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Representação e subjetividades infantis nos livros para crianças em Salvador no início do século XX

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REPRESENTAÇÃO E SUBJETIVIDADES INFANTIS

NOS LIVROS PARA CRIANÇAS

EM SALVADOR NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Tese submetida ao Programa de Pós-graduação em

História da Universidade Federal de Santa Catarina para

a obtenção do Grau de Doutora em História Cultural

Orientadora: Profª. Drª. Ana Lice Brancher

Florianópolis

2017

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À minha mãe, que em sua

trajetória nos mostrou que

deveríamos acreditar em nossa força de transformação da vida.

Aprendi a ser feminista

observando-a em suas lutas

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Muitas foram as pessoas que direta e indiretamente contribuíram com a escrita deste texto. Talvez não possa retribuir como mereçam, mas quero dividir a conquista com cada um de vocês.

Agradeço então:

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, instituição que possibilitou a efetivação deste trabalho, me concedendo a infraestrutura necessária para que eu pudesse me dedicar exclusivamente à pesquisa.

À minha orientadora, Ana Lice Brancher. Obrigada pelas conversas nos momentos de angústia, e também pela leitura cuidadosa de todo o texto. Agradeço por ter acreditado em mim e em minhas possibilidades de fazer um trabalho de qualidade.

Aos meus pais, que são a alegria maior de minha vida. Ao meu pai que, mesmo não compreendendo bem o que é uma tese, sempre me incentivou. À minha mãe, a melhor mãe do mundo. Mãe, finalmente chegamos até aqui, mais um ciclo que se completa. Apesar dos momentos difíceis, nós sobrevivemos. E estaremos juntas para comemorar mais uma conquista. Te amo muito!

À minha irmã Amanda, obrigada por cuidar de mim. Sei que foram meses complicados, mas o nosso amor cresceu e amadureceu muito. Você é uma das pessoas que me deram força para continuar. Te amo minha pequena... que minha mãe te abençoe!

Ao meu irmão mais novo John, que alegrou minhas manhãs com seu contagiante sorriso e leveza de ser.

À minha irmã do coração, Camila (Biga), amiga com quem troquei inúmeras cartas para aliviar o peso das incertezas do doutorado! Obrigada Biguita, através de suas palavras me senti mais segura e mais forte.

À minha mestra e amiga Márcia Barreiros com quem dividi angústias, incertezas, mas também muitas alegrias. Obrigada pelo carinho e presença constante. Você me inspira.

À minha amiga Alaíze agradeço pelas conversas, pelos abraços e pelas viagens. Obrigada Lai pelo carinho e presença. A vida fica mais colorida e mais leve ao lado de pessoas tão queridas como você.

A Ricardo, amigo que muito me incentivou. Obrigada pelos risos, música e abraços.

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À Daniela Sampaio, amiga e terapeuta, que me ajudou a descomplicar a vida e seguir em frente apesar das pedras no meio do caminho.

Aos professores do Programa de Pós-graduação em História Cultural da Universidade Federal de Santa Catarina. Em especial à professora Cristina Scheibe Wolff que acompanhou a produção do trabalho e também participou da qualificação, contribuindo de maneira importante para a conclusão deste estudo.

Aos colegas e professores do Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH) pela acolhida. A participação no núcleo foi importante para minha formação enquanto pesquisadora, professora e feminista.

Aos colegas do doutorado, que dividiram comigo às angústias de produção de uma tese. Em especial, agradeço à Valdirene (Val) e Júlia, presentes que ganhei em Santa Catarina. Obrigada por tudo meninas! Pelas conversas, risadas, ostras e vinhos. Espero que nossa amizade se fortaleça cada vez mais. Desejo que nossas trajetórias sejam sempre iluminadas.

Às pessoas lindas e especiais que conheci ao longo dessa caminhada. Agradeço a Gleidiane, Nathália, Nati Cadore e Maíra. Obrigada por colorirem a minha casa. Espero que voltem sempre a Salvador.

Aos funcionários do Programa de Pós-graduação em História da UFSC. Todos sempre muito atenciosos e cordiais.

Aos Funcionários da Biblioteca Pública de Salvador e do Centro de Documentação e Informação Cultural (CEDIC) – Fundação Clemente Mariani. Aos funcionários do Instituto Feminino da Bahia.

Tenho um pedaço de cada um de vocês no que fiz de mim.

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Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas. Queria que a minha voz tivesse um formato de canto. Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática. Só uso a palavra para compor meus silêncios.

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produção e circulação de livros infantis em Salvador em fins do século XIX e inícios do século XX. A literatura infantil nesse período se caracterizou pelo seu cunho pedagógico e pela vinculação de modelos ideais de infância, o que influenciou, em certa medida, na constituição das subjetividades de meninos e meninas na Bahia Republicana. Esta pesquisa ancorou-se em alguns eixos principais, entre eles: as concepções oriundas dos estudos sobre História da infância, os modelos teórico-metodológicos propostos pela História da leitura, e os Estudos de gênero. Através da análise de alguns livros de intelectuais baianos compreendi como nesse tipo de literatura a criança ganhou a cena como leitora e personagem, marcando o processo de identificação entre ambos. Entre os literatos considerados estão Almachio Diniz, Roberto Correia, Virgilio Oliveira, Lemos Britto e Amélia Rodrigues. O estudo da obra da escritora baiana Amélia Rodrigues revelou, em especial, uma preocupação com a educação das mulheres, em um momento no qual se iniciaram os debates sobre o processo de escolarização feminina. Seja através de contos ou livros de leitura, havia na nascente Bahia republicana uma produção considerável de livros para crianças. Todas essas obras traziam uma carga moral forte, que se delineava a partir de temas como o trabalho, benevolência, fé, lealdade, família e maternidade; conceitos e valores que deveriam ser apreendidos pelas crianças leitoras baianas.

Palavras-chave: Literatura infantil; Bahia; nacionalismo; educação da mulher.

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This study aims to analyze the emergence of a network of production and circulation of children's books in Salvador in the late nineteenth and early twentieth century. Children's literature in this period was characterized by its pedagogical character and the linking of ideal childhood models, which influenced the education of boys and girls in the Republican Bahia. This research is based on the conceptions of the studies on Childhood History, on the theoretical-methodological models proposed by the History of Reading, and on Gender Studies. Through the analysis of some books of intellectuals in Bahia understand how this type of literature the child won the scene as reader and character, marking the identification process between both. Among the writers analyzed are Almachio Diniz, Roberto Correia, Virgilio Oliveira, Lemos Britto and Amélia Rodrigues. The study of the work of the Bahian writer Amélia Rodrigues revealed, in particular, a concern for the education of women, in a moment in which started discussions on the

process of

Female schooling. Through short stories or reading books, there was at the source of production Republican Bahia books for children. All these works brought a strong moral burden, which outlined the themes as work, Grace, faith, loyalty, family and maternity benefits; concepts and values that should be learned by children readers.

Keywords: Children's literature; nationalism; Education of women; Women writing.

