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Em busca da Idade Nova : Alceu Amoroso Lima e os projetos catolicos de organização social (1928-1945)

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GUILHERME RAMALHO ARDUINI

EM BUSCA DA IDADE NOVA:

ALCEU AMOROSO LIMA E OS PROJETOS

CATÓLICOS DE ORGANIZAÇÃO SOCIAL

(1928-1945)

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH – UNICAMP

Título em Inglês (title): Towards a New Age: Alceu Amoroso Lima and the Catholic plans for Brazilian Society (1928-1945).

Palavras chaves em inglês (keywords) :

Área de Concentração: História

Titulação: Mestre em História

Banca examinadora: Jefferson Cano,

Michael McDonald Hall,

Edilene Teresinha Toledo.

Data da defesa: 18-02-2009

Programa de Pós-Graduação: História

Arduini, Guilherme Ramalho

Ar22e Em busca da Idade Nova: Alceu Amoroso Lima e os projetos católicos de organização social. (1928-1945) / Guilherme Ramalho Arduini . - - Campinas, SP : [s. n.], 2009.

Orientador: Jefferson Cano.

Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Lima, Alceu Amoroso, 1893-1983 - Visão política e social. 2. Movimentos sociais – Aspectos religiosos - Séc. XX. 3. Centro Dom Vidal. 4. Vargas, Getulio, 1883-1954 - Política e governo. 5. Igreja e problemas sociais - Brasil - Igreja Católica.

I. Cano, Jefferson. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências

Humanas. III.Título. (crl\ifch)

Lima, Alceu Amoroso, 1893-1983 Social movements - Religious aspects Christianity and politics - Corporativism

Vargas, Getulio, 1883-1954 - Politics and government. Church and social problems - Brazil - Catholic Church.

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RESUMO

Este estudo trata de um intelectual brasileiro chamado Alceu Amoroso Lima, também conhecido como Tristão do Ataíde. Em 1928, ele assumiu publicamente a fé católica, tornando-se uma das vozes mais importantes da Igreja no Brasil durante as décadas seguintes. Em outras palavras, ele envolveu-se indiretamente em política, tornando-se o representante oficioso da Igreja para assuntos ligados à política e escreveu muitos livros e artigos. Entre as décadas de 1920 e 1940 ele demonstrava uma mentalidade reacionária, mas gradativamente tornou-se um defensor ardoroso da liberdade de imprensa e outros direitos civis, especialmente após a II Guerra Mundial. Nosso objetivo é compreender as causas desta mudança, assim como as conseqüências que isto trouxe para suas ações e escritos sobre o problema da organização das classes trabalhadoras de acordo a Doutrina Social da Igreja.

ABSTRACT

This study is about a Brazilian intellectual called Alceu Amoroso Lima, also known as “Tristão do Ataíde”. In 1928, he publicly adopted Catholicism, becoming one of the most important voices of the Church in Brazil throughout the following decades. In other words, he got indirectly involved in politics by becoming the semi-official delegate for political affairs and wrote several articles and books. In the late 1920s and 1930s he expressed a very conservative mindset; nevertheless especially after the II World War he gradually became a champion of freedom of speech and other civil rights. Our aim is to understand the causes of this change as well as the consequences it brought to his actions and writings on the problem of organizing the working classes according to the Catholic Social Doctrine.

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Para o Thiago, pois nada seria possível sem ele.

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, ao professor doutor Jefferson Cano, que em sua orientação apontou sempre com bom humor alguns caminhos que poderiam ser seguidos e os becos sem saída pelos quais a dissertação esteve prestes a entrar. Aos também professores doutores Michael Hall e Fernando Teixeira, por seus apontamentos e indicações de leitura ao longo de todo o mestrado , especialmente no momento da qualificação.

À FAPESP, que financiou dois dos três anos desta pesquisa através de sua bolsa de Mestrado.

Aos meus pais, Onivaldo Arduini e Eva Maria de Jesus Ramalho Arduini, pelo estímulo e o respeito aos momentos de “presença ausente”, pois sem a pesquisa silenciosa e solitária este texto jamais poderia ser concluído. Também agradeço a eles o enorme interesse que tiveram para que eu pudesse ter ao máximo possível meu tempo dedicado exclusivamente ao estudo. À Tárcia e a todos os inumeráveis amigos que me transmitiram sua confiança na minha capacidade de levar a cabo este estudo, apesar de minhas inegáveis limitações.

Aos funcionários das bibliotecas e arquivos pesquisados, muitos dos quais se tornaram amigos. Em especial, aos funcionários do Centro Alceu Amoroso Lima de Petrópolis: Pedro, Luciano, Márcia e Abel.

Agradeço ainda de antemão aos professores já citados M. Hall e J. Cano, somados à professora doutora Edilene Toledo, pelos comentários durante a defesa desta dissertação.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO... 13

CAPÍTULO I: O CENTRO DOM VITAL

E A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA... 25

1.1 Intelectuais Católicos e a Questão Social... 25

1.2 Da conversão à liderança do laicato... 39

CAPÍTULO II: A ORDEM

E A ORDEM POLÍTICA NACIONAL... 57

CAPÍTULO III: OS PROJETOS

DE ORGANIZAÇÃO SOCIAL E OPERÁRIA... 89

CAPÍTULO IV:

AS CONSTITUINTES DE 1934 E 1946... 111

CONCLUSÃO... 137

BIBLIOGRAFIA... 149

1. ARQUIVOS E BIBLIOTECAS... 149

2. FONTES... 149

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INTRODUÇÃO

Em dezembro de 1943, alguns universitários cariocas que faziam parte de uma agremiação católica intitulada Ação Universitária Católica se reuniram para celebrar o aniversário de 50 anos de seu fundador, Alceu Amoroso Lima, também conhecido pelo seu pseudônimo de Tristão de Ataíde. Em sua homenagem discursou um monge beneditino, dom Isnard, que fez a seguinte afirmação:

“Não houve nesses últimos anos obra social ou religiosa que não merecesse a sua atenção e o seu devotamento. Não tenho tempo para falar na Liga Eleitoral Católica, na sua atuação na Constituinte, onde o Sr. do lado de fora trabalhou talvez mais do que qualquer outro do lado de dentro. Os princípios católicos que ainda hoje temos na legislação são resultados ou conseqüências daqueles esforços. Os operários católicos, mesmo as equipes sociais, obra de periferia e aproximação, tiveram o seu apoio, mais do que isso, o seu impulso gerador.”1

A partir dessa passagem, é possível perceber que boa parte do prestígio adquirido por Amoroso Lima se originava da sua atuação no meio político e operário. De fato, ele fora o presidente da Liga Eleitoral Católica (LEC), criada nas eleições para a Constituinte de 1933-4 com o intuito de colher assinaturas de compromissos dos candidatos com as reivindicações católicas. Também exercera o cargo de presidente de honra das Equipes Sociais, grupos de jovens criados para conscientizar os operários da necessidade de seguir a doutrina da Igreja no que diz respeito à ordem social. Em outros termos, tanto a Liga como as organizações operárias auxiliadas por Amoroso Lima representaram estratégias para retomar esferas da vida social -- a política e o trabalho, respectivamente -- através da mobilização de uma grande massa conduzida por uma pequena elite, conforme Heitor da Silva Costa, um correligionário de Amoroso Lima, defendeu: “São, geralmente, as minorias organizadas que governam. Veja-se o que se passou na Inglaterra onde o partido liberal, que era minoria, foi árbitro da situação, apoiando o partido trabalhista que, por sua vez, não constituía maioria”. 2 Fora Amoroso Lima quem organizara os católicos para exigir o cumprimento das promessas

1 Dom Clemente Gouveia Isnard. “Sem título” A Ordem jan/fev 1944, pp. 12-3

2 Retirado de: “Ata da sessão do Centro D. Vital, realizada na sua sede, no dia 18 de setembro de 1931”. EM:

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de campanha que os deputados fizeram à LEC; foi também ele o responsável pela formação no seio do laicato de gente interessada pela a sorte dos operários.

