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A AUTONOMIA ESTÉTICA E O PARADIGMA DA ANTIGÜIDADE CLÁSSICA NO CLASSICISMO E NA PRIMEIRA FASE DO ROMANTISMO ALEMÃO

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A AUTONOMIA ESTÉTICA E O PARADIGMA DA ANTIGÜIDADE CLÁSSICA NO CLASSICISMO E NA PRIMEIRA FASE DO ROMANTISMO ALEMÃO

Izabela Maria Furtado Kestler (UFRJ)

„O artista é, decerto, o filho de sua época, mas ai dele se for também seu discípulo ou até seu favorito. Que uma divindade benfazeja arranque em tempo o recém- nascido ao seio materno e o amamente com o leite de uma época melhor, deixando-o que atinja a maturidade sob o céu distante da Grécia. Quando se tiver tornado homem volte, figura estrangeira, a seu século; não para alegrá-lo por sua aparição, mas terrível, como filho de Agamenão para purificá-lo. Embora tome a matéria ao presente, ele extrairá a forma de tempos mais nobres ou mesmo da unidade absoluta e imutável de sua essência para além de todo tempo.“(Friedrich Schiller)1

“A arte tem um direito inalienável à autonomia” (Friedrich Schlegel)2

Autonomia estética

A idéia de autonomia da arte surge em conexão com o desenvolvimento da sociedade burguesa a partir da segunda metade do século XVIII. A formulação de um estatuto autônomo da arte, livre dos entraves religiosos e feudais e independente do mecenato e das prescrições morais, implica na criação de obras de artes que tenham seu valor em si mesmas e não estejam presas a critérios de utilidade e nem ao cumprimento de funções, sejam elas quais forem, alheias à obra de arte em si. A obra de arte desta forma „flutua“ sobre quaisquer restrições ou imposições de ordem moral, social, religiosa e política, ou seja, sobre quaisquer imposições vindas de esferas não-estéticas. No máximo a obra de arte pode ter, dentro destes parâmetros, além da fruição estética propriamente dita indiretamente um efeito proveitoso para a vida prática sobre seus receptores.

A idéia de autonomia estética foi formulada pela primeira vez na obra de Karl Philipp Moritz Über die bildende Nachahmung des Schönen (1788), dois anos antes de ter sido exposta na Kritik der Urteilskraft de Kant, tornando-se assim um precursor de Kant. É importante lembrar que um trecho da obra de Moritz foi incluído no livro Italienische Reise de Goethe. „ O belo não

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tem o seu objetivo fora de si, e não é belo por causa da perfeição de outra coisa qualquer, mas sim por causa de sua própria perfeição interna. Contempla-se o belo não por que se precisa dele, mas sim ele só é necessário na medida em que possa ser contemplado“.3

Na obra de Moritz, o belo é separado radicalmente da idéia de utilidade e das necessidades práticas da vida. „ Nós não podemos reconhecer o belo de uma forma geral de nenhuma outra maneira que não seja completamente separado e distinto do útil“.4 Como se vê, esta teoria contraria frontalmente as concepções anteriores do século XVIII, nas quais vigorava o preceito do deletare et prodesse e com as quais Lessing, por exemplo, estava de pleno acordo.

„Pressuposto para a ´verdadeira fruição do belo´ portanto aquela - e neste ponto Goethe teve que se sentir justificado em suas próprias convicções - através da qual o belo mesmo surgiu: a prévia contemplação serena da natureza e da arte como uma

só totalidade“.5 Além disso, Moritz entende o belo como

„completude em si mesma“, idéia muito cara à Goethe. Complementar à formulação da autonomia estética, surge a idéia do gênio inato, exposta da seguinte forma na Kritik der Urteilskraft de Kant:

„Gênio é o talento (dom natural) que dá à arte a regra. Já que o talento, como faculdade produtiva inata do artista, pertence ele mesmo, à natureza, poderíamos também exprimir-nos assim: gênio é a disposição natural inata (ingenium), pela qual a natureza dá à arte a regra.(...) Vêse a partir disso, que o gênio -1)- é um talento, de produzir aquilo para o qual não se pode dar nenhuma regra determinada: não disposição de habilidade para aquilo que pode ser aprendido segundo alguma regra; consequentemente, que originalidade tem de ser sua primeira propriedade. 2) Que, como também pode haver insensatez original, seus produtos têm de ser ao mesmo tempo modelos, isto é, exemplares, portanto, eles mesmos não provindo de imitação, têm de servir, no entanto, a outros para isso, isto é, como justa-medida ou regra do julgamento. 3) Que ele mesmo não pode descrever ou indicar cientificamente como institui seu

produto...“.6 Kant fundamenta também o juízo do gosto, ou

seja, o juízo do que deve ser considerado belo ou não, no campo da subjetividade. „Gosto é a faculdade-de-julgamento de um objeto ou de um modo-de-representação, por uma satisfação ou insatisfação, sem nenhum interesse. O objeto de tal satisfação

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gosto no campo subjetivo, Kant retira-lhe a fundamentação lógica do entendimento, pois o primeiro não propicia nenhum conhecimento do objeto. Importante também é assinalar a distinção que Kant faz entre arte e natureza, ainda que um produto artístico tenha que parecer ser um produto da natureza. Aqui estão lançadas as bases do paradigma de uma teoria estética que advoga a autonomia da arte. Segundo Dieter Borchmeyer, „a poética e as teorias estéticas do classicismo de Weimar e do romantismo alemão foram as primeiras correntes artísticas da modernidade a propagar o conceito de arte autônoma, o princípio, de „ que a cultura através da arte deve ser seu próprio caminho, de que não pode ser subordinada a nenhuma imposição (carta de Goethe a Schiller, 12.8.1797) “.8 Não é possível aqui traçar o quadro completo das duas correntes apontadas acima. Abordarei primeiro o que um autor chama de coalização estética sob o signo do desengajamento político 9, ou seja, a consecução por Schiller e Goethe do projeto clássico. Proponho aqui a denominação projeto clássico em substituição à denominação ainda vigente de „classicismo alemão“, a qual tem sido questionada radicalmente nos últimos anos.

