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CIVIL Contratos Teoria Geral e Contratos em Espécie

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2021

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Curso de Direito

CIVIL

CRISTIANO CHAVES DE FARIAS

NELSON ROSENVALD

Contratos

Teoria Geral e

Contratos em Espécie

revista, ampliada e atualizada

11

a

edição

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C A P Í T U L O I

Introdução à Teoria Geral

dos Contratos

Sumário • 1. O direito civil constitucional: 1.1 O direito civil na feição liberal; 1.2 A humanização

do direito civil; 1.3 A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas; 1.4 Perspectivas para o direito civil – 2. O contrato e a Constituição Federal: 2.1 A materialização dos contra-tos; 2.2 A liberdade contratual hoje: duas vertentes – 3. Contrato: evolução, conceito, local e tempo: 3.1 A evolução e o conceito do contrato; 3.2 Localização do contrato no direito civil; 3.3 O tempo do contrato.

“Confiança – o senhor sabe – não se tira das coisas feitas ou perfeitas; ela rodeia é o quente da pessoa.”

(João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas)

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CURSO DE DIREITO CIVIL • Vol. 4 – Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald

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1. O DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL 1.1 O direito civil na feição liberal

“O oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença”. Através das palavras de Érico Veríssimo é possível captar o humor das influências recíprocas entre a Constituição e o direito privado.

Com o advento do Estado Liberal, a convivência foi marcada pela total indife-rença.1 A começar pela edificação quase simultânea de um constitucionalismo liberal e do Código Civil Francês de 1804, alastrou-se pela Europa e, posteriormente pelo Brasil, a epidemia da clivagem entre Estado e sociedade. A dicotomia público-privado2 se insere em um contexto em que a Constituição era a ordem jurídica fundamental do Estado, enquanto o Código Civil traduzia a ordem jurídica fundamental da sociedade. Indivíduos formalmente iguais perante a lei buscavam a satisfação de seus interesses sem a interferência do poder público. O Estado era o inimigo a ser combatido, pois a classe social emergente desejava um espaço de autonomia para desenvolver suas atividades econômicas, infensas a controles externos.

Em seu perfil oitocentista, o direito civil possuía alicerces sólidos na proteção patrimonial. A propriedade e os contratos formavam os pilares de um regime dedicado à apropriação e à conservação de bens. Os direitos fundamentais se concretizavam com o livre estabelecimento de relações particulares, refletindo a clivagem entre o público e o privado, diante de um Estado ausente, espectador inerte do jogo do mer-cado, que só se manifestava, em última instância, para preservar as regras do jogo. Esse antagonismo afirmou uma primeira geração de direitos fundamentais em que o Estado se enquadrava como único sujeito passivo, os chamados direitos de defesa, com primazia ao indivíduo, os poderes constituídos seriam contidos e teriam a missão de respeitar o âmbito de autodeterminação dos particulares e proteger a propriedade. Trata-se de um ideal absenteísta, de preservação de direitos naturais e liberdades no seio da sociedade civil, convertendo-se súditos em cidadãos. A classe burguesa demandava a sua emancipação, respaldando-se na tradição jusnaturalista da prioridade do indivíduo sobre a comunidade.

A permanência estável do referido ambiente propiciou o desenvolvimento do comércio e a multiplicação de riquezas como nunca havia se experimentado na história

1. A summa divisio que fraciona o direito em dois ramos – público e privado – tem por marco histórico o Corpus Iuris Civilis. Contudo, Habermas situa tal bifurcação na Grécia. Nas cidades gregas, a esfera da polis,

comum aos cidadãos livres, era rigorosamente separada do oikos, particular a cada indivíduo. Esse modelo ideológico de esfera pública helênica se manteve contínuo e na Idade Média foi difundido através do di-reito romano. Com o surgimento do Estado moderno, há a nítida separação da esfera pública burguesa da privada. E à medida que a esfera pública se amplia, adquirindo aparentemente cada vez mais importância, sua função passa a ser cada vez menor (HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural na esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984).

