• Nenhum resultado encontrado

Silenciosa violência em Não falei, de Beatriz Bracher

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Silenciosa violência em Não falei, de Beatriz Bracher"

Copied!
21
0
0

Texto

(1)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 75

Silenciosa violência em

Não falei,

de Beatriz Bracher

Gabriella Kelmer de Menezes Silva39

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPgEL/UFRN) Derivaldo dos Santos40 Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPgEL/UFRN) e PROFLETRAS/NATAL

Resumo

A violência é uma marca permanente do Estado brasileiro, mas o registro e a discussão pública de suas consequências não são práticas comuns à história do País. A literatura, como via que compõe a memória coletiva, é capaz de representar o mundo em uma reação contra apagamentos históricos. Nesse sentido, o romance Não falei (2017), da autora Beatriz Bracher, apresenta o ponto de vista de um linguista aposentado sobre a ditadura civil-militar, período em que foi brutalmente torturado. Muitos anos depois, ele rememora os acontecimentos e reflete sobre sua hesitação em elaborar os traumas através da linguagem. Considerando tal configuração narrativa, investigamos o romance a partir de dois aportes teóricos: a violência, conforme a sistematização de Ginzburg (2012, 2017), e o silêncio, como produto dessa violência, de acordo com o pensamento teórico de Holanda (1992) e Barthes (2003). Concluímos que a violência modificou radicalmente a relação do narrador com a linguagem, causando, nele, uma hesitação que tende sempre ao silêncio. Para a análise, utilizamos o procedimento dialético de Candido (2014), considerando a produção literária como um código linguístico capaz de trazer, à sua maneira, um conteúdo de natureza social e política.

Palavras-chave

Silêncio. Beatriz Bracher. Violência. Romance contemporâneo.

39 Mestranda em Estudos da Linguagem, na área de Literatura Comparada, pelo Programa de Pós-Graduação

em Estudos da Linguagem (PPGEL), vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

40 Professor associado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professor e orientador dos cursos de

Mestrado e Doutorado em Literatura Comparada no Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL/UFRN) e no PROFLETRAS/NATAL.

(2)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 76

1 Introdução

A literatura traz, à sua maneira, um modo inquietante da palavra em permanente interação com outros códigos de linguagem. Como tal, acompanha o andamento do mundo e da humanidade, aos quais, entretanto, não é equivalente, pois modifica “a ordem do mundo para torná-la mais expressiva” (CANDIDO, 2014, p. 22). Pensada assim, a narrativa literária é tida como atividade interpretativa da conjuntura social e como espaço de insubordinação ao real (HOLANDA, 2010). Como produto cultural historicamente situado, a literatura tem o potencial de explorar perspectivas distintas e contrapor os discursos oficiais quanto a determinados valores cristalizados. Por essas vias, consideramos que as obras literárias são capazes de trazer à expressão de seus códigos, no embate tenso entre a memória e a história, eventos-limite (SELIGMANN-SILVA, 2003), dentre os quais destacamos a violência, as catástrofes, os genocídios e as formas de silenciamento. Considerando essa concepção, este artigo visa estabelecer, no romance Não falei, da escritora Beatriz Bracher (2017), encadeamentos entre a violência, como experiência não superada, e as figurações do silêncio, relacionadas às rejeições de produção linguística presentes ao longo da obra.

Tendo a violência se tornado, em nosso tempo, “horizonte e limite” (CANDIDO, 1993, p. 204), ela abre, no corpo social, feridas não cicatrizadas. Em tal âmbito, a composição literária oferece um necessário espaço de emersão dos traumas41 que o País foi incapaz de

endereçar. A literatura oferece, portanto, uma alternativa aos discursos hegemônicos. Na esteira desse pensamento, o narrador-protagonista da obra em estudo, Gustavo, como sobrevivente da ditadura civil-militar, período em que foi preso e torturado, estabelece uma narração que, como a de tantas outras vítimas de contextos opressivos, pode ser compreendida como fundamental para a existência de um confronto “com as ruínas da violência histórica” (GINZBURG, 2012b, p. 203).

Na narração sem divisão de capítulos, o narrador materializa uma perspectiva omitida historicamente, ao interromper um silêncio de trinta e quatro anos sobre a violência

41Para Ginzburg (2017, p. 155), “O trauma é frequentemente definido como uma situação de excesso, em que

o sujeito não está preparado para assimilação de um estímulo externo. Dependendo do tipo de trauma e do seu grau de intensidade, uma vítima de estímulo traumático pode sofrer sequelas ao longo de sua vida. Se por um lado é habitual entender o trauma como episódio individual, por outro, cada vez mais, é possível pensar em uma experiência de trauma coletivo”.

(3)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 77

que sofreu em sua juventude. Sua experiência traumática é fundamental à composição da narrativa, de modo que a representação enfrenta alguns desafios específicos, vinculados à particularidade desse sujeito quanto ao uso da linguagem. Ele inicia o romance nos seguintes termos: “Se fosse possível um pensamento sem palavras ou imagens, inteiro sem tempo ou espaço, [...] eu gostaria de contar uma história” (BRACHER, 2017, p. 7). Ao desejar extrair seu relato do curso histórico e do momento em que vive, o narrador aponta para um desejo de uma elaboração absoluta, isolada das intercorrências da fala, das dificuldades do processo comunicativo e das interpretações dissidentes de possíveis interlocutores, tomando forma como “pensamento de cada um, ou ainda, uma coisa mais que um pensamento, se coisa assim fosse possível existir” (BRACHER, 2017, p. 7). Essa relutância em usar o material verbal demonstra a consciência do protagonista da narrativa quanto às limitações e às deturpações decorrentes do uso da linguagem, em acordo com a profissão de linguista de que se aposenta ainda no começo da obra.

As motivações para a relação específica, tensionada, de Gustavo com a narração verbal podem ser traçadas de volta ao passado, quando, além de ter sido torturado, foi acusado de ter delatado Armando, cunhado e amigo de juventude, morto pelos militares por participar de grupos armados de combate à ditadura. O peso dessa responsabilidade – de poder ter matado Armando com suas palavras – é ressalvado muitas vezes por Gustavo, cujo presente não consegue expurgar as experiências traumáticas do passado. A linguagem, a partir da experiência violenta sofrida, modifica-se definitivamente para o narrador. Das reflexões empreendidas por ele, podem-se observar dois movimentos simultâneos de articulação do romance, entrevistos na hesitação do relato, nas mudanças abruptas de assunto e nas referências cada vez mais presentes à experiência traumática: o perigo do uso da linguagem e sua insuficiência para relatar as experiências vividas. Desse modo, o silêncio, como consequência da violência extrema e como escolha de tantos anos, ganha contornos importantes para a compreensão da obra. Por isso, analisaremos as representações artísticas da violência do período, no contexto da obra, e as ocorrências do silêncio, como desdobramento da experiência do narrador-protagonista.