Nas últimas décadas, tem-se cristalizado a idéia de que a denominação Classicismo alemão seria um contra-senso, pois „ para Goethe e Schiller ‘clássico’ é exatamente o contrário de ‘alemão’ e ‘nacional’. ‘Não há nenhuma arte e ciência patriótica. Ambas pertencem como todo bem elevado ao mundo

todo’ diz Goethe nas Máximas e Reflexões“.10 Além disso,

muitos autores têm apontado para o fato, de que o conceito de uma época literária „Classicismo alemão“ surgiu entre 1835 e 1883 como apogeu espiritual que prefiguraria simbolicamente a unificação alemã. Ou seja, o conceito de „Classicismo alemão“ estaria inserido nas lutas nacionalistas. „Uma historiografia literária politizante formulou este mito nacional, que teria preparado e antecedido no campo político-cultural a unificação

alemã“. 11 Segundo Wilhelm Vosskamp, a fundamentação de

uma época literária heróica-nacional em torno de Schiller e Goethe no século XIX colocou no limbo vários autores que aparentemente não caberiam na formação deste cânone clássico. Ainda conforme Vosskamp, a criação de um cânone clássico implicou na homogeneização e sintetização de idéias diversas e programas estéticos até contraditórios com vistas a um conceito de totalização em torno de Goethe e Schiller. Tal processo levou também aos poucos ao alijamento e afastamento

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de autores e obras „não-clássicas“ do cânone do classicismo ao longo do século XIX, como por exemplo nos casos de Wieland, Klopstock e Lessing de um lado, e Kleist, Hölderlin e Jean-Paul

de outro.12 Vosskamp lembra também que a separação de um

classicismo alemão nacional da Aufklärung européia foi o passo inicial para a institucionalização de um modelo de periodização literária, que colocou o Classicismo como o apogeu literário com funções messiânicas de antecipação do objetivo político da unificação nacional.

„Redução da literatura clássica alemã aos ‘heróis’ Goethe e Schiller e concomitantemente o recalcamento da Aufklärung à posição de precursora do classicismo, a invocação autolegitimatória aos gregos e a esperança na concretização de um Estado nacional forte, unificado - depois que o Classicismo de Weimar antecipara a unificação no campo políticocultural -, estes são futuramente as três caraterísticas principais do historiografia literária nacional no século XIX“.13No Brasil, as historiografias da literatura em sua maioria seguem o modelo de periodização importado da França, classificando assim

Goethe por exemplo como autor romântico. 14 Além disso, o

curto período do Sturm und Drang é denominado na imensa maioria das historiografias literárias no Brasil de pré-romântico, fato este que revela o profundo desconhecimento da maior parte dos autores das continuidades e sobretudo das descontinuidades no campo estético-filosófico entre o Sturm und Drang e o movimento romântico posterior a ele. Não cabe aqui também raçar o painel da evolução paralela de Goethe e de Schiller até o encontro no dia 21 de julho de 1794, após a reunião da Sociedade de Pesquisa da Natureza em Jena. Neste contexto é fundamental assinalar que após a derrota dos exércitos prussiano, austríaco e inglês na primeira guerra de coalizão contra o governo constitucional francês em 1792, foi assinado em Basel em 1795 o tratado de paz em separado entre a Prússia e a França, que garantiu dez anos de paz nos territórios alemães, inclusive no Grão-Ducado de Weimar, pelo menos até 1806. Ou seja, esta pausa entre as guerras de coalizão contra a França foi fundamental para o surgimento e florescimento tanto do assim chamado Classicismo de Weimar quanto do primeiro núcleo romântico em Jena, cidade distante

10 km. de Weimar.15 É importante no entanto assinalar as

convergências mais relevantes, que vão configurar a partir de 1794 o que foi apontado acima como coalização estética sob o signo do desengajamento político. Ambos rejeitam e abominam

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a Revolução Francesa: Schiller a partir dos acontecimentos que levam à prisão e à execução do rei Luís XVI em 21.12.1793, e Goethe praticamente desde o início da Revolução em 1789. Partindo da constatação de um reinado de barbárie, Schiller conclui que o Iluminismo, a Aufklärung não bastam para aperfeiçoar as relações políticas; cabe segundo Schiller somente à arte „ no meio deste século indigno e bárbaro“ o papel de purificar a humanidade: „A liberdade política e civil continua a ser sempre e eternamente o bem mais sagrado, o objetivo mais digno de todos os esforços e o centro de toda cultura - mas só se vai realizar esta construção gloriosa em cima do fundamento sólido do caráter enobrecido; teremos assim que começar a criar cidadãos para a constituição antes de darmos uma constituição aos cidadãos.“16 Ecoam nestas palavras da carta de Schiller ao príncipe Christian von Augustenburg, datada de 13.07.1793, as idéias da educação estética que serão desenvolvidas mais tarde. Goethe, por outro lado, que nunca demonstrou nenhuma simpatia pela Revolução, o que não significa que tenha ignorado os acontecimentos na França ou os desdobramentos da Revolução em território alemão, como por exemplo em Campagne in Frankreich de 1792, publicado em 1824). Enquanto adepto da teoria do netunismo, segundo o qual a Terra teria sido formada por camadas morfológicas sedimentadas pela água, Goethe era contrário à teoria dos vulcanistas, para os quais a Terra fora formada por catástrofes vulcânicas. Goethe faz uma analogia aí destas catástrofes às reviravoltas violentas, às revoluções políticas, e como netunista Goethe propunha o processo evolucionário para as transformações políticas. (Vide a disputa entre Anaxágoras (vulcanista) e Tales (netunista) na „Noite de Walpurgis Clássica - Fausto II e na atuação de Seismos (Sismo) e suas consequências - sátira alegórica à Revolução Francesa). „A revolução significava para Goethe uma irrupção insuportável em sua visão da natureza e da história, determinada por idéias

de evolução morfológica.“17 A visão negativa da Revolução

Francesa está presente em várias outras obras de Goethe, como por exemplo em: a comédia Der Gross-Cophta (1791); a comédia Der Bürgergeneral (1792); o fragmento de um drama político Die Aufgeregten (1792/3); a novela Unterhaltungen deutscher Ausgewanderten (1795); a epopéia burguesa Hermann und Dorothea (1797) e o drama burguês (bürgerliches Trauerspiel) Die natürliche Tochter (1803). Além disso, as concepções políticas de Goethe foram influenciadas pela leitura

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da obra Patriotische Phantasien de Justus Möser de 1774, que defendia a manutenção da estrutura fragmentada de pequenos Estados alemães, nos quais a vida cultural poderia se desenvolver melhor. Tais concepções tornam Goethe radicalmente contrário à estrutura política de um Estado centralista, presente por exemplo na França. Seguindo estas idéias de Moser, Goethe vai mais longe e afirma numa conferência em 1813 em honra à memória de Wieland: „ A constituição do Reich alemão, que englobava tantos pequenos Estados, assemelhava-se à estrutura política das cidades-Estados gregas“.18

