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Tecendo mensagens numa trama bem urdida: as mulheres atenienses

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Tecendo mensagens numa trama bem urdida: as mulheres atenienses

Maria Angélica Rodrigues de Souza

Rio de Janeiro 2005

Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Filosofia e Ciências Humanas Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

Programa de Pós-Graduação em História Comparada Orientador: Professor Doutor Fábio de Souza Lessa

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Filosofia e Ciências Humanas Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

Programa de Pós-Graduação em História Comparada Orientador: Professor Doutor Fábio de Souza Lessa

Tecendo mensagens numa trama bem urdida: as mulheres atenienses

Maria Angélica Rodrigues de Souza

Dissertação apresentada à Coordenação do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ, visando a obtenção do título de Mestre em História Comparada.

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Filosofia e Ciências Humanas Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

Programa de Pós-Graduação em História Comparada Orientador: Professor Doutor Fábio de Souza Lessa

Tecendo mensagens numa trama bem urdida: as mulheres atenienses

Maria Angélica Rodrigues de Souza

Dissertação apresentada à Coordenação do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, visando a obtenção do título de Mestre em História Comparada.

Examinadores:

____________________________________________________ Prof. Dr. Fábio de Souza Lessa - UFRJ

____________________________________________________ Profª. Drª. Neyde Theml - UFRJ

____________________________________________________ Profª. Drª. Carlinda Fragale Pate Nuñez - UERJ

Rio de Janeiro 2005

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FICHA CATALOGRÁFICA

SOUZA, Maria Angélica R.. Tecendo mensagens numa trama bem urdida: as mulheres atenienses. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro/Programa de Pós-Graduação em História Comparada, 2005. Dissertação de Mestrado em História Comparada.

1- identidade 3- tática 5- mulheres atenienses

2- alteridade 4- gênero

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RESUMO

Esta dissertação propõe mapear, por intermédio da comparação entre os resultados dos estudos da História de Gênero, de Antropologia, de Arqueologia e de História, as dimensões da linguagem das mulheres atenienses, principalmente as esposas bem-nascidas no Período Clássico. Concebemos que por intermédio de linguagens específicas, as esposas dos cidadãos abastados atenienses, usavam do esquema tático para se comunicarem.

Dessa forma, elas faziam circular informações da vida dos atenienses, sinalizando a integração não somente nos grupos que estavam inseridas no dia-a-dia, mas com a comunidade políade. Esses processos de comunicação femininos, ou seja, o corpo, os gestos, a tecelagem, os bordados nos tecidos, a fala e a escrita inseridos nessa vivência rompiam a organização bipolar, diluindo as margens do modelo mélissa.

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ABSTRACT

This dissertation proposes to follow through the comparison among the results of the studies about History of the Gender, Anthropology, Archeology and History the dimensions of the Athenian women language specially the well born wives in the Classical Period. We understand that using specific languages, the rich citizens wives used a tactical way to communicate.

So thus, these women interchanged informations about life, integrating not just in those groups they were inserted, but in the pólis itself. These female communication processes the body, the gestures, the weaving, the tissue embroidery, the speaking and the writing envolved in this process violated the male organization diluting the extremities of the mélissa pattern.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, pois pelo seu imenso amor por mim conclui este estudo; à minha família, pelo constante apoio aos meus projetos; ao Professor Doutor e amigo Fábio de Souza Lessa, que desde o momento que manifestei o interesse pelo tema se mostrou disposto a ajudar-me.

Aos Professores Doutores Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, Carlinda Fragale Pate Nuñez, Maria Regina Candido e Neyde Theml que participaram desta trajetória.

Destaco a colaboração de meus amigos que, de maneira formal ou informal, me incentivaram no decorrer desta pesquisa, principalmente nos momentos mais delicados.

Agradeço aos amigos do Laboratório de História Antiga e do Programa de Pós-Graduação em História Comparada, especialmente ao amigo José Roberto de Paiva Gomes, pelo apoio.

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SUMÁRIO DA DISSERTAÇÃO

Introdução 09

Capítulo 1 As mélissai e as formas de comunicação na pólis 17

1.1 As relações de gênero 18

1.2 As táticas: forma de participação das esposas atenienses 23

1.3 A integração dos grupos de esposas na pólis 32

Capítulo 2 Os corpos que se comunicam 45

2.1 Corpo e prática social 45

2.2 As representações dos corpos femininos entre os atenienses 54

2.3 Os gestos e as danças 62

Capítulo 3 As mãos que falam

84 3.1 A arte da tecelagem 87

3.2 As roupas e os adereços como enunciadores de uma mensagem 91

3.3 Mitos, tecelagem e bordados 108

Conclusão 122

Bibliografia 126

Anexos 134

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INTRODUÇÃO

Ao pesquisarmos a sociedade dos atenienses* entendemos que os conhecimentos sociais se expandem na medida em que dialogamos e comparamos resultados das pesquisas, que contemplam objetos, teorias e métodos dos diferentes aportes das chamadas Ciências Humanas.

Marcel Detienne, de acordo com Neyde Theml e Regina Bustamante, apresentou pressupostos para a pesquisa comparativa partindo da concepção de que a sociedade é composta por um conjunto complexo e infinito de elementos que se articulam e ao se relacionarem produzem uma série de combinações e ações sociais. Assim, a comparação poderá percorrer tanto as sociedades antigas quanto as atuais, as simples e as complexas, colocando em perspectiva as singularidades, as repetições, o tempo e o espaço (BUSTAMANTE e THEML: 2004, p. 14).

Por intermédio do método comparativo podemos estabelecer o estranhamento, a diversificação, a pluralização e a singularidade diante do que parecia empiricamente diferente ou semelhante, posto pelo habitus e reproduzido pelo senso comum (BUSTAMANTE e THEML: 2004, p. 17).

Inicialmente devemos esclarecer que esta dissertação apresentar-se-á da comparação entre os resultados obtidos pelo diálogo interdisciplinar entre as pesquisas de Gênero, de Antropologia, de Arqueologia e de História. A comparação destes far-se-á no nível de singularidade das mulheres atenienses a fim de se verificar as diferentes respostas sociais.