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Petiz...27

Figura 2 - Grupo de crianças presentes no Dispensário infantil...40

Figura 3 - Contracapa do livro As viagens de Gulliver às terras desconhecidas (1888)...52

Figura 4 - Ilustração do livro As viagens de Gulliver Gulliver às terras desconhecidas (1888)...53

Figura 5 - Contracapa do livro Que amor de criança! (1890)... 56

Figura 6 - Capa do livro Pomo de ouro e outros contos maravilhosos.70 Figura 7 - Capa da revista O Petiz (1912)...77

Figura 8 - Capa do Livro da infância: Páginas de propaganda patriótica (1918)...83

Figura 9 - Capa do Livro da infância: Páginas de propaganda patriótica (1927)...84

Figura 10 - Capa do livro Mosaico infantil (1911)...87

Figura 11 - Fotografia de Rodolpho, filho de Virgilio Cardoso (1911)89 Figura 12- Ilustração do livro Mosaico infantil...91

Figura 13 - Capa do Livro O pomo O pomo de ouro e outros contos maravilhosos (1913)...92

Figura 14 - Ilustração do poema A prece de Virgilio Cardoso de Oliveira...99

Figura 15 - Ilustração do Hino à pátria – Livro Mosaico infantil...104

Figura 16 - Imagem de Maria Quitéria presente no livro Mosaico infantil... 107

Figura 17 – Ilustrações do livro Mosaico infantil...129

Figura 18 - Ilustração do livro Mosaico infantil...130

Figura 19 - Imagem de duas meninas retirada do Jornal A tarde...141

Figura 20 - Retrato da escritora baiana Amélia Rodrigues (1861-1926)...175

Figura 21 - Capa do livro Mestra e mãe (4ª ed. - 1929)...187

Figura 22 – Ilustração do livro Mestra e mãe...190

Figura 23- Ilustração do livro Mestra e mãe...206

Figura 24 - Ilustração do livro Mestra e mãe...210

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Tabela 1 – Propagandas de livros nos periódicos baianos...44 Tabela 2 – Livros para crianças anunciados no Catálogo da livraria Catilina... 63

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...19

2. CAPÍTULO 1 – CONTE-ME UMA HISTÓRIA QUE REINVENTO O MUNDO: PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DA LITERATURA INFANTIL NA BAHIA...27

2.1.“Crianças felizes”: O papel dos livros no processo de institucionalização da infância...28

2.2 Leituras recreativas e moralizantes: A presença dos livros para crianças em salvador...41

2.2.1. A nascente República e a formação de pequenos patriotas...59

2.3 Catálogo da Catilina: Biblioteca para crianças e livros escolares...63

2.3.1 Biblioteca para crianças: Contos e fantasias...68

2.4 Leitura para meninas: Formando mães e esposas instruídas...72

2.5 Leitura para pequenos adultos...75

3. CAPÍTULO 2 - CONTOS MARAVILHOSOS E OUTRAS LIÇÕES: LIVROS E CULTIVO DE VALORES...77

3.1. Representações da criança leitora: A importância da instrução para os intelectuais baianos...80

3.2. “Crer em Deus é um dever, porque Deus existe”...94

3.3. Educando para amar a pátria...100

3. 4. O trabalho enobrece e a ociosidade debilita...111

3. 5 Mente instruída, corpo são...121

3. 5.1. Brinquemos...saltemos...126

3.6 A importância do cultivo de valores: honra, coragem e bondade...131

3.6.1. Sedes honrados...131

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4. CAPÍTULO 3 – O QUE FAZER DE VOSSAS FILHAS? PRESCRIÇÕES DOS INTELECTUAIS BAIANOS SOBRE

EDUCAÇÃO DAS MULHERES...141

4.1. Notas sobre a educação das mulheres na Bahia em fins do século XIX e inícios do XX...142

4. 2. Primeiras lições: Subjetividades das meninas através do uso das bonecas e dos livros...149

4.3. Meninas exemplares: Recato e caridade...158

4.4. Meninas leitoras, mulheres escritoras...141

5. CAPÍTULO 4 - RECATADAS, DO LAR E DA ESCOLA: EDUCAÇÃO E INFÂNCIA FEMININAS ATRAVÉS DAS PÁGINAS DE MESTRA E MÃE...175

5. 1. A escrita feminina e feminista de Amélia Rodrigues: A luta pela educação das mulheres...176

5. 2. Escrita autobiográfica através da obra Mestra e mãe: Manual de educação cívica e moral...185

5. 3. Entre quintais e bordados: representação de infâncias no sertão baiano...194

5. 3.1. O cultivo das virtudes...202

5. 3.2. Euphrosina: a flor do sertão...211

5. 4. Uma guia para futuras esposas e mães...214

5. 5. Derradeiras lições...220

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS...223

7. FONTES...229

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1. INTRODUÇÃO

Na medida em que a leitura é para nós a iniciadora cujas chaves mágicas abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas onde não saberíamos penetrar, seu papel na nossa vida é salutar.1

O trecho acima traduz a relação estabelecida entre a prática da leitura e a constituição de subjetividades costuradas pelas experiências individuais e coletivas impressas nos livros. Reflete a possibilidade de um profundo mergulho na própria alma, até chegar às almas alheias inscritas em páginas compiladas e acomodados nas estantes das livrarias e bibliotecas.

Nesta perspectiva poética, a compreensão sobre produção da literatura infantil define-se aqui, não somente, como dispositivo para a inserção das crianças no mundo adulto, mas como uma chave mágica que também abre as moradas de universos inventados por meninos e meninas. Assim, estudar a História da Literatura infantil é admirar ao longe, as pequenas mãos e olhos curiosos entretidos a cada virar de página.

Partindo da relação entre os livros e as crianças, me interessa pensar sobre o papel exercido pela literatura infantil na construção de um ideal de infância masculina e feminina na Bahia no final do século XIX e início do século XX. Para tanto, busquei investigar as redes sociais e culturais de produção e circulação das obras voltadas para a infância em Salvador, passando pelo entendimento de como a criança surgiu como sujeito diferenciado do adulto, requerendo um trato específico, principalmente na sua educação. E o mundo dos contos, das fantasias, das histórias morais e cívicas dá indícios sobre as práticas sociais de leitura, apontando para os caminhos percorridos pelos livros infantis na Bahia.

Este estudo ancora-se em alguns eixos principais, entre eles: as concepções oriundas dos estudos sobre História da infância, os modelos teórico-metodológicos propostos pela História da leitura, e os Estudos

1

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de gênero que me ajudaram a pensar de que maneira a educação infantil na República esteve permeada por relações de poder que tentavam legitimar modelos de subjetivação das infâncias femininas e masculinas. O primeiro pilar, ou seja, os estudos sobre infância e família tem como legado a importância da definição da criança como sujeito histórico, levando em consideração a ação de diferentes instituições (família, escola, igreja) na construção de um projeto idealizado de infância.

Um dos principais pioneiros nessa área de pesquisa foi Philippe Ariés, autor do famoso livro História Social da criança e da família2. Através da utilização de fontes diversas (diários, cartas, registros de batismo iconografia, lápides), o historiador organizou uma espécie de arqueologia da ideia de infância na França do Antigo Regime. Contudo, a maioria de seus estudos aponta para o cotidiano das classes mais ricas da sociedade francesa, o que o fez ignorar as experiências dos indivíduos das classes trabalhadoras.

Apesar de todas as generalizações, Philippe Áries trouxe à cena um sujeito histórico, que antes parecia desprovido de ação social. A partir do trabalho pioneiro deste historiador foi possível pensar em outras questões, tanto sociais quanto culturais. Interessou-me entender como a literatura ajudou a formar e, quem sabe possivelmente, reforçar os paradigmas de uma infância burguesa. Com este instrumental teórico procurei direcionar o olhar sobre o processo de formação das crianças baianas considerando suas especificidades históricas, sociais, raciais e culturais.