A par desta convergência política na rejeição à Revolução

Francesa, ambos compartilhavam da convicção da

exemplariedade, da perfeição existente na Antiguidade grega clássica. A produção poética e artística da Grécia é considerada o ideal de excelência, assim como as cidades-Estados gregas constituiriam o ideal de sociabilidade perfeita, o lugar e a época onde não há alienação, onde o ser humano pode ascender à totalidade. Denota-se aqui a fundamental importância das obras de Winckelmann - Gedanken über die Nachahmung griechischer Werke in der Malerei und Bildhauerkunst de 1755 e Geschichte der Kunst des Altertums de 1764 . Era convicção generalizada, também entre os primeiros românticos, que a Antigüidade clássica teria sido caracterizada pela unidade e totalidade, pela síntese entre beleza exterior e interior e pela harmonia entre corpo e espírito. Não cabe aqui apontar a cristalização destas idéias em Goethe e Schiller até 1794. Importante no entanto é assinalar que este ideal de perfeição, consubstanciado na Grécia antiga, estava em franca e aberta contradição com a realidade política, social, cultural e econômica da época histórica de Goethe e Schiller. Mais ainda: é este ideal de perfeição e de harmonia, inexistente no mundo real destes autores, que as respectivas e conjuntas produções literárias destes autores pretenderam prefigurar. O projeto clássico se funda então na tentativa de antecipação e prefiguração na literatura da harmonia supostamente existente na literatura grega antiga. E neste sentido o projeto clássico tinha que insistir necessariamente no alijamento de qualquer idéia de imitação da realidade e consequentemente na autonomia estética. Fundamental também é lembrar que com este projeto clássico, Schiller e Goethe se distanciaram enormemente de seus contemporâneos e sobretudo do público. Tal distanciamento pode ser verificado na produção conjunta

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de ambos, as Xenien, dísticos publicados em 1797, nos quais os autores fazem um ajuste de contas com as principais tendências literárias de sua época, como por exemplo, com o iluminismo tardio de um Friedrich Nicolai, o irracionalismo pietista dos irmãos Stolberg entre outros, com os jornais simpáticos à revolução francesa, com os irmãos Schlegel do círculo romântico de Jena e com a literatura trivial e seus autores. Infelizmente não é possível realizar uma análise exaustiva da produção literária de ambos os autores a partir de 1795 até a morte de Schiller em 1805 e nem de sua produção conjunta, como as Baladas por exemplo, escritas entre 1797 e 1798.

Assinalo aqui no entanto a importância de dois textos programático-filosóficos de Schiller: Über die ästhetische Erziehung des Menschen, in einer Reihe von Briefen de 1795 e Über naive und sentimentalische Dichtung de 1795/96. Estas reflexões sobre a literatura de sua época e seu posicionamento em relação à querela entre antigos e modernos são complementadas por Schiller em seu segundo importante tratado Über die ästhetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen [A educação estética do homem] escrito e publicado também em 1795. Arbordarei o segundo tratado mais adiante. Nas cartas de educação estética, Schiller apresenta suas idéias no tocante à educação pela arte para se atingir o ideal da humanidade. Diagnostica as cisões do mundo, o caráter mecanicista da existência e propõe como forma de se alcançar a harmonia perdida a educação estética:

„A humanidade perdeu sua dignidade, mas a arte a salvou e conservou em pedras insignes; a verdade subsiste na ilusão, da cópia será refeita a imagem original. Do mesmo modo que sobreviveu à natureza nobre, a arte nobre também marcha à frente desta no entusiasmo, cultivando e estimulando. (...) Mas como o artista se resguarda das corrupções de sua época, que o envolvem por todos os lados? Desprezando o seu juízo. Deve elevar os olhos para a sua dignidade e lei, não os baixar para a felicidade e a necessidade. Igualmente livre da atribulação vã, que quer imprimir sua marca no instante fugaz, e do fanatismo impaciente, que ao precário fruto do tempo aplica a medida do incondicionado, deve deixar ao entendimento a esfera que lhe é familiar, a da realidade; deve, entretanto, empenhar-se em engendrar o Ideal a partir da conjugação do possível e do necessário. (...) Ao jovem amigo da verdade e da beleza, que quer saber como ele, apesar de toda resistência do século, pode satisfazer ao nobre impulso em seu peito, responderei: ‘Dá ao

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mundo em que ages a direção do bem, e o ritmo calmo do tempo trará a evolução.“19

Schiller propõe aqui a educação estética como forma de emancipação verdadeira da humanidade. Para ele, só a educação estética tem o poder de realizar a transição entre o Estado de natureza e o Estado racional, moral. É nesta obra que Schiller expõe o ideal da autonomia estética e, ao fazer o diagnóstico da crise contemporânea e da brutalidade, violência e ignorância de sua época, patente em todas as classes sociais, aponta como corretivo desta situação o ideal estético. O diagnóstico de sua época, em contraste absoluto com a perfeição da Grécia antiga, está presente por exemplo na seguinte citação: „A natureza de pólipo dos Estados gregos, onde cada indivíduo gozava uma vida independente e podia, quando necessário, elevar-se à totalidade, deu lugar a uma engenhosa engrenagem cuja vida mecânica, em sua totalidade, é formada pela composição de infinitas partículas sem vida. Divorciaram-se o Estado e a Igreja, as leis e os costumes; a fruição foi separada do trabalho; o meio, do fim; o esforço, da recompensa. Eternamente acorrentado a um pequeno fragmento do todo, o homem só pode tornar-se fragmento; ouvindo eternamente o ruído monótono da roda que ele aciona, não desenvolve a harmonia do seu ser e, em lugar de imprimir a humanidade em sua natureza, torna-se mera reprodução de sua ocupação, de sua ciência. Mesmo esta participação parca e fragmentária, porém, que une ainda os membros isolados ao todo, não depende de formas que eles dão espontaneamente (...), mas é-lhes prescrita com severidade escrupulosa num formulário ao qual se mantém preso o livre conhecimento. A letra morta substitui o entendimento vivo, a memória bem treinada é guia mais seguro que gênio e sensibilidade.“20Diante deste estado de coisas, Schiller propõe a educação estética como meio para que o homem transite do Estado natural para o Estado moral, porque é a arte que intermedia a esfera da razão e a esfera sensível, material. É à educação estética então que cabe o papel político de moldar o Estado racional. „Esta função de realizar a transição entre um Estado e outro torna a educação estética uma contrapartida exata da revolução“.21Em vez do uso da violência revolucionária para transformar o Estado atual, Schiller propõe a utopia da evolução progressiva. Ao final Schiller apresenta o utópico Estado estético, contrapondo-o mais uma vez à violência revolucionária: „ Se já a necessidade constrange o homem à sociedade e a razão nele

