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Tradução comentada de La carte d'identite (1980) de Jean-Marie Adiaffi: reflexões sobre o cânone, a obra e seu processo tradutório

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Academic year: 2021

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Yéo N‟gana

TRADUÇÃO COMENTADA DE LA CARTE D’IDENTITE (1980) DE JEAN-MARIE ADIAFFI:

Reflexões sobre o cânone, a obra e seu processo tradutório.

Volume 1

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina como parte dos requisitos para obtenção do Título de Doutor em Estudos da Tradução: Teoria, Crítica e História da Tradução.

Orientadora: Prof.a Dr.a Marie-Hélène Catherine Torres

Florianópolis 2019

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Tradução comentada de La carte d’identité (1980) de Jean-Marie Adiaffi: Reflexões sobre o cânone, a obra e seu processo tradutório.

Esta Tese foi julgada adequada para obtenção do Tìtulo de “doutor em Estudos da Tradução”, e aprovada em sua forma final pelo Programa de

Pós-Gradução em Estudos da tradução. Florianópolis, 20 de março de 2019.

________________________ Prof.a Dirce Waltrick do Amarante

Coordenadora do Curso Banca Examinadora:

________________________ Prof.ª Marie Hélène C. Torres

Orientadora

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À monsieur Yéo Foungnigué Madame Koné Binhui, Mes très chers parents. “Wôrrgô o wôorgôo larr gami tchè, ké mon gnan kií liè gui” [Só envelhece, a víbora que souber como se esconder]

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AGRADECIMENTOS

À Profa. Dra. Marie-Hélène Catherine Torres por acreditar no projeto, pela sua paciência, disponibilidade e orientação excepcional e, sobretudo, por fazer-se família: minha eterna gratidão;

Ao Prof. Dr. Walter Carlos Costa pela leitura crítica, pelas referências e pela generosidade intelectual;

Ao Prof. Dr. Gilles Jean Abes por aceitar fazer parte da banca e pelas suas importantes sugestões;

À Profa. Dra. Luana Ferreira de Freitas pela disponibilidade e por aceitar participar da banca;

À Profa. Dra. Anasthasie Adjoua Angoran Brou pela disponibilidade, pelas sugestões e referências e, por aceitar participar da banca apesar da distância;

À minha família;

À equipe da PGET, em especial, à Dra. Guerini, Dra. Karine, Dra. Martha, Dr. Weiner e Dra. Rosário, Dra. Andrea, Fernanda, Fernando;

A Clarissa Marini, Jaque Sinderski, Aída, Eduardo pelas leituras; Aos pgentes, em especial ao Kall, Marina, Sheila, Davi, Andréia, André, Cassiano, Silvio, Daiane, Larissa, Luiz, Mohamad, Liliane, Fabrìcio, Bê Sant‟Anna, Rodrigo, Patrìcia, Dóris, Digmar, a todos, obrigado pelo abraço;

À Anne, Marcelo, Ian (meu amigo) e Loredana Mihaela pelo carinho sem preço;

Ao Doutor Mamadu Alfa Djau pelas conversas sempre ardorosas, mas aprazíveis,

Ao Crespin, Mulambo e toda a equipe da Pangeia, merci pour la fraternité;

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela concessão da bolsa de doutorado através do PEC-PG;

A todos os que minha memória escassa não retratou, ser-vos-ei eternamente devedor.

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La poésie n‟est donc pas but, mais moyen : il s‟agit de traduire le visible par l‟invisible, l‟indit, non par les mots, mais par ce qu‟ils laissent échapper. Pour tout dire, il s‟agit d‟exprimer le spirituel. […] L‟âme-poésie, je la mets derrière les mots, entre les mots et les syllables, etc. Ma poésie est donc dans le côté spirituel des mots, et non pas dans leur côté physique ou dans leur sonorité. Ce qui explique admirablement chez moi cette torsion de la langue, cette chirurgie verbale, ces creux psychiques intercalés, ces lézardes, ces emboîtages, déboîtages et réemboîtages linguistiques, cette refonte architecturale constante des mots, et dont le seul but dernier est de créer des couloirs, des trous, des percées et des avenues dans les mots, pour laisser filtrer, à travers, le surnaturel, et atteindre par là l‟âme du lecteur.

(Malcolm de Chazal, in Senghor, 1977)

Toutes les langues sont belles pour ceux qui les parlent, pour tous ceux dont c‟est le moyen de communication. [...] Et Si l‟on réduit nos langues nationales à de simples et pauvres dialectes, c‟est que déjà un choix politique est opéré. Et ce choix politique a signé leur condamnation à mort.

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RESUMO

Esta tese tem como objetivo principal realizar uma tradução inédita para o português brasileiro do romance La carte d‟identité do escritor marfinense Jean-Marie Adiaffi, publicado em 1980. Buscou-se, como objetivo secundário, contemplar e comentar os elementos e aspectos socioculturais da língua e cultura Anhi encontrados na obra. Foi necessário localizar ambos, a obra e o autor, na geografia literária da Costa do Marfim com o intuito de compreender sua agenda e a escrita, dela, decorrente. O trabalho se fundamentou em uma abordagem etnográfica da tradução na perspectiva de preservar as marcas culturais marfinenses, enquanto matérias substanciais do projeto adiaffiano. Partindo dessa discussão, concluiu-se que o n‟zassa, estilo do autor, como método de tradução, era aplicável ao nosso corpus. Ademais, observou-se que a maioria das práticas tradutórias é ou se assemelha, em algum grau, a n‟zassas coletivos, onde o tradutor responsável pela tradução desempenha também o papel de coordenador/organizador. Em se tratar do código onomástico e dos provérbios, os trabalhos de Agyekum Kofi (2000) por um lado, e de Mona Baker (1992) e Beekman e Callow (1974), por outro, foram respectivamente de uma grande contribuição. Depreendeu-se que os nomes próprios devem ser mantidos e seguidos por imperiosas explicações em glosas. Quando dos provérbios, além das três estratégias recorrentes na literatura, a saber, 1) inclusão do significado logo depois do provérbio (Prov); 2) Substituição do Prov por um Prov equivalente nas língua e cultura alvo; 3) Direta formulação do sentido não figurativo; foi sugerida uma quarta que consiste, 4) na criação de um provérbio novo com paralelismos (rimas internas e externas) próprios e com igual caráter de verdade universal. Palavras-chave: Tradução comentada. Tradução etnográfica. Literatura marfinense. N‟zassa.

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ABSTRACT

This thesis aims, principally, at carrying out an unprecedented translation to the Brazilian Portuguese of the novel La carte d‟identité published in 1980 by the Ivorian writer Jean-Marie Adiaffi. As a second goal, we set to pinpoint, examine and comment the socio-cultural elements and aspects of the Anyi language and culture found in the book. It was then necessary to localizing both the author and the book in the literary geography of Côte d‟Ivoire to fathom his agenda and the style it produced. In such view, the research went on using an ethnographic approach to the translation with the perspective of preserving the Ivorian cultural marks, for they are substantial a material in Adiaffi‟s project. Based on that debate, we concluded that the n‟zassa, Adiaffi‟s style, as a translation method, is applicable to our corpus. Furthermore, we could observe that most translations practices are or resemble, to a certain extent, collective n‟zassas during which the individual in charge of the translation, also plays a role of coordinator/organizer. Regarding the onomastic code and proverbs, Agyekum Kofi‟s (2000) work on the one side, and Mona Baker (1992), and Beekman and Callow‟s (1974), on the other side, have respectively been of great contribution to the debate. We deduced that proper names be kept intact and accompanied by compulsory in-glose explanations. As for the proverbs, beyond the three recurrent approaches found in the literature, that is: 1) the inclusion of the meaning after the proverb (Prov.), 2) the substitution of the Prov. by an equivalent in the target language and culture, 3) the direct formulation of the non-figurative meaning; we suggest a forth one that consists of, 4) the creation of a new proverb with its own parallelisms (internal and external rhymes) and with the same state of general truth.