No campo dos estudos sobre História do livro e da leitura, os historiadores Roger Chartier e Robert Darnton enfatizaram a importância do processo de apropriação e significação dos textos por seus leitores. Entraram em cena a figura do editor, como mediador, e do leitor que atribui outros significados ao texto, causando muitas vezes o deslocamento do sentido original impresso pelo autor. Darnton3

2

ARIÉS, Philippe. História Social da criança e da família. 2 ed.. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1981.

3

DARNTON, Robert. História da leitura. In: BURKE, P. A escrita da História: Novas Perspectivas. SP: UNESP, 1992. p. 199-232. Ver também: DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras: Schwarcz, 1990.

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destacou o caráter de inventividade da prática da leitura definida como uma atividade social relacionada ao contexto no qual o indivíduo está inserido.

Chartier, ao analisar os livros no contexto do Antigo Regime francês4, refletiu sobre o processo de apropriação desses textos através de elementos também ligados à sua publicação e circulação. Para este historiador, o livro instituiu uma ordem, “fosse a ordem de sua decifração, a ordem no interior do qual ele deve ser compreendido ou, ainda, a ordem desejada pela autoridade que o encomendou ou permitiu a sua publicação. ”5

Na perspectiva de Chartier, a leitura como prática cultural demarcava-se também por seus usos. Este historiador enfatizou que as interpretações dos indivíduos deveriam ser analisadas a partir da relação com a condição social e cultural dos leitores. Ele questionou a ideia de que os livros naquele período estavam direcionados somente para uma classe, pois na prática muito dos clássicos que tinham como público alvo os mais ricos, foram lidos por outros indivíduos das classes mais pobres.

Através da utilização do conceito de leitura como prática cultural, adentro então o universo das histórias dos livros para crianças, evidenciando que esse gênero literário emergiu também como instrumento para consolidar outro conceito: o de infância. O tornar-se criança ganhou outros contornos juntamente com o momento de consolidação de uma literatura apropriada para os “pequenos” leitores e leitoras. A literatura infantil se apoiou na família e na escola, principais instituições responsáveis pelo processo de constituição das subjetividades de meninas e meninos. À medida que essa aproximação foi se consolidando, a grande maioria dos livros infantis caracterizou-se por seu caráter pedagógico.

A literatura infantil, como fonte e objeto de estudo, define-se pela possibilidade de reflexão sobre a criança como sujeito principalmente porque foi através desses livros que os adultos tentaram transmitir aos “pequenos” e “pequenas” determinados tipos de comportamentos e

4

CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. SP: UNESP, 2004.

5

CHARTIER, Roger. A Ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XVI e XVIII. Brasília: Editora Unb, 1994. p.8.

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valores. Tal perspectiva insere-se na análise do processo de nacionalização da literatura infantil no Brasil, contexto que tinha como pano de fundo a divulgação de uma política nacionalista, no qual as crianças vistas como futuros cidadãos se tornariam responsáveis pelos destinos da Pátria. Neste campo literário e pedagógico atuaram diversos intelectuais brasileiros, a exemplo de Alberto Figueiredo Pimentel (1869-1914), Arnaldo Oliveira Barreto (1869-1925), Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), Romão Puiggari (1890-1920), Francisca Júlia (1871-1920), Alexina Magalhães Pinto (1870-1921), Tales de Andrade (1890-1977), Coelho Neto (1864-1934), Carlos Jansen (1829-1889). Manuel Bonfim (1868-1932) e Olavo Bilac (1865-1918). Os dois últimos autores escreveram Através do Brasil publicado em 1910, livro escolar de orientação nacionalista que fez bastante sucesso em todo território brasileiro.6

Na Bahia ressaltaram-se autores como: Amélia Rodrigues (1861-1926), Abílio Cesar Borges (Barão de Macaúbas) (1824-1891), Virgilio Cardoso de Oliveira (1860-1935), Roberto Correia (1876-1941), Lemos Britto (1886-1963) entre outros. Todos esses escritores e escritoras produziram textos que de alguma maneira contribuíram para a formação moral de leitoras e leitores. Entre as obras analisadas estão: Mosaico

infantil (1911) de Virgilio Cardoso de Oliveira, O pomo de Ouro e outros contos maravilhosos (1913) de Almachio Diniz, Oração às crianças (1913) de Lemos Britto, Livro da infância: páginas de propaganda patriótica (1918) de Roberto Correia e Mestra e mãe

(1898) de Amélia Rodrigues.

Além da análise dos livros publicados por esses literatos, também mapeei alguns periódicos baianos, necessários para a compreensão dos modelos e identidades que deveriam ser assumidos pelas crianças na Bahia. Sublinho a importância de O Petiz, A revista do Ensino Primário,

A Paladina, O Diário da Bahia e Diário de Notícias. Estes jornais e

revistas também traziam algumas listas de livros e propagandas de livrarias, dando indícios sobre o processo de produção e circulação do livro em Salvador no final do século XIX e início do XX.

Este estudo foi estruturado em quatro capítulos. No primeiro intitulado Conte-me uma História que reinvento o mundo: produção e

6

ARROYO, Leonardo. Literatura infantil brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 2011.

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circulação da Literatura infantil na Bahia, procurei entender o processo

de produção e circulação de livros infantis na Bahia, atentando principalmente para as concepções de infâncias que circulavam nas primeiras décadas da República. Considero que o nascimento da literatura para crianças esteve atrelado ao processo de institucionalização da infância, o que tornou a leitura um instrumento de transmissão de certos discursos cujo objetivo era criar e legitimar determinadas identidades.7

A partir da revista O Petiz, periódico de caráter médico-pedagógico fundada em 1907, pelo médico Alfredo Ferreira Magalhães, perscrutei concepções sobre os cuidados com as crianças durante as primeiras décadas da República, contexto em que a infância foi definida e controlada por diferentes saberes: médico, pedagógico e jurídico. Através dos artigos coletados no periódico percebi que a criança era vista como uma semente que precisava de cuidados muito específicos para que no futuro pudesse dar bons frutos.

Também procurei investigar que tipo de obras literárias para crianças estavam circulando nas primeiras décadas da República, destacando as publicações de autores baianos. Através das propagandas de livros vendidos pela Catilina, livraria e editora de grande importância neste contexto na Bahia, demonstrei em parte o trânsito e consumo desses livros em Salvador. A escolha por essa livraria justifica-se pelo grande número de propagandas da editora encontradas nos periódicos da cidade. Anúncios de outras livrarias foram encontrados nos jornais, contudo, até então essas listas não eram constantes e possuíam raras indicações de livros para crianças.

Além das propagandas utilizei alguns artigos da Revista do

ensino primário, periódico do final do século XIX voltado para os

professores primários da Bahia. Nesta revista foram publicados artigos que tratavam da concepção do que seria uma leitura apropriada para crianças. Esses textos deixavam claro que essa literatura estava em formação e que os intelectuais se esforçavam para produzir algo que chegasse até as crianças de maneira mais lúdica, garantindo o aprendizado dos valores morais.

7

Cf. LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história e histórias. 6 ed. São Paulo: Ática, 2006.

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Alguns dos livros encontrados na Bahia foram escritos por juristas, médicos e outros intelectuais. Destes, o Barão de Macaúbas, Amélia Rodrigues, Virgílio Cardoso e Roberto Correia se especializaram neste tipo de literatura. Os outros, ao que tudo indica até então, escreveram apenas um livro do gênero, o que não desqualifica as obras, mas confirma a ideia de que a produção de uma literatura infantil estava ainda se consolidando.