2. Norberto Bobbio cunhou a expressão no artigo “A grande dicotomia: público/privado”. In: Estado, governo e

sociedade. 12. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005. Para Bobbio, o primado da política (público) ou da economia

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Cap. I • INTRODUÇÃO À TEORIA GERAL DOS CONTRATOS 73

Partindo dessas premissas fundamentais, de modo amplo, é possível classificar os fatos jurídicos, em sentido amplo, de lícitos (em conformidade com o ordenamento jurídico) em: (a) fatos jurídicos em sentido estrito, que decorrem de fenômenos naturais, sem intervenção humana; (b) atos jurídicos em sentido amplo, que são os aconteci-mentos decorrentes da exteriorização da vontade humana; (c) atos jurídicos em sentido

estrito, resultantes da subdivisão do ato jurídico lato sensu, caracterizados pela

vonta-de humana vonta-de que vonta-decorram efeitos previstos na norma jurídica; (d) negócio jurídico, também fruto da subdivisão dos atos jurídicos em senso amplo, tipificando categoria na qual a vontade humana escolhe os efeitos que decorrerão; (e) ato-fato jurídico, no qual o elemento humano é essencial para a sua existência, mas cuja produção de efeitos independe do ânimo, pois o direito reputa irrelevante a vontade de praticá-lo.

Existem outras classificações adotadas pela doutrina brasileira, ora prestigiando os efeitos decorrentes dos fatos, ora a natureza deles.69 Apresenta-se, entretanto, dotada de maior técnica a teoria construída na doutrina germânica (Kipp, Von Thur, Klein, Biermann, dentre outros) e abraçada no Brasil por Pontes de Miranda e Marcos Bernardes de Mello,70 identificando como elementos nucleares diferenciais para a distinção: (a) a conformidade, ou não, com o direito; e (b) a presença, ou não, de ato humano volitivo.

Assim, com o propósito de facilitar a compreensão da matéria, é possível de-monstrar graficamente a classificação adotada no seguinte esquema:

Fatos jurídicos Fatos ajurídicos (meramente materiais) Fatos lícitos Fatos ilícitos (ilícitos civis e penais) Fatos naturais (fatos jurídicos stricto sensu) Fatos humanos Atos fatos jurídicos Atos fatos lato sensu Negócio Jurídico (amplo poder de criar efeitos jurídicos) Atos jurídicos strictu sensu (adesão a efeitos previstos na norma jurídica)

69. Confira-se a respeito GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil, op. cit., p. 239. 70. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, op. cit., p. 98.

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Colocadas de lado as discussões doutrinárias relacionadas às teorias explicati-vas do negócio jurídico, é de Antônio Junqueira de Azevedo a feliz conceituação do negócio jurídico como “todo fato jurídico consistente na declaração de vontade, a que o ordenamento jurídico atribui os efeitos designados como queridos, respeitados os pressupostos de existência, validade e eficácia impostos pela norma jurídica que sobre ele incide”.71

Já considerado “a realização mais orgulhosa da doutrina do direito civil” (John Henry Merryman), o negócio jurídico não é fruto do direito romano, porém criação oitocentista do direito alemão. Inspirados no racionalismo e no método abstrato da razão, os pandectistas começaram a sistematizar todas formas de conduta humana juridicamente relevantes. O refinamento científico decisivo para a teoria partiu de Savigny, no volume III de seu “Sistema de direito romano moderno”, datado de 1840. Graças à tradução de sua obra, os seus fundamentos se espalharam mundo afora, havendo um certo consenso de que o núcleo do negócio jurídico é a declaração de uma ou mais partes destinada à produção de efeitos legais, determinando as suas próprias relações jurídicas, por via de contratos, declarações unilaterais de vontade, transações concernentes à aquisição de direitos reais, o ato do casamento, testamen-to, a criação de uma empresa, etc. A extensão dos efeitos de cada negócio jurídico variará em cada ordenamento, conforme critérios objetivos de adequação entre o ato de liberdade e outros interesses dignos de tutela jurídica.