Keywords: Commented Translation. Ethnographic Translation. Ivorian Literature. N‟zassa.

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RÉSUMÉ

La présente thèse a pour objectif principal la réalisation d‟une traduction inédite au portugais brésilien, de La carte d‟identité de l‟écrivain ivoirien Jean-Marie Adiaffi, publiée en 1980. Comme objectif secondaire, il est question d‟identifier, refléchir et commenter les éléments et aspects socioculturels de la langue et de la culture Agni présents dans l‟œuvre. Pour ce faire, il a été nécessaire de situer à la fois l‟œuvre et l‟auteur dans la géographie littéraire de la Côte d‟Ivoire afin de comprendre son agenda et l‟écriture qui en découla. Le travail s‟est fondé sur une approche ethnographique de la traduction dans le but de préserver les traces de la culture ivoirienne, en tant qu‟élements substantiels du projet Adiaffien. Partant de ce fait, nous avons conclu que le n‟zassa, style de l‟auteur, vu comme méthode de traduction, est applicable à notre corpus. En outre, il est possible de noter qu‟une portion considérable des pratiques de traduction constitue ou ressemble, à un certain dégré, à des n‟zassas collectifs. Pour ce qui concerne le code onomastique et les proverbes, les travaux d‟Agyekum Kofi (2000) d‟une part, et ceux de Mona Baker (1992) et Beekman et Callow (1974), de l‟autre, ont respectivement été d‟un grand apport. Nous déduisons que les noms propres doivent être maintenus et obligatoirement expliqués dans des gloses. Quant aux proverbes, hormis les trois approches fréquemment rencontrées dans la littérature, à savoir, 1) l‟insertion du sens à la suite du proverbe (Prov.) ; 2) la substitution du Prov par un Prov équivalent dans la langue et culture cibles ; 3) la formulation directe du sens figuratif ; nous avons sugéré une quatrième approche qui consiste à, 4) la création d‟un nouveau proverbe avec ses parallélismes propres (rimes internes et externes) et porteur des mêmes attributs de vérité universelle.

Mots-clés: Traduction comentée. Traduction ethnographique. Littérature ivoirienne. N‟zassa.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Baobá-mapa de alguns tráfegos nas literaturas africanas 46 Figura 2: Imagem extraída da palestra do professor Hervé Fischer 76 Figura 3: « Kanga l‟inenchaînable », extraído de Archipel de Fictions :

Les Chaînes de L‟esclavage, 1998 77

Figura 4: Capa e quarta capa (edição de 1992) 88

Figura 5: Geolocalização pelo Google Map 92

Figura 6: Extraído do volume 15, n. 3 & 4 do jornal ZA, The

Zimbabwe Librarian do ano 1983. 95

Figura 7: Capa e quarta capa da tradução ao inglês 98 Figura 8: Esquema para tradução-interpretação, re-criação de provérbios 244 Figura 9: Gráfico da frequência das expressões em La carte (1980) 289

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Bibliografia do autor 73

Quadro 2: Edições de La carte d‟identité (1980-2002) 85 Quadro 3: Evolução (na estética) das capas nas reedições 89

Quadro 4: Elaborado por Agyekum 280

Quadro 5: Tradução-adaptação dos dias da semana em La carte

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS A Carteira : Carteira de Identidade BTF : Basileu Toledo França Zaourou : Bernard Zadi Zaourou ExI. : Expressão(ões) Idiomática(s) § : Parágrafo (excertos analisados) Bouah : Georges Niangoran Bouah GS : Gumercindo Saraiva Adiaffi : Jean-Marie Adiaffi Adé La Carte : La Carte d‟Identité Porquet : Niangoran Porquet Prov. : Provérbio(s)

ProvExI : Provérbios e Expressões Idiomáticas TA : Texto-Alvo

TF : Texto-Fonte The Identity : The Identity Card BAK : Brigitte Angays-Katiyo

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SOBRE OS DOIS VOLUMES DA TESE

Em um trabalho de doutorado, ou de pesquisa universitária simplesmente, espera-se do investigador uma estrutura, além de tradicional, já fixada nos imaginários e nas douradas feições da academia. Estrutura que, junto com o tempo, ganhou legitimidade e erigiu-se como modelo plenipotenciário para quem quiser adentrar essa esfera, ambiente tão requisitado, que deve sua reputação à observação rigorosa de suas próprias normas ou princípios. É exatamente sob a regência de um desses princípios que conduzirei minha tese: a dialética, ou seja, a possibilidade de questionar para revelar, para renovar.

A presente tese tem como corpus La carte d‟identité (1980) de Jean-Marie Adiaffi, obra que traduzimos para o português brasileiro. Mas, a inclusão e publicação da obra integral na tese, estando em discordância com os direitos autorais, resolvemos dividí-la em duas partes: volume 1 e volume 2.

O volume 1, intitulado Tradução comentada de La Carte d‟identité (1980) de Jean-Marie Adiaffi: Reflexões sobre o cânone, a obra e seu processo tradutório, traz desde a motivação e os objetivos da pesquisa até as ponderações teóricas, metodológicas e políticas sobre a tradução da obra para o português brasileiro. Sua estrutura encontra-se no sumário disponível na próxima página.

Quanto ao volume 2, como o próprio título indica, traz a La Carte d‟identité (1980): Tradução integral, pronúncia e observações sobre o glossário de expressões anhi. As definições apresentadas no glossário são fundamentais para a compreensão geral da obra; ademais, uma discussão a respeito do controverso conceito de „Negro‟ é aduzida em prelúdio à sua tradução. Na sequência, vem um silabário sobre a pronúncia da língua anhi, seguido pela tradução integral da obra La carte (1980) [A carteira de identidade]. Para a publicação final do trabalho no formato exigido pela Biblioteca central, o conteúdo do volume 2 será sintetizado em três anexos disponíveis no fim do presente volume 1.

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SUMÁRIO

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS: No imo da problemática 31

1.1 MOTIVAÇÕES 33

1.2 QUESTIONAMENTOS 37

1.3 HIPÓTESES 40

1.4 OBJETIVOS 41

2 FORMAÇÃO DE UM CÂNONE NACIONAL MARFINENSE 45

2.1 O ANO 1968 47

2.2 MARFINISMO E MARFINIDADE 51

2.2.1 Marfinismo 51

2.2.2 Marfinidade: Efeito diglóssico ou agenda política? 60

2.2.2.1 Marfinidade cultural 60

2.2.2.2 Marfinidade política 64

2.3 JEAN-MARIE ADIAFFI ADÉ 68

2.3.1 Escritor, poeta, cineasta e Filósofo 71

2.3.2 Um político e ideólogo 82

2.4 PERCURSO DA OBRA 87

2.4.1 La carte d‟identité (1980) 88

2.4.2 The identity card (1983) 94

2.5 CONSIDERAÇÕES „LIGEIRAS‟ 102

3 A TRADUÇÃO ENTRE ANTROPOLOGIA E ETNOGRAFIA:

Da desobediência à obravivência 105

3.1 ETNOGRAFIA E TRADUÇÃO 108

3.2 A ANTROPOLOGIA É UMA TRADUVISÃO? 118

3.3 N‟ZASSA LITERÁRIO 125

3.3.1 Como prática escritural 125

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3.4 CONSIDERAÇÕES „LIGEIRAS‟ 232

4TRADUÇÃOETRADIÇÃO 233

4.1 PAREMIOLOGIA OU INTERTEXTUALIDADE PROVERBIAL 236

4.1.1 Paremiologia: definição e desdobramentos 237

4.1.1.1 Pro-vérbios: função na literatura 240

4.1.1.2 Pro-vérbios: algumas abordagens tradutórias 245

4.1.2 Proverbalizando em La carte (1980) 250

4.2 CÓDIGO ONOMÁSTICO E A FORÇA DA TRADUÇÃO 278

4.2.1 História dos nomes entre os Anhi 280

4.2.1.1 Tipologia dos nomes 284

4.2.1.2 Levantamento e frequência 292

4.2.2 Literatura dos nomes africanos 294

4.2.3 Traduzir os nomes africanos em literatura 298

4.3 CONSIDERAÇÕES „LIGEIRAS‟ 300

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: Relatos sobre o Albergue 301