Como a literatura para crianças nesse período tinha um caráter fortemente pedagógico, teve seu desenvolvimento atrelado ao contexto escolar. Por outro lado, as leituras feitas em família estavam também reguladas por essa ideia de uma educação moral, que inicialmente se pautou na religião, e que aos poucos foi se deslocando para os valores cívicos e nacionalistas, embora persistissem ideais de uma civilidade cristã.

Outra questão imprescindível para este estudo foi entender como o que hoje chamamos de as questões de gênero são/foram representadas na literatura infantil. Para tanto, evidenciei livros que ensinavam comportamentos específicos para meninas como: vestir-se, falar, o que ler, como se portar, entre outras tantas lições importantes à “mocinhas bem educadas”. Também busquei compreender de que maneira as meninas que protagonizavam algumas histórias foram representadas nos livros encontrados. Por outro lado, delineiam-se através de algumas obras infantis, a construção de um ideal de masculinidade que deveria ser adotado pelos meninos.

Já no segundo capítulo intitulado Contos maravilhosos e outras

lições: Produção de Literatura para crianças na Bahia, refleti sobre

algumas obras voltadas para infância que circularam na Bahia durante as primeiras décadas do século XX. A escolha dessas obras se justifica também pelo fato de que algumas delas foram aprovadas pelo Conselho de Instrução Pública do Estado da Bahia. Relacionadas em ordem cronológica estão: Livro da infância (1911) de Roberto Correia,

Mosaico infantil (1911) de Virgílio de Oliveira e Oração às crianças

(1913) de Lemos Britto. Além desses títulos, o único que parece não ter sido utilizado na escola foi O pomo de ouro e outros contos

maravilhosos (1913) de Almachio Diniz (1880-1927). Tanto Almachio,

quando Lemos de Britto e Virgilio de Oliveira são formados em direito. Portanto, em certa medida, são autores que por vezes trazem uma linguagem um tanto rebuscada de difícil compreensão para as crianças.

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Ao examinar as obras tentei enfatizar especificamente os modelos ideais de infância que eram propagados por esse tipo de literatura. Quem era essa criança idealizada por esses intelectuais? Que tipo de indivíduos eles pensavam formar? Qual tipo de leitor a quem esses autores se dirigiam? Logo, entra em cena o debate sobre a constituição das subjetividades de meninos e meninas, brancos ou negros, ricos ou pobres, que deveriam ser educados a partir desse tipo de literatura.

Todos os livros trazem uma carga moral muito forte e marcam um momento de transição, no qual os autores ressaltam um sentimento nacionalista importante para ser cultivado na recém republica. Essas obras falam muito de trabalho, benevolência, fé, lealdade, ética; conceitos e valores que não eram facilmente apreendidos pelos pequenos leitores, posto que, muitos daqueles discursos ainda não faziam parte de seu cotidiano. Nesse sentido é que esses intelectuais de certa forma tratavam as crianças como “adultos”. E tudo isso pode ser justificado pelo próprio caráter embrionário da literatura infantil brasileira, sendo poucos os autores que se dedicavam somente a este gênero literário.

A análise do livro O pomo de ouro, obra que o autor dedicou a sua filha, trouxe a possibilidade de pensar na inserção do livro infantil no ambiente doméstico. Em sua dedicatória Diniz afirma que escreveu o livro com amor para servir às fantasias da menina. Assim, o escritor esboçou outra função da literatura infantil; fazer com que meninos e meninas sonhassem com mundos maravilhosos, onde coisas fantásticas fossem possíveis.

No terceiro capítulo intitulado O que fazer de vossas filhas?

Prescrições dos intelectuais baianos sobre educação feminina abordei

os aspectos relacionados à instrução feminina, principalmente porque foi nesse contexto de final do século XIX para o século XX, que as meninas começaram a ter acesso a uma educação mais formal. Nesta parte do estudo também procurei problematizar as representações sobre a infância feminina presentes nos livros dos escritores baianos, já mencionados no capítulo anterior. Através dos livros e de periódicos analisei o processo de inserção das meninas no mundo das letras, tanto como personagens quanto como leitoras, não esquecendo a importância das primeiras lutas feministas pelos direitos de escolarização da mulher.

No último capítulo, Recatadas, do lar e da escola: Educação e

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obra da escritora e professora Amélia Rodrigues (1861-1926), portadora de uma produção vastíssima e muito importante para educação baiana. Tendo em vista que os livros de Amélia Rodrigues cumpriam tanto a função pedagógica quanto a lúdica, do entretenimento, conclui que Rodrigues também foi uma escritora de literatura infantil.

Em Mestra e mãe (1898), um manual de educação moral e cívica para moças, Rodrigues faz uma discussão sobre a importância da educação feminina e reconta a própria trajetória. A obra se reporta ao sertão da Bahia, trazendo um contexto diferenciado da capital, demonstrando as deficiências e carências das crianças que viviam no interior do Estado. A escritora não apresentou como único personagem a criança branca, mas trouxe as caboclas para a cena. Por outro lado, também esboçou valores como nacionalismo através da narrativa de eventos históricos que ecoavam no momento. O livro, além de conter lições morais e religiosas, evidenciava que as meninas tinham direito à mesma educação recebida pelos meninos.

Por fim, convido leitoras e leitores a repensar a prática de leitura por meio deste estudo. Seja tomando o documento impresso em mãos e sentindo o gosto do virar das páginas, ou deslizando os dedos nas telas luminosas dos tabletes. Desejo que este trabalho leve a uma reflexão sobre a importância do livro na formação das crianças e como a leitura poder desempenhar um papel relevante na formação de indivíduos conscientes da diversidade de gênero, raça e classe.

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2. CAPÍTULO 1 – CONTE-ME UMA HISTÓRIA QUE REINVENTO O MUNDO: PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DA

LITERATURA INFANTIL NA BAHIA

Fonte: O Petiz. Ano III, nº4, 15 set. 1909. p. 21

Figura 1 - Ilustração presente no texto Creanças felizes publicado na revista O Petiz

(30)

2.1 “CRIANÇAS FELIZES”: O PAPEL DOS LIVROS NO PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DA INFÂNCIA

Em 15 de junho de 1908, um texto publicado no periódico O

Petiz8 caracterizava a criança definindo-a como um ser frágil que necessitava de cuidados específicos. O autor, partindo de diferentes pressupostos, iniciou sua argumentação afirmando que esse ser “pequenino e baixo”, aparentemente inútil, guardava em si “flóridas esperanças”; a esperança do pai, que depositava naquele fruto toda sua herança, creditando naquele indivíduo o que seria a continuidade de sua “honra e prestígio”; a esperança da mãe, aquela que dedicava todo seu tempo para que seu pequeno florescesse; e a esperança da pátria, que seria honrada no futuro com um prestigioso cidadão.9

Contudo, esse pequenino ser, ainda de acordo com o texto, não nascia com um bom caráter formado, requeria um trato distinto voltado para essa fase do desenvolvimento humano, denominada infância. Essa

8

A revista O Petiz foi fundada em 1907 pelo médico Alfredo Ferreira Magalhães, um dos pioneiros a trabalhar com a saúde da infância na Bahia. O periódico mensal, e por vezes trimestral, circulou de 1907 a 1917. Tinha como objetivo principal a difusão das ideias e ações do Instituto de Proteção e Assistência à Infância da Bahia, criado em 1903 pelos médicos Frederico Castro Rabelo, Alfredo Ferreira de Magalhães e Joaquim Augusto Tanajura. O Instituto baseava-se nos mesmos moldes da Instituição criada por Moncorvo Filho no Rio de Janeiro, e tinha como função dar assistência e amparo aos “recém-nascidos, crianças de 7 anos e grávidas e atuar em campos diversos, como a regulamentação do trabalho das amas de leite e contra a exploração do trabalho infantil, isto é, sua ação era voltada aos diversos aspectos da vida infantil.” Cf. RIBEIRO, Lidiane Monteiro. Filantropia e assistência à saúde da infância na Bahia: A Liga baiana contra a mortalidade infantil, 1923-1935. 2011. 138 f. Dissertação. (Mestrado em História das Ciências e da saúde) – Fundação Oswaldo Cruz, Casa de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2011. p. 25. Por fim, é preciso reiterar que a ação do instituto direcionava-se para mães e crianças pobres, embora as matérias publicadas em O Petiz, entre elas, prescrições de cuidado com a infância, tinham também como leitoras mulheres de outras camadas sociais. Os exemplares da revista foram encontrados na sessão de jornais raros da Biblioteca Pública do Estado da Bahia.