Almejamos ao comparar documentos de naturezas diferentes em uma mesma época apontar tanto as semelhanças quanto as diferenças entre os elementos analisados. Neste sentido, confrontaremos a documentação textual compreendida pelas comédias e tragédias produzidas no período com a documentação imagética, ou seja, as pinturas de figuras vermelhas contidas nos vasos áticos e a cultura material: os próprios objetos de uso cotidiano e espelhos. Além de examinar simultaneamente documentos de naturezas diferenciadas também estabeleceremos comparações com as diversas respostas obtidas após análise da documentação imagética.

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Objetivamos, por intermédio deste estudo mapear as dimensões da linguagem das esposas abastadas atenienses no Período Clássico (séc. V e IV) através da representação do corpo, dos gestos, da dança, da fala, da escrita, da imagética, da tecelagem e dos bordados nos tecidos.

Entendemos por linguagem das mulheres os processos de comunicação estabelecidos pelos grupos de esposas na pólis ( ). Destacamos que, tais processos de comunicação geravam informações que eram compreendidas e constituíam as representações simbólicas no interior da Koinonía, já que as esposas abastadas atuavam internamente na pólis, criando espaços de fala, estando atualizadas, ou seja, bem inteiradas sobre as informações que circulavam na sociedade dos atenienses.

Compartilhamos com José Carlos Rodrigues que a sociedade inteira é um ato comunicacional. De acordo com o autor, sem comunicação não existe sociedade, (...) quando entre duas posições se imagina uma distância tão infinitamente grande que se procura vetar qualquer possibilidade de comunicação, a própria proibição é ,(...), uma maneira de expressar a natureza da relação entre ambas e entre estas e o resto do sistema, (...) (RODRIGUES: 1983, p. 29). Partiremos do princípio de que a pólis dos atenienses era um grande complexo comunicacional.

Neste contexto, nos propomos a pesquisar as formas de linguagem das esposas

bem-nascidas atenienses, pois acreditamos que estas nos permitirão perceber com maior clareza a

vivência das mulheres em Atenas. Sabemos que a fala estava presente no cotidiano, mas o silêncio ( ) era uma das virtudes esperadas das esposas legítimas dos cidadãos atenienses. Segundo Peter Burke, A escolha de uma variedade específica de linguagem transmite informações sobre as lealdades do falante, expressando solidariedade com aqueles que falam da mesma maneira e distância daqueles que falam de maneira diferente (BURKE: 1995, p. 39).

Para fugir do silêncio imposto pela virtude do não falar, as esposas atenienses desenvolveram outras formas de comunicação através do corpo1, dos gestos2, das roupas, das danças, da tecelagem e dos bordados nos tecidos.

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Pierre Bourdieu enfatiza que o corpo é construído pelo mundo social como uma realidade sexuada e que contém em si princípios de visão e divisão sexualizantes. Esse programa social de percepção incorporada aplica-se a todas as coisas do mundo e, antes de tudo, ao próprio corpo, em sua realidade biológica: ele é que constrói a diferença entre os sexos biológicos, conformando-a aos princípios de uma visão mítica do mundo, enraizada na relação arbitrária de dominação dos homens sobre as mulheres, ela mesma inscrita, com a divisão do trabalho, na realidade da ordem social (BOURDIEU: 1999, pp. 18 e 20 grifo do autor).

Segundo Rodrigues, a pesquisa sobre a pressão que cada sociedade exerce sobre seus indivíduos para que estes utilizem seus corpos de formas específicas e a se comunicarem com eles de maneiras singulares, amplia as perspectivas para o estudo da integração social. (...), por meio dessa pressão, a marca da estrutura social imprime-se sobre a própria estrutura somática

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Estes processos de comunicação das mulheres em Atenas nos remete à seguinte colocação de David Garrioch: Nenhum tipo de comunicação, verbal ou não-verbal, pode ser entendido sem referência ao contexto social no interior do qual é produzido (GARRIOCH: 1997, p. 121). Logo, para decodificarmos as falas femininas, precisamos inseri-las no contexto cultural ateniense. A linguagem verbal é constituída de palavras faladas ou escritas e, a linguagem não-verbal3 é encontrada em muitas manifestações, como a pintura (pelas cores, figuras e por outros elementos mínimos constitutivos utilizados pelo artista); dança (pelo movimento e ritmo); escultura (pelas proporções, formas e volume); caricatura (na charge e nos cartuns, pelo traçado disforme ou irônico) e sinais (do telégrafo, do trânsito, da matemática, dos gestos, das roupas e do corpo).

Burke destaca a atuação das lingüistas feministas que chamaram a atenção para o fato de que (...) a língua comum, dominada pelo masculino, não só expressa o lugar subordinado das mulheres, mas também as mantém em uma posição de subordinação (BURKE: 1995, p. 44). Neste sentido, ao pesquisarmos outros processos de comunicação das mulheres atenienses, sairemos deste caminho de subordinação e descortinaremos o cotidiano feminino ateniense.

Dessa maneira, nossa pesquisa cresce em significado, na medida em que trata especificamente da dimensão da linguagem das esposas dos cidadãos atenienses no Período Clássico embasados na documentação imagética, textual e na cultura material. Reconstruindo, dessa forma, o cotidiano ateniense antigo e a atuação das esposas bem-nascidas através dos processos de comunicação na koinonía.

Estaremos dinamizando os estudos sobre a História de Gênero, pois nos propomos a desenvolver uma pesquisa sobre as esposas atenienses onde priorizaremos a relação entre os sujeitos históricos na pólis. Enfatizaremos a participação das esposas bem-nascidas no cotidiano ateniense, porque compreendemos que, além de partilharem com a mulher grega comum as mesmas formas de expressão do imaginário feminino, elas desempenharam

individual, de forma a fazer do psíquico, do físico e do coletivo um amálgama único que somente a abstração pode separar (RODRIGUES: 1983, p. 47).

Roy Porter contribuiu de forma significativa destacando que o corpo não pode ser tratado simplesmente como biológico, chamando atenção para uma análise onde o corpo é mediado por sistemas de sinais culturais. O culto ao corpo está incluso na manutenção de uma determinada ordem. Ele reage dentro de aspectos sociais, culturais e outros (PORTER: 1992, p. 308).