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICASDOVOLUME1 307

ANEXO A: SITUANDO OS TERMOS “NOIR” E “NÈGRE” 335 ANEXO B: NOTAS A RESPEITO DA PRONÚNCIA DO ANHI 341

b.1 O que é o Anhi? – breve panorama 342

b.2 Pronúncia do Anhi-morofo no Português Brasileiro 343 ANEXO C: GLOSSÁRIO DAS EXPRESSÕES ANHI EM LA CARTE

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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS: No imo da problemática

“Toute écriture est enceinte de son projet esthétique. Celui-ci est tapi dans le ventre de ses phrases comme un enfant dans le corps de sa mère. Il revient à la critique donc, comme à l‟accoucheuse, de le dénicher et de le libérer à la vie. La critique, cette fille de la maïeutique. Or parfois celle-ci distraite, est prise dans les marécages de ses propres présuppositions, ou alors dans le vent des modes de lecture, et demeure sourde à la respiration profonde des textes.”

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1.1 MOTIVAÇÕES

O presente trabalho sobre Jean-Marie Adiaffi, inédito em língua portuguesa e desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Tradução, está por, via de regra, no lugar propício para relatar um percurso tradutório individual em um palco de experiências e de reflexões teóricas, críticas e, sobretudo, práticas. Portanto, começo esta tese com a ideia de que traduzir é experimentar cada palavra, cada linha, cada parágrafo. Se há verossimilhança na epígrafe acima, de que toda escrita está grávida de seu projeto estético escondido na barriga das frases, como uma criança no corpo de sua mãe, o meu projeto absorve o limiar do traduzir para fazer-se também um exercício de crítica.

Em 2010, terminava uma Graduação em Letras Português no Département d‟Etudes Ibériques et Latino-Américaines da Unité de Recherches et de Formation: Langues, Littératures et Civilisations (UFR LLC), pela Universidade Félix Houphouët Boigny (UFHB). Concluí em 2014 um Mestrado em Letras pela mesma universidade, focando, em dita altura, na Literatura da Guiné-Bissau. Intitulada Tradição e Modernidade em “Sonéá” de Maria Odete Semedo1, minha dissertação tratou do conto “Sonéá” da escritora Bissau-guineense, publicado em 2003 na antologia VERSÕES: Mundos d‟Escritos em Português. Discuti a relação entre a tradição e a modernidade na literatura africana pós-colonial (lusófona) que se dá em uma situação e um espaço de diglossia evidente. Esse fato leva às glotopolíticas geradas, no mesmo período pós-colonial, que dão rumo a conflitos de gerações, a crises identitárias, ao fortalecimento da opressão, ao extermínio de línguas e culturas locais etc.

Esse desenraizamento fortaleceu indubitavelmente no imaginário coletivo um tipo de dualidade voraz entre tradição e modernidade. Trata-se de conceitos muitas vezes apresentados como incompatíveis, isto é, só se vive a tradição quando se apaga a modernidade, e que o brilho da modernidade condena a tradição no altar de uma globalização simplesmente insensível. Mostrando como, educada na escola ocidental, a personagem principal Sonéá se servia, de um lado, do conhecimento adquirido na escola europeia para valorizar e registrar o importante patrimônio de sua tradição para mudar, no que fosse possível, a percepção e a dinâmica de sua comunidade. Do outro lado, graças aos ensinamentos da tradição, Sonéá entendia, com antecipação, fatos que a ciência contemporânea não lhe possibilitava. Com isso, concluiu-se que

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existe uma complementaridade entre os dois. Essa complementaridade é bem explorada por Mia Couto (2000), Maurice Bandama (2013), Chinua Achebe (1952), Jean-Marie Adiaffi (1969, 1980, 1991), Ahmadou Kourouma (1968, 2000), a própria Odete Semedo (2003), entre outros.

Em paralelo ao mestrado, eu trabalhava como tradutor e intérprete sem uma formação acadêmica particular na área, além das formações e capacitações mensais que a empresa oferecia paulatinamente para a prática da interpretação em várias outras áreas específicas, para as quais a interpretação exigia conhecimentos variados: direito, economia, mineração, aviação etc. Entre textos e documentos jurídicos, econômicos, portuários, discursos políticos e até literários, cujos tratamentos diferem de um para outro, interessou-me entender intelectualmente o funcionamento dessa prática. Assim, em busca de um assunto que poderia me permitir essa reflexão, encontrei La carte d‟identité ao longo de leituras, e seu estilo peculiar chamou-me a atenção. A obra, parte da literatura marfinense, é uma das mais importantes atrizes no que podemos chamar de “virada literária” na parte subsaariana do continente africano de expressão francesa em um contexto ainda de “presença colonial”.

Embora a década de 1950 para 1960 seja considerada um período chave para as independências dos países africanos em geral e da África ocidental em particular, é essencial notar que é só a partir dos anos 70 e 80 que vai, pelas canetas, se intensificar a luta pela independência literária. Para Kola (2005), essa independência, apontada também como uma enésima metamorfose da então literatura „negro-africana‟, já havia se iniciado na década de 60 com o projeto estético e político de se desfazer completamente das imagens forjadas sobre a África nos séculos anteriores. Percebe-se, logo, a entrada nessa literatura do período pós-independência e pós-colonial, de temas relacionados à identidade nacional, oralidade, etnicidade, tradição, animismo, entre outros. Essas novas vertentes representavam um tipo de contrapeso vis-à-vis das escritas existentes e essencialmente europeias de caráter “descritivo”, portanto, antropológicas. A introdução das questões identitárias na(s) literatura(s) africana(s) do fim do século XIX viveu seu auge nos meados do século seguinte (XX) com o surgimento de uma nova geração de escritores – se bem que para Kola (2005) a expressão nova geração necessita ser recontextualizada – com sua nova forma de escrita voltada para as línguas locais, os falares e os regionalismos, isto é, uma

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desobediência literária2. Por isso, a noção de “geração” tem de ser relativizada. No contexto multilíngue da época, apresentavam-se três opções: 1) escrever somente3 em francês, 2) escrever nas línguas maternas4, e 3) escrever em francês tomando emprestadas expressões e/ou termos nas línguas endógenas5. “Não nos deixemos iludir com essa longânime vontade de inscrição identitária manifestada no nível da escrita”, criticam Charles Grivel e Pierre Halen (apud Kola, 2005). Dito de outra forma, o que estes pesquisadores nos recomendam é um pouco de recuo para analisar essa renovação da identidade escritural em construção. E como argumento, defendem que a motivação dessa geração de escritores africanos francófonos, além de estar distante de uma advocacia para uma identidade independente, qualquer que seja, não passa de um projeto ambicionando o reconhecimento institucional. Veremos, mais adiante, no capítulo 2, sobre a formação do cânone nacional marfinense, como isso se deu.

Literaturas de desencanto, ou de desilusão, as literaturas contemporâneas africanas, em geral, e marfinense, em particular, começaram em plena colonização. Cresceram com as independências e se estabeleceram no período pós-independência. Em seus primórdios,

2

O conceito de “desobediência” foi emprestado da discussão sobre a desobediência epistêmica do Walter Mignolo. Explicarei mais adiante como Adiaffi a praticava perfeitamente na sua atuação como escritor-artista.