A teoria do negócio jurídico cobre os mesmos problemas que as teorias que tratam apenas de específicos tipos de atos jurídicos – tais como contratos e testa-mentos – porém, com um maior nível de abstração, exigindo conexões sistemáticas entre as diversas áreas do direito privado. Isso explica o fato da “common law” peremptoriamente recusar a teoria do negócio jurídico, relegando para a teoria geral dos contratos a discussão sobre a formação, validade e interpretação de acor-dos de vontade. Já nos países em que a noção de negócio jurídico foi difundida academicamente, dois modelos se manifestam: de um lado, com inspiração no BGB alemão, o modelo que se serve do conceito de negócio jurídico na parte geral, como o instrumento por excelência para canalizar o exercício da autonomia privada e a partir daí sedimentar as regras de autodeterminação que serão utilizadas na parte especial; e, de outro, aqueles países que evitam legislar sobre o negócio jurídico, apenas providenciando regras para as suas específicas manifestações, sobremaneira no âmbito do direito obrigacional. Esse método foi aplicado no “code civil “francês e vários códigos por ele influenciados. O curioso é que mesmo nessas jurisdições, a doutrina cuida do negócio jurídico como conceito central do direito privado, vide a vasta literatura italiana sobre o tema.

Se na primeira metade do século XX o desafio da doutrina alemã foi o de transcender a clássica teoria da vontade para lidar com o emergente fenômeno das sociedades de massa – gerando interessantes doutrinas, como a dos contratos de

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Aliás, convém assinalar, por oportuno, que, em se tratando de desconformidade com o ordenamento jurídico, as invalidades dependem de expressa previsão legal, somente podendo estar caracterizadas por expressa previsão da norma jurídica. De modo simples, mas objetivo, é lícito afirmar que, desatendidos os requisitos de vali-dade (CC, art. 104), o negócio jurídico será inválido e, portanto, eivado de nulivali-dade ou anulabilidade.

A nulidade viola interesses públicos, cuja proteção interessa a todos, à própria pacificação social. A anulabilidade, por sua vez, é vício menos grave, comprometendo interesses particulares, servindo esta distinção para fixar, desde logo, a legitimidade para pleitear o reconhecimento da invalidade: em se tratando de nulidade, qualquer pessoa pode suscitá-la e o magistrado pode conhecer de ofício (art. 168, CC); se, por outro turno, o caso é de anulabilidade, somente o interessado poderá provocá-la (art. 177, CC).

Nessa linha de compreensão, a distinção entre nulidade e anulabilidade se prende às causas ensejadoras (motivos geradores) de cada uma das espécies e não aos efeitos ou ao modo com o qual se operam.87 Importa lembrar, ademais, que a invalidade classifica-se, sob outros prismas, em: i) originária ou sucessiva (se nasceu, ou não, com o próprio ato); ii) total ou parcial (se compromete a totalidade do negócio ou somente parte dele).

Consolidando a matéria, vale esquematizar as distinções entre as espécies de invali-dades do negócio jurídico no quadro que segue, facilitando a fixação do tema abordado:

DISTINÇÃO ENTRE NULIDADES E ANULABILIDADES

Nulidades Anulabilidades

Fundamenta-se em razões de ordem pública. Fundamenta-se em razões de ordem privada. Pode ser declarada de ofício pelo juiz, a

requeri-mento do MP, ou de qualquer interessado. Somente poderá ser invocada por aquele a quem aproveite, não podendo ser reconhecida de ofício. Não é suscetível de confirmação. É suscetível de confirmação ou redução. Não convalesce pelo passar do tempo. Prazo decadencial de quatro anos. Não produz efeitos. Produz efeitos, enquanto não for anulada. Reconhecida através de ação meramente

decla-ratória. Reconhecida através de ação desconstitutiva, sujeita a prazo decadencial. Admite conversão substancial. Admite sanção pelas próprias partes.

