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Seminário de Introdução à Psicanálise (SIP) Comentário do Seminário 10, A Angústia, aula XV Coisa de macho

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Academic year: 2021

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Seminário de Introdução à Psicanálise (SIP)

Comentário do Seminário 10, A Angústia, aula XV – “Coisa de macho”

Marcus do Rio Teixeira

Continuamos a leitura do Seminário 10, A Angústia, com a aula XV, “Coisa de macho”. Lembrando sempre que esses comentários, como não poderia deixar de ser, são recortes no texto feitos de acordo com aquilo que cada um de nós pretende enfatizar. Portanto, não são e nem têm a pretensão de ser uma leitura única, definitiva, do ensino de Lacan.

Mais uma vez, recorro a autores contemporâneos para auxiliar na compreensão do texto lacaniano. O que foi dito acima acerca da nossa leitura vale também para tais autores: seus comentários constituem um mapa do Seminário. Ora, um mapa auxilia quem quer se deslocar por uma cidade desconhecida, por exemplo. Ainda assim, ele é um diagrama, que não se confunde com a cidade. Cientes disso, sigamos então nossa trilha.

Causa do desejo, imaterialidade e materialidade do objeto a

Vimos na aula VIII que Lacan define o objeto a enquanto causa do desejo. No intuito de esclarecer a anterioridade lógica do objeto a, Colette Soler (SOLER, p. 62) traçou um pequeno grafo, na realidade um esqueminha, no qual o a aparece situado antes do vetor do desejo e não depois, como comumente se supõe quando se fala de objeto na ciência ou na filosofia. Vemos, porém, que ele se refere também a formas ou espécies do objeto a, das quais faz uma lista que inclui os objetos das pulsões: oral, anal, etc.

Isso frequentemente confunde aqueles que se aventuram no estudo desse conceito lacaniano. Se se trata de um objeto que ele situa enquanto causa do desejo, portanto logicamente anterior ao vetor do desejo, como admitir tais objetos que se apresentam como objetos do desejo, no ponto final do vetor do desejo? Se Lacan fala de um objeto intangível, como se explica que ele elabore uma lista de objetos que dizem respeito ao corpo? Trata-se de uma contradição?

Charles Melman assim comenta a relação do objeto a com o corpo:

“É o objeto que, vindo conjugar o corpo biológico ao corpo do significante, opera a furação de um com o outro, permite a furação por sua queda, a furação do corpo biológico pelo corpo do significante.” (MELMAN, p. 30)

Se a queda desse objeto o exclui da cadeia significante, a linguagem tentará em vão capturá-lo. Porém isso faz com que o sujeito tente dar corpo a esse objeto, supondo objetos que atenderiam à demanda do Outro. O sujeito oferece ao Outro sua “libra de carne”, termo que

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Lacan utiliza na aula XVI (LACAN, p. 242), citando a peça O Mercador de Veneza, de Shakespeare.

Aqui nessa aula XV ele vai tratar da prática da circuncisão, referindo-se ao prepúcio como o objeto a: “Seja como for, vocês não podem deixar de aproximar a ablação do prepúcio daquele curioso objetinho retorcido que um dia lhes pus nas mãos, materializado, para que vocês vissem como isso se estrutura, uma vez realizado sob a forma de um pedacinho de papelão. Tratava-se do resultado do corte central do cross-cap, no que ele isola algo que se define como encarnando o não-especularizável.” (LACAN, p. 227). Esse curioso comentário de Lacan faz referência ao Seminário 9, A Identificação, onde trabalhou topologicamente o objeto a como o recorte de um disco no cross-cap que “tapa” a faixa de Moebius. Na presente aula, ele recorre mais uma vez à topologia, nesse caso à garrafa de Klein.