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É o tipo de literatura que Ngugi wa Thiong‟o vai chamar de literatura africana eurófona. Ngugi é um dos mais importantes escritores, críticos, dramaturgos, e tradutores africanos ainda vivos e que pertence aos dois séculos, 20 e 21. Em uma entrevista que me concedeu, publicada na revista Cadernos de Tradução, ele explica que a literatura produzida quer por um africano, quer por outrem em uma língua europeia responde à literatura africana eurófona. Considera ele literatura africana, uma literatura produzida por um africano em uma língua africana. O próprio Wa Thiong‟o publicou vários textos em gikuyu, sua língua materna, dentre dos quais Ituikaria Murungaru traduzido para cerca de 40 línguas africanas, 6 línguas europeias, 6 línguas asiáticas, e 2 línguas do Médio oriente, totalizando 54 idiomas. Antes dele, o sulafricano Thomas Mofolo já chegara a escrever Moeti Oa Bochabela (1907), Pitseng (1910), Chaka (1925), obras originalmente escritas no seu idioma materno, o sesoto, para, tão-só, serem traduzidas depois para o inglês. Casos como estes dois abundam. Quanto à radicalidade de Ngugi, é uma questão interessante para se discutir, mas não é o ponto desta tese.

4

Vide Omari (1985), op.cit. 5

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elas tinham um teor um pouco reacionário6 – diante de condições políticas, econômicas e sociais degradáveis –, e suas produções alimentadas por assuntos relativos às colônias. Não é de surpreender que essas produções literárias tenham poucas traduções nas línguas europeias, sendo os estereótipos sobre o continente ainda fortes. Esses estereótipos, a meu ver, vêm “afastando cada vez mais a África do mundo e dificultando a compreensão da África pelo mundo”7

. Puro produto desse hibridismo8, Jean-Marie Adiaffi abraça a lógica de que a literatura francesa, que por sinal o alimentou, não é mais a única literatura de língua francesa. Dito desta forma pode soar um tanto irrelevante hoje, mas não o era nos imaginários das décadas de 1960 para 1990.

O convívio com os dois lados (Costa de Marfim e França), foi uma mais valia que o autor explorou bebendo no imaginário africano para fecundar sua escrita, suas construções frásicas e o enriquecimento lexical de suas obras. Escritor prolífico e, sobretudo, político, Adiaffi é sem dúvida um dos mais importantes escritores da história da literatura da Costa do Marfim, quiçá do continente africano. A forte personalidade de Adiaffi, escreve Amadou Koné (2015), seu entusiasmo9, até certo ponto, e suas contradições desempenharam um papel de primeiro plano na notoriedade de La carte d‟identité (1980). Sua filosofia e visão do

6

“Tout discours est dirigé sur une réponse, et ne peut échapper à l‟influence profonde du discours-réplique prévu. […] Toutes les formes rhétoriques, monologiques, de par leur structure compositionnelle sont fixées sur un interlocuteur et sur sa réponse. […] Toute parole, quelle qu‟elle soit, est orientée vers une réponse compréhensive mais cette orientation ne se singularise pas par un acte autonome, et ne ressort pas de la composition. La compréhension réciproque est une force capitale qui participe à la formation du discours : elle est active, perçue par le discours comme une résistance ou un soutien, comme un enrichissement.”, Cf. Bakhtin (1978), « Du discours romanesque », in Esthétique et théorie du roman.

7

Ver N‟gana (2017). 8

O autor nasceu durante a colonização, conheceu “os sois das independências”, foi um ator político e literário muito ativo da pós-independência. De fato, esses encontros e desencontros levaram a um „eu‟ migrante num trânsito perpétuo e constantemente traduzido por esses sois. Isso resulta em um Adiaffi plural com uma única visão que se quer “multiaxial.” Seu hibridismo também tira matéria na sua educação afro-marfinense e europeia. Benvinda Lavrador (2009) insiste no fato de que o hibridismo vai além da pertença, do aspecto biológico, pois “escrever na lìngua oficial se tornou um imperativo histórico incontornável para o escritor desejoso de projecção internacional”. Diacrítica, p. 191.

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fazer literário vão se alimentar, em um primeiro instante, de um sentimento de revolta e, em seguida, por uma grande tristeza interior. A vivência pessoal de Adiaffi o leva a buscar na narrativa uma renovação textual e encontrar nessa aspiração uma inspiração para se libertar de algumas vicissitudes da história, erguer e lutar contra o sentimento de depossessão suscitado pela experiência colonial (OUEDRAOGO, 2015, p. 224). Parece-me fundamental registrar que não se trata de uma tese anti-França ou anti-Europa. Mas, tanto os fatos relatados na obra como o contexto da sua produção coíbem-me a pintar quadros que sei complexos, delicados e, sobretudo, necessários para a compreensão desta tese.

1.2 QUESTIONAMENTOS

O advento da virada10 cultural nos Estudos da Tradução tem, sem dúvida, dado à cultura certa preexcelência notável em três níveis: compreensão da obra, sua tradução (transporte) e sua recepção. Em outros termos, defendo que tanto a consciência histórica (diacrônica e sincrônica) sobre a cultura quanto sua manifestação pelo sujeito (leitor/tradutor) tornaram-se tributárias da (sobre)vida da obra e do autor. No âmbito de nosso estudo, isto é, das literaturas africanas do período pós-coloniais, é importantíssimo saber o que se entende por “pós-colonial”, pós-independência11

, identidade nacional e literária. O conceito de “póscolonialismo”, embora tenha gerado uma extensa e cativante discussão ao longo da história, particularmente no período pós-guerra12, continua fundamental. É uma problemática que não deixa de se renovar quando abordada sob um ângulo diferente. Mishra e Hodge13 trazem uma definição bem sintetizada do termo:

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Continuamos ainda nessa grande transição onde “minorias” vão se emancipando e conquistando espaço, enquanto outras “maiorias” se extenuam. É o caso das línguas francesa, espanhola, alemã, italiana e portuguesa, inter alia. Não resta dúvida de que estas línguas vêm visivelmente sendo minorizadas, quer dizer, brutalmente carcomidas por uma língua inglesa, com seus anglicismos, cada dia mais faminta. Em outras palavras, a lista das minorias vai crescer e, por isso, torna-se-á fundamental nos próximos anos redefinir o conceito de “minoria”.

11

Conferir o capítulo 2. 12

Refiro-me à Segunda Guerra Mundial. 13

Cf. Kamgang (2012), “We would want to distinguish sharply between two kinds of postcolonialism viewed as ideological orientations rather than a historical stage: the first, and more readily recognizable, is what we call

(34)

Gostaríamos de fazer uma distinção clara entre dois tipos de póscolonialismo considerados como orientações ideológicas em vez de um período histórico: o primeiro, mais facilmente identificável, é o que chamamos por póscolonialismo oposicional, encontrado na sua forma mais aberta em colônias pós-independentes em uma fase histórica do póscolonialismo (com hifen). [...] A segunda forma, também produto de processos constituídos pelo colonialismo, mas com infleções diferentes, é um “póscolonialismo conivente” que tem muito a ver com o pósmodernismo hifenizado Lyotardiano: um “lado de inferioridade” sempre presente dentro da própria colonização.

Desta definição, conclui-se que a primeira, com o hífen, aplica-se ao pós-colonialismo do ponto de vista do colonizado, enquanto a segunda diz respeito ao póscolonialismo na concepção do colonizador. Dependendo das interpretações, pode o póscolonialismo se situar na temporalidade. Acho necessário enfatizar, como Ashcroft (1994), que “pós-colonialismo” não remete a um após o colonialismo, em razão de que começou durante o período colonial e continua existindo14. É justamente nesta lógica que Edward Said, a partir de suas noções de “continuidade” e “descontinuidade”, defende que o conceito (de póscolonialismo) não pode se limitar à conjuntura. Há, na leitura dele, descontinuidade, pois uma época sucede à outra. E continuidade, na medida em que persistentes laços continuam vivos. Desse modo, abrir mão do perìodo colonial e focar apenas no “pós” em um contexto crucial de debates como era nas décadas de 1970, 80 e, sobretudo, em 90, seria velar ou dar conta de uma singela parte da realidade. Uma vez que o pós-colonial é informado pelo passado colonial do qual é produto15.

oppositional postcolonialism, which is found in its most overt form in post-independant colonies at a historical phase of post-colonialism (with a hyphen). [...] The second form, equally a product of the processes that constituted colonialism but with a different inflection, is a „complicit postcolonialism‟ which has much in common with Lyotard‟s unhyphenated postmodernism: an always present „underside‟ within colonization itself”, 1994, p. 284.