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De acordo com Burke os gestos podem ser pesquisados (...) como um subsistema dentro do sistema maior de comunicação (BURKE: 2000, p. 95).

Entendemos por gestos as diversas formas de expressão que variam de uma cultura para outra e que também variam dentro de uma cultura específica em épocas diferentes. Eles estão inseridos na linguagem do corpo e são apreendidos pelos agentes sociais.

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No caso específico ateniense, estudaremos as imagens, a dança, os gestos, as roupas, o corpo, a tecelagem e os bordados nos tecidos.

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funções sociais determinantes, ainda que silenciadas mormente nas questões de confirmação da descendência e transmissão de herança.

A História Social, ao repensar sua área de atuação, proporcionou com a inclusão de temas como o cotidiano, as experiências vividas entre homens e mulheres, a sexualidade e a vida em família, condições para que pudéssemos desenvolver nossos estudos sobre as mulheres, pois há dentro deste contexto à possibilidade de analisarmos novas temáticas. De acordo com Jean-Pierre Vernant A história social é uma obra humana que os homens elaboram com suas paixões, seus interesses e suas representações. Mas, reciprocamente por meio dessa história, os comportamentos humanos se transformam e o homem, por sua vez, elabora a si mesmo (VERNANT: 2001, p. 148).

Ao pesquisarmos as mulheres como agentes históricos voltamo-nos para os domínios onde ocorriam maior evidência de sua atuação, isto é, o privado e o cotidiano. Assim compartilhamos com Margareth Rago quando afirma que a categoria de gênero desnaturaliza as identidades sexuais e postula a dimensão relacional do movimento constitutivo das diferenças sexuais (RAGO: 1998, p. 27).

De acordo com Susan Paulson, devemos entender que, apesar do sexo biológico atingir aos corpos sexuados, o sexo social, o que estendemos por gênero, compreende tudo. A pesquisadora defende que Linguagens, (...), leis, economias, mercados de trabalho: todos esses campos incorporam o gênero, na organização dos espaços e atividades, assim como no

valor simbólico e na distribuição de poder (PAULSON: 2002, p. 25). Acrescido ao estudo de gênero, o embasamento teórico de nosso estudo também foi

fornecido pelo historiador Michel de Certeau, através de sua obra A invenção do cotidiano. O autor define o campo de objetos, uma linha de pesquisa e uma tarefa teórica de esboçar uma

teoria das práticas cotidianas para extrair do seu ruído as maneiras de fazer (CERTEAU:

1999, p. 17 grifo do autor).

Certeau enfatiza que os mecanismos de resistência são os mesmos de uma época para outra, já que para ele (...) continua vigorando a mesma distribuição desigual de forças e os mesmos processos de desvios servem ao fraco como último recurso, como outras tantas escapatórias e astúcias, (...) (CERTEAU: 1999, p. 19).

Concebemos que as esposas bem-nascidas atenienses utilizavam táticas para subverter a

dominação dos homens. Assim temos a inclusão de manipulações por parte das esposas dos cidadãos atenienses abastados que através de táticas mobilizam para seus próprios fins uma dominação imposta. Elas burlavam o esquematismo espacial e o ideal de comportamento

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feminino concebidos pela sociedade políade, o que significa dizer que (...) nem sempre as mulheres se adequaram aos papéis prescritos (SAMARA: 1997, p. 25).

Dessa forma, as esposas abastadas atenienses, através do uso de táticas, conseguiam transgredir ao modelo idealizado pela sociedade4 ateniense, mas sem romper definitivamente com este, alcançando assim uma certa autonomia. Em nossa pesquisa lançamos mão do conceito de tática de Certeau. O especialista entende tática como sendo uma ação premeditada, que se aplica no lugar do outro, no espaço por ele dominado, ou seja, (...) a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio . As esposas bem-nascidas usavam táticas comunicacionais. Segundo ainda Certeau (...) em suma, a tática é a arte do fraco (CERTEAU: 1999, pp. 100-101).

A utilização de táticas pelas esposas para alcançar seus objetivos fazia parte do cotidiano ateniense. Neste sentido, compartilhamos do mesmo pensamento de Certeau quando ele afirma que o fraco deve tirar partido de forças que lhe são estranhas. Ele consegue em momentos oportunos onde combina elementos heterogêneos (...), mas a sua síntese intelectual tem por forma não um discurso, mas a própria decisão, ato e maneira de aproveitar a ocasião (CERTEAU: 1999, p. 47).

Na sociedade dos atenienses, o par identidade e alteridade estava presente no meio familiar, já que as mulheres eram um dos outros/alteridade. E esse par estava sempre em constante troca, pois um era complemento do outro, e a convivência era importante para a conservação dos bens do casal e da Koinonía. Assim a oposição/complementaridade se fazia presente na sociedade políade.

Marc Augé define alteridade de três maneiras diferentes: a alteridade completa; a do estrangeiro; a alteridade interna, neste caso, também denominada alteridade social; e a alteridade íntima, que atravessa a pessoa de cada indivíduo. Priorizaremos a alteridade interna que é definida como sistema de diferença, de sexo, a posição na ordem de nascimentos e a idade. São tantos critérios que compõem a trama social e não deixam de ter expressão espacial, visto que as mulheres atenienses eram um dos tipos de manifestação da alteridade, na sociedade masculinizada. Dessa maneira, a identidade e a alteridade não são concebíveis uma sem a outra e contribuem para a formação do tecido social (AUGÉ: 1999, pp. 138-140).

De acordo com Vernant, a participação do sujeito no mundo implica, para o indivíduo, uma forma particular de relação consigo e com os outros. Esta relação com o outro se

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Vernant, define sociedade como sendo: (...) um sistema de relações entre os homens, atividades práticas que se organizam no plano da produção, da troca, do consumo, em primeirolugar, e depois em todos os outros níveis e em todos os outros setores da vida coletiva (VERNANT: 2001, p. 54).

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estabelece, também, através do olho, pois é através do olho do outro que olhamos e vemos a nossa imagem. O olho não vê a si mesmo, precisa direcionar seus raios para um objeto situado no exterior. Assim, o que somos, nosso rosto e nossa alma, nós o vemos e conhecemos ao olhar o olho e a alma do outro. A identidade de cada um se revela no contato com o outro e pela troca de palavras (VERNANT: 2001, pp. 183-184). É justamente a troca com o outro através dos processos de comunicação, que priorizaremos, em nosso leque temático.