Da mesma forma que Dom Isnard em 1943, atualmente diversos historiadores têm apontado para a importância deste intelectual na configuração da cena política nacional da primeira metade da década de 1930.3 No entanto, nenhum trabalho constitui como seu objetivo central a investigação das diversas atividades de Amoroso Lima na disciplinarização do operariado, conforme afirma Cândido Rodrigues: "(...) a historiografia que estudou as décadas de 1920 a 1940 ainda não deu conta de abordar com precisão o papel desempenhado, por exemplo, pelo sindicalismo católico ou pela 'proposta católica de organização da classe trabalhadora'".4 Por isso, sem negar a importância do que já foi escrito, o objetivo da presente dissertação é ajudar a preencher este silêncio. De início, este esforço se desdobra em uma biografia sumária de Alceu Amoroso Lima e sua presença no Centro Dom Vital. O Centro era uma associação de intelectuais católicos presidida a partir de 1928 por Amoroso Lima e que se estendia por diversas organizações, cujas atividades amparavam-se amparavam-sempre nos escritos oficiais da Igreja e na interpretação a eles concedida por alguns europeus católicos. Por este motivo, é imprescindível compreender melhor a doutrina social que direcionou a liderança de Amoroso Lima. O primeiro capítulo se inicia com este estudo, para em seguida passar a uma análise mais minuciosa de como funcionou o Centro e qual o papel desempenhado nele por Amoroso Lima.

Tão relevante quanto entender o papel de Amoroso Lima no interior do mundo católico é compreender seu julgamento ambíguo com relação à nova estrutura política surgida a partir de 1930. De uma crítica inicial à quebra da ordem constituída, ou seja, do processo pelo qual os revolucionários se instalaram no poder, ele passaria a uma colaboração indireta na esfera federal, que se iniciou quando ele ingressou na Universidade do Distrito Federal, em 1935, e durou até o início da década de 1940. A partir deste momento, seus temas mais importantes seriam a falta de liberdade e democracia no Brasil. As três posturas,

3 Para citar apenas três: FARIAS, Damião Duque. Em defesa da Ordem: aspectos da práxis conservadora

católica no meio operário em São Paulo (1930-1945). São Paulo: USP/Hucitec, 1998. RODRIGUES, Cândido Moreira. Alceu Amoroso Lima: matrizes e posições de um intelectual católico militante em perspectiva

histórica (1928-1946). [Tese de Doutoramento]. Assis: UNESP, 2006. SOUZA, Jessie Jane Vieira de Souza. Círculos operários: a Igreja e o mundo do trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.

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embora pareçam contraditórias entre si, são as respostas a um mesmo princípio: lutar pela adequação das leis e das relações de trabalho ao que ele considera “valores cristãos”, aplicados sobre a realidade brasileira. que ele desenvolveu a partir dos parâmetros morais e políticos após 1928 Para responder a essas perguntas, optou-se por vasculhar a coleção completa d’A Ordem, uma revista editada pelo Centro, em busca de artigos seus que tivessem algo a acrescentar ao debate sobre qual deveria ser o ideal de organização social no Brasil. Tendo em vista sua ascendência dentro da revista, julgou-se interessante verificar também seu diálogo com outros colaboradores.

Em um período politicamente conturbado, é notório o emprego constante pela revista de um vocabulário ligado ao tema da revolução: “período revolucionário”, “governo revolucionário”, discussão sobre a necessidade de uma “anti-revolução” ou de uma “contra-revolução”, etc. A “Revolução de Outubro” ou, dois anos depois, a “Revolução Constitucionalista”, ou ainda, durante todo o período, o “risco de uma revolução comunista”, foram temas sobre os quais a revista discorria com freqüência e que mereceram a atenção de um segundo capítulo. Será possível também perceber o diálogo de Amoroso Lima, editor-chefe da revista, com outros articulistas, uma vez que ela acolhia contribuições razoavelmente diversificadas, especialmente com Sobral Pinto, certamente um dos escritores políticos mais prolíficos da revista. Nestes artigos, as batalhas políticas em torno da consolidação do Estado chefiado por Vargas exigiram o posicionamento dos participantes d’A Ordem.

Ao mesmo tempo, eles sentiram também a necessidade de se posicionarem a respeito de outras propostas de transformação social, como o integralismo e o comunismo. Será interessante tentar entender como essas propostas se relacionaram entre si, pois embora comunistas e integralistas estivessem longe de constituir vozes majoritárias nas Câmaras Legislativas ou no bojo do Executivo, seria impossível entender o projeto católico sem conhecê-los. Por exemplo, é possível perceber uma preferência de Amoroso Lima pelo integralismo, durante a década de 1930, assim como um afastamento posterior dessa corrente. No início de 1935, ele declarou que a melhor opção (senão a única) para os jovens

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católicos que desejassem uma incursão na vida política seria confiar-se ao integralismo5. Uma década depois, entretanto, o próprio Amoroso Lima iria dedicar-se ao ataque aos integralistas como uma reminiscência do Estado Novo, ambos os quais deveriam ser renegados dali em diante6.

Se o segundo capítulo tratou da relação entre temas como revolução, comunismo e integralismo, o seguinte será dedicado aos projetos de organização social e operária. Nesse quesito em especial, a ação de Amoroso Lima merece considerável relevo, o que permite compreender melhor sua importância para a ação política da Igreja Católica brasileira na esfera federal do Estado no período. Foi ele um dos que mais contribuíram para que a situação dos operários fosse enfrentada pela revista em seus artigos e através de uma Confederação Nacional dos Operários Católicos. A importância de se tentar entender a análise e a ação de Amoroso Lima em conjunto se explica porque a análise de qualquer grupo social era sempre feita em associação com a escolha por um projeto de sociedade e, ao mesmo tempo, um caminho para alcançá-lo. Um exemplo do que esta idéia significa é a crítica ao “espírito burguês”, presente em diversos artigos7 que definem a “burguesia” mais como uma atitude do que uma posição social ou função econômica. Esta atitude consistia na valorização dos bens materiais, em detrimento do espírito. Dessa maneira, grupos como a família, a Igreja ou a corporação, que deveriam servir como esteios da sociedade, eram substituídos pelo mercado. O espírito cristão deveria substituir o burguês, pois caso contrário seu materialismo se espalharia por toda a sociedade e as portas se abririam para a consolidação do comunismo, expressão mais perfeita do materialismo. Tornava-se imperativo agir de forma rápida para impedir tal desastre, e Amoroso Lima era o primeiro a cumprir tal ordem através de seus múltiplos campos de ação.

Entretanto, de nada adiantariam os planos de organização social se eles não fossem autorizados pelo Estado. Este, por sua vez, não era um bloco monolítico: entre os ocupantes do poder Executivo e os do Legislativo, existiam interesses distintos e por vezes

5 Ver abaixo, a interpretação ao artigo: Tristão de Ataíde. “Catolicismo e integralismo – Parte III” EM: A

Ordem,fevereiro/35, p. 83. analisado na seção “Integralismo”. Conferir também a esse respeito: AMOROSO LIMA, Alceu. Memorando dos 90. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

6 AMOROSO LIMA, Alceu. “Comunismo, reacionarismo, Integralismo” EM: A Ordem out/1945, pp. 168-173. 7 Um exemplo é o editorial “Suicídio da burguesia” EM: A Ordem, fevereiro de 1931, pp, 70ss

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conflituosos, como ficou patente no caso da pluralidade sindical. Também é preciso levar em conta as diferenças que existiam no interior de cada um desses poderes, ocupados às vezes por grupos distintos. No caso do Executivo, os “revolucionários” disputavam espaço com os políticos. Em outras palavras, aqueles que haviam ascendido ao poder com a Revolução de 1930 e procuravam desempenhar algum papel de mudança social tinham que se bater com a ala “política” do governo, que procurava reacomodar a situação sem provocar grandes alterações. Veremos ao longo do texto que essa divisão se refletiu na maneira como Amoroso Lima enxergou as correntes revolucionárias em duas alas distintas: uma, pela continuidade, era vista como saudável, enquanto a outra era nociva ao Brasil. Também no Legislativo da época era possível perceber algumas dissonâncias entre aqueles que apoiaram (ainda que tacitamente) as emendas católicas e os que eram contrários às mesmas.

