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Campesinato e política na Bolívia contemporânea

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Academic year: 2021

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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Yan Caramel Zehuri

Campesinato e política na Bolívia contemporânea

Campinas 2015

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Campesinato e política na Bolívia contemporânea

Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como requisito para otenção do título de mestre em Ciência Política.

Orientadora: Profa. Dra. Andréia Galvão

Campinas

2015

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A ideia de fazer agradecimentos me perturbou mesmo antes de terminar o texto, tanto que pensei em fazê-los antes de terminar, interrompendo o cansativo trabalho. Agora, que estou resolvendo os detalhes burocráticos finais e que a vida não está mais condicionada pela atividade de pesquisa como há meses atrás pensei em não fazê-los. Enfim agradeço aos meus pais que sempre me apoiaram e me deixaram ser eu mesmo, apesar de nem sempre entender meus caminhos; à minha orientadora, Andréia Galvão, sempre acessível e disposta a dialogar sobre minhas conclusões de modo sério, rigoroso e respeituoso; não posso esquecer dos camarada Ludwin e Iveth, como todos da comunidade Inti Phajsi, na Bolívia, pela amizade e hospedagem em diversos momentos (inclusive no período da pesquisa de campo); e também a vários camaradas que influenciaram bastante no resultado deste trabalho, já que foi atingido por um intenso processo de avaliação das concepções que sustentamos em nossas organizações de esquerda nos últimos anos. Neste ponto devo agradecer especialmente ao educador e camarada Scapi, figura que admiro muito pela sensibilidade, perspicácia, domínio do materialismo dialético e do marxismo, que cumpre um papel importante de direção e formação junto ao Núcleo de Educação Popular – 13 de maio e da Intersindical – Instrumento de Luta e Organização da Classe Trabalhadora.

Graças a essa figura e da organização que faz parte pude iniciar um rico processo de “inventariar” minhas concepções e práticas bizarras, construídas historicmente pelas últimas gerações de militantes de esquerda. Isso me levou a romper com um reconhecido movimento que participava e com certas concepções e práticas das quais ainda estou buscando superar, não sozinho, mas coletivamente junto a meus camaradas e à classe trabalhadora. Apesar da necessidade de superar as experiências fracassadas, algumas questões presentes neste trabalho são resultado de uma dura (e dolorosa, porque não é apenas contra o outro mas contra si mesmo, em alguma medida) crítica. Agradeço, por isso, a todos que – direta e indiretamente – contribuiram para manter vivo aquilo que hoje sou parte, para além deste pretensioso texto.

Por fim agradeço também àqueles que me acompanharam ao longo desses dois anos de mestrado que não foram citados nominalmente como todos que são ocultos pelo processo, aqui também estão presentes, e saberão disso nas palavras que aqui não estão escritas.

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Tirou partido de mim, abusou Mas não faz mal é tão normal ter desamor É tão cafona sofredor Que eu já nem sei se é meninice ou cafonice o meu amor Se o quadradismo dos meus versos Vai de encontro aos intelectos Que não usam o coração como expressão Você abusou... Antônio Carlos e Jocáfi

Há hora de somar E hora de dividir. Há tempo de esperar E tempo de decidir. Tempos de resistir. Tempos de explodir. Tempo de criar asas, romper as cascas Porque é tempo de partir. Partir partido, Parir futuros, Partilhar amanheceres Há tanto tempo esquecidos Trecho de “Dissidência ou a arte de dissidiar”, de Mauro Iasi

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camponesa (CSUTCB) e o conselho de comunidades indígenas (CONAMAQ), desde o período de lutas anterior ao governo Morales até o segundo mandato deste, buscando se aproximar dos dias atuais. Na primeira parte, procuramos retomar os fundamentos teóricos e debates clássicos acerca do papel do campesinato na sociedade capitalista, sua relação com as demais classes, a questão da transição para o socialismo, os interesses e a possibilidade de aliar-se com o proletariado ou com a burguesia. Também buscamos recuperar formulações estratégicas que tiveram como objetivo revolucionar a sociedade capitalista, procurando pensar o sujeito revolucionário do socialismo e as alianças necessárias para tal. A segunda parte constitui um esforço de aproximação da realidade boliviana, com uma reconstituição histórica do campesinato e de como as políticas neoliberais repercutiram na ideologia e nas formulações estratégicas dos movimentos CSUTCB e CONAMAQ. Busca-se ainda relacionar esses movimentos às diferentes frações de classe do campesinato boliviano bem como identificar a existência de alianças ou conflitos com outras classes sociais, como o proletariado e a pequena-burguesia. Para tal foram analisadas entrevistas e declarações de militantes e dirigentes que explicitam os conceitos e as noções que orientam a estratégia e as concepções políticas que guiam os movimentos. A partir da análise destes conceitos e noções à luz do desenvolvimento histórico buscamos confirmar a hipótese de que os movimentos representam diferentes frações do campesinato e que a identidade indígena nos movimentos camponeses está associada àqueles setores com menor inserção no mercado e, portanto, menor diferenciação social e menor predomínio de relações sociais capitalistas.

Abstract: This paper discusses the policy of the Bolivian peasantry from two movements, peasant central (CSUTCB) and the council of indigenous communities (CONAMAQ), from the period of struggles prior to the Morales government to the second term of this, seeking to approach the day current. In the first part, we seek to resume the theoretical foundations and classic debates about the role of the peasantry in capitalist society, its relation to other classes, the issue of transition to socialism, the interests and the possibility of linking up with the proletariat or the bourgeoisie. We also seek to recover strategic formulations that aimed to revolutionize capitalist society, trying to think of revolutionary socialism subject and alliances necessary to do so. The second part is an effort to approximate the Bolivian reality with a historical reconstruction of the peasantry and how neoliberal policies affected the ideology and strategic formulations of CSUTCB and CONAMAQ movements. Also tries to relate these movements to different Bolivian peasant class fractions and identify the existence of alliances or conflicts with other social classes, such as the proletariat and the petty bourgeoisie. For such were analyzed interviews and statements from militants and leaders that explain the concepts and notions that guide the strategy and political conceptions that guide the movements. From the analysis of these concepts and notions in the light of the historical development we seek to confirm the hypothesis that the movements represent different fractions of the peasantry and the indigenous identity in peasant movements is linked to those sectors with lower insertion into the market and thus less social differentiation and less predominance of capitalist social relations.

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Introdução ... 9

Capítulo 1 – Classes sociais, campesinato e revolução ... 1.1 – A condição de classe do campesinato – diferenciação e proletarização ... 20

1.2 – A atuação política do campesinato: entre a reação e a revolução ... 33

1.3 – O campesinato na estratégia socialista de países periféricos ... 44

1.4 – Agroecologia e indianismo como estratégias políticas do campesinato ... 49

a) A agroecologia e a agricultura familiar ... 49

b) O indianismo boliviano ... 53

Capítulo 2 – O movimento camponês na Bolívia: da Revolução de 1952 ao governo Morales ... 2.1 – A formação capitalista, a ascensão do movimento camponês e a aliança com os trabalhadores ... 59

2.2 – As consequências econômicas do período neoliberal sobre o campesinato ... 67

2.3 – As consequências político-ideológicas do período neoliberal sobre o movimento camponês . . 79

2.4 – A crise do neoliberalismo e o governo de Evo Morales ... 88

2.5 – Os conflitos do governo Morales e as contradições do projeto de conciliação de classes ... 93

2.6 – As interpretações sobre o governo Morales ... 103

Capítulo 3 – A política do movimento camponês indígena no contexto de conciliação ... 3.1 – Estrutura de posse da terra e diferenças regionais ... 116