(4)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 78

O romance de Beatriz Bracher internaliza42, por meio do procedimento memorialístico, uma questão cara à história social e política do Brasil: a ditadura civil-militar, retomada constantemente nas lembranças do passado do narrador. Resultante do golpe de 1964, com o objetivo de “garantir o capital e o continente contra o socialismo” (SCHWARZ, 2009, p. 7), a ditadura durou vinte e um anos, encerrando-se em 1985. As consequências da troca ilegítima e autoritária de governos foram duríssimas: “intervenção e terror nos sindicatos, terror na zona rural, [...] inquérito militar na Universidade, invasão de igrejas, dissolução das organizações estudantis, censura, suspensão de habeas corpus etc.” (SCHWARZ, 2009, p. 7). O autoritarismo do período teve seu ápice com a promulgação do Ato Institucional-5 (AI-5), em 1968, que, dentre outras medidas, determinava o recesso do Congresso Nacional e permitia a retirada, por dez anos, dos direitos políticos de quaisquer cidadãos brasileiros, que poderiam ter demovidos também quaisquer direitos públicos ou privados (BRASIL, 1968). As violações severas cometidas institucionalmente durante o período não são, até hoje, plenamente conhecidas, visto que coube às vítimas da ditadura civil-militar e suas famílias, oficialmente, o silêncio (GAGNEBIN, 2014). As sessões de tortura, as prisões arbitrárias, os assassinatos e os sequestros dos opositores do regime ditatorial nunca foram penalizados, pois as determinações internacionais quanto a crimes contra a humanidade são desconsideradas em nome de uma pretensa reconciliação. Assim, apesar da criação da Comissão de Mortos e Desaparecidos (CEMDP) e da Comissão Nacional da Verdade (CNV), não houve uma reestruturação das práticas estatais de repressão ou uma efetiva discussão, em âmbito nacional, em respeito às vítimas da ditadura.

Sob esse ponto de vista, a experiência que permaneceu obscurecida, no contexto ditatorial civil-militar, brada, no universo narrativo de Não falei, feito uma voz em desabafo. O romance vem a descortinar, em sua constituição fragmentária, acontecimentos testemunhados, como se a trama correspondesse a uma necessidade imperiosa: a de lembrar para contar. Ao narrar eventos passados, o protagonista age no sentido do não apagamento da história vivida, resistindo à política do esquecimento. A narrativa configura-se meio à violência e à repressão, e a sobrevivência ao período autoritário é um dos marcos mais profundos na experiência do narrador. Preso no ano de 1970, quando era diretor de escola

42 A concepção de internalização do elemento social no romance deriva da seguinte citação de Candido (2014):

“[...] o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno”.

(5)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 79

pública, Gustavo pode ser considerado, na classificação da estética da violência de Ginzburg (2012a, p. 31, grifo do autor), como uma “vítima de violência [...] que sofreu uma situação traumática e pode utilizar a linguagem para tentar configurar o que aconteceu consigo”. Dentro dessa categorização, a maneira com que ele tenta articular sua vida no presente é bastante reveladora: ao romper, ficcionalmente, o silêncio das vítimas para o qual aponta Jeanne Marie Gagnebin (2004), o linguista desenvolve um relato não linear, fragmentário, composto de “lembranças e não lembranças” (BRACHER, 2017, p. 143), apesar do desejo expresso de produzir uma narração indivisível. Essa estrutura é a resposta literária, em termos estéticos, aos traumas sofridos pelo narrador, bem como ao retorno intenso à experiência do cárcere.

O procedimento memorialístico estabelece, a partir dos fragmentos restantes do passado, um presente modificado pela jornada através da memória. Para compreender a narração de Gustavo, assumidamente parcial, é preciso notar que “(...) Toda narrativa pode conter, como uma sombra que a constrange, indicadores de que um movimento de recuperação de dados da memória envolve necessariamente cortes que produzem esquecimento” (GINZBURG, 2012c, p. 124). Isso pode resultar, segundo a perspectiva de Paul Ricouer (2007, p. 425), numa “dialética de presença e de ausência no âmago da representação do passado” que se encerra na “falta de confiabilidade da memória”. Nesse sentido, é possível compreender a impossibilidade, notada pelo narrador, de narrar os fatos conforme ocorreram. Para além da coexistência entre lembrança e esquecimento, a leitura

aberta de Walter Benjamin também proporciona um entendimento da obra. Para o autor que

rememora, “um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois” (BENJAMIN, 1987a, p. 37). As ações são, portanto, encerradas na vivência que proporcionam, mas a rememoração tem a capacidade ímpar de modificar a compreensão do passado e do presente. O próprio narrador aponta para isso, ao dizer: “a minha história, que é a da minha família, fica pensa, porque lá no passado alguma coisa mudou. E todo resto, lentamente, terá de ir se refazendo” (BRACHER, 2017, p. 114).

A escolha composicional memorialística da obra desvela lentamente as especificidades do período ditatorial, centro de tantas perdas pessoais e coletivas, sendo a prisão um espaço fundamental para a compreensão da subjetividade do narrador no presente.

(6)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 80

Faz-se evidente a permanência de sua consciência no ambiente gerador do trauma: “Talvez por isso o assunto volte agora com força e me incomode a ponto de não conseguir sair

daquela maldita prisão onde não falei” (BRACHER, 2017, p. 126, grifo nosso).

Percebem-se, no excerto, tanto a frustração do linguista perante sua incapacidade de abandonar o ambiente traumático, evidente pela adjetivação “maldita”, como a força com que o passado se interpõe sobre o presente. Sobre os traumas de guerra, nascidos em situação de violência extrema, Freud (2013, p. 325) afirma: “É como se esses pacientes não tivessem findado com a situação traumática, como se estivessem enfrentando-a como tarefa imediata ainda não executada”. A narração de Gustavo aponta para esse retorno incessante ao momento traumático.