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Cap. I • INTRODUÇÃO À TEORIA GERAL DOS CONTRATOS 83

3.3.2 O direito intertemporal dos contratos

Preceitua o art. 2.035 do Código Civil:

A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entra-da em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referientra-das no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.

Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.

Elogiamos o legislador por fazer do Livro Complementar uma verdadeira lei de conflito, cuidando de normas temporárias e excepcionais, que regulam os efeitos futuros de situações jurídicas pretéritas. Indubitavelmente, as Disposições Finais e Transitórias auxiliam o operador do direito a desvendar labirintos que em princípio só poderiam ser enfrentados pelo auxílio no art. 5º, XXXVI, da CF e ao art. 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

As normas jurídicas, em princípio, regem as situações fáticas que ocorrem en-quanto estão em vigor. Todas as normas são vocacionadas a disciplinar o presente. Portanto, disciplinam situações que ocorrem no mundo empírico, no espaço de tempo que vai desde o momento em que entraram em vigor até aquele em que foram tácitas ou expressamente revogadas. Assim, as leis regram os fatos imediatamente, ou seja, a partir do momento em que passam a ser leis vigentes. Não são disciplinados pela nova lei fatos que ocorreram no passado, nem fatos que no futuro terão lugar depois de sua revogação. A lei, de regra, se aplica ao presente. Estudar regras de direito intertemporal é estudar regras que disciplinam de que modo devem as leis incidir nos fatos, ao longo do tempo. É por isso que se diz serem normas sobre como as

normas se aplicam, ou normas de superdireito.88

Certamente comentaremos o dispositivo mais polêmico dentre as normas mate-riais de direito intertemporal. O art. 2.035 faz uma simples indagação: quais são os

efeitos futuros dos contratos pretéritos?89

Aqui reina a controvérsia, pois, quanto aos contratos firmados antes do ad-vento do Código Civil de 2002, cujos efeitos já foram produzidos até 11 de janeiro de 2003, ninguém duvida de que apenas incidirá o Código Civil de 1916, pois são

88. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. O Direito intertemporal entre o processo e o direito material, In Relações

e Influências Recíprocas entre o direito material e o direito processual, p. 514.

89. STJ – “Há na norma supra transcrita, duas regras distintas, a saber: (a) a fixação da nova lei como diploma

regulador dos efeitos de quaisquer contratos, firmados anteriormente a vigência do novo código (caput); e, (b) a não prevalência de uma convenção, na hipótese de ela entrar em confronto com os princípios de ordem pú-blica introduzidos pela nova lei (paragrafo único). Ou seja: a hipótese ‘a’ destina-se a regular todos os contratos anteriores, incidindo unicamente sobre seus efeitos, que são mantidos; a hipótese ‘b’, por sua vez, destina-se a fulminar apenas alguns contratos (contrários a ordem pública), eliminando, portanto, de maneira completa a sua eficácia” (REsp 691738/SC, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 26.9.2005).

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fatos pretéritos. Outrossim, não há controvérsia quando afirmamos que os contratos subscritos a partir de 11.1.2003 serão inteiramente regidos pelo Código Civil de 2002, tratando-se de fatos futuros. Mas a celeuma instala-se na investigação dos chamados fatos pendentes, perquirição fundamental para diferenciarmos o efeito imediato do efeito retroativo da lei nova a situações jurídicas passadas.

Os fatos pendentes – ou em via de realização – separam-se em partes anteriores ou posteriores à data da vigência da lei nova. A parte pretérita do fato pendente concerne à alteração de consequências jurídicas que haviam sido determinadas pelas partes de acordo com a lei revogada. Se a nova lei dispõe sobre esses aspectos, ela será taxada de retroativa. Já as partes posteriores dos fatos pendentes ao tempo da vigência da nova lei serão por ela capturadas. Já não se trata de retroatividade, mas de hipótese de aplicação imediata da lei.