Quanto ao método que aplicaremos neste estudo, como afirmou Martine Joly, Não existe um método absoluto para análise, mas opções a serem feitas ou inventadas em função dos objetivos (JOLY: 1999, p. 49). Assim, nossa opção para tratar da documentação foi a adoção do método de leitura isotópica, pois compreendemos que este é passível de ser utilizado tanto para a documentação textual quanto para a imagética.

No caso específico da documentação imagética, selecionamos ainda a proposta metodológica de Claude Calame que nos oferece uma alternativa a mais de leitura semiótica das imagens representadas nos vasos áticos.

Segundo Calame, é através dos jogos de olhares e dos gestos dos atores representados numa determinada cena, na sua organização espacial, que percebemos a manifestação de vários processos de ligar e não ligar pôr e não pôr em comunicação que nos possibilitará a percepção e distinção de diferentes níveis do enunciado e de sua enunciação (CALAME: 1986, p. 106). Devemos ficar atentos para os olhares das personagens, para a posição espacial das mesmas, dos objetos, dos ornamentos e da importância de fazermos um levantamento em cena.

Ao trabalharmos com três corpora: documentação textual, imagética e cultura material, objetivamos apreender através da comparação, entre as naturezas diferentes da documentação, a individualidade dos textos escritos e imagéticos, e a importância da cultura material - artefatos, selecionada, no contexto da sociedade dos atenienses. Buscamos demonstrar a existência de uma heterogeneidade das informações que tratam do feminino entre os atenienses.

Para melhor assimilação da individualidade da documentação citada, construímos grades de leitura, a partir da aplicação do método de leitura isotópica, constituídas pelos três níveis semânticos: o temático, o figurativo e o axiológico5 proposto por Ciro Flamarion

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O método de leitura isotópica pressupõe, de acordo com Ciro Flamarion Cardoso, o cumprimento de três etapas que nos propomos a seguir:

1a.: o exame comparativo das partes componentes de um texto (frase, enunciados...), possibilitando evidenciar suas categorias sêmicas (de significação), subjacentes.

2a.: isolam-se dentre elas aquelas categorias sêmicas que se repetem, que são recorrentes no texto: são estas as categorias isotópicas5.

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Cardoso. Na interpretação da documentação imagética utilizamos também o método de leitura de imagens proposto por Calame.

A documentação textual utilizada, neste estudo, compreende tragédias e comédias e outros textos produzidas pelos sujeitos históricos no decorrer do período enfocado.

A documentação imagética selecionada para nossa pesquisa é composta de imagens pintadas nos vasos gregos do Período Clássico. Joly concebe que a imagem é um meio de expressão e de comunicação que nos vincula às tradições mais antigas e ricas de nossa cultura (JOLY: 1999, p. 135). Segundo Ignace Meyerson, citado por Vernant, (...) o homem é criador de formas, de objetos, de obras que podem ser observados, relacionados e analisados (VERNANT: 2001, p. 131).

As imagens desta pesquisa representam esposas no interior ou no espaço externo do oîkos ( ), realizando atividades essenciais no cotidiano ateniense: as tarefas de tecelagem e de fiação, outras tarefas peculiares às esposas e também as que representam a dança devido ao fato desta atividade representar uma das formas de comunicação feminina. Dessa maneira concebemos que Nunca deixamos de fabricar e de desfazer a nós mesmos (MEYERSON citado por VERNANT: 2001, p. 131). Para Joly, quanto às funções da imagem, é admissível que uma imagem sempre constitui uma mensagem para o outro, mesmo quando esse outro somos nós mesmos ( JOLY: 1999, p. 55).

As imagens contidas nos vasos gregos que nos propomos analisar faziam parte do cotidiano dessa sociedade, visto que os vasos possuíam um contexto social de uso. A obra é social, pois o artista a cria para os outros, para ser vista. Vernant afirma que A obra não é feita para uma contemplação solitária, nem para o homem em geral. Precisa de um público que a entenda. Dirige-se para esse público; apóia-se sobre ele ao mesmo tempo em que o conquista e o transforma (VERNANT: 2001, p. 146).

Nossa pesquisa almeja defender, especialmente, que através das relações de gênero que se faziam presentes na pólis dos atenienses no Período Clássico e dos processos de comunicação femininos, ou seja, o corpo, os gestos, a tecelagem, as roupas, os bordados nos

3a.: distribuição de tais categorias pelos três níveis semânticos: figurativo, temático e axiológico (CARDOSO: 1997, p. 174). O nível figurativo (ou pictórico, no caso das imagens) se constitui em um significado possível de ser correlacionado de forma direta ou indireta com um dos cincos sentidos (visão, audição, olfato, paladar e tato) e que pareça ligado ao mundo exterior ao texto.

O nível temático é representado pelo tema ao qual se referem os níveis figurativos e axiológicos.

O nível axiológico está vinculado ao sistema de valores: éticos, estéticos, religiosos ou quaisquer que os conteúdos dos textos manifestem. Neste nível estaremos observando os elementos euforizados, disforizados e aforizados. Após o cumprimento dessas etapas constituiremos as grades de leitura que receberão as redes temáticas, figurativa e axiológica (CARDOSO: 1997, pp. 172 - 178).

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tecidos, a fala e a escrita, as mulheres atuavam no cotidiano de Atenas burlando a organização bipolar, pondo em xeque o modelo mélissa.

Após esta breve apresentação de nossa pesquisa, nos dedicamos à análise do tema proposto. Ele está dividido em três capítulos que foram organizados objetivando elucidar, através de um estudo comparativo de resultados entre a História de Gênero, a Antropologia, a Arqueologia e a História, os processos de comunicação das esposas atenienses e de que forma estes se apresentaram na koinonía.

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CAPÍTULO 1

As mélissai e as formas de comunicação na pólis

Nosso grande desafio, neste estudo, é levantar de maneira comparativa os processos comunicacionais das esposas atenienses no Período Clássico. Ao dialogarmos com algumas ciências almejamos cruzar os resultados de pesquisas efetuadas por historiadores, antropólogos, arqueólogos e estudiosos de gênero visando perceber a individualidade das informações, pois nos possibilitarão interpretar com maior clareza a vivência dessas mulheres em Atenas.