Voltando ao nosso tema, Melman define a necessidade de o sujeito supor o Outro para instalar o objeto a:

“De maneira mais precisa, convém que instalemos, com o Outro, um objeto que ele reconheceria como desejável e que, ao mesmo tempo, viria organizar nosso próprio desejo.” (MELMAN, p. 82)

Melman se pergunta então qual o sentido da afirmação de que esses objetos são “perdidos”, uma vez que são objetos que se situam na realidade, e mesmo na realidade anatômica.

“O sentido dessa afirmação prende-se ao seguinte: não há, na realidade, nenhum objeto que possa vir nos garantir quanto a uma conformidade dos desejos do sujeito com o Outro, pelo fato muito simples de que, se primordialmente a mãe veio encarnar esse Outro, trata-se de uma encarnação suficientemente transitória para nos lembrar que, no Outro, não há ninguém! Nem para nos prescrever ou designar o que seria esse objeto que assegurasse nossa conformidade com seu desejo.” (MELMAN, p. 86)

Isso nos poupa de raciocínios tortuosos que escutamos por vezes como, por exemplo: Lacan não está falando do corpo quando ele está falando do corpo, etc. Ou então, que Lacan não está falando de corpo no sentido que a medicina fala do corpo. Bem, não creio que nenhum leitor de Lacan acredite que ele fala de corpo no sentido da medicina, como sistemas de órgãos regidos pela fisiologia, sem a participação da pulsão. Mas se se pretende com isso dizer que ele não fala do corpo de carne e osso, e sim de alguma espécie de corpo imaterial, intangível, nesse caso não sei o que isso poderia significar.

Assim como o sujeito precisa de alguém que ocupe o lugar do Outro para poder se constituir enquanto sujeito desejante, mesmo que esse Outro em última instância seja um lugar vazio, da mesma forma ele precisa supor a existência de objetos que viriam completar esse Outro para configurar a causa do seu desejo. Esses objetos são objetos materiais, sim, pois vivemos e desejamos num mundo concreto e os objetos que o desejo visa são objetos da realidade. O corpo no qual se recortam os objetos a não é, portanto, um corpo imaterial. Retornaremos a este ponto quando abordarmos a imagem de a.

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A castração - imaginária e simbólica - e o falo

Vimos como Lacan, nesse Seminário, inverte a teoria freudiana do complexo de castração ao postular que a castração, no que concerne ao corpo, se situa do lado do homem e não da mulher. O seu argumento é que para o homem a detumescência provoca a angústia de castração (LACAN, p.102, p. 187). O falo imaginário -que neste Seminário constitui um dos objetos a) é assimilado aqui ao órgão masculino “fora de jogo”. “ ‘O falo objeto caído’ é uma maneira de dizer: ele tomou a função de a, mas de a, especifica ele, afetado pelo sinal menos, quer dizer, de a enquanto objeto perdido.” (SOLER, p. 95)

Esse é outro ponto que é tema de uma série de mal-entendidos. Por vezes se critica tal teorização, como se ela não levasse em conta que a castração é antes de tudo castração simbólica. Ora, devemos nos guardar de tentar corrigir Lacan com o próprio Lacan. Ele mesmo nos adverte que, se podemos comentar os erros de Freud, é porque este teve a generosidade de expor os seus erros em seus textos. No caso presente, porém, não se trata de um erro: na época desse Seminário Lacan já havia elaborado a releitura do complexo de castração freudiano e definido a castração enquanto simbólica há muitos anos. Vide, só para citar os exemplos mais conhecidos, a tabela do Seminário 4, A relação de objeto (LACAN, A relação...,p. 220).

Se Lacan fala aqui da castração situando-a no corpo, no órgão masculino, não é porque ele seja um ingênuo na teoria psicanalítica que precisa que nós, os sabidos, o corrijamos com sua própria teoria. Ele o faz evidentemente com uma intenção, que parece evidente: trazer no contexto dessa discussão o conceito de castração para o âmbito do sexual stricto sensu. Mostrar que a castração, ainda que seja essencialmente simbólica, é vivida imaginariamente pelo falasser enquanto falta no corpo próprio. Ele faz referência a um filme que assistiu na Sociedade Psicanalítica de Paris, onde crianças pequenas diante do espelho reagem à imagem dos genitais. (LACAN, p. 223) No caso do homem adulto, a castração imaginária é percebida enquanto perda da potência sexual, ainda que transitória.