14

Ashcroft (1994), art.cit. 15

Kamgang (2012, p. 17). Bandia (2011) defende que: “It is worth pointing out that, as a research paradigm, postcolonial theory is also being applied to contexts without an obvious (post)colonial relationship, such as between

(35)

É nessa perspectiva que Adiaffi vinha elaborando sua trilogia. O autor inicia exatamente pela narração da escravidão em Galerie Infernale (1980). Segue um revisionismo assumido sobre a colonização na sua cidade natal, Betie, perfeitamente ilustrada em La carte d‟identité16

(1980). Podemos perceber que há coincidência na publicação das duas obras mencionadas, o que traduz de fato um primeiro entrelaçamento na trilogia: pre-colonial (escravidão) – colonial, uma invoca a outra. Por fim, o segundo plexo colonial – pós-colonial se manifesta em Silence, on développe (1991) no qual o autor pinta o cenário desde a “nobre” luta pelas independências até a pós-independência17. Pois, o laxismo ou talvez a ingenuidade gratuita do povo nos seus representantes, tem favorecido a implementação de um sistema mais coercitivo e mais sutil encabeçado pelos próprios eleitos, conforme Kwame Nkrumah havia descrito mais de meio século antes. O acesso à informação, principal arma, é o caminho mais seguro para se desenvolver uma consciência no povo e possibilitar “entradas em clandestinidade”18

.

La carte d‟identité, obra publicada em 1980, é de longe a opus mais estudada do escritor marfinense Jean-Marie Adiaffi, com 33 edições e reedições19. Ela levanta questões de contínuo interesse, como a identidade (individual, espiritual, familiar, linguística, nacional etc.), política e desenvolvimento social, injustiça, filosofia, cultura, dominante-dominado, dominado-dominado, literatura, história, antropologia, colonização, poesia, hibridade, multilinguísmo, pobreza-miséria etc. Para Rangira Gallimore (1996), a obra Adiaffiana dá indubitavelmente a prioridade à lìngua e à cultura “Agni”, sem por isso ignorar os outros pontos ora listados, além de introduzir personagens ativistas que não versam na vitimização. De maneira geral, coloca-se a questão da representação de si e do outro. A nossa relação conosco e com os demais, embates cada vez mais violentos. Um dos interesses

Quebec and Canada. Post-colonial literatures are now understood to include literatures dealing specifically with neocolonialism and metropolitan, migrant and diaspora literatures, which can be grouped under the label post-colonial literature”, p. 264.

16

Apresento a obra com informações mais completas nos itens 2.4.1 La carte d‟identité (1980) e 3.3.3 Processo de Tradução: um Caminho de Sinimbu. 17

Termo preferido por Robinson em vez de pós-colonial. Cf. Kamgang (2012), p. 10.

18

Termo desenvolvido mais pela frente. 19

Veremos adiante mais detalhes sobre essas edições no item 2.4.1 La carte d‟identité (1980).

(36)

desta pesquisa é justamente provocar esse embate20, na medida em que vários dos questionamentos levantados pela obra não são novidade na cultura brasileira. Esse encontro apresenta-se como uma terapia de grupo para se discutir por meio do ato de leitura-tradução, uma prospecção condicionada por uma introspecção bem-sucedida. Projetamos o futuro hoje, mas a partir da consciência que temos de ontem.

La carte d‟identité é uma obra de grande fatura, pois o autor ganha em 1981, um ano depois21 da publicação, Le Grand prix Littéraire d‟Afrique Noire, a maior distinção na parte francófona do continente africano no campo da literatura. A par disso, visto o grande volume das teses de doutoramentos, de dissertações, artigos científicos e demais trabalhos sobre a obra, pareceu-me fundamental introduzi-la pela primeira vez no cenário literário lusófono em geral e no Brasil em particular.

1.3 HIPÓTESES

Minha hipótese, no que concerne esta tese, abarca várias indagações e pressuposições. Estamos no que Kamgang (2012) denomina tradução de si em oposição à tradicional tradução do outro. É essencial não ver nesse ato, necessariamente, uma dualidade. Pois, caso exista uma, tratar-se-á de uma dualidade entre um “eu” pendurado entre introspecção e outro ansioso por uma prospecção fruto de uma condição de pós-colonialidade irrefutável. Essa mudança de enunciador e/ou de situação de enunciação leva a questionar:

● A tradução produz algum tipo específico de conhecimento independente? Se não é sempre possível fazer uma avaliação completa e objetiva de uma tradução, pode-se estudar sua contribuição no cenário literário receptor?

20

Necessário e quase inevitável visto a dinâmica das migrações e o enfraquecimento das fronteiras pela internet.

21

A crítica continua dividida sobre a data exata desta consagração. Enquanto Rangira Béatrice Gallimore, professora na Universidade de Missouri (EUA) escreve em L‟oeuvre romanesque de Jean-Marie Adiaffi: Le mariage du mythe et de l‟histoire: fondement d‟un récit pluriel (1996) que Adiaffi recebeu o prêmio no mesmo ano da publicação, isto é, 1980; Benvinda Lavrador (2009) e Bernard Gensane (1988), reforçado por Nouréini Tidjani-Serpos (2000), apontam para 1981.

(37)

Busco especificamente traduzir com o intuito de introduzir a língua e cultura anhi no português brasileiro. Sendo permeadas pela filosofia desta língua/cultura em trânsito, vem minha hipótese geral: até onde pode o sistema literário brasileiro acolher essa visão ao mesmo tempo longínqua e próxima? Pode a tradução se permitir tudo? Em outros termos, qual é a relevância desta literatura, primeiro, para a Costa do Marfim, e em seguida, para uma formação literária22 nacional do Brasil? Que tipo de diálogo se pode estabelecer via esse ato tradutório? É partir destes e de outros vários questionamentos que construí meus objetivos.

1.4 OBJETIVOS

O principal objetivo desta tese é a tradução de La carte d‟identité (1980, 1992) para o português brasileiro, comentando os desafios encontrados no processo tradutório. Como objetivo específico, busco introduzir a língua, literatura e filosofia Anhi, e marfinense, no cenário brasileiro. Apesar de meu desejo de horizontalidade, o processo não deixa de acarretar reflexões sobre possíveis relações lhanas que o traduzir possibilita. Espero com esta tese poder contribuir, nos Estudos da Tradução, para as reflexões teórico-práticas sobre as literaturas africanas, em geral e, da África subsaariana de língua francesa em particular, com a literatura marfinense como um desses casos. Além disso, objetiva-se mostrar que a abertura para as literaturas africanas pode abrir para novas teorias e formas de se pensar a tradução. Tento mostrar que a partir das suas semelhanças com a abordagem etnográfica, a prática do n‟zassa pode ser formulada e considerada uma teoria de tradução, onde a leitura não fluída do texto-alvo é também considerada uma tradução excelente.

Com vista nos pontos enumerados, a tese possui a seguinte estrutura:

No capìtulo 2, “Formação de um cânone nacional marfinense”, apresento, de maneira geral, como o cânone literário da Costa do Marfim vem se formando e, como alguns dos conceitos e seus precursores levaram à materialização desse cânone, insistindo, sobretudo, sobre as circunstâncias que suscitaram seu desenvolvimento (KOLA, 2005; GALLIMORE, 1996; CONFIANT, 2000; AKROBOU, 2012; KOUROUMA, 2016; OUEDRAOGO, 2015; BANDIA, 2012,

22

Considerando-se que o sistema literário está em constante movimento, em estado de renovação, portanto, de reinvenção perpétua.