3.2 – A política segundo os militantes e dirigentes camponeses ... 129

a) O sindicato camponês ... 130

b) O Movimento de ayllus ... 138

Conclusão ... 146

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Introdução

A presente pesquisa tem como objeto a política do campesinato, a sua relação com outras classes, o papel político que assume na sociedade capitalista e nas experiências que buscam superar esta sociedade. Para isso analisamos o campesinato boliviano, especificamente os movimentos CSUTCB (Central Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia) e CONAMAQ (Conselho de Ayllus e Markas do Qullasuyo), escolhidos por serem os mais representativos do campesinato andino no país. A escolha de pesquisar a Bolívia se deve ao destaque que estes movimentos tiveram nos últimos anos, criando elevada expectativa quanto às transformações que se davam no país. Além disso, a Bolívia representa uma das experiências de maior destaque no contexto recente de governos oriundos de movimentos sociais e da organização da classe trabalhadora, servindo de base para entender o que acontece na América Latina nas últimas décadas. A política boliviana contemporânea e, particularmente, o movimento camponês deste país estão intimamente ligados às lutas indígenas pela conquista de direitos. Este movimento é herdeiro da luta anticolonial e da luta pela emancipação política. A maior parte da população boliviana é de origem indígena, 52% da população total se consideram indígena, sendo que entre a população rural esta identidade chega a 69%1. Isso significa que o movimento camponês boliviano é de origem indígena e essa influência determinou o projeto político do governo Morales e os horizontes da Nova Constituição de Estado (Plurinacional). Estes movimentos nos oferecem uma amostra das concepções e estratégias assumidas pelos camponeses na América Latina contemporânea, que serve de base para entender o campesinato como conceito capaz de explicar uma diversidade de realidades em que esta classe se apresenta. A adoção de uma estratégia e de uma identidade está relacionada às mudanças conjunturais e estruturais, são transformações ideológicas que acompanham as transformações econômicas e políticas de um período. Buscaremos entender esta relação. Além disso, estes movimentos representam uma série de demandas de caráter étnico e

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nacional. A valorização da identidade indígena se transformou na principal bandeira do campesinato e chegou a se tornar uma bandeira nacional. De tal modo que a experiência constituinte boliviana se tornou uma referência mundial em termos de solução de conflitos nacionais em um mesmo território, bem como de respeito à natureza. A participação dos movimentos camponeses-indígenas na Assembléia Constituinte levou à inclusão de princípios jurídicos que reconhecem uma pluralidade de nações no mesmo território e princípios ecológicos que tem referência na cosmovisão dos povos indígenas.

Deste modo, o presente texto retoma uma discussão teórica acerca das transformações da sociedade capitalista e da posição econômica que o campesinato ocupa na dinâmica destas mudanças. Como não poderia ser diferente, a sua posição econômica implica uma posição de conflito com algum interesse, conflito com outras classes, o que o leva a agir politicamente ou agir em aliança com determinada classe ou frações de classe contra outras. Pensar sobre as semelhanças e as diferenças entre camponeses e trabalhadores assalariados nos mais diversos contextos é relevante para se compreender as contradições e os conflitos que eclodem no interior e entre movimentos sociais que organizam e representam as classes sociais dominadas e/ou intermediárias.

Autores clássicos do marxismo como Marx, Engels, Kautsky e Lênin nos oferecem as bases teóricas para caracterizar o campesinato na sociedade capitalista e sua relação com as demais classes. Portanto, a partir da perspectiva marxista consideramos também análises de experiências históricas onde o campesinato cumpriu papel decisivo, como na França de 1848, Rússia de 1917 e China de 1949.

No entanto, a questão camponesa não ocupou um lugar de destaque na teoria marxista até inícios do século XX. Isso porque a parte fundamental da crítica da economia política e da sociedade burguesa, elaborada por Marx, surge da observação do desenvolvimento capitalista na Inglaterra, forma mais desenvolvida a partir de onde se pode entender seus desdobramentos2. A

2 A expansão e generalização do modo de produção capitalista ocorre segundo as leis do desenvolvimento desigual e

combinado. Ou seja, o capitalismo se desenvolve no interior dos modos de produção anteriores, a partir de suas especificidades, e em articulação com o sistema mundial. Por este motivo segue sempre leis gerais, segundo

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avaliação de que o trabalho assalariado e a propriedade privada substituiriam as formas sociais anteriores de organização da economia não se confirmou completamente, pois o ritmo e intensidade desta transformação variam, não sendo possível afirmar se ela se concluirá um dia. A questão camponesa se mantém pelo desenvolvimento contraditório do capitalismo – que não segue um ritmo constante e ascendente – e se utiliza de formas de produção anteriores para consolidar as formas mais adequadas à exploração do trabalho.

Neste sentido, a substituição da pequena produção e das formas tradicionais de vida camponesa por formas modernas de produção parece não se completar por diversos motivos, como pretendemos discutir adiante. Paradoxalmente, países cujo desenvolvimento capitalista apenas começava e, portanto, não tinham generalizadas as relações de trabalho assalariado, tiveram os camponeses como importante base social para uma revolução socialista. Isso colocou a questão camponesa em destaque na teoria marxista, como a “teoria do elo mais fraco”, de Lênin, que busca explicar os motivos para a revolução socialista ter iniciado em um país atrasado como a Rússia do início do século XX.

A experiência revolucionária da Rússia de 1917 intensificou o debate acerca do papel dos camponeses na Revolução socialista, bem como a China de 1939-1949. Experiências mais recentes, principalmente a partir da segunda metade do século XX em países e regiões economicamente atrasados, como na América Latina, também confirmaram a importância deste debate com movimentos camponeses ativos que seguiram as pegadas de experiências anteriores como a russa e a chinesa. O século XX, ao contrário do XIX, pareceu aumentar a probabilidade da revolução socialista em países da periferia capitalista, justamente aqueles com maior concentração de camponeses e menor desenvolvimento industrial, com uma classe operária minoritária.

Apesar de dedicar maior atenção aos problemas centrais do capitalismo, essencialmente à relação de produção que envolve as classes fundamentais, a burguesia e o proletariado, Marx

características universais que produz e reproduz, como a propriedade privada e o assalariamento. Contudo, esse processo se dá em condições particulares, segundo cada formação social e política, combinadas com o desenvolvimento de economias centrais.

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também deixou contribuições para entender outras classes. Como um autor que busca entender a totalidade, em suas múltiplas determinações, não poderia deixar de interpretar a pequena-burguesia e o campesinato como classes intermediárias. Após O Capital, Marx escreve alguns textos que nos ajudam a entender a ambivalência política do campesinato, entre os quais podemos citar pelo menos: o 18 Brumário de Luis Bonaparte, em que faz uma análise política da derrota da Revolução de 1848 e os anos seguintes; e as cartas à Vera Zasulich que mostram um olhar mais estratégico que analítico, ao pensar as possibilidades de revolução em países não capitalistas e sua articulação com a revolução socialista.

No final do século XIX, após a morte de Marx, Engels escreve o texto A questão camponesa

na França e na Alemanha, que oferece uma rica análise sobre o programa agrário da social

democracia nestes países, colocando questões de estratégia, ao passo que analisa os interesses e possibilidades de aliança entre o proletariado e frações do campesinato. Mais tarde, Kautsky escreve A questão agrária desenvolvendo muitas das questões colocadas por Engels de maneira bastante importante e atual para a compreensão da luta de classes no campo. Kautsky utiliza o método e os pressupostos da teoria marxista para compreender as determinações econômicas contidas na condição do campesinato no capitalismo, explicando as contradições que o campesinato enfrenta no atual modo de produção.

O campesinato passou por muitas transformações ao longo da história. É em seu seio que nascem os comerciantes e artesãos que formam os primeiros burgos ainda no modo de produção feudal. É com o desenvolvimento da produção agrícola que se torna possível a divisão de trabalho.