É importante ressalvar, antes de adentrar as especificidades do ambiente carcerário no romance, qual perspectiva de mundo precedia, para o narrador, o encarceramento e a tortura. Em certo ponto, Gustavo afirma, sobre si mesmo e a esposa, Eliana: “Estávamos mobilizados, abrigando gente, escondendo armas, discutindo a revolução que viria” (BRACHER, 2017, p. 108). Pode-se perceber claramente, pelo uso da palavra “revolução”, a posição axiológica tomada pelo professor anteriormente à experiência traumática que teve: apesar de não ter se envolvido diretamente com os movimentos de guerrilha e de enfrentamento à ditadura, o professor era, então, um dos muitos homens que acreditavam em um futuro promissor, tendo participado, ainda que marginalmente, dos grupos de resistência do período. Era um opositor da ditadura civil-militar que acreditava em uma sociedade igualitária, em uma revolução pela esquerda, a ser empreendida pelo emprego da força (ainda que não fosse ele mesmo a empregá-la). Compreender essa visão é fundamental para entender de que modo o trauma modificou a sua posição perante a vida e o futuro.

Gustavo afirma não ter esperado a prisão: “Não enxergava os militares como adversários, mas inimigos, isso fez toda diferença” (BRACHER, 2017, p. 112). O descolamento que depois percebeu existir entre sua vida e a ditadura civil-militar, enquanto regime repressivo, impediu que se preparasse para a arbitrariedade do cárcere durante o período. A prisão, privação de liberdade em que se permite “quantificar exatamente a pena segundo a variável do tempo” (FOUCAULT, 2014, p. 224), assume, no contexto representado no romance em análise, a característica de ser, tanto quanto a tortura, um

(7)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 81

excesso cometido pelo Estado. Sem julgamento, previsão de soltura ou mesmo ideia dos crimes que teria cometido, Gustavo é mantido no ambiente por alguns meses, sem nenhuma informação sobre o que acontecia do lado de fora. Ele afirma, sobre as memórias do período:

Não recordo dos policiais me tirando de casa, nem da chegada na prisão. Imagino que as celas fossem embaixo, pois sei que subia para os interrogatórios. Acho que havia sol, onde ficávamos presos. Lembro do barulho da porta da carceragem abrindo-se, e um frio tomando o estômago, a vontade de vomitar. Lembro que não falei (BRACHER, 2017, p. 143).

Os verbos “recordo” e “lembro”, acompanhados por vezes do advérbio de negação, revelam como muitas memórias do período foram perdidas, seja pela passagem do tempo, seja pelo trauma a que se vinculavam. É possível perceber, no trecho, como memória e esquecimento só podem existir lado a lado, como dois polos da mesma realidade subjetiva, o que retoma a leitura de Paul Ricouer do processo dialético que envolve o procedimento memorialístico. De tudo, Gustavo parece recordar melhor aquilo que foi sensorialmente percebido – não a descrição do espaço ou os companheiros, e sim o sol, o barulho da porta, o enjoo, a caminhada até a sala de tortura. Mesmo essas sensações são incertas, entretanto, e essa inexatidão é percebida em “imagino” e “acho”, especialmente: conjecturas que ele faz a partir da memória que lhe restou, o que coloca em suspensão todo o resto. Outro apontamento a ser extraído da citação é o pânico do narrador quando da abertura das portas do ambiente carcerário. Ao contrário do preso comum, que deseja intensamente a liberdade, a porta, naquela prisão, simbolizava o início próximo dos “interrogatórios”, eufemismo que minimiza as implicações violentas que o termo “tortura” abarca. Talvez haja, nessa escolha, uma tentativa de evitar a invocação das dores físicas que causavam o “frio no estômago”.

Como afirmado pelo narrador, considerando o mundo externo ao discurso literário, a perda da liberdade não era o objetivo do cárcere, o que também o diferencia da prisão como sistema penal ao longo da história (FOUCAULT, 2004). O encarceramento foi, durante a ditadura civil-militar brasileira, instrumento psicológico. Os prisioneiros eram abandonados no ambiente coercitivo depois das sessões de tortura, em estratégia que visava ao alienamento do sujeito quanto aos seus conhecidos e ao enfraquecimento de suas convicções. Nesse sentido, a prisão, apesar de ter marcado profundamente a experiência do narrador e ser mencionada tantas vezes ao longo da obra (são 19 menções, enquanto “tortura”

(8)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 82

aparece apenas 4 vezes), aponta não apenas para si mesma como instrumento punitivo, mas também para a violência sofrida durante o período de encarceramento.

A tortura é, no romance, o epítome da violência. Durante a ditadura, tal política era omitida dos meios oficiais de comunicação, existindo como realidade em especial àqueles que lutavam contra o regime militar, pois, à época, era comum o governo condenar a prática, ignorando “as denúncias que saem dos porões” (GASPARI, 2002, p. 21). Desse modo, o método empregado no Brasil correspondeu à punição clandestina a um tipo de pensamento. O torturado sofria, além das dores físicas, com “as terríveis consequências da tortura em seu principal aspecto: a injustiça” (COELHO, 2014, p. 153). Na narrativa, essa injustiça é mostrada em especial no trecho em que Gustavo, ao evidenciar reflexões passadas sobre sua prisão, tenta entender as causas para seu destino trágico: “E procurava as causas nas entranhas, minhas e de meu amigo, nos meandros de um movimento cuja lógica eu não entendia” (BRACHER, 2017, p. 118), sem considerar “a causa visível e incontestável” (BRACHER, 2017, p. 117), que eram os militares que tinham torturado a ele, Gustavo, e assassinado Armando. A injustiça de ter sido preso é concebida de maneira tão intensa que a causa efetiva para o sofrimento e a morte – os militares – não são suficientes ao narrador, que busca, em si e no amigo, alguma razão maior, reveladora, para o que lhes aconteceu.

