobre ciência; ii) sobre interpretação, ou seguir regras e prática e iii) sobre julgamento especializado.

No que diz respeito à posição wittgensteiniana sobre o entusiasmo com o método científico, James Nelson começa citando o livro azul, o que abre caminho para sua defesa do julgamento especializado: “Filósofos constantemente vêem o método

11

Nelson In: Elliott, 2001, p.53, tradução nossa. 12

(14)

científico sob seus olhos e são irresistivelmente tentados a perguntar e responder questões do mesmo modo que a ciência faz”13. O autor segue ressaltando que o método científico seria tão irresistível aos filósofos por ter uma grande história de sucesso epistêmico, que compele convergências e não considera nenhuma barreira cultural. A partir disso, James Nelson lembra que, conforme Wittgenstein mostrou, o trabalho da filosofia não é como o da ciência, pois o objetivo da filosofia não é nos proporcionar novos conhecimentos sobre o mundo, mas resolver confusões causadas por nosso mau entendimento do modo de representar o mundo na linguagem, e isso não ocorre através da construção de teorias, mas prestando atenção no que de fato os seres humanos fazem em situações particulares usando a linguagem de modos variados14.

James Nelson traz essa discussão para o contexto da medicina, considerando que, assim como para o filósofo o método científico não é adequado, pois traz generalizações indesejáveis e incabíveis, da mesma forma, na prática médica, generalizações provenientes do método científico não são adequadas se pensarmos no respeito devido ao paciente em questão. Pois apesar de os médicos estudarem as ciências da vida, e buscarem recursos nos avanços científicos, é importante lembrar que as doenças se manifestam em corpos e em vidas de pessoas particulares, de modo que, pensar nessa relação a partir da generalidade do método científico estaria desconsiderando que haja diferentes pessoas, pois aborda as doenças isoladamente.

Assim, a principal contribuição de Wittgenstein, segundo James Nelson, está relacionada com a pretensão de generalidade da ciência que não serviria para a prática médica, uma vez que, nestes casos, assim como para a filosofia, os detalhes são importantes e a ciência, por outro lado, tomaria uma posição de desinteresse quanto aos casos particulares.

James Nelson ressalta ainda que a polêmica gerada por Wittgenstein em torno deste assunto, não significa que ele assuma uma posição contra a ciência, mas contra o hábito de se pensar que a forma científica de ver o mundo seja superior a qualquer outra, e, no caso da prática médica, que o médico se restrinja a consideração dos aspectos científicos, rejeitando as particularidades trazidas por cada paciente enquanto pessoa.

Feitos os devidos esclarecimentos de como a posição de Wittgenstein a respeito da ciência nos leva a perceber os limites da mera aplicação do método científico na

13

Wittgenstein,Das Blaue Buch. Frankfurt: Suhrkamp, 1989,p. 39, tradução nossa. 14

(15)

prática médica, James Nelson esclarece como os comentários deste autor sobre seguir regras fomentam seu posicionamento em relação aos modelos de tomadas de decisões.

Para demonstrar suas objeções ao modelo formal de tomada de decisões, que segue a forma científica de ver o mundo, James Nelson cita Wittgenstein: “São necessárias, para estabelecer uma prática, não só regras, mas também exemplos. As nossas regras têm lacunas e a prática tem que falar por si mesma”15. A partir dessa citação, podemos perceber que a ênfase da defesa de Nelson é em uma prática médica humanizada, que embora se baseie em práticas responsáveis, levando em conta casos anteriores e qual a melhor forma de resolvê-los, não restrinja a ação do médico a um procedimento formal, pois a aplicação de uma regra sempre exigirá exemplos, e estes advém da prática, e não de outras regras. Para esclarecer este ponto, Nelson lembra Kant, que na Crítica da Razão Pura salienta que o processo de aplicação de conceitos a objetos não pode ser completamente determinado por regras, pois se este fosse o caso, nós cairíamos em um regresso ao infinito, ou seja, cada regra necessitaria de uma outra regra para sua correta aplicação, e tais regras requereriam outras regras para que fossem aplicadas adequadamente, e assim sucessivamente16. Kant resolve essa questão do regresso ad infinitum inserindo a idéia de uma faculdade que ele chama de ‘Mutterwitz’. Esta faculdade nos auxiliaria na tomada de decisões, para que não tenhamos tal problema de aplicação das regras.

De acordo com Nelson, por ter grande interesse nessa questão das lacunas existentes nas regras, Wittgenstein acrescenta ao problema kantiano que não apenas as regras precisariam de regras para explicar como elas funcionam, mas ainda que qualquer regra poderia ser interpretada de muitos modos. E para resolver esta questão Wittgenstein fala da importância das práticas, ou seja, que para aprender uma regra, o aprendiz deve se inserir em uma comunidade e ver os vários modos como este grupo age, de modo que a aparente ambigüidade que inicialmente ronda as regras é dissolvida na prática disso que seria uma espécie de treinamento social. Neste ponto James Nelson salienta o que seria a grande diferença entre a maneira de Kant e de Wittgenstein pensarem na indeterminação das regras, pois, enquanto para Kant as pessoas possuem uma faculdade inerente de julgar que as permite saber como seguir uma regra corretamente, para Wittgenstein padrões de comportamento são instalados e reforçados

15 Wittgenstein, Da Certeza (Über Gewissheit). Trad. Maria Elisa Costa. Rio de Janeiro: Edições 70, 1969, §139.

16

(16)

socialmente, de modo que sabemos como seguir uma regra através da prática. Assim, de acordo com Wittgenstein, os exemplos seriam a voz da prática, no sentido de que ajudam a saber como seguir uma regra17. Apesar disso, Nelson ressalta que a explicitação de regras pode não ser suficiente no contexto médico e podemos cometer erros se não dermos a devida atenção para um tipo de treino que não é esgotado quando se ensina às pessoas como seguir a regra, que seria o julgamento especializado. Isso ocorreria porque, além da já mencionada ênfase na importância dos exemplos e da observância das práticas, há ainda outro item indispensável que Wittgenstein acrescenta para a aplicação correta das regras: a experiência. Com base nisso, James Nelson reforça sua defesa do julgamento especializado, já que este consistiria em seguir as regras de acordo com a experiência que, no caso, o médico tem, que é algo que não pode ser ensinado ou apreendido pela observação de uma tomada de decisão, mas é algo fortalecido pela prática diária.