As experiências revolucionárias na Rússia e na China seguiram caminhos diversos, sendo que a primeira se manteve mais próxima teoricamente da avaliação do campesinato como uma classe em vias de extinção, como pensava Marx. Apesar desta diferença, num primeiro momento, a avaliação de que era necessário aliar-se com os camponeses pobres era baseada no mesmo pensamento de Marx, Engels e Kautsky. Mao acabaria relativizando algumas teses marxistas e se

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baseando na ação dos camponeses como sujeito revolucionário na China, como discutiremos mais adiante. A experiência maoísta favoreceu perspectivas que procuram o sujeito da revolução no campesinato, influenciando movimentos e estratégias que se perpetuam no tempo, ainda que o campesinato seja uma classe cada vez menos influente devido às transformações no campo.

A correspondência em que Marx debate com a corrente dos populistas russos as possibilidades alternativas de desenvolvimento não capitalista ou da sobrevivência das comunidades rurais é utilizada por autores que buscam se apoiar na autoridade teórica de Marx para defender estratégias mais ligadas aos populistas que ao marxismo. Este é o caso de Guzmán e Molina (2005), que identificam mudanças no pensamento de Marx após a “influência narodnik”. Alguns autores bolivianos apresentam uma compreensão semelhante, atribuindo forçosamente um protagonismo às comunidades indígenas na transformação da sociedade ou articulando “marxismo e indianismo” (Linera, 2010). Estas questões são prementes e merecem um tratamento livre de ideias preconcebidas. Apresentaremos no capítulo 1 algumas perspectivas que buscam oferecer novas estratégias, mas nada fazem senão reeditar programas que já foram experimentados no passado, criando apenas uma nova roupagem, conceitos e identidades para uma estratégia envelhecida.

Estas concepções e estratégias estão inseridas em um conjunto mais amplo de noções e valores de uma cultura, crenças, mitos, etc., que possuem a característica de mesclar elementos de uma cultura ancestral e de uma cultura moderna: “preconceitos de todas as fases históricas

passadas, grosseiramente localistas e instituições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado” (Gramsci, 1999). O anacronismo das estratégias

socialistas obriga que estas se refaçam a cada derrota: “(...)se criticam constantemente a si

próprias, interrompem continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido para recomeçá-lo outra vez, escarnecem com impiedosa consciência as deficiências, fraquezas e misérias de seus próprios esforços, parecem derrubar seu adversário apenas para que este possa retirar da terra novas forças e erguer-se novamente(...)” (Marx, 1978. P. 332).

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De fato existe uma presença muito grande do campesinato em países periféricos e este protagonizou lutas importantes ao longo do século XX3, colocando a necessidade de se rediscutir questões que pareciam superadas pelos clássicos do marxismo. É inegável o importante papel que o campesinato assumiu em revoluções de todo o mundo, especialmente nas Revoluções burguesas e em movimentos sociais de países periféricos do capitalismo. Em países pouco desenvolvidos a participação do campesinato teria sido decisiva para uma Revolução Socialista, sem a qual seria impossível a vitória do proletariado por sua inferioridade numérica e pouca experiência política.

Entretanto, o caráter explosivo das manifestações camponesas exprime uma radicalidade que pode ou não se associar a um projeto de oposição ao capitalismo, a depender da aliança que estabelece com outras classes e dos interesses que dirigem esta aliança. Sobretudo em contextos em que o capitalismo assume formas mais desenvolvidas, com a industrialização avançada na cidade e no campo, elevado grau de divisão do trabalho e onde o campesinato é menos presente e decisivo politicamente. O papel político revolucionário parece ser mais decisivo quanto maior o “atraso” de um país em relação à revolução burguesa, como nos casos da Rússia e da China.

O campesinato boliviano cumpriu um papel decisivo na Revolução de 1952, ao lado do proletariado mineiro, que foi a força social dirigente desta. Desde então, o proletariado mineiro exerceu o papel de vanguarda das classes dominadas. Assim foi na Assembleia Popular de 1971 e na resistência contra a ditadura. Contudo, com o desmantelamento dos centros mineiros (1985), o campesinato assumiu o papel que antes cabia ao proletariado, parecia estar na vanguarda das lutas socialistas e não foi sem motivo. Analisaremos as consequências desta influência, considerando não apenas a responsabilidade das direções políticas do movimento camponês mas também fatores estruturais e conjunturais, como o fortalecimento da identidade indígena, a queda do bloco soviético, a crise do socialismo, e o neoliberalismo como hegemonia internacional.

Os movimentos camponeses aqui estudados, tanto a central camponesa com o movimento de

3 Por exemplo nas Revoluções de países como México, a própria Rússia, China, Cuba, Vietnam e Argélia, que

motivaram o trabalho de Eric Wolf (1984), Guerras camponesas no século XX. Inclusive a Bolívia contou com a participação do campesinato de maneira decisiva na revolução de 1952, como veremos no capítulo 2.

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ayllus, expressam em suas concepções os efeitos ideológicos das mudanças econômicas e políticas, de âmbito nacional e internacional, ocorridas nas três últimas décadas. Buscaremos estabelecer as devidas conexões entre suas estratégias, as opções políticas e suas alianças, a questão da identidade indígena e as demandas nacionais dos povos oprimidos, a representação de classe destes movimentos e o significado da relação destes com o governo Morales.

O objetivo geral da pesquisa é investigar o movimento camponês boliviano e o papel que este cumpre no plano político e estratégico do país. Nós buscamos abordar os aspectos econômicos e políticos que circundam a questão camponesa para entender a política do campesinato na Bolívia de Evo Morales. Este governo, assim como outros da região, desperta grande interesse da esquerda mundial. São as primeiras experiências relevantes de lutas por direitos e reformas após a queda do muro de Berlim e representam para muitos a renovação das estratégias revolucionárias. O governo Morales representa os interesses dos trabalhadores e camponeses que se levantaram contra as reformas liberais dos anos 80 e 90, contudo, os limites estreitos das mudanças suscitam questões sobre a natureza, eficácia e consequências de sua estratégia. Durante este governo, o Estado ampliou sua receita em uma operação que deveria representar a nacionalização do petróleo e gás, foi realizada uma Assembléia Constituinte, demanda dos movimentos camponeses e indígenas, e incrementados gastos sociais e em infra-estrutura. Julgamos que tais reformas já apresentam sinais de fissuras, como observaremos adiante.

A questão da estratégia nos interessa na medida em que molda as interpretações políticas acerca dos sujeitos da ação, é a referência teórica e o plano que guia aqueles que lutam por melhores condições de vida. Como as estratégias dominantes, ainda que nem sempre explícitas e assumidas conscientemente pelos movimentos, apresentam a questão agrária? Que papel atribuem ao campesinato? Quais objetivos tais estratégias procuram alcançar, favorecendo quais camadas, dirigida por que classes, etc.? Segundo Marx, o campesinato não se faz representar como classe independente e autônoma; ao mesmo tempo, provoca levantes de massa que podem mudar o rumo

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da política, mas precisam de uma representação externa, seja por parte do proletariado ou de elementos da pequena burguesia. O movimento camponês boliviano promoveu alianças? Qual a importância destas para o rumo do atual processo político? Quais os interesses atendidos e quais os interesses que ameaçam o governo e sua base aliada? Que diferenças podem ser identificadas entre movimentos distintos?

Para tratar desse conjunto de questões, no primeiro capítulo discutimos a definição de campesinato, suas experiências políticas e algumas concepções contemporâneas do movimento camponês em três partes.