Há muitos momentos de reflexão sobre a tortura e seus efeitos, apesar de poucos trechos de discussão mais profunda dos métodos utilizados nas sessões. Apenas uma passagem no romance descreve a violência física sofrida pelo narrador:

Com toda a força do espírito transformar os algozes em animais, não deixar a menor brecha, não conversar sobre Pelé. Coisa impossível, não conheci um que tivesse sido capaz. E então, junto com o medo, a vergonha toma conta de nós. Porque é feio. O prazer de bater, o rosto dos homens, sangue, apanhar, a risada, um teatro, vômito, aquela luz balançando, o cansaço dos homens que batem, o suor deles, a barriga branca que aparece sob a blusa azul amarfanhada, o nariz com cravos, os meus gemidos, seus dentes tortos, o meu teatro, não aguentar mais, o medo de morrer, chorar e tentar não enxergar o que vi, não entender o que via, esquecer. Éramos todos homens, impossível apagar de meus neurônios essa afirmação. Éramos homens (BRACHER, 2017, p. 121).

A descrição do martírio é vívida. Apresenta uma perspectiva específica, a da vítima, que só pode ver, quando seu corpo é repetidamente atingido por diferentes técnicas da mais pura bestialidade, partes de seus torturadores. A memória também é profundamente dilacerada, pois não há marcação de tempo na tortura, tudo acontece em simultâneo. As

(9)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 83

vírgulas, na descrição, são espaços de silêncios, pois intervalam as impressões do narrador e deixam muitos elementos do momento traumático no terreno do não dito. Elas parecem sinalizar a mudança de direção do olhar da vítima da tortura, em flashs desorganizados, que extraem dos acontecimentos apenas algumas impressões momentâneas, talvez resquícios de uma consciência constantemente interrompida pelas agressões, ou ainda um indício da passagem do tempo que separa a consciência que narra e aquela que foi torturada. Os termos utilizados, além de serem perturbadoramente comuns, apontam também para a humanidade dos torturadores, que têm cravos, dentes tortos, paixão pelo Pelé. Os verbos, no período descritivo, estão presentes no infinitivo impessoal (“bater”, “apanhar”, aguentar”, “morrer”, “chorar”, “tentar”, “entender”, “esquecer”), o que pode ser uma estratégia de distanciamento dos fatos narrados. Em um primeiro momento, ao longo do período, tanto os verbos como os substantivos que os intercalam (“sangue”, “a risada”, “um teatro”, “vômito”), poderiam referir-se tanto ao torturado como aos torturadores. Não se sabe precisamente de quem foi a risada, ou o teatro, e essa ideia parece sugerir uma não compreensão dos limites entre um e outros. Depois a descrição se personaliza e aparecem os possessivos: “os meus gemidos”, “seus dentes tortos”. O distanciamento anterior dá lugar a uma consciência presentificada, em que o “eu” e o “eles” é diferenciado pela posição assumida no contexto da tortura. O que resta é a conclusão terrível e incapacitante de serem, torturadores e torturados, igualmente homens.

Homens, e, no entanto, “deixamos isso acontecer, acontecemos esse horror” (BRACHER, 2017, p. 122), Gustavo diz, após citar a obra A trégua, de Primo Levi, publicada em 1963. No trecho, Levi fala sobre a chegada da primeira patrulha soviética a um dos campos de trabalho nazistas. No olhar dos soldados russos, estava presente “a vergonha que os alemães não conheceram, a culpa que o justo experimenta ante a culpa cometida por outrem, e se aflige que persista, que tenha sido introduzida irrevogavelmente no mundo das coisas que existem” (LEVI, 2010, p. 10). A vergonha dos soldados é a de compartilhar a existência com o indizível, o cruel, o não elaborável e ainda serem homens, como aqueles que impingiram o horror absoluto. Compreende-se, desse modo, que, em um primeiro nível, há o constrangimento dos soldados russos e de Gustavo ao terem de vivenciar a violência extrema cometida por outros, com quem compartilham a condição humana.

(10)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 84

Há, porém, um segundo nível de leitura para essa vergonha: “Junto com a dor vinha uma imensa vergonha, eu conhecia aquele prazer” (BRACHER, 2017, p. 101). “Aquele prazer” diz respeito à satisfação dos nazistas perante o assassínio de milhares de judeus e o prazer sentido pelos torturadores da ditadura ao despedaçarem mente e corpo dos torturados. Apesar do caráter impiedoso para com as vítimas que dele sofrem, esse prazer pode ser traçado no gênero humano, inclusive, no narrador, que recorda sua primeira experiência com a violência, quando chamou o irmão de “Mariquinha”. Ele traça uma explicação de que, na infância, “a fraqueza e o feminino misturam-se” (BRACHER, 2017, p. 100), e as meninas são “tentações que rejeitamos com toda a ênfase possível, socando e destroçando, se for o caso, no mais das vezes apenas zombando e dando nome ao crime, mariquinha” (BRACHER, 2017, p. 100). Ao relacionar acontecimentos que mudaram a vida de gerações às pequenezas do cotidiano, às sombras com que os seres humanos lidam em seu íntimo e em pequenos agrupamentos, exemplificando com os “grupos de criança na escola e o inevitável saco de pancadas”, os “mendigos queimados com gasolina nas madrugadas”, os “meus sonhos sádicos” (BRACHER, 2017, p. 101), a obra aponta para uma modificação na visão do narrador em decorrência da violência sofrida. Sobre o torturado, Ginzburg (2017, p. 452) afirma: “[...] a tortura provoca uma ruptura da identidade que, em parte, é definitiva, irreversível”. De idealista revolucionário, o narrador de Não falei torna-se alguém que vê, no ser humano, traços sempre presentes de violência e crueldade para com o outro. Para ele, o ajuntamento das memórias e esquecimentos no processo de rememoração resulta em uma visão desiludida do presente.

Longe do jovem que fora, Gustavo, aos sessenta e quatro anos, mostra-se atento às semelhanças entre si mesmo e o torturador, ora “compatriota, contemporâneo” (BRACHER, 2017, p. 126). Essa perspectiva, consideramos, generaliza a violência. Faz dela não somente um dado material do momento em que acontece, mas também uma tendência humana, realidade incontornável, que a vida cotidiana, no entanto, contorna, ignora e subverte:

Brasil – ame-o ou deixo-o, o último que sair, apague a luz. O homem é morto, lá e cá. Vietnã, Albânia, União Soviética, Moçambique, o livro dos pensamentos de Mao, Guevara morto e mito, Allende ainda não. Mas na vida de ônibus e padaria, na vida das filas e na sala de aula, era a vida merreca de sempre (BRACHER, 2017, p. 144).