Compartilhamos com Vernant que o homem deve ser estudado através do que ele criou e produziu em sua vida em grupo. Ele se faz presente em suas construções, suas obras, e estas devem ser transmitidas, comunicadas, perpassando de geração em geração. O conjunto dessas obras constitui aquilo que chamamos de feitos de civilização, que dependem de um estudo histórico (VERNANT: 2001, p. 54).

Burke destaca que os historiadores têm ampliado consideravelmente seus interesses. História das mentalidades, história da vida cotidiana, cultura material, história do corpo para isso houve a necessidade de diversificação da documentação (BURKE: 2001, p. 11). Ainda que os textos também nos ofereçam importantes pistas, as imagens são a melhor guia para entender o poder que tinham as representações visuais na vida política e religiosa das culturas passadas (BURKE: 2001, p. 17). Portanto, priorizamos corpora diversificados, pois o leque das produções efetuadas pelos sujeitos históricos do período estudado se ampliou e a gama de informações a respeito dos processos de comunicação de naturezas não-comuns para serem comparadas também.

Quanto aos processos de comunicação nas culturas passadas, Corine Coulet afirma que a comunicação é um conceito moderno, que se desenvolveu a partir do advento dos meios de comunicação de massa, por exemplo, o rádio e a televisão. Essa especialista questiona a possibilidade de aplicar tal conceito à Grécia Antiga, já que é uma noção moderna e implica em teorias atuais sobre a temática. Tais teorias envolvem: a circulação da mensagem, o funcionamento de grupos e as relações sociais. Sendo assim, a noção de comunicação é

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central para compreender as sociedades contemporâneas, mas também pode nos fornecer as ferramentas de análise para as sociedades antigas (COULET: 1996, p. 12).

Inicialmente, neste primeiro capítulo, trabalharemos com uma análise da vivência em grupo das mulheres atenienses e por intermédio de suas ações cotidianas pretendemos levantar ruídos da linguagem feminina. Voltaremos nosso olhar para as maneiras que as atenienses burlavam o esquematismo social e para as relações de gênero.

1.1. As relações de gênero

Os estudos e a divulgação do gênero como uma categoria de análise da organização social da diferença sexual tem grande relevância em nossa pesquisa, pois sinaliza que papéis próprios a homens e mulheres são construções sociais e culturais. O gênero vem enfatizar um sistema amplo das relações entre os sexos, sem vincular-se diretamente à diferença biológica. Tornando-se um instrumento para conhecer as simbologias e representações pelas quais as sociedades elaboraram e definiram o masculino e o feminino e, conseqüentemente, as relações de poder que permeiam ambos os conceitos. Contamos com os resultados dos estudos de gênero ao direcionarmos nosso olhar para a sociedade ateniense.

Se atualmente podemos efetuar tais reflexões sobre o gênero, devemos nos reportar às valiosas contribuições que vieram à tona com a História Social, onde se começou a estudar os grupos ditos marginalizados. Antes de refletir sobre o gênero, a História passou por profundas mudanças em seus paradigmas. Com a eclosão de novos movimentos sociais urbanos a partir dos anos 70: mulheres, ambientalistas, negros e grupos minoritários e marginais, os cientistas sociais repensaram seus parâmetros de análise do social. O sujeito histórico enquanto uma figura única é relegado e novos sujeitos entram em cena, dentre eles as mulheres. Os pesquisadores passaram a lançar mão com mais incidência de lembranças e de histórias de vida, de documentos iconográficos, de registros pessoais, de diários, cartas e romances.

Neste contexto, as mulheres passam a ser concebidas como agentes históricos. Os estudos acerca das mulheres atenienses ganharam novos rumos e os questionamentos quanto à dimensão da exclusão a qual estavam submetidas se intensificaram. A atuação das mulheres foi legitimada ao longo dos anos por um discurso masculino que encerrava a vida das atenienses no gineceu. Com a categoria gênero novas histórias emergiram e com elas percebemos uma dinâmica na vida dessas mulheres que não estava presente na concepção

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masculina. Os processos de comunicação das esposas atenienses nos permitem vislumbrar que suas vidas como sujeitos históricos vão além do que homens contemporâneos à elas deixaram registrado.

Guaciara Lopes Louro afirma que em diversos momentos de nossa História podemos observar ações isoladas ou coletivas dirigidas contra a opressão das mulheres. A autora aponta que contemporaneamente vem se preocupando em reconhecer essas ações (LOURO: 2003, p. 14). Neste trabalho, auxiliados pelo estudo de gênero, estamos pesquisando a linguagem, principalmente em conjunto, das esposas bem-nascidas com os sujeitos históricos. Com o intuito de trazer à tona ações e atitudes que foram silenciadas em outrora.

Estudar as ações não esperadas, ou seja, as que fugiam ao modelo se torna possível através dos estudos de gênero, pois nos dedicamos a entender a relação entre os agentes atenienses que transcendia o que está escrito, o que nos foi deixado residualmente. Para entendermos o contexto cultural ateniense temos que ler nas entrelinhas os registros deixados pelos contemporâneos das esposas atenienses. Segundo Rago, a História Cultural enfatiza a necessidade de se refletir o campo das interpretações culturais, priorizando a construção dos inúmeros significados sociais e culturais pelos agentes históricos (RAGO: 1998, 37).

Nesta perspectiva, compartilhamos com Joan Scott que (...) gênero é o saber que estabelece significados para as diferenças corporais. Esses significados variam de acordo com as culturas, os grupos sociais e no tempo, já que nada muda no corpo, (...) determina univocamente como a divisão social será definida (SCOTT: 1994, p. 13).

Louro defende que com a categoria gênero se passa a analisar a construção social e cultural do feminino e do masculino, apontando que devemos ficar atentos para as formas que os sujeitos se constituíam e eram constituídos em meio às relações sociais de poder (LOURO: 2002, p. 15).