(38)

2013; SAWADOGO, 1994; PERROT, 2002; NIANGORAN-BOUAH e AHOUO, 2003; YAPO, 2010; ARNAUT, 2008; RASCHI, 2001; GRAH, 2011; ADIAFFI, 1985; VETINDE, 2002; PAPE, 1996). Mostro, em seguida, como Jean-Marie Adiaffi participa desse período e como isso, em retorno, influiu na sua biografia e sua bibliografia. Situar assim o autor permite abrir o caminho para a introdução da obra La carte d‟identité (1980) e sua tradução para o inglês zimbabuano, intitulada The identity card (1983), realizada por Brigitte Angays Katiyo.

Por La carte possuir algum teor etnográfico, resolvi, no capítulo 3, “A tradução entre antropologia e etnografia: da desobediência à obravivência”, trazer, em primeira instância, um arcabouço teórico que dê conta da relação etnografia-tradução (FERREIRA, 2011, 2013, 2014, 2017; LAPLANTINE e NOUSS, 2011; KAMGANG, 2012; CLIFFORD, 1996; CRONIN, 2016; HALE, 2014; GOROVITZ, 2011; BANDIA, 1993, 1995; BUZELIN, 2004). Em segunda instância, busco mostrar como a escrita do autor (o n‟zassa) se aproxima da prática ora apresentada. Na sequência, explico como a escrita n‟zassa vai me servir de método de tradução. Encerro o capítulo discutindo minhas escolhas e mostrando como o n‟zassa se aplica à tradução (BOSSON, 2014; PRANDI, 2007; PAZ, 1971; PAGANINE, 2011; ZABUS, 1991; CONFIANT, 2000; ECO, 2007; AKOHOUE, 2013; BANDIA, 1993).

O capítulo 4, intitulado “Tradução e Tradição” é o espaço que escolhi para elencar e esmiuçar alguns dos elementos anhi fundamentais na obra estudada. O capítulo discute a complexidade dos provérbios encontrados em La carte, propõe algumas reflexões e abordagens para pensar sua tradução (KAMGANG, 2012; MOSER, 2004; SARAIVA, 1985, FRANÇA, 1974; AGYEKUM, 2000; BAKER, 1992; BEEKMAN e CALLOW, 1974; PEGGY e KWAME, 2000; CALVET, 2011). Logo depois, analiso o código onomástico, sua história, sua função no texto-fonte e seu tratamento no texto-alvo.

O capìtulo 5, “Considerações Finais”, intitulado Relatos sobre o Albergue, faço uma síntese de tudo o que foi discutido ao longo desta tese, ou seja, verificação ou não das hipóteses.

Como metodologia de investigação, parti da prática para, com essa experiência, construir uma teoria, isto é, 1) lendo a obra de partida (o original) e a versão zimbabuana; 2) levantando o que Aixelà (1996) denomina Itens Culturais Específicos; 3) identificando os desafios de tradução que esses elementos colocam; e por fim, 4) fazendo a tradução propriamente dita, construindo, de forma simultânea, a teoria.

Quero ressaltar que, embora exista simbolicamente um capítulo sobre o processo de tradução da obra, cada capítulo ou subcapítulo goza,

(39)

em grau maior ou menor, de exemplos de traduções cujas experiências também descrevi. Mas, para chegar a esse ponto, comecemos com o cânone nacional marfinense.

(40)
(41)

2 FORMAÇÃO DE UM CÂNONE NACIONAL MARFINENSE

“Les idées convenues sur l‟Afrique pèsent. Pourquoi traduire si l‟on considère qu‟il n‟y a pas d‟écrivains ? Qui sont ces écrivains ? L‟image s‟est peu à peu imposée que les auteurs qui écrivaient en leur langue étaient en somme réduits à cette pratique faute de mieux. Traduits, on les a souvent trouvés peu à notre goût : ces intellectuels organiques, pétris de christianisme, aux idéaux petits bourgeois de sagesse, étaient bien loin des vedettes de la littérature africaine, écrivains cosmopolites, émanations des élites urbanisées et occidentalisées. Quant aux nouvelles générations d‟écrivains et intellectuels africains, s‟ils ne sont pas des militants de la langue, on peut à bon droit s‟inquiéter !”

(42)
(43)

O objetivo principal deste capítulo é trazer uma vista geral dos movimentos políticos, epistemológicos e, sobretudo, literários que coincidiram, ou talvez, influenciaram o estilo Adiaffiano. Será também uma oportunidade de situar o autor na geografia político-literária da Costa do Marfim: suas ideias, influências e escolas. Para tanto, recorri aos trabalhos de Kola (2005), Ouedraogo (2015), Gallimore (1996), entre outros.

No primeiro volume da sua tese de doutorado, Kola Jean-François (2005) pinta um panorama impressionante da evolução da literatura marfinense representada no mapa da chamada literatura “negro-africana”. Kola aponta para o ano de 1921 como sendo o ponto de partida para o reconhecimento em nível internacional da literatura africana com Batoula, véritable nègre (1921) de Réné Maran, vencedora do Prix Jules et Edmond Goncourt. Logo depois, vêm Doguicimi (1938) de Paul Hazoumé e Karim, roman sénégalais de Ousmane Socé Diop. Na visão deste pesquisador, há urgência, ou emprestando suas palavras, “nécessité scientifique” – [necessidade científica] de se estudar as literaturas nacionais africanas na medida em que retratam várias facetas das sociedades africanas que poderiam trazer indícios para uma compreensão mais global das realidades do continente, e assim possibilitar abordagens mais eficientes dessas realidades. Retratou extensamente os contextos políticos e filosóficos de construção de uma „identidade marfinense‟ e para em seguida relacioná-la à formação de um cânone literário nacional. No que tange a esta última, isto é, à formação do cânone, Kola apresenta, de um lado, as marcas escriturais e discursivas encontradas na produção literária marfinense; e do outro lado, o ato de enunciação como elemento constituinte de uma „certa identidade narrativa‟ dos escritores marfinenses. Em outras palavras, de um sentimento de responsabilidade pelo destino coletivo (BERND, 1987, p. 49). Essas mudanças vertiginosas tiveram um ponto de partida: o ano 1968.

2.1 O ANO 1968

O ano 1968 é um marco cruciforme e um período de mudanças fundamentais tanto na Europa quanto no sul das Américas e nas colônias francesas na África. Com efeito, houve nesse ano, na cidade de Nanterre, depois do que foi chamado na França de Trente Glorieuses23,

23

Isto simbolizava três décadas sucessivas de boom econômico na França, mas cujos ganhos não eram devidamente distribuídos, criando obviamente

(44)

uma série de movimentos de estudantes e operários grevistas, comumente referido como maio de 1968. Eles reclamavam24:

● Estudantes: Encabeçado por Daniel Cohn-Bendit e seus companheiros orientados por Michel Foucault, Jacques Derrida e mais outros integrantes sulamericanos25, o movimento estudantil condenava, de maneira unívoca, a Guerra do Vietnã e opunha-se à deterioração das condições de trabalho: vetustez dos equipamentos, falta de universidades, ausência de diversidade e de liberdade(s) individual(ais) nas escolas/universidades, os sistemas de diplomas injustos, rejeição da sociedade de consumo, repúdio da tecnologia nuclear, denúncia da miséria nas cercanias das universidades, denúncia dos Gulags russos e, sobretudo, protesto ferrenho contra a proibição dos contraceptivos pelo Vaticano;

● Operários: Batendo um recorde até então nunca alcançado, com aproximadamente 9 milhões de trabalhadores reunidos no que foi considerada a maior greve depois da segunda guerra mundial, os operários paralizaram toda a França. O movimento se estendeu em outras partes do mundo, como no Brasil, no México, na Alemanha etc. O que os grevistas revendicavam era: o aumento dos salários (em 35%), a redução da jornada de trabalho, o fim do autoritarismo dos Patrões, a revogação de decretos relativos à Proteção Social.