A retroatividade da norma pode ser dividida em máxima, média e mínima. Ela é máxima (ou agravada) quando a lei nova desfaz a coisa julgada ou os efeitos já consumados da relação jurídica sob a égide da lei anterior (v. g., lei que determine teto de juros com restituição dos valores já recebidos anteriormente, mas que ul-trapassem tal patamar). A retroatividade é média (ou ordinária) quando a lei nova incide sobre as partes anteriores (pretéritas) dos fatos pendentes. Ilustrativamente, seria o caso do ocorrido com a vigência do art. 3º do Decreto nº 22.626/33, ao impor teto de juros às prestações futuras de contratos já existentes, com percentual expressamente definido pelas partes. Por fim, a retroatividade é mínima (ou miti-gada) quando a lei nova determina a sua aplicação apenas aos efeitos futuros dos atos jurídicos pretéritos.

Aqui não há de se falar propriamente em retroatividade mínima, mas em apli-cação imediata da lei, pois, ao contrário das duas primeiras espécies de retroativi-dade (máxima e média), a lei não dá um salto para trás nem tampouco interfere em consequências que já haviam sido definidas pelos contratantes.90 Por isso também é conhecida como retroatividade aparente ou inautêntica, pois age sobre relações jurídicas passadas tão somente no sentido de disciplinar efeitos futuros.

Com base nas distinções efetuadas nos tópicos pregressos, constatamos que a norma descrita no caput do art. 2.035 refere-se exatamente à retroatividade mínima, porque o Código Civil atuará de forma imediata para os negócios jurídicos passados

90. STJ. Informativo nº 0566 Período: 8 a 20 de agosto de 2015. Terceira Turma DIREITO CIVIL. IRRETROATIVIDADE DE REGRA QUE PROÍBE REAJUSTE PARA SEGURADOS MAIORES DE SESSENTA ANOS. No contrato de seguro de vida celebrado antes da Lei 9.656/1998, é a partir da vigência dessa Lei que se contam os 10 anos de vínculo contratual exigidos, por analogia, pelo parágrafo único do artigo 15 para que se considere abusiva, para o segurado maior de 60 anos, a cláusula que prevê o aumento do prêmio do seguro de acordo com a faixa etária. Isso porque, no ordenamento jurídico brasileiro, vigora o princípio da irretroatividade da lei, pelo qual a lei nova produzirá efeitos imediatos a partir de sua entrada em vigor, não podendo prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 6º da LINDB e art. 5º, XXXVI, da CF). Ou seja, a regra é que a lei não retroage para alcançar fatos ocorridos no passado. Desse modo, as disposições contidas na Lei 9.656/1998 nunca poderiam retroagir, até porque, no passado, o direito agora previsto não existia. EDcl no REsp 1.376.550-RS, Rel. Min. Moura Ribeiro, DJe 17/8/2015.

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Cap. I • INTRODUÇÃO À TEORIA GERAL DOS CONTRATOS 85

apenas no que concerne ao que está por vir, sem tocar nos efeitos já consumados. Há uma correta separação entre os planos de validade e eficácia do negócio jurídico. A validade do ato será disciplinada pela lei vigente ao tempo de sua conclusão, in-dependente de qualquer alteração posterior. Exemplificando, não se pode questionar a anulabilidade de um contrato efetivado até 10 de janeiro 2003 em razão de estado de perigo, pois o referido vício de consentimento só ingressou no Código Civil de 2002 e aquele contrato é um ato jurídico perfeito.