James Nelson ressalta que Wittgenstein, na parte II das Investigações, deixa bem claro que um julgamento especializado não é algo que se possa ensinar outra pessoa a fazer, ou que o mero seguir regras o permita; julgamento especializado é algo que, embora não possa ser ensinado em termos de um curso, pode ser aprendido pela experiência. Podemos acrescentar ainda que “somente de uma pessoa que é capaz disto e daquilo, que aprendeu e domina isto e aquilo, tem sentido dizer que ela vivenciou isto”18, e que um julgamento especializado só pode ser feito por quem vivenciou certas práticas e domina tais procedimentos. Segundo Nelson, o que Wittgenstein está nos chamando a atenção é para a existência de práticas humanas nas quais a excelência não é alcançada por regras completamente explicitadas ou pela habilidade de seguir tais regras19, pois alguns julgamentos especializados conseguem abranger áreas que nenhum sistema ou técnica poderia alcançar.

Deste modo, seguir uma regra é uma prática que aprendemos pelo uso, é como dominar uma técnica, e este é um dos usos que James Nelson faz do pensamento de Wittgenstein para pensar a bioética, partindo da concepção de que uma regra sozinha é insuficiente para orientar uma ação, abrindo espaço para sua defesa do julgamento especializado, que se contrapõe ao modelo formal de tomadas de decisões.

17 Cf. James Nelson In: Elliott, 2001, p. 61. 18

Wittgenstein,1996, xi, p. 272. 19

(17)

Todas essas observações auxiliariam na resolução de dilemas clínicos na medida em que permitem pensar, por exemplo, sobre a formalização das tomadas de decisões, ou seja, na adoção de regras explícitas em conflitos clínicos.

Assim, a respeito dos modelos de julgamento, James Nelson conclui que o modelo de evidência formal pode até ser usado para substituir o modelo de julgamento especializado, porque como contém orientações a respeito da relação entre sintomas e terapias, ou seja, por possuir regras que nos permitam identificar mais rapidamente os casos clínicos, perdemos menos tempo na identificação do caso e podemos perceber outras características relevantes mais sutis, já que poucas coisas não estariam abarcadas pela regra, o que tornaria a identificação dos casos e seu tratamento mais eficiente. Assim, mesmo reconhecendo a importância do modelo de evidência formal, a defesa que Nelson faz de um julgamento especializado parte do pressuposto de que o modelo formal corta as diferenças na prática, por padronizar o que médicos fazem, descartando as diferenças entre os modos de as doenças se manifestarem na vida de diferentes pessoas, donde se faz conveniente essa discussão a respeito do método científico, das regras e da experiência.

1.1.2 Fatos e sensibilidade em bioética

Outra abordagem wittgensteiniana da bioética é proposta por James C. Edwards, em seu artigo Religion, Superstition and Medicine20. O autor inicia dando exemplos sobre o que ele chama de crenças falsas, mas confortantes, como no caso da viúva que conversa com o marido falecido quando vai ao cemitério, como se ele a pudesse ouvir. Edwards denomina fenômenos como este de superstições: ações baseadas em crenças confortáveis.

Assim, Edwards acentua as ações humanas como sendo expressões de crenças, e no caso de dilemas éticos, estas crenças que ele considera como superstições, acabam se chocando com a aparência racional dos fatos, onde se tem superstição versus razão ou ciência. Edwards também usa como exemplo o caso de uma paciente em que ocorreu morte cerebral, mas a família insiste em mantê-la nos aparelhos, pois seu coração ainda bate, e a crença dessa família é a de que o coração é o centro da vida. Para os médicos, esta crença é falsa, pois defendem que o cérebro é o centro da vida, já que sem ele a

20

(18)

paciente não é capaz de sentir, pensar, desejar etc. Então eles explicam esta situação para a família. O que o autor ressalta sobre isto é que, neste caso, a sensibilidade é mais importante para a filosofia que avaliar a crença que os diferentes grupos possuem, no caso, a crença dos médicos e dos parentes da paciente.

O uso que Edwards faz de Wittgenstein para questões deste tipo é a partir da consideração de visões gramaticais diferentes e da primazia da sensibilidade ao invés de crenças para pensar nestes casos, elementos que ele teria buscado nas Investigações. Ou seja, a questão não é investigar os fatos que originaram tais crenças ou como essas convicções se estruturaram. A proposta é que se possam ver as coisas diferentemente, mesmo sem renunciar às suas crenças ou convicções, considerando a questão em outros termos. Não é uma disputa sobre quais crenças são verdadeiras e quais são falsas, o conflito nestes casos é mais profundo que alguma crença que possa ser considerada razoável por apelo aos fatos. O que Edwards está salientando é que, considerando, como Wittgenstein, que a ética não trata de fatos como a ciência, o que se tem aqui é “uma colisão de sensibilidades, não uma disputa sobre was der Fall ist21”.