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implanta princípios sociais, é somente a beleza que pode dar-lhe um caráter sociável. Somente o gosto permite harmonia da sociedade, pois institui harmonia no indivíduo. Todas as outras formas de representação dividem o homem, pois fundam-se exclusivamente na parte sensível ou na parte espiritual; somente a representação bela faz dele um todo, porque suas duas naturezas têm de estar de acordo. Todas as outras formas de comunicação dividem a sociedade, pois relacionam-se exclusivamente com a receptividade ou com a habilidade privada de seus membros isolados e, portanto, com o que distingue o homem do homem; somente a bela comunicação unifica a sociedade, pois refere-se ao que é comum. (...) No Estado estético, todos - mesmo o que é instrumento servil - são cidadãos livres que têm os mesmos direitos que o mais nobre, e o entendimento, que submete violentamente a massa dócil a seus fins, tem aqui de pedir-lhe assentimento. No reino da aparência estética, portanto, realiza-se o Ideal da igualdade, que o fanático tanto amaria ver realizado também em essência...“22

Se o projeto clássico vingou ou não, é uma questão que não pode ser respondida aqui, pelo menos por enquanto não. É certo no entanto que este resgate do clássico através da prefiguração ideal, através da tentativa de antecipar na obra literária o ideal de harmonia e de liberdade, que supunha-se terem sido presentes entre os gregos, torna este projeto extremamente generoso. Alguns autores condenam o projeto clássico e tacham-no de escapista, de regressivo, de aristocrático, de uma tentativa de fuga da realidade. Este projeto, no entanto, se expressa em Goethe numa apreensão e percepção total da natureza, do amor e da arte e em Schiller na insistência da busca da liberdade e da perfeição poética.

O conceito de Kunstperiode

Utilizo aqui o conceito Kunstperiode (período da arte) para denominar a produção estético-literária destes dois grupos. Este conceito foi cunhado por Friedrich Schlegel numa carta de 27 de fevereiro de 1794 a seu irmão August Wilhelm:

„O problema de nossa poesia me parece ser a fusão do essencialmente moderno com o essencialmente antigo; e se eu acrescentar que Goethe, o primeiro de nosso totalmente novo período da arte, já deu os primeiro passos no sentido de atingir esse objetivo, você irá compreender bem meu ponto de vista.“23

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Várias décadas mais tarde, Heine se apropriará deste conceito para realizar o desmonte das tendências retrógradas, conservadoras, monarquistas e catolicizantes do romantismo tardio, que ele também associa ao classicismo de Goethe, na obra Die romantische Schule (A escola romântica)24, escrita em Paris em 1833. A Escola Romântica deve ser vista também como uma refutação ao livro de Madame de Staël, De l’Allemagne, publicado em 1808, no qual esta, sob influência de seu mentor August Wilhelm Schlegel, traça um painel da literatura da Alemanha sob o signo do idealismo, enfocando sobretudo o romantismo e caracterizando os alemães como um povo de pensadores. Para Heine, o período da arte goetheano, iniciado no berço de Goethe, ou seja, por volta de 1750, teria chegado ao fim com sua morte em 1832. A obra de Heine é também ao mesmo tempo um tratado programático em prol de um novo período literário, no qual o próprio Heine se encaixa, período este voltado para a instrumentalização da literatura a serviço da revolução social. O que Heine condena no período da arte é exatamente a construção de um mundo independente, sem nenhum vínculo com a realidade material, assim como a revalorização do misticismo e da religiosidade da Idade Média e as tendências reacionárias presentes no romantismo, surgidas no decorrer das guerras contra o domínio napoleônico. Não cabe aqui traçar um quadro completo desta obra. Heine, por outro lado, apesar de condenar as idéias aristocráticas de Goethe, sua vinculação com o Antigo Regime, também refuta aqueles românticos ligados ao catolicismo que o consideram um autor pagão.

Aqui me aproprio do conceito de Kunstperiode (período da arte), caracterizando-o mais no sentido que lhe deu Friedrich Schlegel, para expor as convergências estéticas entre os clássicos e os primeiros românticos.

Convergências

Tornou-se praticamente consenso nos últimos anos no bojo dos estudos germanísticos na Alemanha a aceitação de uma convergência intrínseca entre as reflexões estéticas dos autores do Classicismo de Weimar (Goethe e Schiller) e aquelas dos autores da primeira fase do Romantismo, os irmãos Schlegel e respectivas esposas, Novalis e os filósofos Fichte, Schelling e

Schleiermacher, denominada de romantismo de Jena em

alusão à cidade na qual estes se reuniam. „Não há nenhuma razão objetivamente suficiente para se opor o assim chamado

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‘classicismo alemão’ ao romantismo da primeira fase, quando reconhecemos em ambos os grupos a esperança cultural histórico-universal seguindo a orientação do arquétipo grego como o elemento concordante de suas reflexões e poesia. Este elemento pertence à época histórica na Alemanha dos dez a quinze anos após a Revolução Francesa. É a época preparada por Winckelmann, Klopstock, Kant, Lessing, Wieland, Herder e Karl Philipp Moritz, na qual, estimulada pelas esperanças fracassadas da Revolução, foi invocada no campo do pensamento e da poesia a emancipação burguesa como libertação geral da humanidade.“25

Apresentarei aqui sucintamente algumas das convergências estéticas destes anos iniciais. A primeira surge por volta de 1795, em dois escritos fundamentais: Über das Studium der griechischen Poesie (Sobre o estudo da poesia grega) de Friedrich Schlegel, escrito em 1795 e publicado em 1797, e Über naive und sentimentalische Dichtung (Poesia ingênua e sentimental) de Schiller, publicado entre o final de 1795 e o início de 1796 na revista Horen. Ambos partem em seus textos de pressupostos análogos e desenvolvem reflexões autônomas do ponto de vista estético. Trata-se aqui de posicionamentos no contexto da Querelle des anciens et des modernes. Segundo Hans-Robert Jauss, Schlegel em seu Studium se encontrava num estágio intermediário e não havia ainda postulado uma categorização positiva da arte moderna. Além disso, ainda estaria preso ao ideal da grecomania, ou seja, estaria defendendo idéias de um ancien. Ele só chegaria a uma categorização positiva após a leitura do texto de Schiller.26 Ernst Behler, por outro lado, contesta esta tese de Jauss, lembrando que Schlegel realiza sua crítica à poesia contemporânea do ponto de vista de um moderno. Além disso, ele considerava a Antigüidade como o modelo eterno do belo e propunha uma relação dialética com esta que propiciaria o surgimento da modernidade genuína. Ou seja, em vez de se distanciar, de se desvencilhar do modelo da Antigüidade, a modernidade deveria travar uma disputa com a Antigüidade para alcançar o nível de excelência desta.27Há também no texto

supracitado de Schlegel uma concepção marcadamente histórica, pois segundo ele a história da literatura moderna se desenrolaria em três ciclos, sendo que esta estaria no momento ou na transição da segunda fase para a terceira ou no início desta fase. O primeiro ciclo seria o dos modernos mais antigos, introduzido por Dante. Shakespeare seria o apogeu e o fim do