Isso nos conduz a outro problema, que diz respeito ao aspecto geral ou específico da falta. Por vezes ouvimos dizer que a castração é a falta no grande Outro, que Lacan escreve S(Ⱥ). Mesmo deixando de lado a discussão da validade de afirmações taxativas do gênero “A castração (ou outro conceito) é tal coisa”, é preciso distinguir entre a dimensão genérica, no sentido de geral, da falta, e a sua dimensão específica no que concerne à castração. Para discutir essa dimensão se faz necessário outro conceito, o do falo.

Apesar de ser correto considerarmos a falta no Outro como fundamental para compreendermos como o sujeito se define no que tange à estrutura, isso não é suficiente para nos esclarecer, por exemplo, como ele reconhece o seu corpo próprio nem como ele faz uma escolha de gozo, como se situa em um dos polos da repartição dos sexos. Enfim, como ele se constitui enquanto ser sexuado, para empregar a expressão que Lacan utilizou no Seminário 20, Mais, ainda.

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Se permanecermos nesse nível de generalização da dimensão da falta, enquanto falta no Grande Outro, poderemos esclarecer muitos pontos acerca da constituição do sujeito, mas não compreenderemos absolutamente nada acerca da sexuação. O posicionamento do sujeito face à falta no Grande Outro define a sua estrutura clínica, mas não a sua identidade sexuada. Para que ele possa se situar face ao pequeno outro enquanto ser sexuado é necessário a entrada em cena do significante fálico para que a dimensão da falta seja especificada no âmbito sexual, para estabelecer o “sentido sexual da falta”, como diz Jean-Luc Cacciali: “O falo vem dar um sentido sexual à falta.” (CACCIALI, p. 71)

É a esse sentido sexual que Lacan se refere quando, falando sobre o desejo do homem, afirma: “É esse o objeto de minha lição de hoje. O que ele procura é o (-), aquilo que falta a ela - mas isso é coisa de macho.” (LACAN, p. 219) Anos mais tarde, quando elaborar as chamadas fórmulas da sexuação, ele dirá que o sujeito se posicionará como todo ou não-todo face à função fálica - e não face à falta no Grande Outro.

A forma investida pelo a

No início deste Seminário Lacan retomou o seu esquema óptico para falar do investimento da imagem. Trata-se aqui da imagem sedutora, da imagem que suscita o desejo.

“Para Lacan, essa imagem primeira i(a) assume seu caráter sedutor por ser suporte do objeto a, que devemos entender como Outro, eminentemente Outro, isto é, como se mostrando refratário [...] àquilo que seria uma fixação pela mesmice.” (MELMAN, p. 138)

Acerca desse ponto, Soler comenta: “E compreendemos, consequentemente, a solidariedade entre (-) e a: ambos escrevem alguma coisa que não se desloca somente sobre o eixo da forma, mas também sobre o eixo de energia - isso que Freud chamava de energia sexual; o (- como reserva libidinal do lado do sujeito e o a como isso que vai se investir na imagem e lhe dar seu valor erótico” (SOLER, p.30)

Deixemos temporariamente de lado questões importantes como a da alteridade e a da solidariedade entre o (-) e o a, esta última algo muito diferente de supô-los como intercambiáveis (vide o que eu falei sobre a relação entre o falo e o objeto a no meu comentário da aula VIII). Gostaria de destacar que esse investimento da imagem pelo a, que é a condição de ela ser desejável, é retomado no direcionamento do desejo masculino à sua parceira, como ele comenta quando fala em “aizar” a parceira (LACAN, p. 199), ou seja, como o homem toma a sua parceira enquanto materialização do objeto a. Se avançarmos 10 anos no seu ensino e verificarmos o Seminário 20, Mais, ainda, encontraremos a conhecida afirmação: é o homem “[...] que aborda a mulher, que crê que pode crer que a aborda[...] Só que, o que ele aborda, é a causa de seu desejo, que eu designei pelo objeto a.” (LACAN, Seminário 20, p. 78)