Assim, Edwards conclui seu artigo dizendo que suas reflexões sobre Wittgenstein ajudam a pensar a questão, mas salienta que a filosofia não resolve as dificuldades éticas da vida ou mesmo da prática médica, pois não é este seu papel. Ele escreve que estudar Wittgenstein mudou seu modo de ver alguns casos; passou a vê-los mais claramente que costumava ver.

Como bem percebeu Edwards, as dificuldades éticas da vida, sejam no contexto biomédico ou no nosso dia-a-dia, são questões pessoais, para as quais não encontramos respostas da mesma maneira que encontramos para as questões científicas, conforme examinaremos no capítulo 2.

1.1.3 A dinâmica da moral em relação aos cuidados no fim da vida

No artigo Patient Multiplicity, Medical Rituals and Good Dying22, Larry Churchill escreve a respeito de algumas questões polêmicas na prática médica, como os tratamentos intensivos de suporte à vida, sobre a hospitalização prolongada, o cuidado intensivo e a aplicação da técnica de ressuscitação. Através de pesquisas, o autor

21 Idem, p. 30. Was der Fall ist: “O que é o caso”. 22

Churchill, Larry R. Patient Multiplicity, Medical Rituals and Good Dying: Some Wittgensteinian

(19)

identificou pontos específicos como fatores a serem pensados a partir da perspectiva da ética, como o uso excessivo de tecnologia, a pouca comunicação entre médicos e pacientes ou suas famílias, a incerteza dos médicos sobre os prognósticos e a ignorância por parte dos médicos das preferências dos pacientes sobre o uso de altas tecnologias de suporte da vida, considerando que muitos pacientes morreram depois de hospitalização prolongada ou tratamento intensivo. A partir dessas considerações, Churchill questiona qual seria o tipo de cuidado médico apropriado para o fim da vida, considerando que por causa dessa pobre comunicação e ignorância sobre os desejos do paciente, muitos deles receberam suporte de vida que não desejavam.

Outro ponto tratado por Churchill é o fato de a prática da medicina ser tão ritualizada. Para o autor, pensar no poder que sempre foi conferido aos rituais médicos talvez nos ajude a compreender porque as preferências do paciente são freqüentemente ignoradas, pois este tipo de prática pode ser vestígio do tempo em que a medicina tinha um aspecto mais de mágica e de religião do que de ciência. Churchill aponta a prática da ressuscitação cardiopulmonar como um ritual médico motivado por evidência científica, que acaba sendo, muitas vezes, uma futilidade, ocorrendo contra a vontade da família do paciente. O autor sugere que os recursos que são utilizados para essa ressuscitação indesejável “atendam a diferentes e melhores rituais”23.

Então o autor nos fala de um trabalho de discussão feito por enfermeiras com pacientes e suas famílias sobre as tecnologias para sustentação da vida, considerando que tecnologias deste tipo devem obter o consentimento esclarecido dos pacientes24e que a opinião destesvaria quanto ao desejo de receber tratamentos que possam prolongar um pouco sua vida, ou têm opiniões diversas quanto ao que seja uma “boa morte”. Churchill faz um esclarecimento detalhado de alguns tipos mais freqüentes de pacientes e os divide em três grupos, quanto às suas preferências por suporte ou não, por diversas razões25.

Churchill salienta que muitas pessoas não aceitam as técnicas de suporte da vida por medo de que se torne algo pior que a morte; um processo sem sentido e caro, já que essas técnicas geralmente podem manter a vida, mas não restaurá-la. Em outros casos, estas técnicas são rejeitadas porque o paciente pensa nos gastos da família. Estes

23 Idem, p. 35. 24

Sobre consentimento esclarecido e outras formas de obter o consentimento ver adiante, no cap. 2. 25

(20)

preferem uma morte prematura que uma morte protelada, cara, dolorosa ou vegetativa (Churchill classifica estes pacientes como “Minimalistas Receosos”)26.

Outros pacientes são defensores de todo tratamento que seja para manter suas vidas, por mais caro ou doloroso que seja, pois eles têm toda esperança na tecnologia para restaurar sua saúde, e pagam qualquer preço por isso. Estes pacientes usam muitas vezes a retórica religiosa e falam da “sacralidade da vida” e estão dispostos aos mais intensivos tratamentos para preservar suas vidas, mesmo que seja por poucos dias (estes são chamados pelo autor de “Vitalistas Esperançosos”).

Muitas vezes há discordância entre médico, família e o paciente, pois este insiste na continuação de um tratamento que não funciona mais, e, a despeito da opinião médica e da família, quer usar de todo e qualquer meio para tentar sobreviver.

Outro tipo de reação que costuma haver é a do paciente que simplesmente quer morrer na hora apropriada, sem muitos gastos ou muita dor e com a mínima preocupação possível para a família. Estas pessoas buscam perceber qual é a hora para parar, e buscam perceber isso no que os médicos dizem, na família e nos amigos, pois não querem antecipar nem postergar a morte (Churchill chama estes de “Agnósticos Ansiosos”).

Com isso, o autor mostra que as preferências dos pacientes variam muito, e que isso deve ser considerado pelos clínicos, pois essas preferências costumam ser trivializadas, enquanto, na verdade, deveriam ser consideradas não como meras preferências, mas como valores dos pacientes27. Considerando os valores dos pacientes, estariam sendo consideradas as profundas convicções deles, que devem ter peso no processo de decisão. Para exemplificar melhor a diferença entre preferências do paciente e valores, Churchill escreve que tem preferências sobre a cor da gravata dele, mas tem profundos e firmes valores sobre como ele deve morrer e quanto suporte ele admite que deva ser utilizado sobre sua vida caso ele venha a adoecer. Na verdade, ele faz uma crítica à tradição paternalista na bioética28, que ignora a variedade de valores a respeito do que seria uma boa morte, e cita Arthur Frank: “Cuidado começa quando a diferença é reconhecida29”.