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segundo ciclo, ao qual teriam se seguido dois séculos de decadência e ruína. O reinício desta história cíclica e da recuperação situa Schlegel a partir de meados do século XVIII. Goethe seria então dentro da visão schlegeliana a aurora na história da modernidade. O renascimento da poesia nesta terceira fase se apoiaria conforme Schlegel na reconstituição do

espírito objetivo da Antigüidade na época moderna.28 O

próprio texto, escrito com o intuito de municiar e fundamentar este renascimento da poesia, pleiteia o estudo aprofundado da antigüidade clássica como forma de se apressar a revolução estética, pois “a história da poética grega é a história natural geral da poética; uma visão perfeita e com força legal.”29 Esta absolutização da poética grega como paradigma retorna em outro estudo de 1804, publicado na antologia Lessings Gedanken und Meinungen (As idéias e opiniões de Lessing): “somente de um conhecimento aprofundado e abrangente da Antigüidade grega, combinado a um conhcimento também

aprofundado da essência romântica, pode resultar uma

imitação sólida e fundamentada ou melhor a revitalização e incorporação das grandes idéias da Antigüidade em nosso próprio ser”.30

Ainda em seu Studium-Aufsatz encontra-se seu repúdio ao cenário estético de sua época e às escolas estéticas então dominantes: o classicismo no espírito aristotélico; a “anarquia estética” dos cultores do gênio que vindos da Renascença têm seu apogeu no Sturm und Drang; e a idéia cultivada por círculos iluministas de que a arte não tem uma existência autônoma. É também contra estas escolas de sua época que Schlegel constrói o arcabouço teórico da revolução estética. Dentro deste contexto encontra-se sua tese da infinita perfectibilidade da arte, exposta no Studium-Aufsatz da seguinte forma: “A arte é infinitamente perfectível e um máximo absoluto não é possível em seu desenvolvimento eterno, é possível no entanto em certas condições um máximo relativo, um

quase máximo fixo insuperável.” 31 Esta idéia de eterno

progresso, uma das mais fundamentais para o entendimento do romantismo, encontra-se mais tarde num dos mais conhecidos fragmentos da revista Athenäum. Aqui Schlegel assinala as características da poesia universal progressiva e enfatiza a autonomia da arte:

„A poesia romântica é uma poesia universal progressiva. Sua destinação não é apens reunificar todos os gêneros separados da poesia e pôr a poesia em contato com a filosofia e a retórica. (...)

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O gênero poético romântico ainda está em devir; sua verdadeira essência é mesmo a de que só pode vir a ser, jamais ser de maneira perfeita e acabada. (...) Só ele é infinito, assim como só ele é livre, e reconhece, como sua primeira lei, que o arbítrio do poeta não suporta nenhuma lei sobre si.“32

Segundo Ernst Behler, Schlegel escreveu o Studium-Aufsatz posicionando-se como um republicano convicto. Seu Versuch über den Begriff des Republikanismus (Tratado sobre o conceito do republicanismo) é escrito em 1796, um ano após o Studium-Aufsatz, em ambos sua época ruim é “confrontada com a

antigüidade positivamente valorizada”.33 Não cabe aqui

abordar em profundidade as idéias políticas de Schlegel. Importante no entanto é assinalar que: “Ambos os tratados se correspondem também na postulação de um imperativo superior: do ‘imperativo estético’ no Studium-Aufsatz e do ‘imperativo político’ no Tratado sobre o republicanismo. Enquanto que o primeiro imperativo visa o belo superior ou o máximo absoluto da arte, o segundo se refere ao absoluto político, que para o republicano Schlegel consiste num máximo de liberdade, igualdade e fraternidade entre os homens.”34

Como seus contemporâneos, Schlegel compartilhou pelo menos até 1792 o entusiasmo pela Revolução Francesa. Rejeitou-a

também como todos os outros não tanto por causa dos

massacres e derramamentos de sangue, mas sim porque a Revolução não havia segundo ele cumprido as expectativas histórico-filosóficas da humanidade. A revolução teria se tornado então “o arabesco trágico da época”.35 Tanto Schlegel quanto Novalis acreditavam que a Revolução era somente o aspecto parcial malogrado de uma revolução, reviravolta muito mais ampla que já se delineava no horizonte. Foi também no intuito de fundamentar esta revolução universal, que instauraria o reino de Deus na terra, que Schlegel entendia seus estudos estéticos. Estudos estes que ele também considerava como contribuição à revolução estética.36

Em Über naive und sentimentalische Dichtung, Schiller demarca o espaço da modernidade literária em contraposição ao ideal da

antigüidade através dos pólos

ingênuo/sentimental;natureza/cultura; antigo/moderno. A

poesia ingênua, presente na unicidade do poeta grego com a natureza, dá lugar nos modernos à reflexão, ao sentimento da natureza. A partir da constatação de que entre os gregos a natureza não degenerou tanto ao ponto de que abandonassem a

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natureza, Schiller escreve que eles eram unos consigo mesmos e felizes no sentimento de sua humanidade. „Eles sentiam naturalmente; nós outros sentimos o natural. (...) À medida que a natureza foi, pouco a pouco, desaparecendo da vida humana como experiência e como sujeito (agente e paciente), nós a vemos assomar no mundo poético como Ideal e como objeto.(...) Já por seu conceito os poetas são em toda parte os guardiães da natureza. Onde já não o possam ser completamente, onde já tenham experimentado em si mesmos a influência de formas arbitrárias e artificiais ou tenham tido de combatê-la, surgirão como testemunhas ou vingadores da natureza. Serão natureza ou buscarão a natureza perdida. Daí nascem duas maneiras poéticas de criar completamente distintas, mediante as quais se esgota e mede todo o domínio da poesia. Todos os que realmente são poetas pertencerão ou aos ingênuos ou aos sentimentais, conforme seja constituída a época em que florescem ou conforme condições acidentais exerçam influência sobre a formação geral ou sobre a disposição momentânea de

suas mentes.“37 Apesar de apontar a superioridade da poesia

ingênua sobre a sentimental, assim como a superioridade dos gregos sobre os modernos, Schiller , dá aos sentimentais uma vantagem sobre os ingênuos: „No entanto, se o poeta ingênuo excede o sentimental em realidade e traz à existência real aquilo para o qual o último só pode despertar um vivo impulso, este, por sua vez, tem sobre o primeiro a grande vantagem de ser capaz de dar ao impulso um objeto maior do que aquele que foi e pôde ser produzido pelo primeiro.“38 Este objeto maior é o que Schiller chama de completude no Ideal, porque os ingênuos „são o que nós fomos; são o que devemos vir a ser de novo. Fomos natureza como eles, e nossa cultura deve nos reconduzir