O que vemos aqui é que Lacan mantém a mesma tese deste Seminário 10 em um Seminário do final do ensino do seu ensino, o que demonstra (como se fosse preciso...) o quanto estão

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equivocados aqueles que seguem uma leitura “evolutiva” do ensino de Lacan, no estilo de Milner & Miller, que pretende que os seus últimos Seminários introduzem um rompimento com o início do seu ensino. Evidentemente, Lacan aprimora e revê pontos da sua teoria, eventualmente abandonando algumas proposições feitas ao longo do seu ensino, outras vezes acrescentando novas teorizações. Porém, isso é diferente de supor uma evolução que estabelece fases ou etapas, cada uma constituindo um degrau que é superado pelo subsequente.

Don Juan, um mito feminino

Lacan volta a se referir nessa aula ao mito de Don Juan, acerca do qual já havia falado na aula XIV, “A mulher, mais verdadeira e mais real”, como um mito feminino. Ele faz uma curiosa aproximação da mulher com Don Juan, não no sentido de um donjuanismo feminino, mas do “não ter nada a perder”.

“Don Juan é uma mulher ou o equivalente de uma mulher que não tem nada a perder nesse nível da relação ao outro sexo.” (SOLER, p.109-110)

Na aula anterior Lacan já havia falado sobre o mito de Don Juan. Naquela ocasião, ele comentou: “Cabe dizer que esse não é um personagem angustiante para a mulher. Quando sucede à mulher sentir-se realmente como o objeto que está no centro de um desejo, pois bem, acreditem, é aí que ela foge de verdade.” (LACAN, p. 213) À primeira leitura esse trecho pode parecer ambíguo. Afinal, se ele dissesse “a histérica” em vez de “a mulher”, seria fácil segui-lo na linha da famosa esquiva histérica. A histérica, nos lembra a própria Soler, quer ser objeto do desejo mas não objeto do gozo. “[...] a mulher quer gozar, a histérica quer ser. E até exige ser, ser alguma coisa para o Outro: não um objeto de gozo, mas o objeto precioso que sustenta o desejo e o amor” (SOLER, O que Lacan..., p. 52)

Por que Don Juan não causaria angústia numa mulher, enquanto estar no centro de um desejo seria angustiante? Em um artigo sobre o objeto a comentei: “Ele parece dizer que o desejo de Don Juan não é angustiante por ser um desejo pragmático, transparente, para a mulher. Ao passo que um desejo que a toma como o seu centro é angustiante para ela porque, apesar de lhe dizer respeito, permanece para ela indecifrável: ela não sabe até aonde tal desejo pode levar.” (TEIXEIRA, p. 173-174)

Porém é preciso lembrar que Lacan se refere ao mito, não ao homem de carne e osso que tenta encarnar esse mito. Enquanto mito, mito feminino, diz ele, Don Juan é o homem a quem nada falta. “Se a fantasia de Don Juan é uma fantasia feminina, é por corresponder ao anseio da mulher de uma imagem que exerça a função dele, função fantasística - a de haver um homem que o tenha -, o que, considerando-se a experiência, é, obviamente, um desconhecimento flagrante da realidade - e mais ainda, que ele o tenha sempre, que não possa perdê-lo.” (LACAN, p. 221) Trata-se de um mito, não de um homem, evidentemente, pois não existe um homem a quem nada falta.