Inserido nesta discussão, Thomas Laqueur enfatiza que o gênero na Antiguidade era muito importante e fazia parte da ordem das coisas. Foi no mundo do sexo único que se falou mais diretamente sobre a biologia de dois sexos, que era mais arraigada no conceito de gênero, na cultura . Ele defende ainda que ser homem ou mulher implicava em uma posição social, um lugar na sociedade, assumir um papel cultural (LAQUEUR: 2001, p. 19).

A sociedade ateniense construiu para as mulheres um papel que relegava à submissão, a exclusão das decisões da pólis. O discurso masculino legou a mulher ao interior, ao espaço interno do oîkos. Salientamos que apesar desta idealização masculina, as mulheres não viveram completamente pautadas neste modelo.

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Na medida que nos aprofundamos nos estudos acerca das mulheres na sociedade ateniense através de sua atuação e das formas de expressão compreendemos que o papel desempenhado pelas atenienses não está presente diretamente na documentação textual. Entendemos que suas ações iam além da submissão, das responsabilidades que lhes foram atribuídas e a categoria gênero tem nos auxiliado quando nos oferece um suporte teórico para a compreensão da relação entre os viventes através da cultura. Assim, seguimos nossos estudos em busca de novos testemunhos sobre as mulheres, procurando rever as imagens e dar visibilidade a elas. Através dos estudos sobre o feminino, novas histórias emergiram, falas foram recuperadas (MATOS: 2000, p. 7).

Nesta perspectiva defendemos que as esposas dos cidadãos abastados atenienses não viviam isoladas em ilhas, mas interagiam continuamente com os homens, quer os consideremos na figura de esposos, pais, irmãos ou filhos, com os quais conviviam no cotidiano, como podemos verificar nas representações dos pintores. Ao acrescermos aos estudos de gênero as pesquisas da Arqueologia e da Semiótica reunimos instrumentos de análise para interpretarmos a vida das mulheres de Atenas.

Figura 1 Funções Sociais de uma esposa bem-nascida

1a

1b

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1c 1d 1e

Localização: Coleção da Universidade de Havard (Robinson Collection III. I). Temática: Funções sociais de uma esposa bem-nascida. Proveniência: Vari. Forma: Hydría. Estilo: Figuras Vermelhas. Pintor: Polygnotan Circle. Data: 430. Indicação Bibliográfica: C.V.A., U.S.A (Fasc. 6): 1937, Pl. XLIII; WILLIAMS: 1984, pp. 93-94; LESSA: 2001, p. 62; www.perseus.tufts.edu.

Nesta cena temos quatro personagens representadas6 (1a). Uma mulher sentada numa cadeira de encosto elevado, vestindo chitón e himátion de cores claras e plissados e está descalça (1a e 1c). Outra personagem está em pé, meio inclinada, recebendo uma criança que está sendo transferida do colo da mãe, assim concebemos, para seus braços. Ela veste chitón decorado com linha reta e uma túnica simples com mangas longas decorada com fitas de cor escura em linha ondulada, e está descalça (1a, 1d e 1e). Na imagem ainda temos um personagem masculino vestindo himátion (1a). O bebê usa um cordão com amuleto de função apotropáica. A personagem que está sentada usa um sákkos decorado com linhas quebradas e linhas pontilhadas envolvendo os cabelos e brincos (1c); a outra, está com os cabelos amarrados atrás e não possui brincos (1d). A personagem que está sentada, neste caso a esposa, têm sua roupa diferente da ama. Sua roupa é lisa e a da ama possui detalhes. Quanto aos adereços seu cabelo está preso com um sakkós decorado e ela usa brincos. Os detalhes na composição é que realçam a diferença que aparentemente não é perceptível. Os adereços atuavam como elementos de distinção social, de status.

A principal função social de uma esposa bem-nascida está ressaltada nesta imagem: a concepção de filhos, principalmente do sexo masculino. Devemos enfatizar, nesta representação, os gestos. No centro da imagem vemos a transferência da criança para os braços de uma outra personagem. Observem que ambos estão com os braços estendidos e que a personagem que está sentada direciona a criança para o colo da segunda mulher (1a e 1d). A

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comunicação é destacada pelo pintor, se fazendo presente através dos gestos. A presença de mobília (cadeira de encosto alto e assento para pôr os pés) nos permite afirmar que a cena é de interior. O tear, além de ser também um signo de interioridade, reafirma as tarefas domésticas femininas no interior do oîkos e é outra forma de comunicação das mulheres.

É interessante percebermos que o homem está inclinado. Acreditamos que o pintor não aprove a presença masculina neste espaço7. Ele segura com a mão direita um bastão que é um símbolo masculino de poder e autoridade.

As personagens apresentam uma certa sincronia para realizar a ação da cena: a transferência do recém-nascido do colo da mãe para o colo da ama. A representação em perfil não convida o receptor da mensagem a participar da ação. Concebemos que a personagem que está sentada é uma esposa bem-nascida, pelas características apresentadas e pela temática da própria cena.

Assim como afirma Pierre Brulé, na imagética dos vasos, as mulheres não estão sozinhas em cena. Este especialista ainda destaca que a pesquisa sobre as mulheres nos informa evidentemente muito, quando retornamos aos homens, à associação dos gêneros, às sociedades onde elas vivem, à cultura onde elas se encontram imersas (BRULÉ: 2001, p. 10).

Para Paulson em contextos que as mulheres de certos grupos sociais vivem com os pés amarrados, com faixa apertada na cintura, com menos comida ou proteína que seus irmãos, elas são biologicamente mais fracas, e a ideologia de gênero justifica a sua saúde delicada com a crença de que as mulheres nascem fracas. Na verdade, as restrições culturais é que não consentem que elas andem, façam exercícios. São as práticas de gênero que agem na saúde e no corpo durante o seu desenvolvimento (PAULSON: 2002, p. 30).

Contemplando a abordagem cultural, Richard Sennett enfatiza a justificativa dos atenienses em relação à fraqueza da mulher desde a geração. A dominação feminina pelos homens era legitimada, na Atenas Clássica, por intermédio de uma concepção de que a temperatura dos corpos produzia maior ou menor resistência. De acordo com Sennett, os fetos bem aquecidos no útero, desde o início da gravidez, se tornariam machos, já os menos aquecidos deveriam se tornar fêmeas, desta falta de aquecimento resultaria corpos fracos, frios, frágeis, menos encorpados que os homens (SENNETT: 1997, p. 38), podemos desta forma, concluir que alguns dos atributos específicos a uma esposa tinham uma relação imediata com a procriação.