Portanto, correto o Enunciado nº 204 do Conselho de Justiça Federal, vazado nos seguintes termos: “A proibição da sociedade entre pessoas casadas sob o re-gime da comunhão universal ou da separação obrigatória só atinge as sociedades constituídas após a vigência do Código Civil de 2002.” O enunciado se conecta com o artigo 977 do Código Civil: “faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória”. Cuidando-se de norma atinente à capaci-dade, localizada no plano da valicapaci-dade, apenas se aplicará o referido dispositivo às sociedades constituídas a partir de 11 de janeiro de 2003, já que no Código Civil de 1916 inexistia esta restrição.91

Porém, quanto à eficácia do negócio jurídico, aos contratos de execução su-cessiva no tempo, cujos efeitos não foram previstos pelas partes (partes posteriores dos fatos pendentes), aplicaremos o Código Civil de 2002 mesmo para os contratos efetivados antes de sua vigência. A título ilustrativo, mesmo que o Código Civil de 1916 não discipline a onerosidade excessiva, é possível aplicar a resolução contratual sugerida no art. 478 do Código Civil de 2002, tratando-se de ineficácia superveniente do negócio jurídico posterior a 11 de janeiro de 2003, sendo, portanto, alcançada pelo Código Civil de 2002.

Neste sentido, o Enunciado nº 164 do Conselho de Justiça Federal: “Tendo início a mora do devedor ainda na vigência do código civil de 1916, são devidos juros de mora de 6% ao ano até 10 de janeiro de 2003; a partir de 11 de janeiro de 2003 (data da entrada em vigor do Código Civil), passa a incidir o artigo 406 do CC/2002.”

91. De acordo com o art. 2.031 do Código Civil, as associações, sociedades e fundações, constituídas na forma

das leis anteriores, bem como os empresários, deverão se adaptar às disposições deste Código até 11 de janeiro de 2007. Este dispositivo parece conflitar com o nosso entendimento. Com efeito, questão tortuosa diz

respeito à imunização de cláusulas de contrato social anterior ao advento do Código Civil de 2002 com base na tese do ato jurídico perfeito. Caso assim se entenda, contratos que contenham cláusulas contrárias ao que determina a nova ordem civil não se submeteriam aos rigores do art. 2.031. Basta pensar em em-presa formada por cônjuges casados pelo regime da comunhão universal ou da separação obrigatória. A teor do art. 977 do Código Civil essa empresa não poderá mais subsistir, tendo os cônjuges a necessidade de alterar o regime de bens, substituir-se por outros sócios ou alterar a sua configuração para empresa individual. Sendo o ato jurídico perfeito aquele já consumado na vigência da lei revogada, tendo em sua égide produzido todos os efeitos, podemos dizer que nessa definição se encaixa o regime de bens com relação à constituição da sociedade entre os cônjuges. O ato jurídico perfeito gera o direito adquirido do casal à preservação da empresa nos moldes da formação originária, sem sofrer influência da restrição inaugurada pelo Código Civil de 2002. Caso assim não entenda a doutrina e os tribunais, deverá o casal pleitear a alteração incidental do regime de bens (art. 1.639, § 2º, do CC).

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O pagamento de juros se insere no tempo do cumprimento da obrigação, isto é, em seu plano de eficácia. Portanto, os contratantes se submeterão às normas em vigor quando do adimplemento/inadimplemento.

Nada obstante, a ressalva da parte final do caput, “salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução”, significa que, quanto aos efeitos futuros previstos pelas partes no passado (partes pretéritas dos fatos pendentes), não poderá a nova norma se imiscuir, prevalecendo a lei antiga, ao impedir-se a chamada retroa-tividade média. Assim, se as partes subscrevem contrato de prestação de serviços com expressa referência a um percentual de correção, mesmo que posteriormente venha um plano econômico impondo novo índice, as partes poderão preservar o pactuado, sem possibilidade de interferência da nova norma aquela relação jurídica.

Em conexão direta com a aludida ressalva, encontra-se o parágrafo único do art. 2.035. Ele seria uma espécie de “exceção da exceção”, à medida que impede que uma convenção elaborada entre particulares na vigência do Código Civil de 1916 possa produzir efeitos já na vigência do Código Civil de 2002, se estes violarem preceitos de ordem pública, como os garantidores da função social da propriedade e dos contratos. O parágrafo único representa fielmente o que se deseja de um di-reito civil-constitucional, cuja filtragem é conferida por didi-reitos fundamentais que potencializam o primado da pessoa sobre as atividades econômicas. O princípio da dignidade da pessoa humana é um limite à autonomia privada, legitimando o exer-cício da liberdade contratual, com respeito aos princípios da boa-fé objetiva e da função social dos contratos. Justifica-se aqui a aplicação da retroatividade média quando a lei nova é benéfica para a coletividade no sentido de maior proximidade aos ideais de justiça.