De fato, um dos principais momentos de diálogo entre os representantes da Igreja e os membros do Legislativo foram as Constituintes de 1934 e 1946, às quais dedicaremos atenção no quarto capítulo. Já se pode adiantar que em 1934 os membros mais atuantes neste sentido foram os eleitos pela Liga Eleitoral Católica do Ceará. Cerca de doze anos depois, muitos dos nomes reaparecerão para defender as reivindicações, junto à novidade de Hamilton Nogueira, eleito senador pelo Rio de Janeiro e um dos membros mais antigos do Centro dom Vital. A pesquisa se refere às duas Constituintes porque, embora a Liga (como as demais instituições criadas por Amoroso Lima) tenha sobrevivido ao final do Estado Novo, sua influência diminuíra consideravelmente. Por exemplo, se a pluralidade sindical foi uma das vitórias que ela alcançou no Parlamento com certa facilidade em 1934, esse tema será totalmente descartado em 1946. Com isso, não se pretende dizer que essa Constituinte será analisada a partir do estigma da ausência; não se pretende apreciá-la apenas pelo que poderia ter sido e não foi. A pena de Ataíde reserva surpresas intrigantes para quem imagina que a alteração no seu modo de pensar retiraria dela toda a influência que teve nos meios conservadores em 1934, conforme veremos ao longo da dissertação.

Antes, porém, de passar ao primeiro capítulo, seria proveitoso lembrar alguns dados biográficos de Amoroso Lima. Nascido a 11 de dezembro de 1893 da união de Manuel José de Amoroso Lima e de Camila da Silva Amoroso Lima, sua família se dedicava à fabricação

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e comércio de produtos têxteis8. Iniciou seus estudos em casa, sob orientação de João Kopke, um dos precursores da Escola Nova. Seu secundário foi feito no Ginásio Dom Pedro e concluído em 1908. Entre 1909 e 1911, Amoroso Lima freqüentou a Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. O último ano de sua formação acadêmica o encontrou trabalhando em um escritório de advocacia, mas não por muito tempo; desenganado com a carreira jurídica, tentou conduzir os negócios de seu pai e chegou a ocupar cargos menores ligados à carreira diplomática.

Entretanto, nada parecia satisfazer tanto o jovem Alceu como sua ocupação predileta: escrever crônicas literárias. A princípio, Amoroso Lima assinava-as como “Tristão do Ataíde”. Ele o fazia em parte porque estava preocupado com a repercussão que uma atividade como essa poderia ter na sua carreira profissional e em parte pela insegurança sobre a qualidade de sua produção. Contudo, pouco tempo após começar a usar o pseudônimo, teve o desleixo de esquecer uma crônica assinada desta forma sobre seu gabinete de trabalho na fábrica de seu pai. Após ser desmascarado, passou a usar indiferentemente o nome e o pseudônimo, pois como ele viria a declarar em 1957, um e outro representavam a mesma personalidade na escrita9. Já no início da década de 1920 seu nome tinha fama nos meios literários, graças principalmente a dois méritos. O primeiro deles foi o de ter compreendido e incentivado o movimento modernista desde seu princípio; antes disso, já se tornara consagrada sua maneira renovadoramente impressionista de escrever resenhas das obras literárias.

O ano de 1924 registra duas mudanças importantes na sua vida: casa-se com uma mulher de formação católica e passa a trocar correspondências com Jackson de Figueiredo. A morte inesperada deste, em 1928, marcará profundamente a vida de Amoroso Lima. Recém-converso, ele decide continuar a obra de seu mentor intelectual e passa a assumir inúmeras atividades, entre as quais a direção do Centro D. Vital, sobre o qual se discorrerá logo

8 Estes e alguns outros dados foram retirados do verbete: “Alceu Amoroso Lima” de Israel Beloch e Alzira

Alves de Abreu. Dicionário histórico Biográfico Brasileiro. (1930-1983, 3° VOL.) Rio de Janeiro: FINEP/FGV-CPDOC/Forense, 1984, pp. 189-191.

9 “[O pseudônimo] era uma parte profunda de mim mesmo. Nem mesmo era o outro eu, um eu diferente, o eu

literário, como houve quem o dissesse. Era uma parte indissociável de mim mesmo. Teria de carregá-lo, bem ou mal, comigo, até a morte.” AMOROSO LIMA, Alceu. Notas para a História do Centro Dom Vital. (introd. e org por: Riolando Azzi) Rio de Janeiro: Educam/Paulinas, 2001, p. 57.

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abaixo. Durante a década de 1930, presta dois concursos universitários mal-sucedidos antes de se tornar professor da Universidade do Brasil; foi também professor da Puc-Rio, cuja fundação em 1942 foi o resultado de uma década de esforços de Amoroso Lima. Publicou muitos livros, nos quais condensava seus escritos espalhados por diversos periódicos da imprensa carioca.10 Durante as décadas de 1950 e 1960, assumiu postos importantes no cenário internacional, trabalhando para o Departamento de Cultura da Organização dos Estados Americanos em Washington (1951-1953) e para o Vaticano (1967-1972). Até o fim de sua vida, em 14 de agosto de 1983, foi um aguerrido combatente dos desvios cometidos pela ditadura de 1964 na questão dos direitos humanos11.

Seria impossível discorrer sobre Amoroso Lima sem lembrar a importância de Jackson de Figueiredo para este personagem. Os dois se conheceram dentro do círculo literário carioca e mantiveram intensa correspondência que fortaleceu a amizade, amparada por uma história de vida e interesses intelectuais muito semelhantes. Figueiredo nasceu em Salvador, onde cursou a faculdade de Direito, na qual vivenciou o agnosticismo e a defesa do positivismo e do liberalismo – uma característica comum aos cursos de Direito da época, como viria a afirmar Amoroso Lima. Após a obtenção do diploma, Figueiredo mudou-se para o Rio de Janeiro, onde teve influências de pensadores católicos como Farias Brito e se converteu ao catolicismo em 1917. Desde então colocou seu talento literário a serviço da Igreja através da colaboração com os principais representantes da Igreja no período, entre os quais o jesuíta Leovegildo Franca e Sebastião Leme, bispo do Rio de Janeiro. Estes dois novos amigos tornar-se-iam referência para Figueiredo.

De acordo com Margareth Todaro12, que teve acesso a alguns escritos pessoais deste autor, sua conversão ao catolicismo se deu possivelmente por sua instabilidade psicológica,

10 Esboço de uma introdução à economia moderna. Rio de Janeiro: Centro D. Vital, 1930. Preparação à

sociologia. Rio de Janeiro: Centro D. Vital, 1931. Economia prépolítica. Rio de Janeiro: Livraria Católica, 1932. No Limiar da Idade Nova. Rio de Janeiro: José Olympio, 1935. Indicações políticas. Da revolução à

constituição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1936. O problema do trabalho: ensaio de filosofia

econômica. Rio de Janeiro: Agir, 1947.

11 Uma boa síntese da biografia de Amoroso Lima está disponível na introdução da tese de doutorado de

Cândido Moreira Rodrigues: Alceu Amoroso Lima: matrizes e posições de um intelectual católico militante em

perspectiva histórica - 1928-1946. Assis: UNESP, 2006, pp. 11-15.