9

A matéria foi retirada do Boletim Salesiano, porém não consta o nome do autor.

(31)

preocupação de tantos intelectuais da época foi reiterada no seguinte trecho:

(...) encarando as coisas e os fatos à luz divina, a criança é como que um terrível ponto de interrogação. Não sabe o pai desvelado se aquele tenro botão de rosa virá a clarear em preciosa flor de mimosa virtude, ou se irá prestes jazer em esterquilínio imundo. Esse amorzinho idolatrado, que só sabe sorrir, porque não aprendeu outra ciência mais que a do amor, pode ser o consocio indefectível do bem, ou o arauto ominoso – oh! quantas e quantas vezes o é! – da ignorância e do mal. Pode ser ruína para muitos; para muitos bem-aventurança.10

A descoberta ou invenção da infância transformou a criança em uma instituição; um indivíduo que foi mapeado, analisado e caracterizado através de diferentes perspectivas: médicas, jurídicas, psicológicas e pedagógicas. Essa separação do mundo da criança do mundo dos adultos começou a ocorrer na Europa entre a Renascença e o século das Luzes, consolidando a ideia de que a criança “(...) em sua individualidade, é espectador silencioso; é silenciada na sua voz, que, pelo suposto moderno, não saberá falar por si. A criança dita pela razão moderna foi desencantada; sem dúvida. Foi secularizada e institucionalizada”.11

A criança, ou melhor, a infância, vista como um ponto de interrogação, foi considerada uma fase na qual o indivíduo deveria ser moldado e civilizado. No caso do Brasil, desde o início do século XIX, com a fuga da Família Real Portuguesa para o Brasil, se difundiram projetos para a promoção de novos costumes e comportamentos adequados à nova situação da colônia. A ideia era civilizar as pessoas e os espaços através, principalmente, da criação de instituições que consolidassem um modo de vida inspirado pelos europeus, exemplos de civilidade naquele momento. Esse ideal de civilidade e modernidade foi

10

O QUE É A CREANÇA. O Petiz. Ano II, nº 1, 15 jun. 1908. p. 2-3. (Optamos pela atualização ortográfica das citações relacionadas neste capítulo). 11

FREITAS, Marcos Cezar de & KUHLMANN JR., Moysés. Os intelectuais na História da infância. São Paulo: Cortez, 2002. p. 57.

(32)

perseguido durante todo o século XIX e se intensificou com o nascimento da República, o que se justificara pela necessidade de negação do passado colonial.

Ao longo do século XIX e XX, no Brasil e na Bahia, se desenvolveram políticas diferenciadas para o trato com as crianças e muitos intelectuais, médicos, juristas e educadores, começaram a pensar nos cuidados para a infância. A educação se tornou algo primordial para que os pequenos crescessem moral e fisicamente saudáveis. Este período foi marcado por inúmeras reformas educacionais que buscaram organizar e fortalecer o ensino no Brasil. A escola foi considerada o centro principal de desenvolvimento da infância. A criança só deixaria de ser um ponto de interrogação quando acessasse determinadas instituições, passando a seguir as prescrições médicas e pedagógicas, sendo moldada em cada uma de suas fases até a idade adulta.

Um dos principais intelectuais da época a pensar sobre educação infantil, chegando a produzir inúmeras obras sobre o tema, foi o médico e professor baiano Abílio Cesar Borges, o Barão de Macaúbas12 (1856-1891). Ao analisar as representações de infância nas obras pedagógicas do Barão de Macaúbas, Diane Valdez afirmou que o educador partia do pressuposto de uma “infância maleável”, ou seja, da criança como um ser moralmente modelável, e que, portanto, o adulto deveria assumir o controle sobre sua formação. Segundo Valdez, para o Barão de Macaúbas:

Tendo sido ‘feita por Deus’, a criança não vinha ao mundo completa e nem perfeita, porém ainda não havia sido ‘infectada’ pela corrupção, podendo ser moldada aos bons princípios. Não restavam dúvidas de que seu cérebro ‘quente’, ‘úmido’ e ainda ‘mole’ facilitava o ensino da moral. Como ela era portadora de uma memória

12

Abílio Cesar Borges fundou, em 1858, o Ginásio Baiano em Salvador. O famoso colégio foi responsável pela formação de alguns homens da elite baiana, a exemplo de Castro Alves e Rui Barbosa. Em 1847, o educador e médico mudou-se para o Rio de Janeiro e criou o Colégio Abílio, descrito por Raul Pompeia em seu romance O Ateneu, publicado em 1888. Além disso, ele também exerceu o cargo de diretor Geral de Instrução Pública. Por seus trabalhos na luta pela popularização e fortalecimento do ensino primário recebeu, em 1881, o título de Barão de Macaúbas.

(33)

fraca, era preciso insistir na repetição dos temas para que os absorvesse, aos poucos, de acordo com seu desenvolvimento. Era curiosa, atenta à novidade, daí a importância da verdade na sua formação. Sua docilidade deveria ser incentivada por exemplos, reflexões e muito diálogo.13

O trecho acima reflete um pouco das preocupações de Abílio Cesar Borges enquanto educador que escreveu diversos livros sobre o ensino primário no Brasil imperial, entre eles, Vinte annos de

propaganda contra o emprego da palmatoria e outros meios aviltantes no ensino da mocidade (1880) e Lei nova do ensino infantil (1883).

Partindo de modelos pedagógicos europeus, publicou livros de leitura originais destinados especificamente para as crianças brasileiras14, meninas e meninas, brancos, das camadas alta e média da sociedade, que foram aquelas que tiveram acesso inicial a uma educação escolar. Seus trabalhos foram pioneiros no campo de produção de livros didáticos. Suas obras reunidas ficaram conhecidas como Método Abílio, representando uma mudança considerável nas metodologias de ensino utilizadas nas escolas à época.

As ideias sobre infância do Barão de Macaúbas representaram parte do pensamento dos intelectuais da época, uma infância que foi problematizada a partir do processo de escolarização. O debate se intensificou durante meados do século XIX. Ao refletir sobre as reformas para o ensino, Abílio questionou a situação da criança no Império, bem como sua relação com os adultos. O Barão de Macaúbas propôs uma mudança nessa relação, defendendo uma educação com disciplina, isenta de castigos físicos.

Tanto o Barão como outros intelectuais da época fizeram reflexões sobre a infância através da definição da criança como um ser

13

VALDEZ, Diane. A representação de infância nas propostas pedagógicas do Dr. Abílio Cesar Borges: o barão de Macahubas (1856-1891). Tese (Doutorado em educação) - Programa de pós-graduação em educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006. p. 273.