Na primeira parte utilizamos as contribuições de Marx, Kautsky, Lênin e Mao sobre a questão agrária e a condição de classe do campesinato. Buscamos entender as mudanças no modo de vida do campesinato que levaram à sua atual condição no modo de produção capitalista; as forças materiais a que o camponês é submetido neste modo de produção; e as determinações e consequências do processo de proletarização e diferenciação do campesinato. Portanto, introduzimos a questão agrária a partir do que o desenvolvimento econômico e técnico lhe impõe, buscando entender o movimento do campesinato historicamente para então pensá-lo hoje. Também buscamos dialogar com autores contemporâneos que discutem a atualidade conceitual do campesinato.

A segunda parte é composta pela interpretação da política do campesinato nos processos revolucionários de 1848-51, na França, de 1905-17, na Rússia e de 1939-49, na China, variantes históricos relevantes para pensar o movimento camponês boliviano. Nesta parte faremos menção a teses importantes do marxismo, como questão da vanguarda revolucionária e a incapacidade do campesinato de realizar um projeto próprio, utilizando exemplos históricos e análises – principalmente de Marx, Engels e Lênin – nas quais nos baseamos para refletir sobre o papel do campesinato na derrubada do capitalismo. Também abordaremos rapidamente o problema de caracterização do modo de produção e das classes que predominou nas análises da esquerda do

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século XX. Na terceira parte discutiremos duas perspectivas políticas que atribuem um papel central ao campesinato na crítica ao capitalismo, como a perspectiva agroecológica e o indianismo.

No segundo capítulo reconstituímos a história do movimento camponês boliviano com ênfase nos momentos mais importantes do último século e fizemos uma contextualização da conjuntura política recente, levantando alguns elementos para uma avaliação do significado do governo Morales. Neste capítulo buscamos fazer uma contextualização histórica do desenvolvimento do campesinato boliviano, em geral, e dos movimentos contemporâneos em particular, da central camponesa e do conselho de ayllus, que estiveram presentes nas lutas que levaram à vitória de Evo Morales, bem como nas manifestações enfrentadas pelo governo Morales nos últimos anos. A partir da reconstituição desta história podemos compreender os interesses e disputas no interior do campesinato, expressas nos movimentos e as alianças que se estabeleceram para alcançar determinados objetivos. A análise do governo Morales se fez necessária e para tal utilizamos de textos do atual vice-presidente, Álvaro Garcia Linera, e de autores que levantam hipóteses sobre o caráter deste governo através de conceitos como capitalismo de Estado, neoliberalismo reconstituído e social-democracia.

Finalmente, no terceiro capítulo, caracterizamos o campesinato boliviano e o posicionamento dos dois movimentos analisados ao longo dos governos Morales, em seus dois mandatos já completados (2006-2009, 2010-2014). Primeiramente, buscamos mapear os resultados da política de Morales sobre esta base social a partir de dados da produção agrícola e da população rural. Em seguida, analisamos uma série de entrevistas com dirigentes e militantes dos dois movimentos. O trabalho de campo para realização das entrevistas teve duração de duas semanas, durante o mês de dezembro de 2013, quando foram realizadas 12 entrevistas, sendo que 5 com dirigentes da CSUTCB e 7 da CONAMAQ, de diversos níveis de representação. Nas entrevistas foram feitas perguntas sobre a conjuntura, sobre os conflitos entre os movimentos e destes com o governo, bem como sobre os projetos e concepções estratégicas para o futuro, de modo que fossem extraídos

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elementos para pensar a capacidade de crítica ou a acomodação a determinados interesses. A partir delas interpretamos as noções e conceitos que orientam as concepções políticas e estratégias dos movimentos camponeses no último período.

Além das entrevistas, foi realizada uma reunião com o pesquisador Enrique Ormachea Saavedra sobre as hipóteses e objetivos da pesquisa, bem como a pesquisa de nova bibliografia, materiais e documentos que pudessem oferecer novos elementos para analisar os movimentos, suas estratégias, alianças e interesses em comum com outras classes, relação com Estado e grau de autonomia.

Não se trata de fazer a crítica destas noções de modo a apontar os erros mas de compreender as contradições e os limites das estratégias políticas, buscando articulá-las com o desenvolvimento histórico da luta de classes no país e no continente sul americano. Este estudo pretende contribuir para o balanço da herança estratégica, para a crítica radical dos anacronismos e incoerências, que é condição para elaborações novas e coerentes, capazes de alterar o rumo das derrotas de camponeses e trabalhadores da Bolívia e do mundo.

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1.1 – A condição de classe do campesinato – diferenciação e

proletarização

Marx, em O Capital, funda as bases da teoria marxista, que atribui ao proletariado o papel central na transformação da sociedade capitalista. Uma vez que a sociedade capitalista divide os homens entre proprietários e não proprietários dos meios de produção, a burguesia e o proletariado, constituem, para o marxismo, as classes sociais fundamentais4 e antagônicas do modo de produção

capitalista. Os trabalhadores assalariados constituem a classe mais perigosa para os interesses da burguesia, pois é aquela que gera e valoriza o valor que é apropriado pelos capitalistas, a classe que não pode se revoltar sem que toda a camada dominante seja arremessada no ar (Marx, 1996; Marx e Engels, 2001). A burguesia, por sua vez, cumpriu um papel revolucionário na transição do feudalismo para o capitalismo, opondo-se aos interesses da nobreza. Marx faz algumas reflexões sobre o campesinato e a pequena burguesia n'O 18 Brumário de Luis Bonaparte e, junto a Engels, no Mensagem do comitê central à liga dos comunistas. As concepções políticas dessas classes intermediárias estão intimamente ligadas à forma como se reproduzem socialmente, em condições de produção não socializadas ou em postos intermediários como setores da burocracia, do exército e profissionais liberais. Como mostra Marx, a política destas classes se voltou para a defesa da democracia, somando forças ao proletariado para realização de seus interesses dentro da ordem e voltando-se contra ele quando a revolução socialista se aproximava.

O campesinato passou por muitas transformações ao longo da história. É em seu seio que nascem os comerciantes e artesãos que formam os primeiros burgos ainda no modo de produção feudal. É com o desenvolvimento da produção agrícola que se torna possível a divisão de trabalho. Esta permite o desenvolvimento de ofícios e profissões que só poderiam ocorrer com o excedente 4 As classes fundamentais são aquelas que ocupam as funções centrais de um modo de produção. Apesar disso, os

conflitos de classe apresentam formas mais complexas e diversificadas em que os interesses não são claramente identificados na maior parte do tempo, inclusive porque existem outras classes nesta polaridade, como a pequena burguesia e o campesinato. Estas últimas podem ser entendidas como classes não fundamentais, pois se aliam tanto à classe trabalhadora quanto à burguesia, dependendo do período histórico e do contexto. Para uma análise das classes medias, pequena burguesia e campesinato, ver Milios e Economakis (2011).

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de produtos alimentares que liberasse trabalho social para outras tarefas que não fossem agrícolas. Neste sentido, é fundamental compreender o campesinato no feudalismo como determinante das relações sociais que colocaram o modo de produção feudal em crise. Ou seja, é necessário compreender a formação do capitalismo a partir das condições legadas pelo feudalismo e, assim, entender as mudanças sofridas pelo campesinato e qual a tendência destas mudanças na sociedade burguesa, nos seus diferentes contextos.

O isolamento camponês de que fala Marx existia no feudalismo sob a forma de uma auto-suficiência de produção, que vai dando lugar para uma auto-auto-suficiência econômica; sua produção se torna cada vez mais especializada, acompanhando o desenvolvimento do comércio e a utilização da moeda. Economicamente, o camponês continua autônomo, vende o que produz e produz na unidade familiar, isoladamente, e não sob a forma socializada que assume a indústria manufatureira, concentrando os artesãos num mesmo espaço e diminuindo os custos da produção.