(11)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 85

Nas palavras de Gustavo, que invertem o sentido da frase-propaganda da ditadura, colocando em xeque o nacionalismo perante uma pátria que já não é amada e que expulsa os seus cidadãos, o homem morre e é ignorado em sua morte. Foi assim com Armando, de quem ele lembra, no entanto, como “um que nunca morria, saltava de pico em pico, sem vales e sem paz, era ele mesmo o sol nascendo perpetuamente” (BRACHER, 2017, p. 134). Mas Armando morreu, como tantos outros, sem registro. E a vida continuou, o que frustra o narrador, apesar de ele também ter continuado. Desse modo, a violência é normatizada. Esse impasse, de não ver um futuro no mundo em que vive, mas não ter como escapar dele, pode ser a resposta coletiva da obra: um caminho labiríntico, sem saída, em que as violações do passado estão imbricadas no presente, castrando o futuro.

3 Reforço da ausência: as figurações do silêncio

As narrativas que se inserem na estética da violência são caracterizadas por uma “negatividade, em que as limitações e as dificuldades de personagens prevalecem com relação à possibilidade de controlar a própria existência e dominar seu sentido” (GINZBURG, 2012b, p. 200). Sob esse ponto de vista, percebe-se já a negação do título do romance em estudo, Não falei, evidência da necessidade de reafirmação da inocência perante a morte de Armando. O fato de ele desejar uma outra narração, diferente daquela possível, já demonstra como dizer que não falou é insuficiente ao narrador, que não só conhece as próprias limitações como sabe as impossibilidades de projetar na linguagem a redenção que deseja para si mesmo. Holanda (1992, p. 35) afirma que “Cada crise de civilização acusa, simultânea, um requestionamento daquilo que a funda, a linguagem”. Por esse motivo, é possível compreender como, ainda que conheça profundamente o funcionamento da língua, o linguista aposentado mostra-se incapaz de dominar integralmente os sentidos aferidos dela e da narração que efetivamente produz: seu conflito, existente por tantos anos no interior de sua consciência, é com o mundo que o violentou. Essa violência coloca em crise não somente a existência como também a linguagem. O silêncio, nesse contexto, é uma realidade que cerca o romance tanto por ser a implicação do título, no contexto da tortura, como por estar relacionado diretamente à narração tardia de Gustavo. Esse esvaziamento da fala é uma marca da negação sinalizada por Ginzburg (2012b) perante a linguagem. Por esse motivo, é

(12)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 86

importante compreender a quebra do silêncio de tantos anos e a (re)afirmação dos silêncios que se estabeleceram a partir daquele momento central da violência institucional.

Há várias origens diferentes que resultam no desvio de um discurso possível, nunca externado, em direção ao silêncio. Excetuado o vazio absoluto, anterior à constituição de códigos linguísticos para apreensão do mundo (BARTHES, 2003), o silêncio, no âmbito social, corresponde a deixar de dizer, e esse calar-se tem causas subjetivas e situadas. É externamente, seja para um ou outro participante da interação linguística, que o silêncio vive como sentido, assumindo implicações para além do vazio absoluto. É, segundo essa perspectiva, uma representação social, que, como espaço aberto, depende da leitura do interlocutor. O silêncio vive em paradoxo: “só se torna signo quando o fazem falar, quando acompanhado de uma fala explicativa que lhe dá sentido” (BARTHES, 2003, p. 60).

Em Não falei, o silêncio é uma temática que tem recorrência em diferentes esferas da vida de Gustavo, ganhando formas diversas de expressão. Cada uma das figurações do silêncio tem sua particularidade, sua razão de ser. Tal estado de coisas corresponde a um quadro de violência ao redor do qual gravita o silêncio. Especificamente, falaremos sobre três dessas diferentes aparições, sabendo que, nessa escolha, preterimos outras: o silêncio perante os torturadores, o silêncio na comunicação do que foi vivido e, por último, o silêncio como desconfiança. Todas essas instâncias podem ser traçadas de volta para o momento inicial da violência, como demonstraremos.

3.1 O silêncio como resistência

O primeiro silêncio é o que se impõe perante a situação extrema da tortura, quando o narrador-personagem é pressionado a revelar informações sobre o cunhado, Armando. Por um lado, esse silêncio pode ter existido, efetivamente, sendo Gustavo inocente daquilo que o acusam; por outro, pode ter sido afirmado como defesa de si mesmo perante a indesejada entrega do cunhado, hipótese que aqui registramos, apesar da nulidade que gera nesta análise. Em se tratando da primeira hipótese, Gustavo diz, utilizando mais uma vez a negação a que se refere Ginzburg (2012b) referente à estética da violência: “Não denunciei, quase morri na sala em que teria denunciado, mas não falei” (BRACHER, 2017, p. 8). Esse silêncio, sugerido na narração, não é total, mas tópico, ou seja, implica calar-se sobre determinado assunto e preencher o vazio com outra coisa (BARTHES, 2003, p. 53). O

(13)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 87

narrador diz ter calado sobre o que efetivamente sabe sobre Armando, mas ter focado nas informações que considera inofensivas, posto que “não havia sido treinado para a cadeia especial, não fizera parte das organizações” (BRACHER, 2017, p. 77). Teve de estabelecer, por essa razão, dentro do que conhecia, aquilo que poderia ser dito aos militares, atendo-se a meias verdades, pois não poderia simplesmente inventar algo – “não seria capaz de lembrar-me depois e a incoerência da história poderia matar Armando” (BRACHER, 2017, p. 77).

A tortura é uma tentativa de cessar silêncios para fazer emergir informações ainda encobertas. A destruição física gradativa empreendida nesses momentos visa à exaustão e ao sofrimento, causando, assim, a não resistência, conforme já mencionamos. Gustavo afirma ter precisado “adivinhar debaixo de pancada a linguagem, os códigos e os procedimentos” (BRACHER, 2017, p. 78). Mesmo nesse contexto, ele afirma ter mantido qualquer informação importante sobre Armando longe dos ouvidos dos militares, que, percebendo essa reticência, demoraram-se com ele. Um dos colegas do revolucionário assassinado pelos militares, Francisco Augusto, diz:

Você tinha uma história convincente para contar, você não milita, nem sabe do que está se passando, não sabe de nada desse negócio. Você podia dizer o que quisesse do Armando, ele não tinha como cair por suas mãos. Você não tinha o que abrir.