Nessa linha de raciocínio, por mais que determinada convenção condominial tenha expressamente referido a multa de 20% sobre o valor do débito – nos termos da Lei nº 4.591/64 –, não poderá ultrapassar o patamar de 2% fixado atualmente, cuidando-se de norma de ordem pública que objetiva evitar o abuso do direito sub-jetivo nas relações privadas (art. 187 do CC).

Ao contrário do que muitos possam imaginar, o art. 5º, XXXVI, não postula o princípio da irretroatividade da nova lei, mas o da retroatividade, pois a lei terá efeito imediato, apenas limitada pelo ato jurídico perfeito, pelo direito adquirido e pela coisa julgada. A retroatividade é a regra e será apenas qualificada como injusta se alcançar as três barreiras intransponíveis.

A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro define em seu art. 6º os limites da retroatividade. Segundo Gabba, o direito adquirido é aquele já incorpo-rado ao patrimônio de uma pessoa e que pode ser exercido a qualquer tempo, pois já se constituiu em direito subjetivo de seu titular. O ato jurídico perfeito, por sua vez, é o negócio jurídico fundado em lei e consumado no passado, pois todos os seus elementos constitutivos foram verificados. Ambos expressam valores derivados do ideal de segurança jurídica, mas não podem ser superdimensionados, sob pena

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Cap. I • INTRODUÇÃO À TEORIA GERAL DOS CONTRATOS 87

de engessamento do sistema jurídico e impossibilidade de atualização de modelos jurídicos. Ao defendermos a coerência do parágrafo único, também nos filiamos à visão de Miguel Reale, do direito como experiência, pois sempre devemos presumir que a lei nova é melhor que a anterior, posto sintonizada à cultura e à linguagem atual de determinada sociedade.

Acirradas discussões surgirão, tendo em vista que, desde a ADIn nº 493/DF, o Supremo Tribunal Federal defende a tese da absoluta irretroatividade da lei nova para os contratos em curso ao tempo do início de sua vigência. A lei do dia em que é feito o contrato comandaria toda a sua existência. Nessa linha seria afirmada a inconstitucionalidade do art. 2.035, por violar o pacta sunt servanda, porquanto mesmo norma de ordem pública não poderia ofender direitos adquiridos ao alcançar a causa do negócio jurídico, sob pena de injustificada restrição ao princípio da autonomia privada e da segurança jurídica dos contratantes, que depositaram a sua confiança na subsistência da norma vigente ao tempo da contratação.

Aliás, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 285 no sentido da inaplica-bilidade do Código de Defesa do Consumidor aos contratos anteriores a sua vigência, sob pena de afronta ao ato jurídico perfeito.

Finalizando, todo o esforço por conferir merecimento à norma em comento re-sulta de uma necessária ponderação por ela executada entre os valores de segurança e justiça, que se encontram em constante tensão. Ao contrário do Código Civil de 1916, que exalava os ares liberais do século XIX e da “era da certeza”, mesmo que às custas do sacrifício de justiça, a tentativa do Código Civil de 2002 foi a de bus-car conciliação entre um ideal de justiça – em uma era marcada por “incertezas” do pós-moderno – com um mínimo de segurança jurídica.