O que, sem dúvida, a maioria dos jornais e sites concorda em dizer, no que se trata de “1968”, é que houve uma “abertura brutal” da cultura francesa ao diálogo social. Este ano acelerou, por assim dizer, uma tomada de consciência a respeito da mundialização naquela sociedade moderna, favorecendo, acima de tudo, reflexões sobre a sociedade de consumo que só crescia. Dita “abertura brutal” tem

frustrações nas massas. Essa não circulação dos recursos coroava-se com uma taxa de desemprego de cerca 500.000 pessoas e mais de 2 milhões de operários recebendo apenas o salário mínino, sentindo-se assim excluídos.

24

Segundo Lemondepolitique.fr: <http://www.lemondepolitique.fr/culture/mai-68>, o Courant Communiste International:

<https://fr.internationalism.org/ri388/mai_68_le_mouvement_des_etudiants_en _france_et_dans_le_monde.html>, o jornal Lepoint

<http://www.lepoint.fr/societe/mai-68-explique-en-1-minute-25-05-2016-2042038_23.php>.

25

(45)

contribuìdo muito para uma “alteração vital” no olhar das ex-colônias francesas sobre si e transformou, em algum grau, as relações Norte-Sul. Pois, merece ser dito que a grande maioria26 dos que mais tarde viriam a governar nos florescentes Novos Estados, vivenciou os movimentos de 1968. Tais momentos históricos deixaram marcas indeléveis naqueles jovens estudantes africanos. Todavia, essa coincidência, pois assim a considero, foi salutar na medida em que a produção literária da África subsaariana de expressão francesa passava por um momento de “estancamento e silêncio literário”27

. Este olhar é corroborado por Rangira Gallimore (1996), de que a matéria colonial, que era a então fonte de inspiração dos escritores africanos da época, vinha secando com as independências e com o alvorecer da Era pós-colonial. Logo, a experiência de 68 permitiu [re]orientar as reflexões para questões como: o neocolonialismo; a língua de/a comunicação, de produções literárias e filosóficas; as críticas contra os novos governantes nos recém Estado-Nações africanos que emergiam. Em resumo, era preciso uma renovação desse conteúdo que já se tornava repetitivo. A ideia de renovação implicava também o abandono de um certo “conformismo formal” para o surgimento do que Sewana Dabla chamou, mais tarde, de “Nouveau Roman”, [Novo Romance]. A maioria dessas literaturas pós-coloniais, também referidas como „literaturas euro-africanas‟28

bebeu muito nas fontes orais em um contexto em que o processo de criação tomava uma forma de reescrita, de tradução29.

Kola (2005) defende que desde a década de 70 a literatura „negro-africana‟, que se tornara tautológica, aspirava a outro tipo de alteridade. A nova geração de escritores queria escrever diferente, desvencilhar-se do estilo de seus predecessores30 marcados pela Negritude e pelas lutas anticoloniais. Outrossim, todas as outras formas de pensar, segundo Walter Mignolo (2008), que afetam a organização do conhecimento e da

26

Pelo menos Adiaffi faz referência a esse período e como influenciou-o do ponto de vista filosófico, poético e, sobretudo, político e literário. Vide Gallimore (1996) e Kola (2005).

27

Expressão emprestada de Albert Gérard em « La francophonie dans les lettres africaines ». Cf. Gallimore (1996)

28

Bandia (2013), art. cit. 29

Bandia (2003), p. 131. 30

N‟da (2006), art. cit. “Si, pendant des décennies, les romanciers négro-africains d‟expression française ont été plus ou moins influencés par la littérature française, aujourd‟hui la nouvelle génération d‟écrivains s‟efforce de s‟affranchir de cette tutelle en recherchant les voies d‟une écriture nouvelle, différente, originale” (s/p).

(46)

compreensão e de agir politicamente, ou seja, formas que não são descoloniais, significam permanecer na razão imperial, dentro da política imperial de identidades.

Dado que uma nova estética traz consciente ou inconscientemente uma nova expressão do pensamento humano31, essa mudança, melhor, essa tomada de consciência e de postura vem dando vida a um palimpsesto32 literário e epistemológico do qual se destacam entre outros a Drummologia, a Griótica, o Didiga, o N‟zassa (e o Bossonismo). Enquanto conceitos palimpsésticos são pluri-, trans- e interdisciplinares. Basta observar no baobá-mapa abaixo para se dar conta que há um eixo comum: o dialogismo entre epistemes.

Figura 1: Baobá-mapa de alguns tráfegos nas literaturas africanas.

Fonte: Elaborado pelo autor33

31

Gallimore (1996), p. 10. 32

Ver Chantal Zabus (1991), Kola (2005) para mais informações sobre esse percurso.

33

(47)

É preciso insistir que este baobá ilustra apenas uma parte das possíveis artérias emprestadas em/por essas literaturas. Assim, o leitor entende, espero, o porquê de ter eu colocado “literaturas” no plural e não literatura africana como se costuma, abusivamente, referir à produção do continente Africano. Além de encontros como os representados acima nos galhos do baobá, cada país detém suas próprias literaturas, dependendo da região, das crenças, da história e dos fatores sociais. Fazendo com que a literatura Anhi seja diferente da literatura Senufo, diferente da literatura Bete, por sua vez, diferente da Baúle na mesma Costa do Marfim. Estamos no que Mignolo denominou de „Estado plurinacional‟, um status que nunca foi assumido pela Costa do Marfim. Esses shifts no país desde os anos 1970 para 1990 ocorreram tanto na produção/transmissão de conhecimento científico quanto na produção artístico-intelectual. Em consequência disso, surgiram os complexos conceitos de “ivoirisme” e “ivoirité” e seus desdobramentos respectivos. 2.2 MARFINISMO E MARFINIDADE

Neste subcapítulo busco trazer uma súmula dos conceitos indicados no tìtulo. Utilizarei respectivamente os termos „marfinismo‟ para falar em ivoirisme e „marfinidade‟ para ivoirité.

2.2.1 Marfinismo

A francofonia é, como qualquer bloco linguístico, uma organização internacional com objetivos de promover a língua francesa, facilitar a mobilidade das pessoas e dos bens, o livre comércio e a integração, entre outros. As noções de “promoção e mobilidade” deixam clara a dificuldade, hoje em dia, em se territorializar uma língua, ou se atribuir a exclusividade de uma língua a um país peculiar, quer ele ex-colonizador ou ex-colonizado. Portanto, a mobilidade também inclui mobilidade de diversidades ideológicas, materiais e, sobretudo, linguísticas. Na francofonia fala-se hoje em variedades que constam entre outros: o québécois, o ivoirisme, o martiniquais, o togolais, o béninois, o camérounais etc. Influenciado, como nos demais países do bloco, pela coabitação de uma ou várias línguas nacionais, o francês marfinense ou marfinismo34 construiu-se uma norma endógena que

34

Deve-se por marfinismo entender o francês falado nas ruas, nos mercados, nas comunidades e, por vezes, nas famílias, sendo este diferente do francês

(48)

difere da norma prescrita do “francês da França”, representando a norma exógena. Para Bra,

O marfinismo é um francês “aproximativo” cujas peculiaridades variam conforme o estatuto e o grau de educação dos indivíduos na sociedade marfinense. O léxico, as estruturas sintáxicas desse francês "aproximativo" se afastam das normas preestabelecidas do francês. Trata-se de um falar sintomático de um estado de espírito, de um contexto social presente, de uma situação linguística em uma paisagem multilíngue em plena mutação. No plano literário, traduz-se nas obras romanescas em forma de empréstimos, interferências, distorções, transgressões lexicais, semânticas e sintáxicas35 (BRA, 2011, p. 3; minha tradução).