14

Entre seus principais livros estão: Epítome da Gramática Portuguesa (1860), Primeiro, Segundo e terceiro livro de leitura para uso da infância brasileira (1868), Novo primeiro livro de leitura (1888), Quarto e Quinto Livro de Leitura (1890).

(34)

social. Sua educação deveria pautar-se nesse processo, atentando para as necessidades desses indivíduos e quais os lugares poderiam ser ocupados pelos mesmos quando se tornassem adultos. A escola teria a função de protegê-la dos perigos da sociedade, e ao mesmo tempo, prepará-la para enfrentar as contradições no futuro.

E foi através da família e, principalmente, da escola que o livro se tornou um importante instrumento de difusão de ideias e comportamentos. A leitura, como prática cultural, ajudou a legitimar certas representações sobre a criança, participando do processo de institucionalização da infância brasileira. Segundo Regina Zilberman, a literatura infantil reflete uma visão de mundo do adulto, “seja pela atuação de um narrador que bloqueia ou censura a ação de suas personagens infantis; seja pela veiculação de conceitos e padrões comportamentais que estejam em consonância com os valores sociais prediletos”15

A literatura para crianças no Brasil teve amplo desenvolvimento a partir do final do século XIX e início do XX. Embora o gênero estivesse ainda em formação, há um número grande de produções voltadas para os pequenos leitores. A prática da leitura na infância era vista como um perigo, portanto, meninos e meninas deveriam ler algo que lhes fosse apropriado para que aprendessem boas lições.16 No Brasil, a produção de livros para crianças seguiu os mesmos moldes europeus e “junto com a escola, a literatura para crianças foi especificamente conclamada para desempenhar um papel muito especial: formar indivíduos bem adaptados ao modelo social vigente através do ensino de atitudes morais e padrões de conduta ideais”.17

Segundo a pesquisadora Ana Carolina Mesquita, a literatura infantil fundou-se a partir da criação de um ideário de infância que se caracterizou pela “fragilidade física e moral, imaturidade intelectual e afetiva” 18das crianças. Os livros voltados para esse público basearam-se

15

Ibidem, p. 23. 16

Cf. ARROYO, Leonardo. Literatura infantil brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 2011.

17

MESQUITA, Ana Carolina. Prato feito: as políticas do governo e a literatura infantil brasileira. São Paulo: Com- Arte, 2010, p. 29.

18

(35)

na consolidação de um projeto pedagógico para a formação de meninos e meninas.

A utilização da expressão “livros para crianças” ao longo desta tese reflete a variedade de produções escritas para o público infantil durante os séculos XIX e XX no Brasil e na Bahia. O termo abrange, de certa maneira, os diferentes tipos de obras que tinham a finalidade de contribuir para uma formação das crianças no intento de civilizá-las. Entre estas produções uma das que mais se difundiram no período Imperial foram os manuais de civilidade. Os textos traziam diversas prescrições de como se comportar em diferentes situações. Em verdade, eram conselhos voltados para uma elite brasileira ávida por se inserir nos novos espaços de sociabilidade emergentes.

A criança, ao ser socializada, também precisava seguir determinadas regras para se adequar ao contexto. A pesquisadora Fabiana Sena analisa a difusão desses modelos de civilidade a partir de dois manuais: O tesouro dos meninos (s/d), de Pierre Blanchard e o

Código do Bom-Tom ou Regras da Civilidade e de Bem Viver no Século XIX (1845), de José Inácio Roquette, ambos circularam nas escolas de

primeiras letras no Brasil durante o século XIX.19

Esses livros informavam sobre diversos assuntos, entre eles, as maneiras de conversação, os cuidados com o corpo, indicação de leituras apropriadas a cada idade. Por outro lado, alguns também traziam uma imensa carga moral-religiosa, o que se adaptava ao contexto brasileiro no qual a igreja católica detinha grande poder.

A presença desses livros na Bahiapode ser comprovada a partir de diferentes fontes. Em um dos documentos referentes a uma das Falas do Presidente da Província da Bahia em 1871, foi publicada uma lista de livros distribuídos nas escolas públicas primárias. Entre as obras relacionadas estão o Thesouro de meninos e o Primeiro livro de leitura

do Dr. Abílio. Além destes, encontram-se o Primeiro livro de leitura de Manuel Jesuíno, Bom Homem Ricardo, Contos Bíblicos e Cathecismo

19

SENA, Fabiana. A conversação como modo de distinção no império: Tesouro de meninos e Código de bom-tom nas escolas brasileiras. Revista HISTEDBR On-line. Campinas, nº. 37, p. 253-265, mar.2010.

(36)

do Pará.20 Todas as obras são marcadas por um caráter moral e religioso.

Os livros adotados nas escolas teriam a função primordial de fazer “frutificar no coração dos pequenos” determinados tipos de valores. Tal produção pedagógica se intensificou durante as primeiras décadas da Primeira República, quando o cuidado com a criança passou a envolver diferentes instituições que, em verdade, corroboraram com o processo de institucionalização da infância. Por outro lado, a educação infantil também primava pelos cuidados com o corpo. Médicos e educadores produziram debates em torno de temas como a educação física, questões de moralidade e sexualidade, educação feminina, entre outros assuntos considerados importantes à formação das crianças. Tanto os livros quanto os periódicos que tinham como tema a infância ou tinham as crianças como público alvo, deveriam incentivar o bom trato da mente e do corpo.

Em uma das sessões da revista O Petiz, denominada Prophylaxia

Moral, o médico Alfredo Ferreira de Magalhães (1873-1943)21 se dedicou a dar conselhos aos pais sobre a educação física e moral de meninos e meninas nas primeiras décadas do século XX. Magalhães apresentou uma série de prescrições que deveriam ser seguidas para que as crianças pudessem crescer de maneira saudável, se transformando em adultos que praticassem o bem, sendo generosos e benevolentes. Há aqui também uma distinção de gênero, na qual o menino deveria ser valoroso e dedicado ao trabalho, provendo sua família e servindo à pátria; enquanto a menina deveria tornar-se uma senhora respeitável e honrada, mãe dedicada e zelosa.

20

PERES, Eliane; TAMBARA, Elomar (Orgs.). Livros Escolares e ensino da leitura e da escrita no Brasil (séculos XIX-XX). Pelotas: Seiva, 2003. p. 106. 21

Alfredo Ferreira de Magalhães nasceu em Salvador em 1873. Formou-se em medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1891. Foi sócio-fundador e médico-diretor do Instituto de Proteção e Assistência à Infância na Bahia. Atuou como professor da Faculdade de Medicina, assumindo cadeiras ligadas à pediatria. Também publicou artigos em diversos periódicos, tratando dos cuidados com a infância, destacam-se as publicações em O petiz, revista à serviço da divulgação das obras do Instituto. Cf. OLIVEIRA, Eduardo de Sá. Memória histórica da Faculdade de Medicina da Bahia. Salvador: Centro editorial e didático da UFBA, 1992. p. 363-367.

(37)

Além de tratar da higiene física e moral, Alfredo Magalhães defendeu a importância de valores e práticas como a castidade, ressaltando a questão dos divertimentos adequados às crianças e jovens, alertando os pais para o perigo das danças e do teatro. Sobre os livros, o médico afirmou:

Um outro escolho temeroso, de encontro ao qual vai, muitas vezes, naufragar a virtude dos jovens, é constituído pelas más leituras, pelos livros licenciosos, pelos jornais de escrita pornográfica e gravuras indecorosas, e até pela indústria nova dos cartões postais sugestivos e provocadores da concupiscência.