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A angústia feminina é, portanto, angústia não diante do mito, mas diante do desejo de um homem da realidade, que a toma como seu objeto a, que a “aísa”, como diz Lacan. Ao dizer que: “A mulher está mais exposta à angústia que o homem.” (LACAN, p. 209) ele ressalta a relação da mulher ao Outro: “Para a mulher, o desejo do Outro é o meio para que seu gozo tenha um objeto, digamos, conveniente. Sua angústia se dá apenas diante do desejo do Outro, que, afinal de contas, ela não sabe muito bem o que encobre.” (LACAN, p. 210)

Para Moustapha Safouan: “É bem isso que faz seu [da mulher] laço mais especial com o desejo do Outro, diz Lacan, e eis porque, subscrevendo uma observação de Kierkegaard, a mulher é mais angustiada que o homem, de uma angústia mais próxima, eu acrescentaria, do tempo inaugural do che vuoi?” (SAFOUAN, p. 252)

Se ser tomada pelo desejo masculino a angustia, o que a faz condescender a ele? Na Antiguidade clássica, o homem ocupava no discurso do mestre o lugar de dominação (ainda que os lugares do discurso não sejam sexualizados) que não podia ser questionado. Ainda assim, a mulher podia em algum momento condescender ao desejo masculino sem ser constrangida a isso. Esse consentimento era chamado de cháris [graça]. “Os antigos, Protogene, chamavam de cháris o espontâneo consentimento da fêmea ao macho.” (PLUTARCO, apud CALASSO, p. 62-63)

Soler vai dizer que, ao contrário da forma como a maioria lê o aforismo “O amor é o que permite ao desejo condescender ao gozo”, não é por amor que a mulher condescende. “O amor da mulher, é a tese de Lacan aqui, idealiza o amor e o transforma, para ela, não sei como nomeá-lo, num valor, em alguma coisa que tem valor, que ela valoriza, que lhe é muito necessário enquanto mulher.” (SOLER, p. 101) Para concluir que na realidade, “o amor visa ao gozo” (SOLER, p. 102)

Resta lembrar que ele vai retomar a relação da mulher ao Outro no Seminário 20 (outra vez!):

“Como conceber que o Outro possa ser em algum lugar aquilo em relação a que uma metade - porque também é grosseiramente a proporção biológica - uma metade dos seres falantes se refere? É entretanto o que está escrito lá no quadro com aquela flecha partindo do Ⱥ. Esse Ⱥ não se pode dizer. Nada se pode dizer da mulher. A mulher tem relação com S(Ⱥ), e já é nisso que ela se duplica, que ela não é toda, pois, por outro lado, ela pode ter relação com .” (LACAN, Seminário 20, p. 87)

Simplificação do desejo da mulher, complexificação do desejo do homem

“Para resumir a tese de Lacan: simplificação do desejo na mulher, o que talvez não queira dizer uma melhor sorte, e complexificação do desejo no homem. Os anos seguintes, quando Lacan chega às suas fórmulas da sexuação, ele introduziu uma complexificação em relação ao

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gozo nas mulheres, o que é muito mais simples no homem, não o desejo, a relação ao gozo.” (SOLER, p. 109)

O que essa autora lembra é que mais adiante, quando Lacan aprofundar a sua teoria sobre o gozo, mais especificamente no Seminário 20, ele irá definir a relação do sujeito na posição masculina ao gozo como sendo da ordem do todo-fálico, ou seja, para o homem o gozo se restringe ao gozo fálico. Já a relação da mulher ao gozo fálico se define por ser não-toda, ela tem acesso ao gozo fálico mas isso não constitui a totalidade da sua relação ao gozo, uma vez que ela também tem acesso ao gozo Outro. Essa bifurcação instaura uma diferença, que não é a mesma coisa que uma simples diferença simétrica de gozos (gozo fálico do lado masculino, gozo Outro do lado feminino). É isso que vai constituir a complexificação de que fala a autora. Tratei desse tema em dois artigos, “Os gozos - Sobre duas dicotomias presentes no Seminário 20, Mais, ainda” e “O que Lacan quis dizer com ‘gozo do Outro’?” Nesses textos procurei mostrar como Lacan, ao elaborar as suas fórmulas da sexuação, postula a existência de um gozo Outro, que não se situa no registro fálico, mas é de outra ordem, estabelecendo com isso uma assimetria radical entre as posições masculina e feminina. Essa assimetria diz respeito à alteridade feminina, a que Lacan se refere quando fala da mulher como o Outro sexo, situando o Outro nesse momento não estritamente enquanto Outro da linguagem, mas enquanto alteridade em relação ao lugar fálico.