Para Churchill, o trabalho do segundo Wittgenstein pode ser útil para a pesquisa empírica na bioética, na medida em que aborda algumas questões tais como a atenção

26 Cf. Idem, p. 39. 27 Cf. Idem, p. 40. 28

Sobre o paternalismo na bioética, ler cap. 1I. 29

(21)

aos detalhes e às diferenças, bem como a importância de se dar atenção às práticas, que no caso de Churchill, seria uma referência a rituais. Outro aspecto apontado por Churchill na obra de Wittgenstein, mais especificamente nas Investigações, seria a respeito de seu desdém por generalidade e abstração, que, segundo Churchill, pode servir como um modo de pensar os contratempos mais comuns do trabalho bioético.

De acordo com Churchill, a implicação mais geral para a bioética dessa posição antiteórica em relação à ética que Wittgenstein assume é visível. Além do trabalho empírico, as teorizações sobre bioética enlaçam nossas visões preconceituosas, visto que, teorizações sobre bioética também estão sujeitas a essa armadilha da generalização. Então, Churchill escreve que, não apenas as exigências kantianas ou utilitaristas pela ética, mas também as visões principialistas, narrativas, feministas ou pós-modernas30 podem ofuscar a visão e o pensamento ético, na medida em que nos levam a captar e repetir os “fatos” de um problema ético cada vez mais, como se estes necessariamente fossem verdadeiros.

O “remédio”, segundo Churchill, é um saudável ceticismo sobre nossa habilidade para teorizar sobre estas questões concernentes à ética. Então Churchill conclui que, assim como, segundo Wittgenstein, os filósofos precisam trazer as palavras de volta de seu uso metafísico para o uso cotidiano, os bioeticistas precisariam trazer as teorias éticas de seu uso metafísico para seu uso prático31.

No capítulo 2, traremos uma maior discussão sobre algumas teorias (bio)éticas, elucidando qual a importância desse “saudável ceticismo” proposto por Churchill, e qual seria o problema em aceitar uma teoria bioética, tendo em conta a posição anticientificista e antiteórica de Wittgenstein.

1.1.4 Consciência e linguagem: o caso dos pacientes em estado vegetativo persistente

No artigo Wittgenstein´s Startling Claim32, Grant Gillett aponta várias questões envolvidas no caso de pacientes em estado vegetativo persistente (Persistent Vegetative

30

A respeito de algumas dessas visões éticas, trataremos no cap. 2.

31 Cf. Churchill, Larry R. Patient Multiplicity, Medical Rituals and Good Dying: Some Wittgensteinian

Observations. In:Elliott, 2001, p. 46.

32

Gillett, Grant. Wittgenstein´s Startling Claim: Consciousness and the Persistent Vegetative State. In: Elliott, 2001, pp. 70-88.

(22)

State: PVS), iniciando com uma citação de Wittgenstein em que ele escreveu que

“consciência é tão clara em sua face e comportamento como em mim mesmo33”.

Com isso, Gillett expõe a polêmica acerca da hipótese de se pacientes em estado vegetativo persistente podem ter uma consciência ativa a qual nós não temos acesso. Para desenvolver esta questão, ele inicia com a visão cartesiana de consciência, pela qual se acredita que o sujeito tem acesso direto e privilegiado aos seus estados mentais, e que os outros têm apenas um acesso indireto, de modo que a consciência pode estar intacta, mesmo que seja inacessível para os outros34. Ou seja, segundo consta no artigo de Gillett, a concepção cartesiana de mente aceitaria a premissa de que meus pensamentos estão em minha cabeça e são essencialmente privados a mim, e que os seus são, do mesmo modo, privados a você. Porém, posso comunicar meus pensamentos a você usando a linguagem que é um fenômeno público.

Para contrapor essa visão misteriosa da mente humana, Gillett introduz a visão de Wittgenstein acerca do argumento da linguagem privada. Segundo a leitura que Gillett faz das Investigações Filosóficas , o que Wittgenstein procura estabelecer é que:

Não é plausível acreditar que uma pessoa possa falar, raciocinar e ter pensamentos sobre objetos que são experienciados somente em sua própria consciência privada do mundo. E se conteúdos mentais não são privados, então existe uma ligação essencial entre consciência e a esfera pública35.

Para complementar essa defesa, Gillett acrescenta comentários referentes ao uso da linguagem, que para Wittgenstein, é o que nos permite entender o significado, visto que, “a significação de uma palavra é seu uso na linguagem36”. Além disso, Gillett lembra a noção de seguir regras, pois “além de outras funções, as regras determinam que tipo de palavras devem ser aplicadas às coisas e que relações lingüísticas preenchem este significado37”. Ou seja, para a questão da consciência, teríamos nessa perspectiva que ela só se estrutura pela própria linguagem, de modo que sem uma linguagem articulada não há pensamento. Deste modo, considerando a argumentação de Wittgenstein de que o significado se dá pelo uso e que seguir regras é uma prática que faz parte da linguagem, se segue que “não é possível seguir uma regra ‘privadamente’: senão, acreditar seguir

33

Wittgenstein, Zettel. Oxford: Basil Blackwell, 1990, § 221, tradução nossa. 34 Cf. Gillett In: Elliott, 2001, p. 71.

35 Gillett In: Elliott, 2001, p. 72, tradução nossa. 36

Wittgenstein, 1996, §43. 37

(23)

uma regra seria o mesmo que seguí-la38”. Gillett defende, a partir disso, que o significado de qualquer palavra tal como ‘consciência’ seria determinado por alguma coisa pública, e não algo privado e inacessível39.