Tal mudança ocorre com o desenvolvimento da divisão do trabalho e a expansão capitalista. Se a unidade camponesa era auto-suficiente pela produção diversificada, produzia os produtos de que seus integrantes precisavam por meio de sua indústria artesanal, da agricultura e da caça, a partir de determinado momento os camponeses se viram diante de uma situação em que as suas necessidades dependiam de um intercâmbio de produtos com outras unidades de produção. Esta mudança está relacionada com as mudanças no acesso do camponês à terra, à restrição do acesso aos instrumentos necessários à sua reprodução e ao tempo livre cada vez mais escasso pela intensificação do trabalho necessário para obter os produtos necessários para produzir e viver (Kautsky, 1972).

Primeiro lhes foi proibida a caça, quando os camponeses tiveram de se submeter a um senhor feudal e se produziu uma forma de divisão do trabalho que separou a sociedade entre uma “classe produtora de bens alimentares” e uma “classe militar”. Como os instrumentos da guerra são os mesmos da caça, esta última lhe foi proibida pela “classe militar”:

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“Enquanto a caça foi necessária para cobrir as necessidades do homem comum, este [camponês] foi também um guerreiro. (...) E, inversamente, à medida em que a guerra tendia cada vez mais a tornar-se um atributo exclusivo da nobreza, a caça tendia a tornar-se, exclusivamente, um desporto nobre.” (Kautsky, K. In: A questão agrária. 1972: P. 39).

A proibição do uso de armas e do acesso aos bosques influenciou o modo como os camponeses reproduziam sua vida. A agricultura e a manufatura passam a ser seus principais meios de subsistência, bem como a criação animal, que poderia ainda lhe fornecer a carne de que necessitava o camponês. Mas o desenvolvimento do comércio passou a complementar as necessidades, que se modificava com a mudança dos modos de vida e desenvolvimento material, levando a uma especialização cada vez maior das atividades do camponês. Cada vez mais existiam aqueles camponeses que se dedicavam mais a uma única atividade, o gado, a agricultura ou ao artesanato. Com esta mudança se ampliam as cidades, as fronteiras do intercâmbio de mercadorias, e da divisão do trabalho, condição para a superação das antigas corporações de ofício e da indústria doméstica5 (Huberman, 1986).

Segundo Kautsky (1986), a produção de excedente por parte de alguns produtores e o desenvolvimento das relações mercantis no interior das comunidades camponesas fez do produto da terra cada vez mais uma mercadoria, ou seja, passaram em grande medida a ser produzidos com o objetivo de serem vendidos. Este processo esteve combinado com a evolução técnica das ferramentas e dos métodos de plantio que possibilitaram o aumento da produtividade e a crescente competição entre camponeses, bem como a divisão de seus interesses. Com isso, a terra passou a ser um meio de produção capitalista, através do qual também a aristocracia passou a ter interesse pela possibilidade de explorar o trabalho dos servos.

Na Alemanha, este período de transição do feudalismo para o capitalismo levou os camponeses a um empobrecimento rápido (Kautsky, 1972; P.46): “A mesa do camponês alemão

empobreceu então rapidamente e ele, tal como o hindu, tornou-se por sua vez um vegetariano”. A

5 Apesar de parte do campesinato ter se adaptado às condições capitalistas de produção, o capitalismo surge na

Inglaterra a partir da expulsão dos camponeses de suas terras, como descreve Marx (1982) no capítulo “A assim chamada acumulação primitiva” d'O Capital.

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terra que poderia ser usada para o pastoreio é cada vez mais escassa e a criação animal passa a ser feita em um espaço limitado, atividade que se torna cada vez mais especializada. Passa a ser difícil ao camponês produzir bens agrícolas e manter a criação animal, pelo espaço limitado de terra e pela falta de recursos para alimentar os animais.

Posteriormente foi a vez da indústria artesanal. Como descreve Kautsky (1972), enquanto o camponês não sofria as pressões do mercado capitalista em ascensão este possuía uma quantidade de terra suficiente e usava o seu tempo de forma mais autônoma, com o qual poderia produzir os instrumentos necessários para seu trabalho, bem como sua vestimenta, calçados, etc. Com a limitação da terra e o aumento do tempo que deveria trabalhar na terra do senhor, a indústria artesanal é abandonada pouco a pouco. Os produtos que antes a unidade familiar e sua divisão de trabalho simples eram capazes de produzir passam a ser comprados. Nisto consiste a sua dependência com relação ao comércio e ao dinheiro6. Com o tempo, o conhecimento da produção destes produtos se perde e é superado pelo desenvolvimento da manufatura e da indústria moderna.

O desenvolvimento da técnica pela indústria moderna afasta qualquer possibilidade de o trabalho artesanal da unidade camponesa voltar a ter alguma importância na divisão do trabalho da sociedade capitalista. A desapropriação dos meios da caça, no feudalismo, e a superação da manufatura pela indústria, bem como da impossibilidade de praticar a pecuária, no capitalismo, mudaram o modo de vida do camponês e fizeram com que este se especializasse cada vez mais na agricultura, como analisou Kautsky (1972) em A questão agrária. No capitalismo dos países latino americanos, os camponeses são basicamente agricultores que produzem alimentos, enquanto as indústrias agrícolas se especializam na produção de insumos para outras indústrias como, por exemplo, a cana-de-açúcar e a soja, bem como na pecuária, voltada para abastecimento de laticínios, lã e carne. Além desta mudança, houve outra que foi a sua subordinação a uma

6 A relação com o mercado implica na destruição gradual daquilo que Marx chama de “economia natural”, sociedade

voltada para produção de valores de uso. O mesmo ocorreu em algumas regiões da Bolívia e implicou no abandono práticas coletivistas: por exemplo o ayni e a minka, que são formas de cooperação tradicionais entre as etnias andinas (Ballivián, 1995; Albó, 2009; e Saavedra e Ramirez, 2013).

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agricultura de tipo novo, própria do modo capitalista de produção, na medida que as relações capitalistas se generalizam no campo.

Vamos agora analisar as tendências da agricultura moderna capitalista e como campesinato está subordinado a elas. A questão central aqui é o desenvolvimento da indústria e da técnica e sua aplicação na produção agrícola. Kautsky descreve algumas das principais áreas de desenvolvimento científico que se tornaram importantes para a agricultura: a biologia, a química e a engenharia. O conhecimento avançado dos animais e plantas, bem como de suas doenças, o desenvolvimento de adubos químicos e da ciência genética e a aplicação de máquinas na agricultura foram verdadeiras revoluções produtivas no campo. No capitalismo, a agricultura se tornou intimamente ligada à ciência moderna e o camponês está subordinado a esse processo de racionalização produtiva.

Apesar disso, Kautsky reconhece que a modernização da agricultura tem limites importantes: 1) pela dificuldade de aplicar a maquinaria aos ambientes naturais, ao contrário da indústria urbana; 2) pela empregabilidade das máquinas em apenas um período do ano, de acordo com as necessidades das plantações, o que eleva os custos e implica em deixar capital parado por muito tempo; 3) uma vez que as máquinas agrícolas são mais complexas, exige elevado nível de qualificação de seus operadores; 4) pelo elevado custo que há no transporte das máquinas para o campo, que depende de caminhos de boa qualidade e meios de transporte altamente desenvolvidos. Todos estes fatores exigem um desenvolvimento industrial e divisão do trabalho bastante avançados.

Além das diferenças com a indústria urbana expostas acima, existe ainda outra que determina a modernização da agricultura. No caso da indústria, a superioridade técnica é motivo suficiente para obtenção de um “lucro extra”, que na agricultura corresponde à “renda fundiária” ou “renda da terra”. Contudo, além da superioridade técnica, outros fatores determinam de igual modo a renda fundiária, como o clima, a fertilidade do solo e sua localização – que se reflete nos custos de transporte. Esta discrepância entre a renda de diferentes terras constitui a chamada “renda

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diferencial” e faz com que o ritmo do desenvolvimento capitalista não seja igual no campo e na cidade7 (Kautsky, 1972).