à natureza pela caminho da razão e da liberdade.”39 Além

disso: “ A força dele (do poeta sentimental) consiste em completar por si mesmo um objeto defeituoso, e em transportar-se por seu próprio poder de um estado limitado a um estado de liberdade.“40

Segundo Helmut Koopmann: ”A harmonia perdida com a natureza leva o poeta sentimental a produzir a harmonia em si mesmo e como a natureza lhe escapou, ele só pode restabelecê-la numa forma ideal: a antiga idéia de mímesis é assim renegada indiretamente, a artificialidade da obra de arte moderna é defendida.“41Fica claro neste texto a influência de Rousseau, mas aqui a natureza é o estado que se deve alcançar. A maior parte dos autores aponta para a importância

(15)

fundamental desta obra de Schiller para o surgimento das teorias românticas.

Comentando décadas mais tarde a repercussão deste tratado de Schiller, observa Goethe:

„O conceito de poesia clássica e romântica, que agora corre o mundo todo e causa tanto conflito e divergência ... provém originalmente de mim e de Schiller. Na poesia, tinha eu por máxima o procedimento objetivo e pretendia que apenas este valesse. Schiller, porém, que atuava de forma inteiramente subjetiva, considerava a sua maneira a correta e, para defender-se de mim, escreveu o ensaio sobre poesia ingênua e sentimental. Demonstrou-me que eu próprio, contra a vontade, sou romântico e que, pelo predomínio da sensibilidade, minha Ifigênia não é assim tão clássica e tão no sentido antigo como talvez se pudesse crer. Os Schlegel aproveitaram a idéia, de modo que agora ela se difundiu pelo mundo inteiro, e todos falam de classicismo e romantismo, nos quais há cinquenta anos ninguém pensava.“42

Torna-se claro portanto que as idéias expostas acima estão dentro do contexto da busca de autonomia estética e também de demarcação e delimitação do território próprio da poesia em relação à época histórica. Não só Schiller, mas também Goethe e os primeiros românticos estão em campos diametralmente opostos à literatura de gosto trivial. Essa busca de autonomia se funde no caso de Schiller e Goethe à idéia de uma Bildung estética que emanciparia verdadeiramente o homem, criando o que Schiller chama de Estado estético, em que reinaria o ideal da Igualdade.

Não é por outra razão, que alguns autores denominam estas idéias de revolução estética que pretendia se contrapor à

revolução política de 1789 na França. O objetivo da

emancipação dos homens, malogrado nesta revolução, „necessitaria, segundo Schiller, primeiro de ‘uma revolução total em sua forma de sentir’ antes que uma ‘revolução no mundo exterior’ pudesse realizar os ideais da liberdade, igualdade e fraternidade.“43

A mesma preocupação move os primeiros românticos, que partindo da premissa de uma idealidade, de uma unidade já alcançada na Antigüidade, buscam atingir este ideal no futuro. Uma das obras que mais causou impacto entre os primeiros românticos foi o romance de Goethe Wilhem Meisters Lehrjahre (Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister), publicado também em 1795. Já no tratado Über das Studium der

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griechischen Poesie, Schlegel já afirmara que „a poesia de

Goethe é a aurora da verdadeira arte e da beleza pura“.44

Schlegel dedica a esse romance de Goethe um ensaio, denominado Über Goethes Meister (Sobre o Meister de Goethe) de 1798. Além disso, escreveu um outro de análise da obra de Goethe como um todo, no qual ele traça as diferenças entre o estilo juvenil e o maduro. Neste último, ele ressalta a importância do romance Wilhelm Meister de Goethe e propõe também uma fusão entre o clássico e o romântico.

„Apenas sobre o Meister preciso dizer ainda algumas palavras. Nele, três qualidades parecem-me as maiores e mais admiráveis. Em primeiro lugar, a individualidade, que irrompe em diferentes raios e é partilhada entre muitos personagens. Depois, o espírito da Antigüidade, que se reconhece em toda parte sob os envoltórios modernos, quando estes são examinados mais de perto. Esta grande combinação inaugura uma perspectiva inteiramente nova e ilimitada daquela que parece ser a mais alta tarefa de toda arte poética - a harmonia do clássico e do romântico.(...) Goethe purificou-se, em seu longo percurso, das efusões do ímpeto inicial, sempre possíveis numa época ainda tosca, em parte, e parcialmente já deformada, cercada por todos os lados de prosa e falsas tendências, até uma elevação da arte que abarca, pela primeira vez, toda a poesia dos antigos e dos modernos e que contém a semente de um eterno progresso.“45

Dentre os fragmentos da revista Athenäum, há um que faz referência direta ao caráter revolucionário desta obra de Goethe:

„A revolução francesa, a doutrina-da-ciência de Fichte e o Meister de Goethe são as maiores tendências da época. Alguém que se choca com essa combinação, alguém ao qual nenhuma revolução pode parecer importante, a não ser que seja ruidosa e material, alguém assim ainda não se alçou ao alto e amplo ponto de vista da história da humanidade.“46

A idéia de fusão de gêneros literários, de fusão do antigo e do moderno, como já mencionado acima na carta de Friedrich Schlegel a seu irmão e nas considerações que ele faz sobre a obra de Goethe, é a matriz central de reflexão desta primeira fase do romantismo. A harmonia entre o clássico e o romântico aparece tanto como idéia regulativa para a apreciação crítico-estética como também como o objetivo a ser alcançado no processo de formação histórico-universal.

(17)

Segundo Victor-Pierre Stirnimann haveria aí um paradoxo que salta aos olhos.