Por fim, Gillett escreve que “Wittgenstein nos permite ver que consciência é um estado do ser humano que contém uma complexa (intencional) interação com coisas e eventos no meio-ambiente do indivíduo40”, de modo que a surpreendente alegação citada no início do artigo de Gillett de que “consciência é tão clara em sua face e comportamento como em mim mesmo41” seria verdadeira. Isso é atestado por parentes dos pacientes em PVS que, segundo Gillett, conseguem perceber que a pessoa ‘não está mais ali’.

Assim, gostaríamos de fazer a ressalva de que o argumento da linguagem privada não procede, e que, ao tratarmos de linguagem, ou no caso, do exemplo trazido nesta seção, sobre a consciência de pacientes em estado vegetativo persistente, estamos tratando de um complexo fenômeno de interação entre os indivíduos e as coisas que constituem seu meio, e não de algo privado e inacessível aos outros.

1.1.5 A problematicidade do conceito de pessoa e a ética: como agir em relação a crianças com graves problemas neurológicos?

Carl Elliott, em um de seus escritos sobre bioética, intitulado Atitudes, Souls,

and Persons42, escreve a respeito da questão de se há algum sentido pensar sobre os melhores interesses de uma criança inconsciente, devido a graves problemas neurológicos. A questão é que crianças nessas condições são desprovidas de qualquer capacidade que nós pensamos como distintivamente humanas. Elliott discute então a respeito do conceito de “pessoa” que se costuma empregar, mesmo que implicitamente, na filosofia analítica, de que pessoa seja alguém com capacidades como inteligência, autoconsciência, pensamento abstrato, fala, habilidade de se relacionar com os outros etc43. Porém, Elliott chama atenção para a postura de Wittgenstein quanto às teorias filosóficas, salientando que não é papel do filósofo refinar ou completar o sistema de

38 Wittgenstein, 1996, §202. 39 Cf. Gillett In: Elliott, 2001, p. 74. 40

Idem, p. 87.

41 Wittgenstein. Zettel, 1990, § 221, tradução nossa.

42 Elliott, C. Atitudes, Souls, and Persons: Children with Severe Neurological Impairment. In: Elliott, 2001, pp. 89-102.

43

(24)

regras para o emprego de nossas palavras44. Então, não é nada simples aceitar esta definição de pessoa, por ela ser bastante problemática, podendo levar a conclusões como a de Engelhardt, de que crianças não seriam pessoas, já que não são livres e completamente responsáveis por seus atos45. Assim, com a aceitação desse conceito, nem uma criança normal é considerada ‘pessoa’, o que torna o caso ainda mais polêmico para as crianças com graves problemas neurológicos46.

Elliott aponta ainda que ‘pessoa’ é um termo moral, pois se aceitarmos que esta se define por suas capacidades, dizer se alguém é ou não uma pessoa responderia também a questão de o que se deveria fazer em casos dessas crianças com problemas neurológicos graves.

Esta noção de ‘pessoa’ é aceita por filósofos como Bernard Williams, que admite que este é um conceito ético, e que representa uma fusão entre fato e valor47. Elliott salienta este ponto, pois, segundo ele, seria um engano se nós pensássemos que podemos decidir o que são pessoas por um critério puramente factual. Na seqüência, Elliott escreve que a questão não é simplesmente da problematicidade da abrangência do conceito de pessoa, mas do problema ético além desse: os bioeticistas se perguntam a respeito dessas crianças, se, por exemplo, os médicos são obrigados a oferecer suporte a um paciente em estado vegetativo persistente enquanto os parentes quiserem ou se eles podem usar para transplante o coração de uma criança que apresente anencefalia.

Elliott traz o exemplo de uma família que vai ao hospital celebrar o aniversário de uma criança com anencefalia, apesar de que ela nunca será capaz de reconhecer o significado deste evento. Ele escreve que existe uma certa razão para isto: celebrar o aniversário desta criança implica que um paciente que apresente o caso de anencefalia é uma criança como qualquer outra, ou seja, “celebrar o aniversário de uma criança nesta situação sugere que nós tenhamos as mesmas atitudes em relação a esta criança que temos com as outras: que esta criança será parte de uma família como qualquer outra (...)48.”Mas também pode ser considerado que não há razões para celebrar o aniversário de uma criança para a qual a passagem de um outro ano de vida não faz sentido, já que é

44 Cf. Wittgenstein, 1996, §133. 45 Cf. Elliott, 2001, p. 91.

46 Conforme examinaremos mais à frente, no item 2.5, segundo o Relatório Belmont, documento que traz princípios éticos e linhas gerais para a pesquisa envolvendo seres humanos, um indivíduo agente é considerado pessoa, mesmo quando sua capacidade de se autodeterminar não está amadurecida ainda ou quando está prejudicada por alguma doença grave. Ou seja, o respeito à pessoa, enquanto indivíduo agente, inclui a proteção à vulnerabilidade.

47

Idem, p. 92. 48

(25)

um ser que não possui córtex cerebral e não pode entender nada do que acontece ao seu redor.

Por mais doloroso que seja pensar deste modo, Elliott escreve que, celebrar o aniversário de uma criança nesta situação é perturbante, pois este evento parece atribuir a esta criança uma humanidade que ela não possui49.

A partir disso ocorre a polêmica discussão sobre o uso de pacientes nesta situação como recurso de órgãos para transplante, opção amplamente recusada pelo desconforto que a mera menção desta proposta traz, por parecer uma crueldade, uma violação de direitos, onde se costuma apelar também para as noções de respeito e de dignidade, pois essa prática toma o paciente com anencefalia como um objeto ou coisa50. Para examinar este tema, Elliott trata da questão de como nos relacionamos com outras pessoas, o que segundo o autor, teria a ver com o contexto em que essas relações estão inseridas.