Francisco Augusto – lembrança – 1970 (BRACHER, 2017, p. 125)

“O problema é que eu não sabia disso” (BRACHER, 2017, p. 125), Gustavo replica. Por não conhecer os códigos, teve de silenciar sobre tudo que considerava potencialmente perigoso ao cunhado, à esposa, aos amigos. “Não sabia nada, por isso não podia falar nada” (BRACHER, 2017, p. 110), ele afirma, apesar de, naquele contexto, ser imperativo falar. Por isso, não havia silêncio absoluto: “falar para não morrer, falar o que quer que fosse” (BRACHER, 2017, p. 78). Em relação a esse primeiro silêncio, a violência é justamente o que lhe preenche de sentido: é por estar naquela prisão, perante torturadores, que a não verbalização pode ser compreendida, na hipótese de ter sido um silêncio existente, como “postura de resistência, configurada como uma recusa a responder, um silêncio que resulta de esforço” (GINZBURG, 2017, p. 434). Um tal silêncio seria uma reserva de força (HOLANDA, 1992), ou seja, uma tentativa de, perante o inimigo, resguardar a si ou ao outro – que é o caso de Gustavo, ao tentar salvar Armando da perseguição. Francisco Augusto, médico que coloca os ossos do narrador no lugar depois da tortura, diz: “Tem um lado diabólico na resistência. Sobre-humano. Não é humano resistir. Quase um prazer. Esse lado

(14)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 88

heroico. Você entrou numa dimensão alucinada, louca, do heroísmo na resistência à tortura” (BRACHER, 2017, p. 125). O romance dá a ver, portanto, uma resposta silenciosa, falando ao revés da fala convencional. Estabelece-se, assim, no espaço do não dito como arma de combate ou como signo de resistência à ordem repressora e à violência dela advinda. 3.2 O silêncio como alternativa perante a insuficiência da linguagem

O segundo silêncio diz respeito à necessidade de se isentar, na narrativa, das limitações da linguagem. Ao se aposentar e começar a lidar frontalmente com o passado e com o trauma que escanteou durante tantos anos, o narrador-personagem percebe uma certa insuficiência da linguagem para dizer aquilo que deseja. Esse silêncio de que falamos tem uma motivação: a incompletude da linguagem na transmissão do vivido. Holanda diz, sobre isso, que a linguagem é “abstração, enquanto não manifesta o real, apenas tenta significá-lo” (HOLANDA, 1992, p. 77-78). Toda linguagem é, assim, em algum nível, uma projeção que parte de uma perspectiva de mundo e de um interesse particular. Como linguista, Gustavo tem consciência da distância entre aquilo que ele diz e os fatos, motivo por que gostaria de ter podido realizar uma narração que ocorresse para além da linguagem e de sua obliquidade e inexatidão.

Na descrição da tortura, já analisada sob a ótica da violência, há a interrupção constante da narração, na forma de substantivos (com os respectivos complemento nominal e adjunto adnominal) e verbos interrompidos por vírgulas. “O prazer de bater, o rosto dos homens, sangue, apanhar, a risada [...]” (BRACHER, 2017, p. 121). Falamos, anteriormente, em movimentação entrecortada do olhar. Seja pela consciência, seja pela inabilidade de tratar o acontecido como o fazia nas aulas do cursinho, quando descrevia “com precisão o que enxergava” (BRACHER, 2017, p. 76), Gustavo silencia sobre os detalhes do acontecimento. Para narrá-los, singulariza as expressões, elimina as sequências temporais, evita – e talvez nem mesmo consiga – dizer passo a passo o que aconteceu com ele naquelas circunstâncias. Em um parágrafo, resume toda a experiência, silenciando sobre aquilo que não pode ser enunciado.

O romance analisado, nesse sentido, elabora internamente uma circunstância em que o trauma é grande demais para a enunciação direta, seca, irrestrita. Seligmann-Silva (2003, p. 46) menciona essa realidade do sobrevivente: a necessidade de narrar em

(15)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 89

contraposição “à insuficiência da linguagem diante dos fatos” e à “percepção do caráter inimaginável dos mesmos e de sua conseqüente inverossimilhança”. É essa ausência que vemos em um dos trechos da obra em que Gustavo insere a narração de outro sujeito, que poderia ter sido ele:

Aí nós conversamos com os advogados e eles disseram, “olha, vocês têm que mostrar que essa prisão é conhecida, é pública, e talvez eles relaxem”, alguma coisa assim. Bem, fizemos uma reunião, “quem é que tem de solteiro aí”, eu e mais dois, “tem que ir lá e falar com eles”. Fomos lá, na porta do DOI-CODI, “queremos falar com o nosso diretor que está aí”, “por quê?”, “não, porque ele tem que assinar uns cheques, que amanhã é dia de pagamento”, umas bobagens assim. E eu me lembro que era um dia de calor, muito quente, e quem nos atendeu era assim um gordinho, suava, suava, suava e aí a gente começou a conversar com ele. Ele era de Santos, ele falou do Pelé, não sei o quê, e acabou resolvendo. Claro, não foi por isso que ele foi solto, mas. Eu fico pensando na loucura que foi isso, você vai na boca do. Meu Deus. Meu Deus.

outro como eu – conversa recente (BRACHER, 2017, p. 129)

Há duas orações interrompidas no trecho. Segundo Ginzburg (2012a), a elipse é uma das figuras de linguagem mais comuns em textos situados em contextos de violência. Ela é um componente estrutural do romance, uma estratégia discursiva que comporta o silêncio e expulsa a fala ordinária, estando situada no espaço intervalar entre o dito e o não-dito. A interrupção abrupta de períodos que, de outra maneira, poderiam ter sido construídos sem embaraços do falante – uma oração coordenada adversativa, comum ao português cotidiano, e uma oração simples, para a qual só faltava o substantivo do sintagma nominal “na boca do...” – sinalizam o pavor absoluto perante aquela situação, seu descolamento quanto à realidade e seu caráter averbal. O preenchimento dos silêncios aí encontrados seria sua banalização. A autora interna da obra opta pelo “[...] persistente apelo ao silêncio – pausa que potencia o dizer mais” (HOLANDA, 1992, p. 60). A manutenção da ausência é, dessa maneira, uma forma de permitir ao interlocutor apreender o caráter incompreensível, irredutível da experiência. Lateralmente, é interessante pensar que esse diretor poderia ser o próprio Gustavo – a sede do DOI-CODI era em São Paulo e ele, também, comandava uma escola de ensino fundamental à época. Em “Experiência e pobreza”, Benjamin (1987b) observa que os combatentes, depois da I Guerra Mundial, voltam silenciosos, com menos experiências a compartilharem. A experiência violenta rouba a palavra e a torna insuficiente. Os homens, expostos ao abjeto, à morte, à destituição do corpo e da dignidade, não conseguem mais articular linguagem da mesma forma. É isso o que vemos em Gustavo: uma

(16)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 90

dissociação definitiva entre ele e aquilo que ele diz. Nesse sentido, é interessante perceber que, com a aposentadoria, o narrador expressa o desejo de se mudar de São Paulo e, em São Carlos, no interior do estado, desenvolver “o estudo das dificuldades na apreensão da linguagem” (BRACHER, 2017, p. 10).