Em alguma medida a modernização da agricultura implica o declínio da pequena propriedade pois a utilização de algumas máquinas torna-se rentável somente em grandes extensões de terra. Além disso, a energia e os meios de produção – cozinha, iluminação, acomodações, abastecimento de água, etc. – que se consomem na grande propriedade são menores proporcionalmente àqueles que a pequena propriedade utiliza. Outro fator de vantagem ainda da grande propriedade é o acesso ao crédito, que é obtido com muito mais facilidade por um grande estabelecimento agrícola que pode oferecer melhores garantias ao credor, bem como receber maior hipoteca pela propriedade (Kautsky, 1972).

Apesar de os pequenos produtores poderem se associar em cooperativas de crédito, o que resolve em parte a dificuldade de acesso ao crédito, Kautsky afirma que são raras as ocasiões em que o fazem para a produção, o que não resolve sua inferioridade com relação aos grandes estabelecimentos. A única “vantagem”8 que a pequena propriedade pode ter sobre a grande é, ainda segundo Kautsky, o fato de se basear na superexploração do trabalho, através de longas jornadas e más condições de alimentação e moradia – que pode oferecer vantagem sobre os elevados custos que a grande propriedade enfrenta. Somente assim a pequena propriedade pode competir com o grande estabelecimento e apenas no curto e médio prazo, visto que a produtividade deve cair com o tempo pela exaustão dos trabalhadores.

Apesar da superioridade do grande estabelecimento, “O modo de produção capitalista não nos promete nenhum fim do grande estabelecimento agrícola, nem nos promete o fim do pequeno” (Kautsky, 1986; P. 145). A manutenção do pequeno produtor, segundo este autor, se dá muitas

7 A “renda diferencial” também acarreta consequências para o campesinato, uma vez que possibilita uma vantagem

produtiva sem uma correspondente modernização da produção e, portanto, uma utilização maior e menos especializada da força de trabalho no campo. Isso pode significar a manutenção de produção e relações sociais não modernas no campo em contextos capitalistas.

8 Mais recentemente, com os movimentos sociais de camponeses como o Sem-terra (MST) no Brasil, surgiram

argumentos em favor da pequena propriedade que se baseiam em perspectivas agroecológicas. Discutiremos esta concepção adiante.

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vezes, como no caso da pequena indústria urbana, por motivos políticos, ou seja, pelo interesse em manter uma parte da população empregada e dependente do bom funcionamento do mercado. A proletarização definitiva desta população somente causa inconvenientes às classes dominantes. Além disso, a manutenção destes pequenos estabelecimentos é funcional e não contraditória com o capitalismo, uma vez que estes estão subordinados aos grandes estabelecimentos capitalistas.

No caso da agricultura, o pequeno estabelecimento complementa o grande por dois motivos básicos. O primeiro deles já foi citado acima, está relacionado à “auto-exploração” que desonera o grande estabelecimento dos custos da força de trabalho. Como o pequeno produtor tem dificuldades para fazer seu produto chegar ao consumidor, ele se subordina aos preços estabelecidos pelo grande produtor, que se responsabiliza pela distribuição. O segundo motivo é que, mantendo uma população rural, a pequena unidade camponesa exerce uma função importante, que é a produção de força de trabalho9. Uma família camponesa que tem um pedaço de terra limitado e um número de membros crescente não pode garantir a subsistência de todos, de modo que uma parte dos filhos deve se assalariar em uma propriedade vizinha ou nas cidades. Aqueles que migram para as cidades perdem as raízes no campo, o que diminui a disponibilidade de força de trabalho para empregadores agrícolas. Por isso, a função de produção de trabalhadores habituados à vida no campo é de grande interesse para a agricultura capitalista, caso contrário deveria elevar os salários para atrair os trabalhadores urbanos.

Apesar da complementaridade entre o pequeno e o grande estabelecimento agrícola, não existe um equilíbrio estático entre elas (Kautsky, 1972). A tendência entre a centralização e dispersão da terra se alterna, segundo os dados apresentados n’A questão agrária. De um lado, em favor da concentração está o abandono das terras por famílias que não podem sobreviver às condições impostas pela concorrência (descamponesação ou descampesinação). De outro, o direito

9 Os documentos políticos de congressos do movimento sindical camponês CSUTCB reconhecem as duas formas de

subordinação e aproveitamento capitalista do trabalho destes pequenos agricultores. Isso revela a influência marxista nas formulações teóricas do movimento em seu nascimento. Trataremos melhor deste assunto nos capítulos que seguem.

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de herança, que divide as terras10; do mesmo modo, a resistência dos camponeses em abandonar suas terras, sustentados por formas intermediárias de proletarização. Mesmo em países em que ocorreram reformas agrárias distributivas, ocorre posteriormente um processo de reconcentração devido àqueles que sucumbem à concorrência11.

O resultado destas mudanças na agricultura levou à diferenciação entre os produtores: enquanto uns acumularam capital, outros empobreceram. Os primeiros investem na produção, na modernização dos instrumentos e técnicas agrícolas e na compra de melhores terrenos, aumentando o fosso que os diferencia daqueles que se tornam incapazes de competir e se assalariam para obter os meios necessários para permanecer na terra, migrando muitas vezes, ou levando alguns membros da família ao assalariamento. Assim surge uma parcela de camponeses ricos, que conformam a pequena burguesia agrícola, e outra de camponeses pobres, que formam o semi-proletariado rural e o proletariado rural e urbano – filhos de camponeses e assalariados no campo, pertencem ao campesinato e ao proletariado ao mesmo tempo. Os camponeses ricos podem atingir um nível de vida confortável, se apoiando no trabalho assalariado e colaborando com a grande indústria agrícola. Muitos camponeses médios e pobres sonham com melhores condições de vida, o que significa tomar como exemplo os camponeses ricos.

Os camponeses pobres acabam por vender sua força de trabalho sazonalmente, nos períodos em que a produção agrícola não exige a sua presença. Uma parte da família camponesa pode ser assalariada permanentemente, complementando a renda familiar insuficiente. Quando a produção agrícola já não constitui a principal atividade, costuma ser o homem que trabalha fora, levando as mulheres e crianças ao trabalho agrícola em condições de superexploração. A atividade assalariada é a única forma, muitas vezes, de conseguir remuneração suficiente para reinvestir na produção

10 Este é um problema superado pelas indústrias agrícolas, que não possuem um único dono, mas uma porção deles

por meio de sua inserção no mercado financeiro. A venda de uma parte das ações não implica a divisão da propriedade.

11 A Bolívia traz semelhanças com o processo descrito por Kautsky (1972) e com o contexto francês analisado por

Marx (1978), se entendermos que Evo Morales promete representar os camponeses que sofrem com o empobrecimento provocado pelo liberalismo e as condições herdadas da reforma agrária de 1953, como o minifúndio. Desenvolverem esta análise no segundo capítulo.

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agrícola, visto que esta lhe confere pouca quantidade de dinheiro, sobretudo quando este camponês compete com grandes produtores e técnicas modernas de produção (Kaustky, 1986).

A condição de assalariado, ao lado da manutenção da atividade agrícola e do vínculo com a terra faz deste camponês pobre um semi-proletário. Portanto, o fenômeno da diferenciação está relacionado com a proletarização e com a descamponesação, que seria o abandono definitivo da terra e a proletarização completa deste camponês. Este processo não pode ser entendido de modo linear e cumulativo, ocorre de maneira contraditória e oscilatória12.