(...) nossa atitude em relação aos outros seres é construída na linguagem que nós usamos para descrevê-los, e a linguagem é arraigada em um modo de comportamento em relação aos outros seres- o que Wittgenstein chama de um ‘método prático’51.

Assim, Elliott usa a noção de ‘método prático’ para dizer que, assim como nossas ações, nossa linguagem tem por base mais os hábitos que a deliberação, de modo que nos relacionamos com os outros seres com base nessas práticas estabelecidas. E com base nessas práticas, filósofos têm tentado nomear o que seriam características cruciais para a moralidade, como consciência, capacidade de falar, capacidade de sentir dor e muitas outras52.

O autor segue escrevendo que uma característica biológica se torna um elemento de consideração moral quando seres humanos fazem alguma coisa que os caracteriza, como religião, literatura, artes, rituais, instituições e a própria ética. O significado moral atribuído a essas características biológicas não seria apenas uma constatação sobre o que nos caracteriza como seres humanos, mas a forma de vida em que tais capacidades fazem ou não a diferença53.

49 Cf. Idem, p. 95. 50 Cf. Idem, Ibidem. 51 Elliott, 2001, p. 97. 52 Cf. Idem, Ibidem. 53 Cf. Idem, Ibidem.

(26)

Elliott conclui que não existe simplesmente uma atitude moralmente correta em relação às crianças com graves problemas neurológicos, mas uma série de atitudes que variam com a particularidade de cada cultura, com seus hábitos e práticas.

Para isso, ele faz menção ao conceito de Lebensform ou formas de vida54, de Wittgenstein, a partir do qual Elliott interpreta que devemos ter um entendimento sobre o propósito e o significado da vida humana em diferentes culturas, e que as crianças referidas seriam consideradas em conformidade com o sentido que se atribui à vida na cultura em que elas formam geradas. Elliott pretende nos ajudar a compreender as contradições internas nas tomadas de decisões clínicas para essas crianças, pois, ainda que uma vida significativa envolva convicções e escolhas que são inacessíveis a uma criança com graves problemas neurológicos, a vida delas pode ter um profundo significado para suas famílias.

Assim, considerando a posição de Elliott, de que não exista simplesmente uma atitude moralmente correta em relação às crianças com graves problemas neurológicos, acrescentaremos a essa discussão a idéia de que, com base no Relatório Belmont55, tais crianças poderiam não se enquadrar no que se convencionou como conceito de pessoa, que seria alguém com capacidade de se autodeterminar, ou que ainda não tem maturidade para isso ou a tem reduzida por alguma doença grave. Ou seja, o Relatório Belmont indica que ‘pessoa’ é o indivíduo que é ou pode vir a ser um agente autônomo, enquanto que, uma criança com anencefalia, pelo que nos consta, não possui qualquer possibilidade de vir a se tornar autônoma.

1.1.6 A (não) aceitação do especialista moral: há um modo correto de agir?

No artigo Bioethics, Wisdom and Expertise56, Paul Johnston faz uma reflexão sobre a própria bioética, constatando que o mundo moderno é o mundo dos especialistas. E como se tem especialistas para uma grande variedade de áreas, incluindo a ética, Johnston vê a necessidade de retomar Wittgenstein do Tractatus para discutir a forma

54 Sobre as diferentes leituras do conceito de formas de vida, abordaremos no cap. 4. 55

O Relatório Belmont (Belmont Report) foi elaborado em 1978 pela Comissão Nacional para Proteção

dos Seres Humanos da Pesquisa Biomédica e Comportamental, a pedido do governo dos Estados Unidos,

com o intuito de propor princípios éticos e linhas gerais para a pesquisa envolvendo seres humanos, conforme veremos adiante, no cap. 2.

56

(27)

que a bioética tem tomado, e, principalmente, o status requerido pelo que seria o profissional da ética: o bioeticista.

Wittgenstein ressalta em diversos momentos do Tractatus, bem como em outras obras, o erro que se comete ao tratar a filosofia como ciência, aplicando os mesmos métodos científicos a pesquisa filosófica, visto que se tratam de âmbitos diferentes, a saber, no caso da ciência, o âmbito dos fatos e a ética dos valores. Johnston salienta que os trabalhos de Wittgenstein são claros em relação a isso: Não pode haver proposições na ética, pois ela não trata de fatos do mundo (como a ciência), em outras palavras: “A ética não se deixa exprimir57”. Então, o que Johnston faz é ressaltar esse aspecto de que o que é ético não pode ser dito, relembrando passagens da Conferência sobre Ética e do

Tractatus para analisar qual seria a função deste profissional que já tem sido intitulado

bioeticista em muitos hospitais norte-americanos58.

Para o autor, considerar que haja um especialista moral é considerar que ética seja algo que possa ser ensinado, que se possa dizer, com alguma autoridade como uma pessoa deve agir. Então ele escreve que:

(..) a essência da ética é a reivindicação de que existam modos de agir que todos deveriam reconhecer como certo e errado. Essa reivindicação não pode ser derivada da lógica ou da racionalidade, nem pode ser demonstrada com (ou sustentada por) evidencia empírica59.

O problema é que diferentes indivíduos terão diferentes concepções do que seja o certo e o errado. Esse é um dos pontos pelo qual podem ser apontadas dificuldades na reivindicação de um especialista moral, pois, não há garantias de que os desacordos possam ser resolvidos.

A idéia reforçada neste artigo de Johnston é a de que não há uma ação que é a correta. O autor aponta ainda que, diferentemente da física ou da medicina, a ética não trata de estabelecer fatos, mas de alcançar uma conclusão sobre como é correto agir, tendo que levar em conta ainda a possibilidade de que não exista um modo correto de agir60. Segundo o autor, tentar demonstrar o modo correto de ver as coisas, reivindicando a autoridade de especialista, não faz sentido em ética. Johnston dá como exemplo alguém que tenha uma certa compreensão de argumentos recentes na questão do aborto e

57

Wittgenstein, 1993, 6.421.