3.3 O silêncio como desconfiança perante a linguagem

O terceiro silêncio de que nos ocupamos é o relativo à desconfiança. Esse descrédito é direcionado a dois elementos do processo comunicativo: a própria língua, que carrega distorções muitas vezes indesejadas, e o interlocutor, alguém que interage e replica de maneira arbitrária, podendo julgar a seu bel-prazer discursos e vida alheios. Quanto ao primeiro, Gustavo sabia – sua profissão de linguista e as repetidas análises linguísticas na obra reforçam esse entendimento – que há, na palavra, “uma história sem andamento, seus vícios e desvícios resultantes de batalhas antigas, hoje já sem sentido, mas que a linguagem continua a carregar nos nomes que somos obrigados a utilizar se queremos de fato incluir nosso pensamento na cadeia comum” (BRACHER, 2017, p. 77). A palavra, portanto, é residual, carrega necessariamente o passado e as ideologias da sociedade. Durante a ditadura civil-militar, “nenhuma palavra escrita ou falada carregava mais seu sentido convencional” (BRACHER, 2017, p. 127). Essa realidade ficou inscrita na linguagem, assim como o trauma individual – mas, de certo modo, também coletivo – da tortura. Gustavo fala em “horror da palavra comum” (BRACHER, 2017, p. 88) por ter de dividir o mesmo código que seus algozes. Depreende-se, dessa forma, sua relutância ao ter de usar a mesma língua que expressou amenidades ao torturá-lo.

No que diz respeito ao segundo ponto, o do interlocutor, é possível perceber, na interação com outras personagens, como o narrador percebe no olhar do outro uma acusação: “Luiza diz que ela [Eliana] morreu de pneumonia sem saber que eu havia falado o que não falei” (BRACHER, 2017, p. 8). Além da implicação de que a esposa de Gustavo, Eliana, morrera acreditando ter sido o marido responsável pela morte de Armando, o trecho também revela a presença de Luiza, ex-namorada do militante, como a primeira pessoa que acusa Gustavo:

Luiza aconselhou-me resistência revolucionária, hesitou, sua voz metálica ganhou a eletricidade ruim dos choques militares, ainda pior, e meu ouvido direito ensurdeceu definitivamente, apesar de Armando você continua um dos nossos, nem

(17)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 91 todos resistem, mesmo os mais fortes, Eliana morreu sem saber (BRACHER, 2017,

p. 8-9).

No excerto, fica evidente a maneira com que a possível acusação transfere o professor para a prisão e relembra-o vivamente da tortura, causando, inclusive, seu ensurdecimento. Luiza, cuja voz relembrava-o dos choques no contexto da prisão, não foi a única a supostamente acusar Gustavo, pois a mãe de Armando, D. Esther, “suicidou-se, não sem antes fazer-nos uma última visita, abraçar a neta Lígia, cochichar-lhe na orelhinha um mantra de despedida e olhar-me com decepção, Armando confiava em você mais do que em mim mesma” (BRACHER, 2017, p. 9). Essas acusações pesam em Gustavo. Ele não elabora defesa própria, silenciando no encalço de falas como essas, pois a negação da traição “implicaria que ela poderia ter acontecido e isso era inconcebível para mim, um ferro em brasa marcando as ancas de um boi, a dor física agravada pelo inesperado” (BRACHER, 2017, p. 71). Ele conhece a capacidade fundante da linguagem, de exteriorizar e criar uma realidade nova, de modo que a defesa, em face de acusações não efetivamente verbalizadas, poderia gerar ela mesma novas desconfianças. Esse silêncio, portanto, é relacionável com o começo da obra, quando o narrador deseja poder contar sua história de maneira “sem origem aos olhos de todos” (BRACHER, 2017, p. 7). A palavra sem origem, virginal, ainda não está manchada por nenhuma ideologia e nenhuma violência; a apreensão imediata dos interlocutores daquilo que se deseja contar, de uma maneira que seja “mais do que um pensamento” (BRACHER, 2017, p. 7), implica o esvaziamento das intercorrências verbais, em que residem as dúvidas, as incertezas e as desconfianças com relação ao outro.

Conclusão

Neste artigo, buscamos demonstrar o imbricamento das temáticas da violência e do silêncio em Não falei. Um e outro, no contexto literariamente representado, implicam uma visão de mundo, no presente do narrador, cética e desesperançada. A narração, nesse sentido, faz cessar um silêncio de anos, evidenciando, pela primeira vez, a violência empreendida pelos militares contra o narrador-protagonista. Ao longo da obra, em que as consequências do período ditatorial vão sendo evidenciadas por menções cada vez mais diretas, é possível perceber como a experiência devastadora da tortura moldou a visão de mundo do homem

(18)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 92

que, na velhice, retorna ao passado. Desse modo, compreende-se a violência, física e circunscrita a determinado contexto, como um dos elementos mais fundamentais da experiência pessoal do narrador, que não consegue se ver livre dos traumas referentes à prisão, à tortura e, mais integralmente, à própria humanidade e sua capacidade de destruição. Analisamos, na produção literária, como a violência está fortemente vinculada ao silêncio. Sendo geradora de diversas situações em que o narrador vê-se inserido em escolhas quanto a produzir linguagem ou silenciar, a tortura dá origem a figurações do silêncio, dentre as quais destacamos o silêncio como resistência, o silêncio como estratégia perante a insuficiência da linguagem e o silêncio como desconfiança da linguagem. No primeiro deles, observamos, segundo a linha argumentativa expressa pelo narrador na defesa que faz de si mesmo, como não entregar informações sobre o cunhado Armando significou, no contexto da tortura, falar sobre outra coisa, sendo, assim, um silêncio parcial. No segundo, exploramos a perspectiva de ser a linguagem incapaz de alcançar os extremos da experiência traumática vivida por Gustavo. No terceiro, abordamos a maneira com que as acusações e a violência sofrida foram elementos fundamentais à posterior hesitação do linguista em produzir linguagem.