Uma fantasia feminina

“O que a mulher vê na homenagem do desejo masculino é que esse objeto - sejamos prudentes em nossos termos - se torna uma propriedade sua.” (LACAN, p. 222)

Lacan se refere aqui não ao falo, mas à sua presentificação no órgão masculino. Ele cita o mito egípcio de Osíris para enfatizar a ideia de apropriação do membro masculino. No mito, o deus Osíris é encarcerado em um sarcófago pelo seu irmão Set. A irmã e esposa de Osíris, a deusa Ísis, consegue recuperar o sarcófago, mas Set o rouba e esquarteja o corpo do irmão, espalhando seus pedaços. Ísis sai em busca dos pedaços do corpo de Osíris e consegue recuperar todos, com exceção do pênis. Por meio de artes mágicas, ela ressuscita Osíris e cria um membro artificial, feito da madeira da acácia, uma árvore associada à ressurreição. Graças a esse artifício, ela consegue engravidar e gerar seu filho Hórus.

A interpretação mais comum (não psicanalítica, mas alegórica) do mito de Osíris é que a potência viril é despertada pela mulher. Para Lacan: “O membro perdido de Osíris, tal é o objeto da busca e da guarda da mulher.” (LACAN, p. 222) Soler assim comenta essa passagem: “Eu o formulo assim: recuperar para satisfazer a demanda gerada por sua privação, aquilo que o homem perde devido à castração.” (SOLER, p. 108) Privação do lado da mulher, castração do lado do homem? Lacan define o objeto da privação real como simbólico, nesse caso, o falo. Já a castração aqui, como vimos, refere-se à queda do órgão real, à sua detumescência. Mas qual seria o sentido de tornar o membro masculino “uma propriedade sua”, como diz Lacan?

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Essa passagem me evoca a referência que Lacan faz ao filme “O Império dos Sentidos”, no seu Seminário 23, O Sinthoma (LACAN, O Sinthoma, p. 122) Melman comenta o interesse de Lacan por esse filme, e o quanto o enredo evoca aquilo que seria uma fantasia feminina.

“Eu não sei se os senhores viram, no Brasil, um filme japonês que se chama ‘O Império dos Sentidos’. É um filme que mostra um fato que aconteceu no Japão, nos anos 30, e que conta a história verídica de uma mulher que amava muito seu amante e que, com ele, tinha relações sexuais muito felizes, apaixonadas. Ela o adorava, só pensava nele, queria-o inteiramente para si, não podia separar-se dele. Não podia suportar que houvesse uma distância entre os dois, o que fez com que um dia, nessa paixão amorosa - aqueles que viram o filme conhecem a história -, ela pegue uma faca e retire-lhe o sexo, para tê-lo em seu bolso. Esse sexo tão amado, tão desejado, em seu próprio bolso. Ela foi encontrada pela polícia vagando pelas ruas, completamente desorientada, e em seu bolso foi encontrado o sexo maravilhoso de seu amante, envolvido em um pano.