58 Neste trabalho, utilizaremos ‘norte-americano’ para nos referirmos a ‘estadunidenses’, como é utilizado pelos autores de artigos e livros que tratam de bioética.

59

Johnston In: Elliott, 2001, p.150, tradução nossa. 60

(28)

que este indivíduo entreviste um grande número de pessoas que fizeram, que defendem ou que realizam o aborto; nem por isso ele poderia reivindicar uma autoridade como “especialista em aborto”, ou algo assim, pois as conclusões que este indivíduo tirou das informações obtidas têm o mesmo peso que a opinião de qualquer outra pessoa a respeito desse tema. Além disso, outro indivíduo poderia fazer esta mesma investigação e tirar conclusões bem diferentes.

Isso ocorre pois, como já foi referido por Wittgenstein e relembrado por Johnston, os âmbitos da ciência e da ética são diferentes e não podem ser usados os mesmos métodos, pois esta trata de fatos, aquela, de valores. E não sendo a ética algo observável e “dizível” como os objetos da ciência, não há uma forma objetiva de abarcá-la ou expressá-abarcá-la, de modo que a ética se mostra, de uma forma muito pessoal e que não permite generalizações tais como as que são feitas no método científico.

Johnston aplica esses argumentos diretamente contra a idéia de um especialista moral em bioética, defendendo que não há nenhuma base para assegurar que, se todos nós estudarmos bioética, teremos as mesmas conclusões. Ou seja, não há nenhuma garantia de que todos concordariam nem mesmo sobre quais são as principais questões, que visões são dignas de respeito e quais não61.

O que Johnston explica, dessa forma, é que não faz sentido que um profissional denominado “bioeticista” reivindique um direito especial de iniciar ou guiar um debate em bioética, pois não há nenhuma base para isto, e suas observações sobre os dilemas morais da medicina valem exatamente o mesmo que as de qualquer outra pessoa.

Citando Zoloth-Dorfman e Rubin´s, Johnston fala sobre a comparação que estes autores fazem do eticista com um navegador que ajuda o capitão, no caso, o médico. Para estes autores, “o eticista pode oferecer uma direção, visão e mesmo advertir sobre as implicações que uma escolha acarreta62”. Johnston cita o exemplo como uma das formas de se pensar neste profissional, mas ele particularmente não concorda, e faz a ressalva de que o bioeticista pode até auxiliar o médico e os pacientes, mas mesmo que exerça esta função, o autor recusa que este possa ser aceito como um especialista moral.

O bem humorado artigo The Bioeticist: Superhero or Supervillain?63, de Craig M. Klugman, trata de duas perspectivas através das quais podemos pensar neste profissional cada vez mais presente no dia-a-dia dos norte-americanos: o bioeticista.

61 Cf. Johnston In: Elliott, 2001, p.152. 62

Idem, p. 155. 63

(29)

Embora, como nos mostra o título, o autor propôs a contraposição super-herói versus supervilão, o artigo nos leva a refletir que o bioeticista, na verdade, não seria nem uma coisa nem outra: é uma pessoa que pode tanto parecer defender atitudes heróicas, como posições questionáveis, pois seu papel seria de ajudar a sociedade a fazer escolhas, e não mostrar qual escolha fazer nos dilemas que a ciência e a tecnologia nos colocam. Pensar no bioeticista como super-herói ou vilão é o que Klugman chama de reflexo de esperanças e medos da população como um todo e não um veredicto sobre o qual o real papel desse profissional.

Já para Johnston, a figura do bioeticista surgiu porque nós (ocidentais) vivemos em uma sociedade onde não há um código moral predominante, nem pessoas que sejam universalmente aceitas como sábias64. Assim, embora os bioeticistas não tenham autoridade para estabelecer a visão correta de um caso, eles são qualificados para explicar as principais abordagens de uma questão particular que é correntemente considerada razoável em nossa sociedade, mesmo que a apresentação de tais abordagens não represente um saber, nem sejam expressões de um conhecimento capacitado.

1.1.7 A suposta impossibilidade da justificação moral e a proposta particularista

Margaret Olívia Little, em seu artigo Wittgensteinian Lessons on Moral

Particularism65, escreve que “a bioética como uma disciplina nasceu da convicção de que a desordem e a urgência dos dilemas morais encontrados nos assuntos de cuidado da saúde poderiam ser beneficiados por uma teoria ética sistemática66”. Ela acrescenta ainda que discutir bioética é também discutir sobre políticas públicas, e que refletir sobre um método em bioética é debater sobre qual o papel da particularidade na tomada de decisões morais.

O particularismo moral radical, conforme nos é indicado neste artigo, sustenta que respostas morais não podem ser apreendidas em uma fórmula geral. Defensores dessa posição afirmam, não só que nós devemos estar atentos aos detalhes relevantes da situação antes de podermos aplicar alguma regra ou princípio, como também que não existem regras ou princípios capazes de codificar o panorama moral67. Nessa

64 Idem, p. 158.

65 Little, Margaret O. Wittgensteinian Lessons on Moral Particularism. In: Elliott, 2001, pp.161-180. 66

Cf. Little In: Elliott, 2001, p.161. 67

(30)

perspectiva, é crucial que sejam levados em conta os detalhes contextuais para pensar em questões de moralidade.