12 TODARO, Margareth. “Chapter I: Jackson”. Pastors, prophets and politicians: a study of the brazilian

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perceptível nas cartas enviadas a seus amigos. Todaro postula a existência de uma desordem interior sublimada por Jackson na procura de verdades absolutas que pudessem organizar o mundo nas suas diferentes esferas. Este comprometimento com a “ordem” e a “harmonia” se expressou através da adoção do pensamento de um dos intelectuais católicos mais importantes do período, Charles Maurras. Ligado à fundação da Action Française, Maurras é marcado pela sua defesa da monarquia associada à Igreja como o único regime legítimo, pois seria onde a autoridade poderia se exercer em toda sua plenitude. Figueiredo é o introdutor das idéias de Maurras no Brasil, e Amoroso Lima um dos seus interlocutores, como é possível perceber no trecho de carta abaixo, escrita por este:

“É preciso atender a que seja um princípio de autoridade justo, para que se consiga uma certa difusão, um certo assentimento, condição indispensável de toda vida social normal. Penso que esse é o pensamento profundo do autoritarismo de Maurras, contra o qual apesar disto veio a Igreja lembrar a necessidade fundamental de sobrepor a moral à política. É o sentido do legitimismo. O legitimismo não é apenas o sentimentalismo banal por uma família, mas o reconhecimento de um fio tradicional, de uma aliança histórica, de uma fusão indissolúvel entre os formadores de cima, de uma nação, a família real, – e os

formadores de baixo, o povo. E nisso está o princípio de justiça que converte o princípio de autoridade, de chicote em cetro." 13

É possível perceber neste trecho ao mesmo tempo a importância de Maurras no período e as diferentes interpretações que este autor recebe de Amoroso Lima e Figueiredo. Ao contrário da verve polêmica e radical de Figueiredo, Amoroso Lima prefere o diálogo da fé com a modernidade e alguma forma de conciliar o princípio da autoridade por vontade divina e por aclamação popular. Ao mesmo tempo em que travava uma luta intelectual para “reconverter”14 Amoroso Lima, Figueiredo desempenhava uma importante ação na esfera pública, em especial na fundação do Centro Dom Vital. Este grupo de pensadores católicos se pretendia a única alternativa válida entre um regime “liberal” moribundo e a “catástrofe” comunista.

13 Carta de Alceu Amoroso Lima a Jackson de Figueiredo, enviada em 24 de abril de 1927. AMOROSO LIMA,

Alceu. & FIGUEIREDO, Jackson. Correspondência : harmonia dos contrastes (1919-1928) (organização geral de João Etienne Filho). Rio de Janeiro : Academia Bras. Letras, 1991-92, p. 107.

14 Amoroso Lima havia recebido a catequese durante sua infância, mas logo em seguida abandonado a fé por

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Jackson de Figueiredo recusou todos os movimentos políticos e artísticos de seu tempo que não apostassem no catolicismo como uma tradição que precisava ser urgentemente resgatada. É por isso, por exemplo, que ele condenará o tenentismo e a maior parte dos artistas modernistas, com exceção de Menotti del Picchia e o verde-amarelismo. Em suma, a importância dada aos ensinamentos papais – e especialmente às encíclicas ultramontanas – ajudaram a constituir um pensamento capaz de satisfazer os anseios de parte significativa dos católicos brasileiros deste período, como afirma Todaro:

“Jackson acendeu um poderoso movimento católico baseado no conceito de regeneração moral nacional e na mobilização dos intelectuais católicos. Sua orientação européia coincidiu com a dos intelectuais católicos de classe alta, que não foram influenciadas pelos movimentos nativistas da época. As soluções que ele propôs para um Brasil sitiado não diminuíram – ao contrário, ampararam – a confortável relação com o governo, recentemente conquistada com dificuldade. Em poucas palavras, Jackson deu à elite da Igreja o que ela queria.” 15

O perfil de parte desta “elite da Igreja” à qual Todaro se refere foi pesquisado por Sérgio Miceli16, que encontrou alguns traços biográficos em comum entre os principais bispos do período. Eram representantes das oligarquias que dominavam os estados, mas que não tinham direito ao mesmo quinhão de poder dos seus irmãos mais velhos ou parentes. Para Miceli, uma vez findado o regime do padroado se forma um novo pacto entre Igreja e Estado, fincado em uma circunscrição menor (o estado, como sinônimo de província) e na origem comum das elites – as exceções cabendo a membros de famílias ricas, mas decadentes, e seminaristas sem referências, mas apadrinhados por alguma autoridade eclesiástica. Este é o caso do principal representante da Igreja neste período, o cardeal Sebastião Leme.

Filho de mãe viúva em sérias dificuldades financeiras, Leme foi amparado na sua formação como seminarista por Dom Joaquim Arcoverde, então bispo de São Paulo, o que lhe possibilitou completar seus estudos em Roma. Ao voltar para o Brasil, trouxe novas propostas que contemplavam a criação de um núcleo de intelectuais. Para este fim, ele contava com a contribuição de Jackson e outros nomes, como Hamilton Nogueira, Jônatas

15 TODARO, M. Op. Cit, p. 63.

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Serrano, Perillo Gomes, Heráclito Sobral Pinto ou Everardo Backheuser. Todos eram nascidos na década de 1890 e tinham como formação básica o Direito, com exceção de Nogueira, que estudou Medicina. Eram católicos fervorosos e durante a década de 1920 haviam atingido certa notoriedade em campos distintos: Serrano, por exemplo, se tornara professor de História e posteriormente subdiretor do Instituto de Educação. Nogueira, por sua vez, iniciou uma carreira acadêmica que culminou com a defesa da livre docência em 1929. Além disso, tinham em comum a amizade de Jackson de Figueiredo e seu sonho de formar um grupo de intelectuais católicos. Também é possível ampliar os horizontes e comparar este grupo de intelectuais católicos com os representantes de outros países, por exemplo, Rafael Caldera na Venezuela e Eduardo Frei no Chile. Ambos atingiram a presidência de seus respectivos países, fato que levou Olivier Compagnon a analisar o que chama de “tentação do político” 17. Ela significa a tendência de alguns católicos da América do Sul de recusar a noção de “tiers parti”, tal como formulada por Jacques Maritain, um filósofo francês convertido ao catolicismo.

Maritain defendia a articulação dos leigos fora do campo partidário para tratar exclusivamente dos assuntos de interesse da Igreja.18 Para os católicos sul-americanos, entretanto, o risco de ascensão do comunismo era tão grande que deveria permitir sua incursão na vida política. Compagnon acredita que este foi um fenômeno comum a toda uma geração que se tornara adulta entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, vivera experiências semelhantes em seus respectivos países e adotara os mesmos ideais, definidos da seguinte maneira:

“(...) a preocupação de não fazer frutificar os grãos da fé apenas no campo restrito de sua experiência pessoal, mas ao contrário de irrigar o máximo possível a vida da cidade. Para além da dinâmica do renacimiento católico que aparece como um fator interno à História da Igreja, o contexto do entre-guerras não é indiferente à aparição desta vontade militante cuja emergência se percebe em todos aqueles que se poderia nomear de ‘maritainistas de primeira hora’” 19

17 COMPAGNON, Olivier. Jacques Maritain et l’Amérique du Sud. Paris : Sepentrion, 2003. 18 COMPAGNON, O. Obra citada.

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No caso do Brasil, o projeto inicial de fundar um partido católico fora contido pela objeção de Dom Leme, capaz de frear os impulsos de Figueiredo neste sentido. O prelado queria evitar a todo custo a repetição de experiências como a da Action Française, na França, e do Partito Popolare Italiano, na Itália, que haviam entrado em conflito com o papa devido ao seu alto grau de autonomia vis-à-vis da autoridade pontifícia. Por este motivo, Dom Leme sugeriu a Figueiredo a criação de uma revista como a melhor estratégia para intervir na política. Foi, portanto, graças ao voluntarismo de Jackson de Figueiredo e à sua obediência à hierarquia eclesial que se fundou em 1921 a revista A Ordem. Por ser o primeiro caso de publicação católica de alcance nacional, em um momento conturbado da história nacional, a revista encontrou um terreno fértil para crescer e resolveu, desta maneira, os principais anseios da elite católica. No ano seguinte, fundar-se-ia o Centro Dom Vital, para mantê-la financeiramente a revista e supri-la de artigos.