3.3.3 O direito intertemporal e COVID

Ao tratarmos de direito intertemporal, não podíamos nos abster de tecer bre-ves considerações sobre a lei que cuida dos impactos da pandemia de Covid-19 nas relações privadas. Em meio ao cenário turbulento, o Estado assume o necessário protagonismo na coordenação das ações de enfrentamento ao vírus e adota medidas interventivas de variados graus na vida dos cidadãos e na economia dos diferentes países.92 Seguindo tal ordem de considerações, o legislador brasileiro, visando a evitar

92. Despontam iniciativas legislativas a regular os efeitos da pandemia nas mais diversas esferas da vida, sejam de direito público ou privado. Ilustrativamente, na Espanha, o Real Decreto-ley 11/2020, de 31 de março de 2020, estabelece medidas de apoio a trabalhadores, consumidores, famílias e coletivos vulneráveis, além de também conter previsões de proteção às indústrias. Em Portugal, dentre outros diplomas legislativos, destaca-se o Decreto-Lei nº 10-J/2020, de 26 de março de 2020, que trata de moratórias excepcionais para proteção do crédito de famílias, empresas, instituições particulares de solidariedade social e demais entidades da economia social duran-te o período de calamidade provocado pelo coronavírus. Em 27/3 a Alemanha adaptou a legislação aos efeitos da pandemia do Covid-19.3, por meio de diversas intervenções no âmbito dos Direitos Civil, Empresarial, Falimentar e Recuperacional e Processual Penal (Lei para Amenização

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ou, ao menos, a conter o caos que se avizinha, lança mão de pacotes normativos em regime de emergência, com profundos impactos na disciplina da responsabilidade civil aquiliana e contratual. No Brasil, a proliferação de leis e medidas provisórias para lidar com os impactos do coronavírus é igualmente intensa. Diversos são os diplomas promulgados para tratar do tema desde 7 de fevereiro de 2020, data da publicação da Lei 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia do coronavírus. Destacamos a lei que institui “Regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de direito privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19)” – Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020, sendo publicada em 12 de junho do mesmo ano, data em que entrou em vigor.

A Lei 14.010, de 10 de junho de 2020 (RJET), propôs-se a regular relações jurí-dicas de direito privado durante a pandemia do coronavírus. Infere-se a preocupação do legislador em não revogar normas jurídicas vigentes, mas tão somente normatizar pontualmente as relações de direito privado ao longo da situação da emergência, no interior dos limites temporais assinalados em lei. Com tal desiderato, destacam--se, de suas previsões específicas, a suspensão ou impedimento, conforme o caso, dos prazos prescricionais, assim como dos prazos de aquisição de propriedade por usucapião, a partir da vigência da lei até o dia 30 de outubro de 2020, bem como a impossibilidade de concessão de liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo por falta de pagamento. A lei também modulou o início de vigência da LGPD, que entrou em vigor no dia 1º de agosto de 2020, mas somente terá suas sanções e penalidades produzindo efeitos a partir de agosto de 2021.

A lei em questão trata, ainda, dos temas da resilição, resolução e revisão dos contratos (arts. 6º e 7º). A pandemia tem provocado gravíssima recessão econômica e, por isso mesmo, os meca-nismos de reequilíbrio econômico dos pactos são de crucial importância nesse contexto. A exclusão, tout court, de revisão e resolução dos contratos em hipóteses de aumento da inflação, de variação cambial, de desvalori-zação ou de substituição do padrão monetário, embora calcada em posi-cionamentos que se extraem de decisões judiciais prevalecentes no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, e de parecer tentar conter uma esperada hiper judicialização, esbarra no problema da inviabilidade de o legislador, em abstrato, classificar fatos futuros e definir aprioristicamente o que seja fator capaz de deflagrar revisão, resolução do negócio ou o que constitui caso fortuito ou de força maior. A final, apenas à luz do caso concreto será possível averiguar se a superveniência desses fatos se mostra capaz de preencher os requisitos previstos no artigo 478 do Código Civil a ensejar resolução por onerosidade excessiva, ou revisão judicial dos contratos (art. 317, CC), ou, ainda, caso fortuito e força maior (art. 393, CC). A preocupação em marcar a não retroatividade dos efeitos do fortuito e da força maior destina-se a evitar o

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