Essa visão radical não costuma ser aceita, sob a justificativa de que os defensores de um particularismo moral radical simplesmente anunciam seu pessimismo sobre a existência de princípios adequados, mas não dão nenhum argumento para sua posição68. Porém, Little indica que a persistência com que estes particularistas procuram contra-exemplos sugere que essa posição deve ter algo interessante a dizer sobre a bioética.

O particularismo moral abala o status da moralidade, pois não tem a proposta de se justificar, nem a pretensão de generalidade que está presente no espírito da bioética. A questão é saber que, se não há generalidades codificáveis nos casos individuais, não há métodos para encontrar respostas, o que destrói a visão precária de que a moralidade seja uma questão objetiva. Porém, conforme observa Little, embora os particularistas se refiram aos princípios como generalizações abstratas, ninguém minimamente sensível rejeita princípios como “respeito à autonomia” ou “ser justo”. A autora acrescenta ainda que, os princípios são mesmo bastante abstratos, mas há diferentes modelos de particularismo em que não se rejeita estes princípios.

Para esta autora, Wittgenstein contribui muito com reflexões e defesas sobre particularismo moral, admitindo que existem modelos contestáveis. A autora segue escrevendo que os teóricos morais tentam apreender como considerações morais são identificadas e ordenadas em relação às outras, de modo que o trabalho dos teóricos é identificar que propriedades naturais fazem uma ação ser justa ou beneficente. Portanto, para Little existem considerações morais a serem feitas em cada caso, mas não existe uma fórmula que determine qual ação é moralmente correta, de modo que, como tais conflitos são resolvidos depende do modo em que os eventos estão articulados no contexto em que eles ocorrem, ao que a autora acrescenta que “se o particularismo está certo, nossas categorias morais não podem responder nada no mundo; moralidade passa a ser uma questão de gosto (...)69”.

Conforme Little, a defesa particularista sustenta não só que não podemos falar em crueldade em termos naturais, mas que não podemos falar de forma alguma, exceto trivialmente, pois não temos nenhum critério de aplicação para o que seja crueldade ou

68

Cf. Idem, Ibidem. 69

(31)

não. Deste modo, a idéia de que haveria regras morais, tais como os conceitos platônicos, seria uma ilusão70.

O ponto sustentado então é de que, pensando de modo wittgensteiniano, nós entenderíamos um conceito moral por referência a certos paradigmas exemplares, ou seja, o conceito estaria inscrito nas circunstâncias de tal maneira que nós apreendemos, através desses conceitos generalizantes, o significado de crueldade dentro de um contexto. A habilidade para apreender que alguma coisa é cruel não depende de nenhum órgão sensível especial, mas da capacidade de aplicar um conceito apropriadamente, ou, como Wittgenstein colocaria, a habilidade para seguir uma regra71. Logo, a habilidade para discernimento moral alcança seu desenvolvimento por apreensão, pela experiência.

A autora escreve então que sabedoria moral, como qualquer capacidade, é um sinal de maturidade para ser capaz de exercer diretamente uma habilidade para julgar, e que generalizações ou regras morais podem ser importantes e podem ajudar a entender, por exemplo, o que seja ser cruel, mas, embora útil, não significa que essa generalização seja verdadeira ou correta. Ao escrever no Tractatus que “a ética não se deixa exprimir72”, o autor estaria indicando que é uma ilusão pensar que exista algum tipo de argumentação ou justificação ética que todos possam aceitar. Ao invés disso, entender a autoridade de um tipo de razão requer que estejamos inseridos na prática particular que dá as razões da sua vida73.

Embora aceitemos os pareceres da autora sobre sabedoria moral e sobre o papel da prática, gostaríamos de ressaltar que não concordamos com a abordagem particularista, principalmente no que se refere a afirmações como “moralidade passa a ser uma questão de gosto”, pois, mesmo que Wittgenstein assuma uma posição contrária a generalizações provenientes da mentalidade cientificista para a ética, disso não se segue um relativismo na ética ou algo assim. Segundo a abordagem que trazemos neste trabalho, o intuito do autor com sua posição antiteórica é afastar a ética do método científico, salientando que no âmbito da ética não podemos aplicar regras algoritmicamente, pois a esta envolve aspectos de valores que são diferentes da ciência, que trabalha com fatos.

70 Sobre indeterminação das regras trataremos adiante, no cap.II. 71 Cf. Little In: Elliott, 2001, p. 172.

72

TLP, 6.421. 73

Referências

Documentos relacionados

A tem á tica dos jornais mudou com o progresso social e é cada vez maior a variação de assuntos con- sumidos pelo homem, o que conduz também à especialização dos jor- nais,

A par disso, analisa-se o papel da tecnologia dentro da escola, o potencial dos recursos tecnológicos como instrumento de trabalho articulado ao desenvolvimento do currículo, e

Para preparar a pimenta branca, as espigas são colhidas quando os frutos apresentam a coloração amarelada ou vermelha. As espigas são colocadas em sacos de plástico trançado sem

nesta nossa modesta obra O sonho e os sonhos analisa- mos o sono e sua importância para o corpo e sobretudo para a alma que, nas horas de repouso da matéria, liberta-se parcialmente

A placa EXPRECIUM-II possui duas entradas de linhas telefônicas, uma entrada para uma bateria externa de 12 Volt DC e uma saída paralela para uma impressora escrava da placa, para

3.3 o Município tem caminhão da coleta seletiva, sendo orientado a providenciar a contratação direta da associação para o recolhimento dos resíduos recicláveis,

O valor da reputação dos pseudônimos é igual a 0,8 devido aos fal- sos positivos do mecanismo auxiliar, que acabam por fazer com que a reputação mesmo dos usuários que enviam

Se você vai para o mundo da fantasia e não está consciente de que está lá, você está se alienando da realidade (fugindo da realidade), você não está no aqui e