O processo de criação do Centro é o cume de um processo histórico cujo início pode ser localizado na Questão Religiosa. Esta teve início em março de 1872, quando os bispos de Olinda e do Pará, respectivamente Dom Vital e Dom Macedo, afastaram membros da maçonaria das suas paróquias. A ação tinha conseqüências práticas consideráveis, dada a necessidade de todo súdito do Império estar inscrito a uma paróquia para gozar de seus direitos políticos. Ao fazerem-no, tomaram por base um comunicado pontifício que não havia recebido a chancela do Imperador brasileiro, um fato pouco usual. Deste modo, desafiaram a autoridade do Imperador, o que provocou sua ira e uma exigência de fidelidade dos bispos às suas ordens. Uma vez que ele próprio era maçom, proibia qualquer restrição à adoção da maçonaria pelos católicos brasileiros. O que poderia ter sido apenas um fato sem importância ganhou contornos dramáticos, como Norma Monteiro conseguiu resumir com acuidade:

“Nem o Estado tinha poderes civis para obrigar o bispo a um recuo em área religiosa, nem o capuchinho podia exercer sua autoridade religiosa isento dos riscos de represálias civis. (...) Os episódios da Questão Religiosa representam, assim, uma situação limite onde o sistema de união entre o Estado e a Igreja aparece em todo o seu esgotamento.” 20

20 MONTEIRO, Norma Gouveia. Alceu Amoroso Lima: idéia, vontade, ação da intelectualidade católica no

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A conclusão de Monteiro é que dali em diante esta união havia se tornado impossível e se fazia necessário para a Igreja repensar seu projeto de sociedade brasileira e do papel que ela mesma deveria desempenhar neste projeto. O impasse atingiu as bases da prática social da Igreja no Brasil e tomou o meio século existente entre as décadas de 1870 e 1930 para ser resolvido. Amoroso Lima marca o final deste processo de recuperação da participação da Igreja na esfera pública. Para entender como se deu este retorno, é preciso compreender melhor quais eram as bases religiosas a partir das quais estava construído o pensamento dos intelectuais do Centro. Para tanto, será preciso compreender melhor a doutrina social da Igreja neste período, tema do próximo capítulo.

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CAPÍTULO I:

O CENTRO DOM VITAL E A DOUTRINA SOCIAL DA

IGREJA

1.1 Intelectuais Católicos e a Questão Social

Nesta seção, será abordada tanto a doutrina social da Igreja, expressa através de documentos papais, como os escritos e ações de leigos que deram ensejo à escrita de tais documentos ou que se inspiraram neles. Como todo movimento cultural do final de século XIX e início do XX, havia uma considerável influência do Velho Continente sobre este lado do Atlântico, especialmente da produção intelectual francesa. Por outro lado, o mundo católico apresenta especificidades, e como nos lembra Conway21, é preciso levá-las em conta para não incorrer em rotulações prejudiciais para a compreensão destes fenômenos. Um exemplo: a aproximação dos movimentos católicos dos fascismos no pré-II Guerra Mundial não pode ser vista como uma experiência reacionária, assim como o crescimento da democracia cristã após o conflito não pode ser resumido a um “progressismo” vago e sem definição mais exata.

O início da preocupação da Igreja com os rumos que a sociedade tomava se deu graças às transformações advindas da Revolução Francesa, tais como o advento de um Estado laico; da organização do trabalho através de relações essencialmente impessoais e da idéia de que a sociedade deveria ser alicerçada no princípio de liberdade. Por este motivo, pode-se considerar Joseph de Maistre como o principal criador do pensamento católico conservador. De acordo com Candido Rodrigues22, a obra de Joseph de Maistre é essencial

21 CONWAY, Martin. “Introduction”. IN: CONWAY, Martin & BUCHANAN, Tom (orgs.) Political

Catholicism in Europe (1918-1965). Oxford: Oxford Press, 1996, pp. 1-33.

22 RODRIGUES, Candido. A Ordem: uma revista de intelectuais católicos. São Paulo/Belo Horizonte:

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para a compreensão de todo o pensamento contra-revolucionário francês do século XIX. Mais do que isso, influenciará as direitas do mundo todo até o fim da Segunda Guerra Mundial, graças à sua capacidade de argumentar em defesa de um modelo de sociedade rígido, marcado pela imposição de barreiras nítidas, de acordo com a posição social de seus integrantes.

De Maistre foi um nobre nascido em 1753 na província francesa da Savóia e formado em Direito em 1772, portanto ainda dentro de uma mentalidade ligada ao Antigo Regime. Em Considérations sur la France, de 1797, defende a idéia de que a Revolução foi um castigo divino pela perda dos franceses da noção de que a sociedade deve se organizar através do princípio da autoridade, representado em primeiro lugar pelo Papa, figura guardiã da ordem e da verdade. Em seguida viriam os monarcas, cuja autoridade só encontrava seu limite na vontade papal. Tanto a República como a soberania popular eram uma invenção absurda, diabólica. Em outras palavras, apenas aos reis caberia a liberdade absoluta, por vontade divina, enquanto aos súditos estaria reservado o grau de liberdade concedido pelo monarca.

Exilado de sua Savóia natal com a chegada das tropas revolucionárias, só voltou à França com o fim do Império Napoleônico, quando foi acolhido entre glórias. Desde então se tornou a principal voz da aristocracia que havia perdido o poder com a Revolução Francesa e que procurou recuperá-lo, encontrando em Joseph de Maistre sua expressão mais acabada. É nela que a Igreja se apoiará para defender o ultramontanismo, que constitui a tentativa da Igreja da segunda metade do século XIX de negar a modernidade e defender uma ordem social contrária a ela. Por antimoderno entenda-se a negação do direito à livre consciência, do direito de livre associação ou mesmo da expressão da vontade política da maioria. Ao chefe do Estado caberia determinar tudo, inclusive a religião a ser seguida por toda a sociedade, que naturalmente deveria ser a católica.

De Maistre formula uma teoria histórica para justificar a idéia de decadência na sociedade francesa. O caos social identificado com a Revolução só se justificaria pela influência nociva do protestantismo na história européia, destruindo a obediência à única e verdadeira religião, o catolicismo. Ao defender o princípio do livre-exame, Lutero teria plantado a semente do que seria a Revolução. Paradoxalmente, ela era vista como um flagelo enviado por Deus com o fito de regenerá-la, ou seja, de restaurar a França do Antigo

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Regime. Embora não formulasse uma teoria corporativista, seus escritos seriam importantes por criar uma imagem positiva do Antigo Regime e consolidar a idéia de uma sociedade hierarquizada como a única capaz de garantir a paz social. Joseph de Maistre também foi importante por questionar o princípio básico da soberania popular, denunciando o que considerava ser seus limites e contradições.

Outro nobre que sistematizou suas críticas ao movimento de 1789 foi Roger de Bonald. Nascido em 1756, alcançou a notoriedade em 1796, ano de publicação de Teoria do poder político e religioso. Durante a Monarquia de Julho, atingiu o cargo de Ministro de Estado. Em sua principal obra, De Bonald formula a idéia de um corporativismo montado a partir de uma série de contrapesos ao poder do Estado que, embora importante para manter a unidade do comando, poderia se desvirtuar e se tornar um despotismo. Cândido Rodrigues resume o pensamento deste intelectual ao dizer:

“A questão que ele formula é a de como evitar o puro e simples despotismo. A resposta incide no que Roberto Romano considera como a ‘imaginária comunidade’, em que ‘os corpos intermediários, instituições locais, freariam o poder central, apesar deste continuar ‘único, indissolúvel, geral, independente e absoluto.”23

Um dos idealizadores de uma forma política que se mantivesse próxima do anseio de Bonald foi o marquês de La Tour du Pin. Nascido em 1834, portanto em meio à Restauração, foi um militar em carreira ascendente até a Guerra Franco-Prussiana, de 1871, quando caiu prisioneiro dos alemães junto a seu amigo Albert de Mun. Na prisão, eles travaram um conhecimento mais profundo da doutrina social católica do período. Em seguida, participaram do rechaço à Comuna de Paris, quando se convenceram da necessidade de organizar o operariado em instituições que garantissem um mínimo de satisfação, tirando assim o espaço de atuação de comunistas e anarquistas. Neste intuito, mantém intensa publicação de artigos, reunidos no livro Vers un ordre social chrétien24(“Rumo a uma ordem social Cristã”). Esta é a primeira obra que cita o termo “corporativismo” como o modo de organização social católico por excelência. Logo no começo de seu texto, La Tour du Pin faz