Infelizmente já se faz bem precisa a instituição de uma campanha vigorosa, franca, decidida, pela salvação da infância e da juventude das garras desse abutre de mil formas, que chama-se o vício, a corrupção.22

A partir dessa preocupação do médico tece-se uma reflexão sobre o papel relevante que a leitura exerceu na formação de meninos e meninas. A produção de uma literatura para crianças deveria atender a determinados princípios que consolidassem os padrões sociais e culturais vigentes naquele período. As crianças deveriam ser educadas em seus lares e nas escolas para que aprendessem o necessário para sua inserção na sociedade baiana. A leitura inadequada poderia produzir nos meninos e nas meninas sentimentos e práticas relacionadas ao despertar da sexualidade. Tal fato provocava um grande temor, tanto nos pais quanto nos doutores, principalmente no que concerne à sexualidade feminina. A indicação era de que as meninas lessem textos religiosos e filosóficos, por acreditarem que eles não despertavam sentimentos considerados fúteis e nem estimulavam de maneira perigosa o corpo das moças23.

22

MAGALHÃES, Alfredo Ferreira de. Prophylaxia Moral. O Petiz. Ano II, nº 7, 15 dez. 1908. p. 26.

23

Cf. EL FAR, A. Páginas de sensação: Literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro (1870-1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

(38)

Parte dos textos voltados para crianças já delineava uma diferenciação sexual, especificando elementos caros à educação de meninos e meninas. Alguns sentimentos e valores poderiam ser compartilhados por ambos, contudo, outros comportamentos dependiam do sexo da criança. Nas brincadeiras e histórias os meninos geralmente apareciam de maneira mais livre, brincando nos quintais e fazendo peraltices, já as meninas, em sua maioria comportadas, apareciam frequentemente no ambiente doméstico ou escolar, o que, de certa forma, contribuía para consolidar atividades sociais que ambos poderiam exercer quando adultos.

A definição de criança estava diretamente associada aos princípios da inocência e da pureza, cabendo aos adultos conduzir os pequenos de maneira que essas características permanecessem. Em outro texto publicado em O petiz há uma descrição sobre crianças felizes:

(...) Deus, o nosso Criador, dotou a criança de atrativos por meio dos quais ela tende a ser querida ou protegida pelas pessoas grandes ou adultas.

Há crianças que desprezam certas regras necessárias para gozarem uma vida feliz.

O asseio de todo o corpo, os dentes bem alvos, a boca sem mau hálito, as unhas limpas, bem cortadas, os cabelos, penteados, sem piolhos e lêndeas, a roupa sempre bem tratada, as meias e botinas em perfeito estado, assim devem se apresentar as crianças.

Quanto a alimentação, não devem se ocupar o dia inteiro em comer tudo o que encontrarem, pois assim, longe de se alimentarem bem e engordarem, podem ficar doentes, magras e feias.

Deve-se comer em horas certas e não demasiadamente.

O riso amável deve ter sempre uma criança, receber os afagos com que lhe queiram distinguir e honrar as pessoas educadas.

(39)

Não fazer perguntas a respeito da vida de ninguém, não procurar saber coisas que são do conhecimento da gente sem educação.

Não responder grosserias às pessoas que lhe façam alguma admoestação para o bem; não dar apartes às pessoas mais velhas e muito menos entrar em discussões.

Afugentar do espírito a cólera, ter em mente que a ira nos torna sem força moral; que é preciso ter calma para poder agradar e ser simpatizado.

Recomendamos, principalmente, a toda criança, que queira ser feliz, a doçura, a obediência e a confiança nas pessoas que lhe agradam. (...)24

O autor reforça tanto a importância da higiene e cuidado com o corpo como a obediência, a amabilidade, a discrição, a gentileza e o respeito. Todas essas características fariam da criança um indivíduo feliz e educado, bem quisto por todos os adultos que o cercassem. O texto foi finalizado com a afirmação de que a felicidade também era responsabilidade da própria criança, desde que essa seguisse todas as prescrições e conselhos listados.

Uma das principais metáforas utilizadas em parte dos textos da época comparava a criança a uma planta que deveria receber cuidados para que forte gerasse bons frutos. Através dos livros, os adultos tentavam falar a linguagem das crianças e lhes ditar as principais normas e padrões de convivência. A leitura se constituiu em um dos principais instrumentos para modelar e disciplinar os pequenos lhes incutindo ideias na tentativa de controlar o pensamento e a imaginação infantil. Logo, se faz necessária uma reflexão sobre os livros que circularam em Salvador no final do século XIX e início do século XX, atentando para o tipo de mensagem que eles transmitiram às crianças soteropolitanas.

Esses livros eram destinados a um público infantil específico. No caso da Bahia é necessário atentar para as questões de classe e raça, pois não eram todas as crianças que frequentavam a escola. Além disso, a grande maioria não tinha acesso a livro em suas casas. Portanto, entendo

24

(40)

que as crianças leitoras da Bahia eram, em sua maioria, brancas e da elite. O que não quer dizer que crianças negras e pobres estivessem fora do discurso dos intelectuais que escreveram para a infância. Existia sim uma preocupação do que seria feito desses indivíduos na nascente República, sendo comum a instituição de órgãos filantrópicos para o acolhimento e orientação de crianças mais pobres e desvalidas.

Desde o século XIX havia uma apreensão em relação aos meninos e meninas que viviam nas ruas, em decorrência da orfandade, do abandono dos pais ou da própria opção da criança em fugir de suas casas. Segundo o historiador Walter Fraga, essas crianças, chamadas muitas vezes de “vadios”, representavam uma ameaça à elite baiana, pois dominavam o espaço da rua atravancando o processo de higienização da cidade. Para os intelectuais e reformadores políticos havia o perigo da mendicância, dos vícios e crimes, logo, “a infância vagabunda, segundo esses homens, precisava ser moralizada, educada e isolada sob o risco de comprometer todo o futuro da sociedade”.25

Uma das alternativas destinada aos meninos pobres era o aprendizado de alguma profissão nos Liceus, instituições criadas em todo país em meados do século XIX voltada para incentivar a prática de trabalhos de manufatura por pessoas que não tinham condições de acesso ao mundo acadêmico das Faculdades de Medicina e Direito. Criado em 1872, o Liceu de Artes e Ofícios da Bahia tinha como objetivo a formação humanística e profissional de trabalhadores. Com o advento do período republicano e a oficialização do ensino profissional no Brasil26, os programas de ensino do Liceu tiveram que ser mais práticos e menos teóricos, havendo um investimento maior nas oficinas de marcenaria, tipografia e encadernação, escultura e entalhe.27

25

FRAGA FILHO, WALTER. Mendigos e vadios na Bahia do século XIX. 1994. 232 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1994. p.147.

26

DECRETO DE CRIAÇÃO DAS ESCOLAS DE APRENDIZES ARTÍFICES. (Decreto 7.566 de 23 de setembro de 1909). Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1900-1909/decreto-7566-23-setembro-1909-525411-publicacaooriginal-1-pe.html> Acesso em: 05/04/2017. 27

LEAL, Maria das Graças de A. A arte de ter um ofício: Liceu de Artes e Ofícios da Bahia (1872-1972). 1995. 320 f. Dissertação (Mestrado em História

(41)

A infância pobre soteropolitana também foi acolhida pelo

Instituto de Proteção e Assistência à Infância da Bahia, fundado em

1903, já mencionado anteriormente. A instituição ofereceu vários serviços, dentre eles, a criação de um dispensário infantil para o “atendimento médico, cirúrgico, odontológico e ortopédico, vacinação e otorrinolaringologia de crianças entre 0 e 15 anos e gestantes”28. O dispensário, além de beneficiar a população mais carente, também serviu como espaço para o desenvolvimento da pediatria na Bahia, sendo que vários catedráticos da Faculdade de Medicina da Bahia prestaram atendimento e cursos na clínica.