7

Fábio Lessa ressalta que a presença masculina no gineceu não é comum. Ele e outros estudiosos observam (...) que a imagem masculina no gineceu, quando representada em cenas de interior, normalmente excede o pescoço decorativo do vaso, o que pode fazer parecer que o homem seja grande demais para o espaço doméstico no qual está introduzido, isto é, o homem é visto como inadequado para este espaço (LESSA: 2001, p. 64).

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Concluímos que os estudos de gênero aplicados à Antiguidade Clássica contribuem para que possamos descortinar a vivência de homens e mulheres no período estudado trazendo novas reflexões para a historiografia. Tais tendências compreendem, em nosso estudo, o uso de táticas pelas atenienses.

1.2. As táticas: forma de participação das esposas atenienses

As esposas abastadas atenienses passavam grande parte do seu tempo com as suas escravas, com as mulheres que prestavam serviços em suas residências e estavam presentes nessa relação, com as que possuíam laços de philía ( ) e de parentesco. Nossa proposta, neste momento, é mapear de que forma esta convivência grupal proporcionou às atenienses

maneiras de burlar o esquematismo social construído pelos gregos. Para tal priorizaremos os

processos de comunicação das mulheres, pois concebemos que por intermédio da linguagem as esposas bem-nascidas se interavam dos acontecimentos da koinonía e disseminavam suas idéias, rompendo o modelo ideal de esposa.

Atuar em uma sociedade masculinizada, como a sociedade dos atenienses, implicava para as mulheres em transgredir parcialmente algumas regras de conduta, ou seja, cotidianamente não seguir por completo um modelo de comportamento que era destinado à elas, principalmente as esposas bem-nascidas, já que era sobre elas que recaía um maior controle. Encontramos referências na documentação textual e imagética, que selecionamos, de ratificações ao modelo mélissa ( ). Diante de tanta reiteração entendemos que este não estava sendo cumprido na prática como os atenienses almejavam ao ponto de se fazer necessário um reforço do mesmo nas suas produções, sejam estas escritas ou não. Para as esposas pertencentes ao segmento dos kaloì kagathoí ( ), esta cobrança, assim

defendemos, era mais intensa, pois estavam no topo da pirâmide social ateniense.

Ao analisarmos a cultura material nos defrontamos com uma significativa quantidade de vasos de figuras vermelhas contendo imagens que contemplam as funções sociais de uma esposa bem-nascida. Tais vasos possuíam um contexto social de uso, estavam cotidianamente junto das mulheres e as representações contidas neles tinham o objetivo, assim defendemos, de lembrá-las a todo instante de suas funções na sociedade políade.

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24

Tal afirmação pode ser percebida neste oinochoe de fundo branco. Nele temos representado uma imagem que está intimamente relacionada ao cotidiano ateniense. Ela representa a execução de uma tarefa doméstica.

Figura 2 Fiação

2a

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2c 2d

Localização: The British Museum, London, inv. D 13. Temática: Fiação. Proveniência: Locri. Forma: Oinochoe. Estilo: Fundo Branco. Pintor: Foundry para Beazley. Data: 490. Indicação Bibliográfica: BEAZLEY ARV 403, 38; BOARDMAN: 1991, p. 160, fig. 267; ROBERTSON: 1992; LESSA: 2004, p.52; www.perseus.tufts.edu.

Este oinochoe proveniente da Itália, Locri, é datado de aproximadamente 480. Ele faz parte da coleção do British Museum, em Londres.

A personagem representada no oinochoe (2a e 2b) está em pé. Ela veste chitón e

himátion decorado com linhas onduladas e retas. No himátion temos uma decoração com

linhas onduladas largas de cor escura na parte de cima e na barra duas linhas retas paralelas (2c e 2d). A personagem representada está calçada com sandálias (2b). De acordo com James Laver raramente os gregos usavam sandálias dentro de casa, enfatizando que os mais pobres andavam descalços até na rua8 (LAVER: 2003, p. 33). Concebemos que o pintor enfocou a condição social da personagem mostrando que ela pertencia ao segmento social abastado e que possuía condições de andar calçada até no interior do oîkos.

Os cabelos estão enrolados atrás em forma de bola e apertado com uma fita simples decorada na ponta. A personagem usa brincos e dois braceletes, um em cada braço. Com a mão direita ela segura entre os dedos polegar e o indicador uma linha que está presa em um fuso deste lado e em um novelo de lã que a personagem segura na mão esquerda (2b).

Do lado direito da personagem existe uma inscrição, E PAIS KALE, a jovem é bonita ou bela (2a). Este vaso celebra as atividades manuais das mulheres dentro da esfera doméstica, a produção de materiais tecidos para o oîkos.

Seu olhar está em perfil, não convidando o receptor da mensagem a participar da ação. Pela exaltação à tecelagem nesta imagem, concebemos ser esta uma representação de esposa

8

Mesmo as pessoas ricas usavam apenas sandálias, embora as das cortesãs fossem às vezes folheadas a ouro, tendo as solas cravejadas com pregos dispostos de maneira a deixarem uma pegada com a palavra siga-me. (...) As sandálias eram presas aos pés e tornozelos por tiras amarradas de diversas maneiras, como testemunham inúmeras estátuas (LAVER: 2003, p. 33 grifo do autor).

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bem-nascida. Nessa representação podemos vislumbrar a vestimenta decorada, os adereços

que essa personagem está usando, ou seja, os brincos e os braceletes. Defendemos que o uso dos adereços, era principalmente, uma forma das esposas se comunicarem demonstrando prestígio social.