23 Idem, p. 41.

24 LA TOUR DU PIN, Marquis de la. Vers un ordre social chrétien: jalons de route (1882-1907). Paris:

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um balanço da condição da sociedade francesa no momento em que seus artigos foram escritos. O clima é de crítica ferrenha ao liberalismo, considerado a origem de todos os males da sociedade, como se percebe na passagem a seguir:

“A ruptura com o liberalismo em religião, em economia, em política, é seu fio condutor do primeiro ao último passo. Esse era o erro reinante no momento em que esses escritos começaram. Em religião, [o liberalismo] ofuscara o senso católico e a obrigara a fazer o concílio do Vaticano. – Em economia, produzira o capitalismo e abrira por reação a porta ao socialismo. – Em política, fizera fracassar na França a restauração monárquica, que teria sido sua salvação” 25

É interessante observar a idéia de que o Vaticano era a potência máxima e o último guardião da esperança para a restauração de um mundo seguro. O texto faz também referência ao Concílio Vaticano I (1869-70), momento agudo de rejeição da modernidade. Por outro lado, constrói a atuação do Papa Leão XIII como aquele que combateu o liberalismo no campo social. Neste sentido, ele se insere em uma tradição que remonta a De Maistre, em sua obra Du Pape. Nesta obra, ele se atira aos pés do Papa como seu mais obediente fiel ao mesmo tempo em que define uma imagem bastante precisa de como este deve ser a fim de merecer tal devoção. Imagem essa que está ligada a uma função política bastante específica, de combate ao liberalismo. Note-se também a aproximação do capitalismo com o comunismo e a condenação de ambos como sistemas impróprios para a fé cristã e o monarquismo como a única salvação possível para a França.

Após a crítica virulenta ao liberalismo, La Tour du Pin destina-se a comentar o individualismo. A crítica ao cerne do conceito de indivíduo como sujeito de sua própria história manteve-se ao longo de diversas correntes de pensamento católico, ajudando a explicar, por exemplo, a aproximação de Amoroso Lima com idéias progressistas ao fim da Segunda Guerra. No texto a seguir aparece a citação a outro pensador francês católico de direita, Roger de Bonald:

“De sorte que o individualismo, do qual eles [os liberais] são a lei, nos faz emboscada novamente sob suas duas encarnações: o capitalismo que é seu florescimento burguês e o socialismo, que é seu fruto popular. Ora, essas são duas plantas muito exóticas,

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importadas do estrangeiro para infestar o solo francês, e é por sua introdução, não à nossa tradição, que se pode, infelizmente, aplicar esse julgamento histórico e transformado em profecia do visconde de Bonald: ‘São as idéias do estrangeiro que nos entregou às armas do estrangeiro” 26

Ao comparar o liberalismo e o socialismo a plantas exóticas, La Tour du Pin demonstra um outro aspecto de suas idéias sociais: a aproximação do social com o natural, resultando na afirmação de uma ordem pré-determinada ao equilíbrio que deve ser seguida. Como seres inadaptáveis ao clima social francês, o liberalismo e o socialismo só poderiam fazer morrer a seiva católica da nação. Também para Lima existiria uma essência nacional católica, que no caso do Brasil, corresponderia ao passado colonial e à herança portuguesa. As idéias vindas da Europa ao longo do século XIX teriam feito os brasileiros esquecerem essa realidade, sob prejuízo da nação.27

A partir dessa crítica ao liberalismo e ao individualismo, La Tour du Pin formula uma tese de divisão dos bens produzidos socialmente, levando em conta a idéia de reciprocidade, ou seja: de que devem imperar as relações baseadas nos direitos e nos deveres, ao contrário do liberalismo que deixa os indivíduos soltos e imersos em um sistema econômico impessoal. O patrão deveria se preocupar em formar uma caixa de pensão para garantir a velhice de seus funcionários e assegurar outras garantias econômicas para seus funcionários, pois isto justificaria a relação de desigualdade em seu favor, como testemunha a passagem seguinte:

“A medida de que o trabalhador e o empresário podem se reclamar reciprocamente esses bens é muito desigual: o trabalhador sem dúvida deve limitar suas exigências de salário ao valor real da mão-de-obra, ele deve até mesmo suportar as crises industriais com o patrão, ao invés de explorar tais crises, como acontece muito freqüentemente, contra o patrão; o empresário tem os mesmos deveres a respeito do trabalhador, mas em acréscimo o de lhe facilitar todos os meios de alcançar a posse do lar, a educação da família e a economia para os maus dias” 28

As primeiras frases já revelam o espírito deste texto, deixando o trabalhador de mãos atadas quanto à organização de um movimento operário autônomo. Seguindo a linha de raciocínio,

26 Retirado de LA TOUR DU PIN, Op. cit., p. 7.

27 Para confirmar essa idéia, ver no capítulo III desse texto a passagem em que Amoroso Lima cria uma teoria

histórica de intepretação do Império e da Primeira República.

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não haveria espaço para greves ou manifestações autônomas. É nesse sentido que se deve entender a idéia de “harmonia”, compreendida como a obrigação do trabalhador de resignar-se. A noção de “preço justo” para o salário também aponta que ele deve contentar-se em ganhar o valor de sua mão-de-obra, sem se preocupar com o lucro que o empresário pode ter em cima de seu trabalho.

Para conseguir estabelecer tal regime de justiça é que se estabeleceria o corporativismo. Mais do que isso, ele deveria ser o resultado de uma ação de pulso forte do Estado, não no sentido de criar as corporações, mas de fortificá-las e garantir os privilégios necessários para sua existência. De um ponto de vista mais prático, o corporativismo se organizaria através de três idéias básicas: a crítica ao individualismo, o corporativismo como solução para evitar a atomização da sociedade e, conseqüentemente, uma estrutura estatal que comporte o corporativismo. Dentro desta estrutura, La Tour du Pin pensa em quatro grandes corpos profissionais. A primeira seria a do Corpo Público, reunindo todas as instituições que não tivessem fins lucrativos, como, por exemplo, corpos docentes, funcionários públicos em geral ou instituições de caridade. Nela, apenas os chefes de cada associação tomariam assento. A segunda seria reservada aos profissionais liberais e teria representantes eleitos por voto direto e igualitário de todos os membros da corporação. A terceira e a quarta seriam reservadas, respectivamente, à Indústria e à Agricultura, e seguiriam os mesmos esquemas de representatividade da primeira.

Quanto às suas funções, as corporações se encarregariam de administrar um fundo comum, em benefício de seus membros. Também seriam responsáveis por garantir a qualidade dos membros empregados e a igualdade de condições no aprendizado, independentemente da origem social. Desse modo, a formação da hierarquia teria base exclusivamente no mérito. Trata-se de uma diferença em relação à prática do fim do Antigo Regime, quando o sangue falava mais alto que a virtude. Por fim, a corporação seria um canal de reunião dos diversos sindicatos para a eleição de representantes frente ao Estado para a profissão referida, conforme se pode depreender da seguinte passagem:

“Nós chamamos associação profissional ou sindicato a sociedade formada com o objetivo de defender os interesses profissionais entre pessoas de mesmo status e condição, corporação, a sociedade que une os diversos elementos da mesma profissão, isto é, seus empregadores, os trabalhadores manuais e de colarinho branco, numa sociedade perfeita

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do ponto de vista profissional; finalmente, corps d’État, o conjunto de todos os lugares onde a mesma profissão é praticada.” 29