„Como digerir o convívio de duas afirmações frequentes: ‘ toda poesia deve ser romântica’ e ‘ a tarefa da poesia é a harmonia do clássico e do romântico’? (...) Romantismo seria, portanto, uma totalidade que engloba a fusão de si mesma com seu oposto? O enigma pode ser trabalhado sob dois ângulos diversos, quando se examina a ambigüidade do termo ‘clássico’. Se Goethe é ‘clássico’, não o é decerto no mesmo sentido que um Sófocles, por exemplo. Goethe é um clássico moderno, seu proceder é tão premeditado quanto o de Friedrich ou Novalis; aqui, se há oposição, é uma oposição de natureza teórico-formal no interior da modernidade. Nesse caso, o eventual sucesso do projeto romântico, a concretização do gênero literário único e infinito, implicaria efetivamente um contínuo formal que absorvesse o descontínuo estilístico da diversidade de gêneros na produção de Goethe, superando-a. Fusão (ou dissolução) que representaria o triunfo teórico e artístico do grupo de Iena sobre o classicismo de Weimar. ‘Toda poesia deve ser romântica’ significando assim: o romantismo é a própria modernidade; toda poesia moderna deveria ser moderna. Por outro lado, se através do clássico pensamos a Antigüidade grega, idealizada como modelo da poesia espontânea, o paradoxo reproduz-se assumindo outras feições: as da consciência que harmoniza, pelo refletir, criação consciente e criação inconsciente, arte e natureza. E então a verdadeira modernidade nasceria da superação da modernidade. É característico do romantismo prenunciar seu próprio ocaso -como se pudéssemos saltar puxando nossos próprios cadarços.“47

A idéia da harmonia, da fusão entre antigo e moderno, entre clássico e romântico é retomada por Goethe no 3º ato do Fausto II, escrito entre 1800 e 1825, no qual Fausto e Helena, a quintessência da beleza, se casam. Os contrários, Fausto -homem nórdico, medieval - e Helena - símbolo do belo na Antigüidade grega - se unem. Goethe reforça o intuito de harmonia e de conciliação, quando comenta o objetivo principal desse 3º ato em 1827 com as seguintes palavras: „Já é tempo

que clássicos e românticos, que discordam tão

apaixonadamente, se reconciliem.“48

Tal reconciliação não ocorreu. Além disso: a maioria dos ensaístas e pesquisadores da historiografia literária alemã do século XIX até pelo menos os anos 70 do século XX separa

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completamente o classicismo de Weimar do romantismo. Só nas últimas décadas, como já foi mencionado acima, é que têm surgido obras que questionam e até põem abaixo este paradigma da história literária. Um dos precursores desta nova interpretação histórico-literária foi Hans-Robert Jauss, que formulou as seguintes idéias a respeito da convergência estética entre os primeiros românticos e os clássicos de Weimar:

„A separação paulatina de um classicismo autóctone, alemão, localizado em Weimar, foi retrógrada e ocultou o fato, de que a fase grecofílica de Goethe e Schiller não passou de uma variante nacional no contexto mais amplo do neoclassicismo europeu de

fins do século XVIII. A canonização antitética de um

classicismo de Weimar e de um romantismo de Jena ocultou além disso o fato, de que a participação dominante na construção de uma teoria da literatura e da arte modernas na última década do século XVIII é atribuída em partes iguais aos weimarianos e aos autores de Jena. As idéias básicas: autonomia da arte, abandono do princípio aristotélico da imitatio naturae, o conceito de individualidade criativa, o programa de uma educação estética eram em tal medida as bases comuns de ambos os grupos, que a disputa, o dissenso literário entre eles - da perspectiva de alguém fora da disciplina da germanística - parece ser mais uma briga em família extremamente produtiva.“49

O panorama histórico-nacional alemão deve ser considerado, sobretudo no que concerne à resposta político-cultural à situação de crise logo após a Revolução Francesa, mas não se pode desacoplar a evolução literária alemã do contexto europeu. Sobre as conexões e ligações estreitas entre clássicos e primeiros românticos, que eu chamo neste ensaio de convergências estéticas, se manifesta Wilfried Malsch da seguinte forma:

„Antes da virada do século XVIII para o XIX existia (...) nos princípios teórico-literários e estéticos uma conexão tão estreita entre os clássicos e os primeiros românticos, que do ponto de vista de alguém fora da Alemanha as diferenças entre eles passam freqüentemente despercebidas. Hoje também dentro da germanística na Alemanha fala-se em relação a este período de tempo de uma ‘teoria literária clássico-romântica’ ‘apesar das diferenças importantes entre ambos os grupos’. Assim tenta-se construir uma ponte sobre aquele abismo entre a estética do romantismo inicial e as reflexões sobre a arte de Schiller e

(19)

Goethe, abismo este tão propagado pela historiografia literária do século XIX e XX.“50

É lícito, portanto, denominar esta convergência clássico-romântica de Kunstperiode (período da arte), a qual é caracterizada por José Guilherme Merquior, seguindo as idéias apresentadas por Hermann August Korff nos anos 50 em seu momumental Geist der Goethezeit. Versuch einer ideellen Entwicklung der klassisch-romantischer Literaturgeschichte51 ,

como paidéia estética, pois “tanto o humanismo ‘pedagógico’ de Goethe, Schiller e Humboldt quanto a religiosidade poética de Novalis ou Coleridge atribuem às letras a dignidade de uma nova paidéia”52

A autonomia estética como direito inalienável da arte e o paradigma da Antigüidade clássica como modelo de idealidade para os clássicos ou como futuro a ser alcançado através da infinita perfectibilidade da arte para os românticos são os fundamentos desta Kunstperiode (período da arte).

1

Schiller, Friedrich:A educação estética do homem numa série de cartas. 3ª ed. São Paulo: Iluminuras 1995 p. 54.

2

Schlegel, Friedrich:Über das Studium der griechischen Poesie (1795-1797), In: Schlegel, Friedrich: Kritische Schriften und Fragmente (1794-1797). Org. por Ernst Behler & Hans Eichner. Paderborn, Munique, Viena, Zurique: Ferdinand Schöningh, 1988. p. 119.

3

Citado segundo: Zmegac, Viktor (Org.):Geschichte der deutschen Literatur. Vom 18.Jahrhundert bis zur Gegenwart. Vol. I/1. Frankfurt a.M.: Hain 1992. p. 293.

4

Id.ibid.

5

Id.ibid.

6

Kant, Immanuel:Introdução à crítica do juízo. São Paulo: Abril Cultural, 1980 [Coleção Os Pensadores]. p. 246.

7

Kant: op.cit. p. 253.

8

Carta de Goethe a Schiller de 12.8.1797, citado segundo: Borchmeyer, Dieter:Weimarer Klassik. Weinheim: Beltz Athenäum, 1994. p. 24.