A obra, por todos os elementos analisados ao longo deste trabalho, é uma criação que emprega os meios artísticos na ficcionalização de um momento profundamente traumático na vida brasileira. No romance, é possível perceber o quão determinante a experiência violenta foi na reestruturação da vida do narrador, depois da ditadura, e como suas relações com os demais homens, com o mundo e com sua própria capacidade de linguagem foram profundamente afetadas na esteira das catástrofes, pessoais e coletivas, que o acometeram. Quanto a sua incapacidade de produzir linguagem, é possível identificar, no narrador, uma desconfiança profunda que sugere a produção de silêncios mesmo quando contando sua história. Considerando a perspectiva de ser o romance uma alternativa aos apagamentos sistemáticos cometidos pelo Estado brasileiro em face das violações aos direitos humanos do período ditatorial, é preciso discordar de Gustavo, ao menos por ora, quando ele sugere que “talvez não seja possível um retorno coletivo ao que já aconteceu, apenas individual” (BRACHER, 2017, p. 115). Não falei, como elaboração estética, representa uma geração dilacerada pelo contexto histórico autoritário, proporcionando uma discussão coletiva que possibilita a reflexão, em âmbito social, sobre a humanidade e sua

(19)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 93

desesperadora necessidade de dominação e violência, as quais precisam não apenas ser explicitamente endereçadas, como também taxativamente combatidas.

Referências

BARTHES, Roland. O neutro: anotações de aulas e seminários ministrados no Collège de France, 1977-1978. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Brasília: Editora Brasiliense, 1987a, Obras Escolhidas, v. 1, p. 36-49.

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987b, p. 114-119. (Obras escolhidas, v. 1.)

BRACHER, Beatriz. Não falei. São Paulo: Editora 34, 2017.

BRASIL. Ato institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. Brasília, DF: Presidência da República, 1968. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-05-68.htm. Acesso em: 2 jul. 2019.

CANDIDO, Antonio. Censura-violência. In: CANDIDO, Antonio. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 204-207.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014. COELHO, Myrna. Tortura e suplício, ditadura e violência. Lutas Sociais, São Paulo, vol.18, n.32, p.148-162, jan./jun. 2014.

FREUD, Sigmund. Conferência XVIII: fixação em traumas: o inconsciente. In: FREUD, Sigmund. Conferências introdutórias sobre psicanálise (parte III). Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 16)

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin. São Paulo: Editora 34, 2014.

GINZBURG, Jaime. Literatura, violência e melancolia. Campinas, SP: Autores Associados, 2012a.

(20)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 94

GINZBURG, Jaime. O narrador na literatura brasileira contemporânea. Tintas. Quaderni di letterature iberiche e iberoamericane, v. 2, pp. 199-221, 2012b.

GINZBURG, Jaime. A interpretação do rastro em Walter Benjamin. In: GINZBURG, Jaime; SEDLMAYER, Sabrina (org.). Walter Benjamin. Rastro, aura e história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012c, p. 107-132.

GINZBURG, Jaime. Crítica em tempos de violência. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2017.

HOLANDA, Lourival. Sob o signo do silêncio. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992.

LEVI, Primo. A trégua. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Universidade da Unicamp, 2007.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão a literatura do trauma. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória, literatura. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003, p. 45-58.

SCHWARZ, Roberto. Cultura e política, 1964-1969. In: SCHWARZ, Roberto. Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2009, p. 7-58.

(21)

Revista Entrelaces

• V. 9 • Nº 21 • Ago.- Out. (2020) • ISSN 2596-2817

Página | 95

SILENT VIOLENCE IN NÃO FALEI, BY BEATRIZ BRACHER

Abstract

Violence is a trait of the Brazilian state, but the registry and the public discussion of its consequences are not common practices in the history of the country. Literature, as a mean that influences the collective memory, can represent violence as a reaction to the erasure of historical events. On that perspective, Não falei, novel by Beatriz Bracher, introduces a retired linguistic professor that faces his past during the Brazilian military dictatorship, when he was brutally tortured. Many years later, remembering the events of that time, he is reticent in his linguistic elaboration of his traumas. Considering such prerogative, we study the novel considering two analytical categories: violence, based on Ginzburg (2012, 2017), and silence, product of that violence, according to Holanda (1992) and Barthes (2003). For the analysis, we were anchored on the dialectical procedure of Antonio Candido (2014), considering the literary narrative as a linguistic code capable of shedding light to a content of both social and political nature. We concluded that the violence experienced by the narrator profoundly transformed his relation with language, causing a hesitation that tips repeatedly towards silence.

Keywords

Silence. Beatriz Bracher. Violence. Contemporary novel.

_____________________ Recebido em: 04/11/2019 Aprovado em: 08/09/2020

Referências

Documentos relacionados

Nessa situação temos claramente a relação de tecnovívio apresentado por Dubatti (2012) operando, visto que nessa experiência ambos os atores tra- çam um diálogo que não se dá

Deve-se acessar no CAPG, Coordenadorias > Processo de Inscrição > “Selecionar Área/Linha para Inscrição” e indicar as áreas de concentração e linhas de pesquisa nas

6 Consideraremos que a narrativa de Lewis Carroll oscila ficcionalmente entre o maravilhoso e o fantástico, chegando mesmo a sugerir-se com aspectos do estranho,

2. Assim, e competindo aos Serviços de Fiscalização no âmbito de análise interna ou externa o controlo da matéria colectável, determinada com base em declaração

O desenvolvimento das interações entre os próprios alunos e entre estes e as professoras, juntamente com o reconhecimento da singularidade dos conhecimentos

A prova do ENADE/2011, aplicada aos estudantes da Área de Tecnologia em Redes de Computadores, com duração total de 4 horas, apresentou questões discursivas e de múltipla

O presente estudo objetivou testar a influência do guano na diversidade e abundância de invertebrados na caverna Toca da Raposa, município de Simão Dias,

SENSOR DE