O nobre francês não abordou em seus escritos um ponto importante, a saber, a administração dos conflitos de interesses que poderiam surgir a partir da associação de elementos de diversas posições na cadeia econômica em uma mesma associação. Para ele, haveria duas estruturas básicas e independentes na configuração do aparelho estatal. A primeira delas, formada pelas corporações, já foi vista alguns parágrafos acima. A segunda é a Câmara de Deputados, cujos representantes seriam eleitos por todos os chefes de família – em caso de ausência do pai, a viúva tomaria seu lugar. Acima da Câmara estaria o Príncipe e duas outras instituições para as quais ele apontaria os membros: o Conselho de Estado e o Senado. Além disso, o príncipe também teria direito a apontar alguns membros para a Câmara dos Deputados. No conjunto, eles formariam um equilíbrio de forças que impediria tanto o monarca de governar de forma absolutista quanto da Câmara de Deputados de obnubilar o poder real. Além de todas essas instituições existe ainda a Câmara dos Representantes, constituída por deputados eleitos através do voto profissional. Assim sendo, embora o príncipe fosse o poder reinante, ele deveria obter o consentimento da Câmara para aprovar impostos. Também na confecção do orçamento a Câmara teria direito à participação. Já o Conselho e o Senado teriam funções mais próximas, respectivamente, a um Executivo e a um Legislativo – mas sempre apenas como apoio ao rei, ou seja, com baixo grau de independência. A importância de ter um monarca no cume do Estado era que, pela garantia de sua estabilidade no poder, ele poderia colocar-se acima das disputas que invariavelmente marcam a vida política.

Para La Tour du Pin, o corporativismo não deveria se enfraquecer com os avanços na tecnologia, pois a mudança nos meios materiais não justifica a mudança nos fins aos quais ela se destina30. Para exemplificar essa tese, La Tour du Pin cita dois exemplos: o primeiro é

29 ELBOW, Mathew. French Corporative Theory, 1789-1948. New York: Columbia University Press, 1953, p.

70. Citando LA TOUR DU PIN, Aphorismes de politique sociale. Paris: Nouvelle Librerie Nationale, 1909. A tradução é minha.

30 LA TOUR DU PIN, p. 19. “Venceu-se de fato, essa natureza, pela indústria dos transportes e das

comunicações, que tende a fazer do mundo inteiro um mercado único dos produtos de todas as suas regiões, condição perante a qual aquela antiga organização do trabalho teve, diz-se, que desaparecer. Por que

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que o desenvolvimento da tecnologia militar não fez com que os exércitos perdessem sua ordem e disciplina. O segundo exemplo é que, da mesma forma que o uso do vapor como base energética teria obrigado a aglomeração de trabalhadores nas fábricas, facilitando uma cultura de solidariedade entre eles, a eletricidade talvez venha a fazer exatamente o contrário, separando as pessoas. Seria possível que a moral social devesse depender das evoluções tecnológicas? Ao propor a questão dessa maneira, a resposta parece evidente e favorável aos católicos, pois estes defendem sempre uma moral imutável e independente das condições materiais de uma sociedade. La Tour du Pin estabelece um quadro rígido de relações sócio-econômicas nas quais, e só nas quais, uma sociedade católica seria possível. No âmbito do interior de uma fábrica, por exemplo, existe clareza de definição de como devem ser estas relações:

“Após ter exposto acima o que acreditamos ser o princípio do regime corporativo – o reconhecimento de um direito próprio tanto pelo indivíduo de cada uma das classes que concorrem à produção formada entre esses elementos desde as corporações até o Estado – convém agora examinar quais são as práticas fundamentas que dão um corpo a esses direitos (...)

A existência de um patrimônio corporativo que participe da prosperidade da indústria; A constatação da capacidade profissional tanto do empresário como do operário; A representação de cada elemento interessado no governo do conjunto.” 31

Até aqui, vimos como o corporativismo, para La Tour du Pin, representa a única liberdade individual verdadeira e como ela só encontra sua total realização através da liberdade associativa – que, para o nobre, é algo diferente da associação liberal, que presume que as associações não possuam necessariamente nenhum vínculo com o Estado. Pelo contrário, este deve criar privilégios para as corporações. Existe a respeito das relações entre o Estado e as corporações, aliás, um interessante diálogo entre Montesquieu e as idéias de La Tour du Pin :

“Se esses princípios [de Montesquieu] são admitidos, é preciso reconhecer que eles só recebem sua justa aplicação se todos os elementos da associação participam de seu

desaparecer, em lugar de se transformar combinando seus princípios sociais eminentemente conservadores com as novas aplicações mais engenhosas?”

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governo, não de acordo com o número de indivíduos, mas de acordo com a ordem das funções sociais.” 32

Ou seja, a representação política poderia ser reconstruída a partir do sistema pré-existente, desde que a idéia de representação mudasse do indivíduo para a classe social e, mais do que isso, respeitasse a hierarquia natural. Ainda a respeito da representação, La Tour du Pin afirma:

“A função social, e não o simples fato da existência, é o que funda o cidadão em direitos políticos ativos. Ora, o exercício de uma profissão é uma função social, do qual os corpos profissionais são não apenas corpos sociais, instituições sociais, mas ainda os colégios eleitorais naturais e históricos dos corpos políticos."33

Essa mesma idéia de representação deveria ser aplicada dentro da direção das empresas, que não deveriam ser administradas por um indivíduo exclusivamente, mas por um colégio formado pelos três elementos que constituem suas relações: o capital, ou seja, os acionistas; a direção, representada pela administração, e por fim os operários. Levando em conta esses três elementos, La Tour sugere que cada qual deve possuir um voto no conselho deliberativo da empresa. Essa idéia mostra o avanço da idéia de corporativismo dentro do pensamento de La Tour du Pin, que chega a esboçar um novo conceito de propriedade, a qual se mantêm no âmbito do privado, porém não no individual. La Tour du Pin preocupou-se em delinear um mecanismo de participação política e econômica para esse grupo social sem que isso representasse um risco ao equilíbrio de forças então existente.34 Ao estabelecer uma dinâmica de colaboração interclasses, o corporativismo teria o benefício de estancar o declínio da sociedade, como demonstra a passagem abaixo:

“As vantagens do regime corporativo, pelo qual lutamos em substituição ao regime atual dito da liberdade do trabalho, são, segundo nós, o fim da decadência econômica pela lealdade da concorrência e a prosperidade do emprego, -- o fim da decadência moral pela

32 LA TOUR DU PIN, p. 31.

33 LA TOUR DU PIN, Op. cit., p. 125.

34 Amoroso Lima se aproveitará bem desse tópico e abordará com constância o desenvolvimento do operariado

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conservação dos lares e o retorno à vida de família; -- o fim da decadência política pelo restabelecimento de cada um da posse do Estado.” 35

Nesse último item, relacionado à posse do Estado, essa idéia se explica pela crítica que sai da voz de todos aqueles que são opositores ao liberalismo, de que o Estado estaria tomado por especuladores e parasitas, obstruindo por isso a produção econômica. O Estado que La Tour du Pin delineia é bem diferente e valoriza sobremaneira a moral e o trabalho, uma idéia que fica mais evidente, por exemplo, na defesa de leis que consagrem o direito ao repouso semanal e o trabalho de mulheres e crianças. Embora não coubesse a prelazia do Estado na formação da moral, ele poderia e deveria contribuir em colaboração com a Igreja, no sentido de restabelecer a ordem social:

“Ao contrário, apenas duas forças sociais estão ainda de pé: a Igreja e o Estado, uma para reanimar o espírito de caridade, o outro para restabelecer o feito da solidariedade. E é preciso recorrer a eles, isto é, ao padre e ao legislador: ao padre para nos ensinar o dever social, ao legislador para nos facilitar seu cumprimento.” 36

O pensamento social católico expandiu-se para além da França, como é o exemplo da União de Friburgo. Jessie Jane Souza37 comenta que, entre 1884 e 1891, diversas entidades e pensadores católicos da Itália, França, Bélgica e Alemanha se reuniram nesta cidade para chegar a um entendimento sobre como deveria ser tratada a questão do modo de vida dos operários. Entre seus membros havia, por exemplo, o italiano Giuseppe Toniolo, que dirigia uma série de obras assistenciais no norte de seu país, além de formular o que ele mesmo intitulava de “sociologia católica”. Basicamente, esta proposta consistia em formular um conhecimento científico alinhado com os ditames morais da norma católica, rompendo as barreiras estabelecidas por cem anos de influência iluminista que diziam ser impossível conciliar ciência e fé.