9

Id.ibid. p.1.

10

Baeumer, Max L.: „Der Begriff ‘klassisch’ bei Goethe und Schiller“, In: Die Klassik-Legende. Org. por Reinhold Grimm & Jost Hermand. Frankfurt a.M.: Athenäum Verlag 1971. p. 48-9.

11

Berghahn, Klaus L.: „Von Weimar nach Versailles“, In:Die Klassik-Legende... p. 75.

12

Vosskamp, Wilhem: „Europäische Literatur und nationalgeschichtliche Funktion. Eine Replik auf Hans Robert Jauss“, In: Epochenschwelle und Epochenbewusstsein. Org. por Reinhart Herzog & Reinhart Kosellek. Munique: Wilhem Fink Verlag 1987. p. 588.

13

Vosskamp, Wilhelm: „Klassik als Epoche - Zur Typologie und Funktion der Weimarer Klassik“, In: Epochenschwelle und Epochenbewusstsein. Org por Reinhart Herzog & Reinhart Koselleck. Munique: Wilhem Fink Verlag 1987. p. 508.

14

Vide: Lobo, Luiza:Teorias poéticas do romantismo. Porto Alegre: Mercado Aberto 1987.

15

Schanze, Helmut:Romantik-Handbuch.Stuttgart: Kröner Verlag 1984. p. 17.

16

Koopmann, Helmut:Freiheitssonne und Revolutionsgewitter. Reflexe der französischen Revolution im literarischen Deutschland. Tübingen: Max Niemeyer Verlag 1989. p. 26-7.

17

Zmegac, Viktor (Org.):Geschichte der deutschen Literatur. Vom 18.Jahrhundert bis zur Gegenwart. Vol. I/2. 4.ed. Weinheim: Beltz Athenäum Verlag 1996. p. 4.

18

Zmegac, Viktor (Org.):Geschichte der deutschen Literatur. Vom 18.Jahrhundert bis zur Gegenwart. Vol. I/1. 3.ed. Frankfurt am Main: Hain 1992. p. 258.

(20)

19

Schiller, Friedrich:A educação estética do homem... p. 54; 55.

20

Schiller, Friedrich:A educação estética… p.41.

21

Zmegac, Viktor: op.cit. Vol. I/2, p. 19.

22

Schiller:A educação estética... p. 144-5.

23

Carta de Friedrich a August Wilhelm Schlegel , citada segundo: Pikulik, Lothar:Frühromantik. Epoche-Werke- Wirkung. München: C.H. Beck, 1992. p. 149.

24

Heine, Heinrich:Die romantische Schule. [Heinrich Heine Sämtliche Werke]. Org. por Klaus Briegleb. Vol. 3. München: DTV 1997.

25

Malsch, Wilfried: „Die geistesgeschichtliche Legende der deutschen Klassik“, In:Die Klassik-Legende. Org. por Reinhold Grimm & Jost Hermand. Frankfurt a.M.: Athenäum Verlag 1971. p. 132.

26

Jauss, Hans-Robert: „Schlegels und Schillers Replik auf die ‘Querelle des anciens et des modernes’“,In: Jauss, H.-R.:Literaturgeschichte als Provokation. Frankfurt a.M.: Suhrkamp 1970. p. 160.

27

Behler, Ernst: „Die Wirkung Goethes und Schillers auf die Brüder Schlegel“, In:Unser Commercium. Goethes und Schillers Literaturpolitik... p. 582.

28

Behler, Ernst: Friedrich Schlegels Studium-Aufsatz und der Ursprung der romantischen Literaturtheorie, In: Schlegel, Friedrich:Über das Studium der griechischen Poesie – 1795-1797. Introd. e Org. Ernst Behler. Paderborn, Munique, Viena, Zurique: Ferdinand Schöningh 1981.

29

Schlegel, Friedrich: Über das Studium der griechischen Poesie… p. 96.

30

Citado segundo: Behler, Ernst: Friedrich Schlegels Studium-Aufsatz… p. 28.

31

Schlegel, Friedrich: Über das Studium der griechischen Poesie... p. 102.

32

Schlegel, Friedrich:O dialeto dos fragmentos. Trad., apresent. e notas de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997. p. 64; 65.

33

Bräutigam, Bernd: Eine schöne Republik. Friedrich Schlegels Republikanismus im Spiegel des Studium-Aufsatzes, in: Euphorion 70 (1976), p. 318.

34

Behler, Ernst: Friedrich-Schlegels Studium-Aufsatz… p. 36.

35

Id.Ibid. p. 47.

36

Id.Ibid. p. 46.

37

Schiller, Friedrich:Poesia ingênua e sentimental.Trad., apres. e notas de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras 1991. p. 56-7. 38 Id.Ibid. p. 89. 39 Id.Ibid. p. 44. 40 Id.Ibid. p. 90. 41

Koopmann, Helmut (Org.):Schiller-Handbuch. Stuttgart: Kröner Verlag 1998. p. 631.

42

Eckermann, Johann Peter:Gespräche mit Goethe. München: Deutscher Taschenbuch Verlag 1999. p. 405-6.

43

Jauss, Hans-Robert: „Der literarische Prozess des Modernismus von Rousseau bis Adorno“, In: Epochenschwelle und Epochenbewusstsein... p. 255.

44

Citado segundo: Behler, Ernst: „Die Wirkung Goethes und Schillers auf die Brüder Schlegel“... p. 570.

45

Schlegel, Friedrich:Conversa sobre a poesia e outros fragmentos. Trad., apres. e notas de Victor-Pierre Stirnimann. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 76.

46

Schlegel, Friedrich:O dialeto dos fragmentos....p. 83.

47

Stirnimann, Victor-Pierre: „Schlegel, carícias de um martelo“, In: Schlegel, Friedrich:Conversa sobre a poesia e outros fragmentos... p. 22.

48

Citado segundo: Malsch, Wilfried: „Klassizismus, Klassik und Romantik der Goethezeit“, In:Deusche Literatur zur Zeit der Klassik. Org. por Karl Otto Conrady. Stuttgart: Reclam 1977 p.382.

49

Jauss, Hans-Robert: „Deutsche Klassik - eine Pseudo-Epoche?“, In:Epochenschwelle und Epochenbewusstsein... p. 583.

50

.Malsch,Wilfried: Klassizismus, Klassik und Romantik… p. 392.

51

Hermann August Korff:Geist der Goethezeit. Versuch einer ideellen Entwicklung der klassisch-romantischer Literaturgeschichte. Leipzig: Koehler & Amelang, 1958.

52

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