Tal como o desenvolvimento capitalista nas cidades é um processo que ocorreu mundialmente, conforme se desenvolveu o capitalismo, a modernização das relações no campo segue a mesma tendência. Evidentemente, o ritmo deste processo é diferente no campo e nas cidades, mais lento no primeiro com longos períodos de estagnação, contudo, em ambos podemos identificar a formação de classes sociais fundamentais, burguesia e proletariado. Nos países centrais, onde a Revolução burguesa se deu antes de todos os demais países, houve uma burguesia nacional que deu origem a uma revolução produtiva, modernizando a técnica para desenvolvimento e modernização das indústrias e da agricultura. Nos países periféricos ou dependentes ocorre uma situação em que o desenvolvimento é comandado de fora e a industrialização é tardia e restrita (Mello, 1991).

A modernização da agricultura enfrenta os desafios impostos pelo desenvolvimento dependente, levando à permanência de um conflito no campo entre forças sociais arcaicas, não modernas, associadas muitas vezes a classes pré-capitalistas, e forças modernizantes, que buscam desenvolver as relações de propriedade e de produção plenamente, através da reforma agrária e da dinamização da produção agrícola. No primeiro caso estão os defensores da chamada via prussiana13 e no segundo caso da via americana. Em todo caso, ao mesmo tempo em que tende a ser 12 Sobre descampenização e diferenciação do campesinato no altiplano sul da Bolívia, ver Saavedra e Ramirez (2009),

que explica como muitos camponeses migraram para El Alto e Santa Cruz de la Sierra, bem como para outros países, como o Brasil e Argentina (principalmente São Paulo e Buenos Aires).

13 Lênin criou este conceito para definir as possíveis formas de desenvolvimento no campo. Uma delas é a via

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substituído por outras formas ou sofrer alterações no modo de produção e de vida, organização do trabalho e relação com a terra, técnicas de produção, etc. o campesinato resiste, sobrevive – às vezes na miséria extrema – às pressões que levariam a sua separação definitiva da terra.

O processo de descampenização não se realizou por completo em nenhum país da América Latina e nada indica que esta seja uma tendência inexorável no capitalismo (Kautsky, 1986; Shanin, 2005). Mesmo naqueles países que seguiram a chamada via prussiana, ou seja, que fortaleceram a produção latifundiária como o Brasil, os pequenos produtores não foram eliminados completamente. Em países avançados, é possível encontrar agricultores que mantém uma pequena propriedade, utilizando máquinas modernas e técnicas científicas avançadas sem recorrer ao trabalho assalariado, como exemplifica Shanin (2005). Este autor procura levantar questões sobre a atualidade do conceito de campesinato e recorre ao exemplo citado para discutir as dificuldades de classificação de produtores que são bastante distintos do produtor tradicional no que se refere às técnicas modernas.

Shanin (2005) procura atualizar o conceito de camponês no marxismo, seguindo os critérios clássicos desta perspectiva. O autor afirma que o que distingue o camponês dos “outros” são as seguintes características: 1) formas extensivas de ocupação autônoma (ou seja, trabalho familiar); 2) controle dos meios de produção; 3) economia de subsistência; 4) qualificação profissional multidimensional; 5) equilíbrio particular entre agricultura, extrativismo e artesanato, com ênfase no cultivo, mais do que na manufatura; 6) métodos típicos de expropriação do excedente pelos detentores do poder político e econômico, distinto do trabalho assalariado14. Além destas características econômicas,

“(...) os padrões e tendências da organização política dos camponeses têm, frequentemente, mostrado considerável semelhança em diferentes regiões e países do mundo. (...) O mesmo se pode dizer das tendências ideológicas camponesas e dos padrões de cooperação, confrontação e lideranças políticas. (...) Os padrões típicos de interação/exploração (...). O ritmo de vida da aldeia e do grupo doméstico camponês reflete, nitidamente, os principais ciclos ‘naturais’, ou seja, o ano agrícola. (...) a

terras, aumentando a competitividade entre os produtores e favorecendo um rápido progresso técnico e aumento da produtividade, o que ofereceria melhores condições para a revolução proletária (Padilha 2009).

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especificidade camponesa tem sido afirmada a partir da maneira como as comunidades camponesas reagem a esses processos gerais [de mudança estrutural] e como estes nela se refletem.” (Shanin, 2005: P. 3 e 4).

A manutenção do conceito de camponês é defendida pelo autor com base nas evidências que apontam para sua utilidade teórica, por entender que sua força de explicação não se esgotou. Sobre as tendências que o marxismo previu para o campesinato, Shanin afirma que Marx teria sido influenciado pelo otimismo e jovialidade do capitalismo, cuja capacidade de expansão parecia supereficaz no século XIX. Esta influência o teria levado a certa precipitação quanto às transformações no campo. A formação das classes fundamentais a partir do campesinato não se realiza na mesma velocidade e condições que nas cidades e depende de um alto grau de desenvolvimento econômico, como discutimos através das contribuições de Kautsky.

Shanin afirma que além do processo de diferenciação – “talvez o mais importante” (2005; P. 56) – há também a pauperização e a marginalização. Quando ocorre um processo de acumulação em uma localidade não próxima a uma aldeia camponesa, os camponeses não seriam transformados em empresários e assalariados, de modo que pode ocorrer aí a pauperização. Segundo o autor, esse foi o caso das ex-colônias. Isso ocorre porque a capacidade do capitalismo “de explorar tudo e todos a

sua volta” é indubitável, “mas sua capacidade de ou sua necessidade (em termos de maximização dos lucros) de transformar tudo ao redor à sua semelhança não o é.” (Shanin, 2005; P. 57). Outro

fator que teria impedido o desaparecimento do campesinato teria sido o papel regulador do Estado, argumento semelhante ao de Kautsky sobre os interesses políticos nesta reprodução.

Segundo Shanin (2005), a noção de que o camponês pertence a um modo de produção pré-capitalista é contestável pelo fato de que identificamos o não desaparecimento do campesinato no capitalismo. A afirmação de que esta classe irá desaparecer no capitalismo não passa de uma promessa que não se realizou e precisamos enfrentar este problema teoricamente, explicando porque este não desapareceu na atual fase do capitalismo e/ou aprimorando o conceito. A ideia de que existem resquícios feudais no capitalismo pode ajudar a compreender o campesinato mas não

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devemos tomar conclusões precipitadas para além desta constatação: tais resquícios são constitutivos do capitalismo em seu contexto periférico e não necessariamente um problema para o seu desenvolvimento. Afirmar que existe uma oposição inconciliável entre o desenvolvimento capitalista e o latifúndio é forçar que a realidade da periferia capitalista “se encaixe” num modelo de revolução burguesa verificado em determinados países centrais, como a França e os EUA15.

Além disso, o campesinato, no feudalismo e no capitalismo, possui modos de vida e de produção distintos, que são resultado de uma mudança geral do modo de produção social e da estrutura de classes da sociedade. Em cada modo de produção o campesinato ocupa um lugar particular, sendo a principal unidade de produção feudal, tanto agrícola quanto artesanal, mas assumindo apenas a primeira destas funções no capitalismo, e de modo cada vez mais restrito, devido ao desenvolvimento gradual de técnicas modernas sob controle de grandes produtores. Ao mesmo tempo, parece inadequado a utilização do conceito de campesinato para descrever os modos de produção anteriores ao capitalismo no continente americano, uma vez que a forma de produção nas comunidades indígenas está mais próxima do modo de produção comunal que do feudal (Marx, 1985).