35 LA TOUR DU PIN, p. 32. 36 LA TOUR DU PIN, p. 124.

37 SOUZA, Jessie Jane Vieira de. Círculos operários: a Igreja e o mundo do trabalho no Brasil. Rio de Janeiro:

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Esta proposta seria retomada por Amoroso Lima, que a desenvolveria em uma obra do início da década de 1930.38 Ao comentar este aspecto da obra amorosiana, Norma Monteiro chama a atenção para sua ambigüidade.39 Preparação à sociologia se pretende uma leitura científica da realidade, conforme os padrões de imparcialidade associados à ciência neste período. Ao mesmo tempo, prevê uma teoria da ação social com uma finalidade a atingir amparada em argumentos de natureza moral. Esta mesma duplicidade é enxergada por Eliane Dutra em seu estudo sobre o imaginário totalitário.40 A partir de uma conferência de Amoroso Lima feita em Belo Horizonte em 1935 com o título “Educação e Comunismo”, Dutra refaz um raciocínio que constrói a imagem da sociedade como um corpo humano. A principal doença seria o comunismo, que deveria ser combatido através da doutrina social da Igreja, aproximado da medicina em termos de sua validade científica.

Jean-Marie Mayeur41 nota que nas reuniões da União de Friburgo nem sempre predominava a harmonia de opinião, visto que havia três posturas bastante distintas. A primeira era de uma minoria de “reacionários” que condenava a propriedade, o capitalismo e buscava uma ordem corporativa. Em vista do radicalismo desta postura política, este grupo acabou se aproximando dos socialistas. Outro grupo, ligado à escola de Le Play, substituía o Estado por iniciativas sociais de cunho paternalista como a melhor maneira de resolver o problema social, pois não acreditava em um Estado forte e interventor social como forma de resolver a questão social. Já outros intelectuais, notadamente Albert de Mun e Toniolo, sugeriam um meio-termo. Por causa dessa diversidade de opinião, considerada nociva por Leão XIII, desde muito antes de 1891 ele já havia se decidido a escrever um texto que findasse com as contendas. Isso não o impediu de se utilizar das idéias da União para escrever esse documento.

Devido à preocupação conciliadora que marca a Encíclica desde sua origem, ela possui um caráter de ambigüidade apontado por diversos especialistas, tais como Mayeur ou

38 AMOROSO LIMA, Alceu. Preparação à sociologia. Rio de Janeiro: Centro Dom Vital, 1931.

39 MONTEIRO, Norma Gouveia. Alceu Amoroso Lima: idéia, vontade, ação da intelectualidade católica no

Brasil. [dissertação de mestrado] Rio de Janeiro: PUC-RJ, 1991 p. 131.

40 DUTRA, Eliana. O ardil totalitário: imaginário político no Brasil dos anos 30. Rio de Janeiro/Belo

Horizonte: Ed. UFRJ/UFMG, 1997, P. 39.

41 MAYEUR, Jean-Marie. Catholicisme social et démocratie chrétienne: principes romains,expériences

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Vieira de Souza. Por exemplo, a Rerum Novarum deixou de enfrentar questões espinhosas, e, se por um lado se dispõe a dar mais atenção à sorte dos operários, por outro não permite a estes a atuação com vistas a solucioná-lo, reservando esse papel aos patrões. Essa Encíclica serviria de base para muitas experiências católicas futuras, e sua influência se fez sentir em uma visão de mundo marcada pelos conceitos de ordem e hierarquia. No interior do documento, a crítica ao capitalismo consistiu na idéia de uma ordem natural desrespeitada e na inexistência de hierarquias rígidas que limitassem a ganância de acumular riquezas excessivamente, ao mesmo tempo em que alguns dos elementos sociais ficariam a descoberto da proteção social. Como válvula controladora do sistema estaria a Autoridade, sinal de justiça e de harmonia, limitada na mão de alguns poucos e praticamente incontestável, cujo objetivo seria velar pelo bem comum. Este compreende, por sua vez, o combate ao socialismo através de duas medidas: a defesa da propriedade e o estímulo à sua disseminação por todas as classes. Simultaneamente à sua valorização, a propriedade passa por uma re-interpretação dentro dos moldes do neotomismo, conforme explica Vieira de Souza:

"(...) uma propriedade privada pública que pertence aos membros individuais ou comunitários da sociedade civil. O novo discurso, base do Estado moderno, articulou-se na conjugação de duas noções ético-jurídicas, o 'próprio' e o 'comum', e não mais na dicotomia entre o privado e o público, porque para o tomismo não há contradição entre a posse de algo como próprio, comum ou social. O importante é o uso que a comunidade faz da propriedade." 42

Contudo, a intensificação dos fenômenos ligados à industrialização deixou clara que a difusão da propriedade só nasceria de uma organização social mais ativa, através da "reforma das estruturas e mudança nos costumes" 43 com o intuito de promover a justiça social, conceito que se tornou central dentro do pensamento católico. Em torno de sua definição e das medidas necessárias para alcançá-la é que se formará a diversidade de movimentos

42 SOUZA, Jessie Jane Vieira de. Obra citada, p. 66. 43 Idem, p. 67.

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sociais do pré e do entre-guerras, todos eles amparando-se na Rerum Novarum para justificarem-se como válidos.44

Quando a Rerum Novarum completou seus quarenta anos, o papa Pio XI decidiu fazer um balanço dessas experiências sociais católicas, assim como posicionar-se diante da crescente crise do capitalismo liberal iniciada em 1929. Outro elemento que o motivou a escrever o documento foram as reações conservadoras, que propuseram alternativas de fortalecimento do controle dos Estados nacionais sobre a sociedade civil para impedir a crescente corrente comunista de alcançar o poder. Entre tais experiências destaca-se o fascismo, que contou com amplo apoio da hierarquia católica durante sua ascensão. No mesmo ano de 1931, em que surge a Quadragesimo Anno, é criada a Ação Católica. Esta última foi a maneira encontrada pelo Papa Pio XI de canalizar a participação dos leigos na defesa dos interesses da Igreja e de afastá-los da propaganda comunista.

Ao comentar esta segunda declaração pontifícia, Jessie Jane Souza chama a atenção para a importância conferida pelo documento às organizações intermediadoras da relação entre o indivíduo e o Estado, assim como entre este e a Igreja. Tais associações teriam um caráter corporativista, ou seja, de planejamento da economia a partir de sua função social e não mais da busca do lucro. Elas seriam marcadas ainda por uma colaboração entre patrões e operários.45 Essa idéia ganhou força em um período de crise do capitalismo liberal como uma alternativa ao socialismo. No caso do Brasil, a luta da Igreja para fundar sindicatos conformes a seus interesses trouxe em seu bojo a elevação das duas Encíclicas (Rerum Novarum e Quadragesimo Anno) a cartas-mestras de como deveria ser a sociedade brasileira e transformou o Centro Dom Vital em um defensor deste novo modelo de Igreja.

No Brasil, o primeiro intelectual católico a se debruçar sistematicamente sobre o tema foi o padre Júlio Maria, cuja obra principal data de 1900 e se intitula A Igreja e a República46. Nela, Júlio Maria constrói uma história nacional alicerçada na visão do

44 "(...) o conceito teológico de justiça abarca o todo social e cada pessoa em particular; e supõe a

universalidade do bem comum, que, articulado à noção de lei natural, permite diferentes apropriações do passado." SOUZA, Jessie Jane Vieira de. Obra citada, p. 68.

45 SOUZA, J. J. V. Obra citada, pp. 87-8.

46 MARIA, Júlio. A Igreja e a República: Memória sobre a Religião, Ordens Religiosas, Instituições Pias e

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