Em um dos números da revista O Petiz, órgão que faz parte do projeto de divulgação e manutenção do Instituto, foi publicada uma foto das crianças atendidas no ano de 1909.

Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1995. p.174.

28

RIBEIRO, Lidiane Monteiro. Filantropia e assistência à saúde da infância na Bahia: A Liga baiana contra a mortalidade infantil, 1923-1935. 2011. 138 f. Dissertação. (Mestrado em História das Ciências e da saúde) – Fundação Oswaldo Cruz, Casa de Oswaldo Cruz, 2011. p. 29.

(42)

Figura 2 – Dispensário Infantil – Grupo de crianças presentes à consulta em 18 de setembro de 1909

(43)

Na imagem 2 figuram diversas meninas e meninos; entre elas, crianças negras, provavelmente filhos das camadas média e pobre da Salvador republicana. As vestimentas e os brinquedos, de certa forma, atestariam o bom acolhimento e cuidado que as crianças dispunham no dispensário. Contudo, a fotografia publicada no periódico era também uma prestação de contas para a sociedade beneficente baiana que colaborava com tais obras.

Mas, sobretudo, a imagem representa a diversidade de classe e raça das infâncias baianas, que não poderia deixar de ser problematizada neste estudo. Ao analisar os livros para crianças na Bahia, pretendo refletir sobre as representações da infância veiculadas nestas obras, bem como os discursos que buscavam instruir um determinado público alvo. Portanto, é necessário informar que a maioria dos escritores baianos não escreveu para as crianças pobres e negras, embora elas apareçam, de vez em quando, em verso e prosa para falar do cultivo da humildade, do trabalho e da caridade.

2.2 LEITURAS RECREATIVAS E MORALIZANTES: A PRESENÇA DOS LIVROS PARA CRIANÇAS EM SALVADOR

O estudo sobre uma literatura para crianças se ancora na perspectiva de que a literatura infantil sempre esteve imbuída de promover a formação do caráter de meninos e meninas. Durante muito tempo os livros para crianças eram elaborados no intuito de entreter e educar ao mesmo tempo. Os primeiros livros voltados para esse público pareciam encarar a criança-leitora como um “sujeito passivo” que deveria absorver exatamente o que estava prescrito pelos autores. Tal fato revela a importância que o livro ganhou na formação da infância brasileira e, como tenho demonstrado, para parte da infância soteropolitana. O caráter eminentemente pedagógico desse tipo de produção relacionava-se com o processo de reorganização das escolas primárias, um dos principais lugares, para grande parte das crianças, de acesso ao livro.

Sendo assim, é preciso refletir sobre as crianças-leitoras e suas identidades. Historiadores como Roger Chartier definem a leitura como uma prática cultural que envolve as subjetividades dos leitores e sua relação com o livro na produção de novos sentidos. A leitura não seria

(44)

uma ação estática e imutável, dependeria do contexto, dos tipos de leitores, do processo de editoração e circulação dos livros, em suma, de uma rede complexa de relações até chegar às mãos dos meninos e meninas, que poderiam ler silenciosamente em seus quartos ou até mesmo em grupo com um adulto lendo em voz alta. Assim, as maneiras e usos do livro e a sua materialidade modificam o texto em sua recepção.

Pensar na recepção do texto é também refletir sobre a produção de práticas e a legitimação de algumas representações que circulavam no período. Pela escassez de fontes para o entendimento do processo de apropriação dos textos me concentrei no livro, procurando perceber fatores como a intencionalidade do autor e as prescrições por ele deixadas para que os pequenos lessem a obra de forma “correta” ou mais indicada. Além da linguagem e dos textos curtos e dos poemas cheios de rima, houve também um crescente investimento editorial para tornar o livro mais atrativo para as crianças.

Todo o processo de produção dos livros envolve a ideia de “leitura implícita” utilizada por Roger Chartier. Para este historiador, a produção de sentidos está relacionada não somente à elaboração do texto pelo autor, mas também todas as decisões e modificações que transformam o manuscrito em um livro impresso e comercial. Segundo Chartier, é preciso ter consciência da relação entre o processo de produção do texto de um lado, e de outro o processo de produção dos livros, assim ao lado das instruções que o autor dirige ao leitor, as formas tipográficas que pertencem ao plano da impressão e edição também sugerem outras leituras do mesmo texto.29

É importante reforçar as especificidades dos livros voltados para as crianças. Naquele momento ainda não havia uma definição do que era literatura infantil. Considerada um gênero literário menor, não atraiu tanto a atenção de muitos escritores. No período investigado poucos foram os intelectuais que se dedicaram somente à escrita de livros para crianças. As vantagens comerciais de algumas dessas obras estavam relacionadas ao fato de que muitas delas foram indicadas para uso didático, sendo compradas e distribuídas pelos governos estaduais.

29

CHARTIER, Roger. Do livro à leitura. In: _____________. (Org.). Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. p. 96-97.

(45)

Outra especificidade desse gênero literário foi produzir um tipo ideal de infância. A criança, considerada um ser em formação, deveria ser modelada por diversas instituições até se tornar um adulto consciente do seu papel naquela sociedade. Mesmo os livros que não foram utilizados nas escolas deveriam conter uma lição moral da qual a criança retirasse algo proveitoso.

Para traçar uma análise “possível” da história do livro e da leitura para crianças na Salvador Republicana mapeei parte do processo de produção e circulação das obras voltadas para a infância entre o fim do século XIX e inicio do século XX. Posteriormente, busquei compreender as estratégias editoriais que envolveram a produção e publicação destes textos para que fossem aceitos por pais e filhos.

Elaborei uma tabela a partir de propagandas de venda de livros, presentes em diversos periódicos. A maioria dos anúncios da literatura em questão pertenciam à livraria e editora Catilina30, uma das mais importantes e mais antigas do período. As listas de obras para crianças oferecidas por essa livraria foram encontradas nos seguintes periódicos:

O Petiz, Revista do Ensino primário e Diário da Bahia, um dos

principais jornais da época. Além dos anúncios em jornais e revistas, também localizai o primeiro catálogo da Catilina31. Através do catálogo, identifiquei certas táticas editorias para a venda dos livros. Analiso, ainda, os possíveis públicos que determinadas obras poderiam alcançar. Esse documento não somente traz a descrição física de cada obra, como também o resumo do conteúdo e sua utilidade na formação das crianças.

As diferenças de gênero, faixa etária e condição sócio-econômica do público leitor a que os editores destinavam seus livros estavam, geralmente, presentes de forma “implícita” (no caso das opções de encadernação com variação de preços) ou “explícita” (no caso dos prefácios e

30

A Catilina foi fundada em 1835 por Romualdo dos Santos. Segundo alguns pesquisadores, a mesma sobreviveu até meados da década de 50 do século XX. Ver: HALLEWELL, Laurence. O Livro no Brasil, sua História. São Paulo: EDUSP, 1985. (Não foram encontrados outros documentos referentes à Livraria Catilina).

31

Catálogo n. 1 da Catilina, 1918. (Foi encontrado um único catálogo na Fundação Clemente Mariani em Salvador-BA).

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