Em cada contexto geográfico o campesinato assume uma forma particular, uma vez que a subsunção de formas de produção não capitalistas são a base sobre a qual se estrutura o modo de produção capitalista, primeiro formalmente, e depois realmente16. Apesar da particularidade de cada

formação social, todo campesinato sob o capitalismo está subordinado à forma mercadoria e sua produção tem como finalidade a realização do valor de troca, contribui para a valorização do capital a partir da relação mercantil. Como produtor autônomo, o camponês vende um valor de uso que ele

15 A avaliação de que o capitalismo não está plenamente desenvolvido na periferia capitalista têm levado trabalhadores

e camponeses revolucionários à estratégia de aliança com setores da burguesia para realização de “tarefas em atraso”. Essa leitura predominou nos anos 60 e segue bastante influente entre governos e movimentos de esquerda da América Latina nos últimos anos. A seguir discutiremos as origens desta concepção e suas consequências políticas.

16 Para Marx (2004), subsunção formal implica certa independência do trabalho com relação ao capitalista, que

controla a matéria-prima e a circulação do produto. A subsunção real é a forma madura da relação capital-trabalho, quando ocorre a separação completa do trabalhador e seus meios de trabalho, como ferramentas, maquinaria, terra, etc.

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próprio produziu para um comprador que o consome (valor de uso da mercadoria do trabalho camponês) e cujo valor é conservado em outro valor de uso pelo trabalho assalariado, produzido de modo especificamente capitalista e que, além de transferir o valor da mercadoria do camponês, a transforma em novo valor de uso e lhe gera mais valor. Ou seja, sem o trabalho do camponês o ciclo produtivo do qual participa não pode se realizar, ainda que este possa se tornar um assalariado posteriormente. E com a acumulação de capitais este camponês pode se tornar um assalariado (seja de outro camponês – diferenciação – seja de um grande capitalista – proletarização). Isso pode não ocorrer com todo o campesinato, mas certamente ocorre com parte significativa dele.

O campesinato na sociedade burguesa é qualitativamente diferente e vive um conflito entre a identificação e a rejeição com a figura do burguês. Por isso muitas vezes faz sentido a classificação deste como parte da pequena-burguesia, pelas condições econômicas e pelo posicionamento político de suas diferentes frações e em diferentes contextos17. Vamos agora abordar o posicionamento político do campesinato em alguns contextos históricos em que este teve um papel importante para decidir lutas políticas, na defesa da revolução ou da contra-revolução, bem como as elaborações estratégicas que interpretam o papel histórico desta classe intermediária na luta entre a burguesia e o proletariado.

17 As diferenças no interior do campesinato devem ser consideradas, sendo sua fração empobrecida capaz de se

identificar com o proletariado, enquanto as camadas ricas assumem mais facilmente uma identidade com a classe dominante, sonham em fazer do seu empreendimento agrícola uma grande empresa.

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1.2 – A atuação política do campesinato: entre a reação e a revolução

Marx (1978) analisa o contexto da França revolucionária de 1848-1951 como uma paródia da Revolução Francesa de 1789. A revolução francesa liberou os camponeses do jugo dos senhores feudais, garantiu-lhes o título de propriedade que antes pertencia ao senhor e lhe prendia à terra. É neste sentido que Napoleão Bonaparte foi um grande herói para os camponeses franceses, representou sua salvação (Marx, 1978). Contudo, as próprias condições do desenvolvimento capitalista levaram à ruína os camponeses e possibilitaram o surgimento de um segundo Napoleão, sustentado nas ilusões que aqueles nutriam em relação ao primeiro. Neste contexto, camponeses e operários – que haviam estado juntos na revolução burguesa de 1789 – colocam-se em oposição em 1848, impedindo a continuidade do processo revolucionário.

O segundo Napoleão representou o primeiro Imperador – responsável por instaurar as condições para a sociedade burguesa – ao repetir “nomes, gritos de guerra e roupagens”18. Com relação ao campesinato, Marx diz que aquilo que foi a salvação na primeira Revolução, ou seja, a distribuição das terras que transformara o camponês semi-servo em proprietário livre, foi a sua ruína na segunda revolução. A divisão da propriedade se desenvolveu e transformou o que tinha sido liberação anos antes em pauperismo, resultado da diferenciação e da pressão dos capitalistas sobre os pequenos produtores, na forma de juros e renda da terra. Além disso, os impostos cobrados pelo Estado também oprimiam os camponeses, que compunham a massa da população francesa do período.

Apesar desta oposição de interesses com relação ao Estado e aos capitalistas, principalmente bancos e latifundiários, o campesinato – que teve um papel importante na primeira revolução – não sustentou uma posição política revolucionária. Pelo contrário, apesar do pauperismo a que estava submetido, não se levantou com o proletariado quando este foi massacrado no levante de junho de

18 Segundo o autor, fatos e personagens realmente importantes ocorrem duas vezes na história, a primeira como

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1848. Ao invés de exigir o fim dos impostos estatais e a socialização dos meios de produção (seja o dinheiro para reinvestir na propriedade ou as ferramentas necessárias para aprimorar a produção) que lhes eram inacessíveis, lutou pela manutenção do poder da burguesia. Ou seja, enquanto o proletariado se levantava contra a consolidação do poder burguês, pela continuidade da revolução, o campesinato defendia a centralização do poder e a repressão das revoltas, assumindo a força social que a contra-revolução exigia para conter a instabilidade política do período.

Com a derrota do proletariado, a revolução passa a ser dirigida pela pequena-burguesia representada pelos democratas constitucionalistas (junho de 1848 – maio de 1849); depois pela aliança da burguesia industrial com a burguesia rentista, representados pelos monarquistas orleanistas e legitimistas (maio de 1849 – dezembro de 1851); por último pelo Estado sob a ditadura de Luis Bonaparte, representando o conjunto da burguesia (que se encontrava dividida) com o apoio dos pequenos camponeses, que pensavam poder se salvar da instabilidade e da ruína que lhe atingiam com o fortalecimento do poder do segundo Napoleão.19.

A conhecida definição de classe formulada por Marx estabelece que o campesinato é e não é uma classe social, não logra um projeto de classe para si, precisa ser representado por outra classe e por isso a ditadura centralizada contempla seus interesses, sobretudo em contextos de crise e incerteza:

“Seu representante tem, ao mesmo tempo, que aparecer como seu senhor, como autoridade sobre eles, como um poder governamental ilimitado que os protege das demais classes e que do alto lhes manda o sol ou a chuva. A influência política dos pequenos camponeses, portanto, encontra sua expressão final no fato de que o Poder Executivo submete ao seu domínio a sociedade” (Marx, 1978, p. 116)20.

19 À diferença da primeira Revolução Francesa, quando as classes burguesas se apoiavam nas classes mais radicais e

foram substituídas por elas (“linha ascensional”), na Revolução de 1848 teria ocorrido o contrário. As classes que davam sustentação eram as conservadoras e estas derrubaram as mais radicais do poder: primeiro caiu o proletariado, depois a pequena burguesia e por último a própria burguesia “abre mão da coroa para manter a bolsa” (Marx, 1978; P. 63). A centralização do poder em Luis Bonaparte constitui a renúncia do exercício do poder político direto pela burguesia, então dividida, ao mesmo tempo em que significa um governo forte contra a ameaça revolucionária e em favor da ordem burguesa, com o apoio do campesinato e do lumpem-proletariado. Trata-se de um governo indireto que representa o conjunto da burguesia, diferentemente do parlamentarismo que é o governo direto e permite uma representação das frações de classe e possibilita uma melhor acomodação dos interesses diversos no seio da burguesia (Sachs, 1967).

20 Marx faz uma ressalva neste trecho para dizer que Luis Bonaparte representa o campesinato reacionário, que

procura estabelecer a pequena propriedade acima de tudo, é preconceituoso e mesquinho, ao contrário do campesinato revolucionário que teria relações com a cidade e sabe que seu destino está ligado ao destino do

Referências

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