Acontece que esse filme, por muito tempo, foi proibido na França, e houve uma apresentação privada. Lacan convidou alguns de seus alunos para ver esse filme. Então, tive a oportunidade de vê-lo com ele. Estava totalmente claro que, para ele, esse ato da mulher representava a realização de seu fantasma [fantasia] do fantasma próprio ao amor e ao desejo de uma mulher. Só que, como sabemos, esse ato permanece como excepcional em sua realidade física, não é dos mais frequentes. Em sua realidade imaginária é outra história.” (MELMAN, Novas formas..., p. 17)

O autor fala de uma fantasia especificamente feminina, na qual uma mulher se situaria do lado do sujeito em vez do a. Esse é um tema que suscita discussão entre autores lacanianos, já que Lacan forneceu mais elementos para se pensar a fantasia do lado do homem. Estamos acostumados com a formulação de que o homem recorta o objeto a no corpo da sua parceira, e não é por uma coincidência gráfica que, nas suas famosas fórmulas da sexuação, esse traçado do desejo masculino escreve o matema da fantasia.

“Só lhe é dado atingir seu parceiro sexual, que é o Outro, por intermédio disto, de ele ser a causa de seu desejo. A este título, como o indica alhures em meus gráficos a conjunção apontada desse S e desse a, isto não é outra coisa senão fantasia.” (LACAN, Seminário 20, Mais, ainda, p. 86)

Christiane Lacôte, por sua vez, assim comenta a menção de Lacan a esse filme:

“Porque, aí, temos os elementos decompostos; o corpo, o corpo que gozou, o pênis, que está reduzido a um pequeno pacote, a escrita, a errância dessa mulher... Será um novo mito de Ísis e Osíris? Pois a errância da mulher nada tem de uma busca sagrada sobre o fragmento faltante. Tratar-se-ia antes da queda do que teria podido ser fálico, naquilo que parece então envelope do que cessou de orientar o sujeito feminino, também devastado até o fim. Seria essa devastação que era desejada, como a tentativa de atingir um sem referência absoluto?” (LACÔTE, p. 57) Fantasia feminina, manifestação extrema da devastação. Deixo vocês com essas questões.

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REFERÊNCIAS:

CACCIALI, J.-L. Discussão. In: CHASSAING, J. L. et al. Desejo de homem. Desejo de mulher? Porto Alegre: CMC, 2009.

CALASSO, R. As núpcias de Cadmo e Harmonia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. LACAN, J. O Seminário, Livro 4, a relação de objeto [1956-1957]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

LACAN, J. Le Séminaire, Livre 9, l’interpretation [1961-1062]. Paris: Edition de l’Association Lacanienne Internationale, s/d (Edição não comercial, para uso interno)

LACAN, J. O Seminário, Livro 10, a angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. LACAN, J. O Seminário, Livro 20, mais, ainda [1972-1973]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008 (3a edição).

LACAN, J. O Seminário, Livro 23: o Sinthoma [1975-1976]. Rio de Janeiro; Jorge Zahar, 2007.

LACÔTE, C. Incertezas do desejo feminino. In: CHASSAING, J. L. et al. Desejo de homem. Desejo de mulher? Op. cit.

MELMAN, C. Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre: CMC, 2002. MELMAN, C. Para introduzir à psicanálise nos dias de hoje. Porto Alegre: CMC, 2009. SAFOUAN, M. Lacaniana - Les Séminaires de Jacques Lacan 1953-1963. Paris: Fayard, 2001. SOLER, C. Seminário de leitura de texto ano 2006-2007: Seminário A angústia, de Jacques Lacan. São Paulo: Escuta, 2012.

SOLER, C. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

TEIXEIRA, M. R. Objeto a: Invenção lacaniana. In:______. Vestígios do gozo. Salvador: Campo Psicanalítico/Ágalma, 2014.

TEIXEIRA, M. R. Os gozos - Sobre duas dicotomias presentes no Seminário 20, Mais, ainda. In:______. Vestígios do gozo,op. cit.

TEIXEIRA, M. R. O que Lacan quis dizer com “gozo do Outro”? In: ______. Vestígios do gozo, op. cit.

TEIXEIRA, M. R. Comentário do Seminário 10, A Angústia, aula VIII – A causa do desejo. Disponível em: www.campopsicanalitico.com.br/biblioteca

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