A dinâmica social condicionada por êxodos nacionais e imigrações transnacionais – nos espaços UEMOA e CEDEAO, no seio das quais a Costa do Marfim é um motor essencial para a circulação e a produção de riquezas – a comunicação está em constante mudança. Prova que isso não ocorre apenas com o francês marfinense, tem-se semelhante exemplo fora do continente africano com o franglais no Canadá36. De acordo com Raphaël Confiant,

falado na administração, nas escolas e universidades, nas instituições oficiais de Estado.

35

„L‟ivoirisme est un français « approximatif » dont les particularités varient selon le statut et le niveau d‟instruction des individus dans la société ivoirienne. Le lexique, les structures syntaxiques de ce français « approximatif » s‟écartent des normes préétablies du français. C‟est un parler qui est symptomatique d‟un état d‟esprit, d‟un contexte social ambiant, d‟une situation linguistique dans un paysage multilingue en pleine mutation. Sur le plan littéraire, il se traduit dans les œuvres romanesques sous une forme d‟emprunts, d‟interférences, de distorsions, de transgressions lexicales, sémantiques et syntaxiques.‟ Cf. Bosson Bra. Op. cit. O marfinismo já foi conhecido também sob a apelação de FPI (Français Populaire Ivoirien).

36

Ver Jean Delisle. “La langue hybride ou le néo-libéralisme linguistique”. Disponível em

<https://www.academia.edu/23701201/_La_langue_hybride_ou_le_n%C3%A9 o-lib%C3%A9ralisme_linguistique_>

(49)

A desterritorialização da língua francesa, e seu enraizamento em diversas regiões do mundo causou, é sabido hoje, não somente uma remodelagem desta língua, mas criou, sobretudo, situações sociolinguísticas inéditas com o surgimento de ecossistemas marcados pela coabitação desigual das línguas37 (2000, p. 49; minha tradução).

O marfinismo, tal como definido, faz exatamente parte das situações sociolinguísticas às quais Confiant se referiu. No caso marfinense, o contexto é outro, mais complexo. Confiant vai, a isso, se referir como uma situação de diglossia. Ou seja, a diglossia é a coexistência conflitante dentro de um mesmo ecossistema de pelo menos dois idiomas, onde apenas um possui o estatuto de “langue” enquanto o outro, ou, os outros são considerados „patoá‟. E essa „langue‟, a lìngua dominante, monopoliza todas as esferas prestigiosas da sociedade (educação, literatura, política, administração etc.).

No entanto, na bandeira de „outros idiomas‟, as lìnguas nacionais (anhi, senufo, baúle, guro etc.) embora não ocupem o mesmo status social em relação ao francês, ganharam espaço. Esse ganho também se refletiu no marfinismo que entretém com as línguas nacionais, algum parentesco, alguma influência. De fato, os êxodos internos acabam colocando em contato campesinos e citadinos, e assim, visões e representações diferentes, com a emergência de novos vocabulários dos dois lados. Em situações de complexos dialogismos como esses, nascem línguas francas, línguas entre, línguas apartidárias. Elas trazem consigo expressões com estruturas não convencionais, pois não padronizadas, sempre em relação ao “cânone francês”, e que acabam, com o tempo, gozando da unção da aceitabilidade sob o registro de neologismo38.

A expressão mon vieux père que significa literalmente “meu velho pai” ou “meu kota” (em Angola), diz respeito a um indivíduo de sexo masculino de idade avançada. No francês marfinense, já vem adquirindo novos significados se tornando um excelente antônimo da expressão puto (Pt) ou moleque (Br) em português. Esta expressão, além

37

Confiant (2000). “La déterritorialisation de la langue française, et son réenracinement dans diverses régions du monde a, on le sait bien aujourd'hui, entraîné non seulement un remodelage de cette langue mais a surtout créé des situations sociolinguistiques inédites avec l'apparition d'écosystèmes marqués par la cohabitation inégalitaire des langues.”

38

(50)

de se referir a uma pessoa com mais experiência, é também uma forma educada para se dirigir a uma pessoa mais velha. É outro aspecto que os escritores pós-coloniais têm explorado bastante. Esse reconhecimento vem se efetivando pelos vieses da música, do uso diário, da literatura e das teses desenvolvidas sobre o assunto. Observemos esta frase na obra Les soleils des indépendances39 (1970):

Il y avait une semaine qu‟avait fini dans la capitale Koné Ibrahima, de race malinké, ou disons-le en malinké: il n‟avait pas soutenu un petit rhume. [...] Comme tout Malinké, quand la vie s‟échappa de ses restes, son ombre se releva, graillona, et partit par le long chemin pour le lointain pays malinké40 (KOUROUMA, 1970, p. 17).

Havia uma semana que tinha acabado na capital Koné Ibrahima, de raça malinke, digamo-lo em malinke: não havia suportado uma pequena constipação. Como todo Malinke, quando a vida se escapou de seus restos, sua sombra ergueu-se, limpou a garganta e seguiu pelo longo caminho em direção ao remoto país malinke (YN, s/d, s/p).

Ambos, Akrobou (2012) e Kola (2005), concordam em dizer que há um transplante do malinke41 ao francês. Pois o verbo francês “fini” usado aqui foge do seu sentido clássico42 para enroupar o sentido malinke da palavra bana: morrer/falecer. O mesmo se observa com a palavra “ombre” que significa exatamente “sombra”; mas se refere ao “dja” [alma] do malinke43

, e ao “wawouè” encontrado em La Carte

39

Traduzida em 2004, pela Editora Nova Fronteira, como O Sol das independências.

40

Cf. para análises mais detalhadas sobre o assunto, os trabalhos de Kola (2005) e Akrobou (2012).

41

O malinké ou malinke é um dos 62 grupos étnico-linguísticos da Costa do Marfim, do qual Kourouma é falante original.

42

Cf. http://www.larousse.fr/dictionnaires/francais/finir/33819?q=finir#33761 43

As crenças populares defendem que quando falece uma pessoa, a alma sai do corpo físico e continua perambulando pelas ruas da cidade (ou do local). Pode acontecer, portanto, que entes ou conhecidos do falecido, que não foram informados do falecimento, o encontrem algures.

(51)

(1980). Não seria, portanto, falacioso afirmar que Kourouma abusava conscientemente destes tipos de ressemantizações. Disse em entrevista:

Este livro se dirige ao africano. Pensei-o em malinke e escrevi-o em francês tomando algumas liberdades que julguei necessárias com a língua clássica [...]. O que fiz então? Deixei-me simplesmente levar pelo meu temperamento distorcendo uma língua clássica rígida demais para que nela, meu pensamento pudesse mover-se. Eu traduzi então do malinké para o francês para encontrar e restaurar o ritmo africano (KOUROUMA, online, minha tradução)44.

A compreensão, e por extensão, a tradução de uma obra dessas exige do leitor-tradutor uma imersão na cultura malinke. A especificidade do discurso narrativo do escritor francófono, segundo Akrobou, transforma o interesse pela tradução em questões maiores em um processo de transposição. O problema colocado a todo tradutor perante um texto literário diz respeito a certa dependência em relação ao contexto do discurso literário (2012, p. 77). E Kourouma não podia ser mais claro ao dizer:

Se você quer introduzir um malinke e o faz no francês clássico, ele perde uma importante parte de sua dimensão, de sua realidade. O que todo escritor quer é fazer reviver uma personagem e isso exige que seja real e verdadeiro. Ser verdadeiro significa adotar a linguagem da pessoa. […] Não se traduzem essas lìnguas. As transpomos. Porque traduzi-las não faria sentido […] na medida em que em cada língua há uma forma de abordar e de dizer, e as coisas acontecem de uma forma peculiar. Há certo ritmo e é este ritmo que devemos procurar para assim dar ao personagem sua plena dimensão e para que o ambiente que procuramos representar seja representado na sua verdadeira natureza. Foi aquilo que quis fazer (KOUROUMA, online, minha tradução).

44

KOUROUMA, Ahmadou. “Le français et le malinké.” INA.FR Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=jjJuDjPg6_Y>. Acessado em maio de 2016.

Referências

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