Se partimos do pressuposto de que as esposas bem-nascidas tinham sua conduta vigiada com mais freqüência, o que implica um tipo de posicionamento não totalmente distante da idealização, que compreende se casar jovem por volta dos 14 ou 15 anos, ter como função social primordial a concepção de filhos (principalmente do sexo masculino), gerenciar o oîkos visando a manutenção do patrimônio por meios honráveis e legítimos, se dedicar à fiação e à tecelagem, participar das Thesmophórias, além de serem consideradas como débeis, frágeis, que deviam permanecer em silêncio, e atuarem no espaço interno em complementaridade com seus esposos, que agiam no espaço externo, entendemos que as

méllissai lançavam mão de formas de comunicação diversificadas para diluírem esse modelo,

se integrarem umas com as outras e participar na formação do tecido social ateniense.

Essa influência, assim concebemos, foi obtida a partir do uso de táticas. A concepção de tática como forma de burlar o esquematismo social, como arte do fraco é que visamos quando defendemos nossas hipóteses. Dessa forma, A invenção do cotidiano, desloca a atenção do consumo supostamente passivo dos produtos recebidos para a criação anônima, nascida da prática do desvio no uso desses produtos (CERTEAU: 1999, p. 13).

Teoricamente tenta-se transparecer que o modelo estava sendo cumprido. O que pretendemos é deslocar a atenção do comportamento supostamente passivo das esposas atenienses para uma prática desviante ao executar essas tarefas e por meio de formas de expressão diversificadas.

Neste contexto, elas aproveitam as tarefas que lhes eram atribuídas (tecer, bordar, cuidar dos mortos e outros) para através delas burlar a idealização. As atividades que possuíam uma finalidade específica ganhavam uma outra dimensão. Elas não rejeitavam diretamente essas atividades, mas atribuíam à elas um novo sentido além do esperado. Como verificamos na tragédia Eléctra de Sófocles quando Crisótemis, irmã de Eléctra, sai de casa carregando nas mãos oferendas fúnebres que sua mãe estava enviando ao túmulo de seu esposo, Agamemnon. Eléctra pede a irmã para não levar aquelas oferendas, mas trocá-las por cabelos e cinto9. Crisótemis acaba realizando o pedido de sua irmã: Farei, pois o que é justo

9

Querida, não ofereças ao túmulo nada do que tens nas mãos. Pois não é justo nem lícito depor, da parte da mulher inimiga, oferendas no túmulo do pai, nem derramar nele água purificadora. Antes, lança-as aos ventos ou esconde-as numa espessa camada de pó, onde nunca nenhuma parcela delas atingirá o leito de nosso pai (SÓFOCLES. Eléctra. vv. 422-428).

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não é objeto de briga, mas deve ser realizado com pressa. Enquanto tentar executar estas coisas, guardai-me o segredo, amigas, pois se minha mãe for informada, penso que um dia pagarei caro esta tentativa (SÓFOCLES. Eléctra. vv. 463-467).

Carlinda Nuñez defende que Electra refugia-se nos cantos, fortalezas onde ela armazena o ódio, lugares-tenentes da solidão auto-impingida, esconderijos em que recolhe o ultraje e donde espreita a oportunidade para a revanche (NUÑEZ: 2000, p. 184).

Inserida nessa discussão Luce Giard reconhece na pergunta: Como se criar? (...) a primeira forma de inversão de perspectiva que fundamenta. A invenção do cotidiano, deslocando a atenção do consumo supostamente passivo dos produtos recebidos para a criação anônima, nascida da prática do desvio no uso desses produtos (CERTEAU: 1999, p. 12). É perceber uma possibilidade de futuro entre o dizer e o fazer.

Devemos destacar a manipulação executada pelos praticantes, pois só após esta observação se pode apreciar a diferença ou a semelhança entre a produção da imagem e a produção secundária que se esconde nos processos de sua utilização. O modelo ateniense sofre a manipulação das esposas dos cidadãos abastados gerando uma conduta que pode ser ou não o que se esperava. Nos versos da tragédia citados concluímos que a ação de Crisótemis não foi a aguardada por sua mãe e que Electra consegue, de certa forma, se vingar.

Verificamos, principalmente, que a vivência grupal e também as formas de linguagem facilitavam este desempenho das atenienses gerando uma possibilidade maior de burlar o esquematismo social. As formas de linguagem implicavam em uma ruptura com o silêncio contido no modelo ideal e faziam emergir na pólis dos atenienses uma dinâmica que não contemplava o que se desejava. Podemos citar como algumas dessas táticas os festivais, como por exemplo os festivais das Thesmophórias, das Panathéneias e as tarefas domésticas que eram executadas com outras mulheres. Nestas comemorações e tarefas as relações de gênero estavam presentes.

Observamos que no cotidiano da pólis a esposa bem-nascida deveria atuar de acordo com o ideal cultural ateniense, exclusivamente no interior do oîkos. Este modelo está relacionado com a abelha-mélissa. Suas características são enfatizadas pelo filólogo Marcel Detienne. Ele destaca o tipo de vida puro e casto, ou seja vida sexual bastante discreta, hostilidades aos odores, à sedução e a fidelidade conjugal (DETIENNE: 1976, pp. 55-56). A documentação textual, nos fornece uma quantidade significativa de referências que atuam no sentido de reafirmar o modelo ideal de comportamento feminino.

Na Odisséia além de termos referências ao modelo, como mencionamos anteriormente, também temos uma ruptura ao próprio modelo. Penélope utiliza uma atividade

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essencialmente feminina, a tecelagem, para retardar uma resposta aos seus pretendentes. O uso da tática se faz presente na ação de Penélope. Durante o dia tece um manto e à noite desfaz. Tecer era uma comportamento correto e desmanchar era um comportamento fora da regra ou inconveniente. Mas quando o quarto chegou, das sazões no decurso do estilo, fez-nos saber a artimanha uma escrava de tudo inteirada. Dessa maneira a apanhamos, que o belo tecido desfazia, tendo-se visto obrigada a acabar o trabalho, por força (HOMERO. Odisséia. II, 107-110).

Silvia Damasceno, ao abordar a dimensão temporal na poesia grega, destaca a personagem Penélope. Segundo Damasceno, Penélope inicialmente tece com palavras a teia do engano vários caminhos do tempo esperando a volta de Odisseus. Quando fica difícil dominá-lo ela passa a tecer, no sentido do próprio termo, conferindo a si o direito e o poder de manter intacto o fio da vida. A autora destaca que Desde a Grécia até o presente, poetas de todas as épocas sempre expressaram a angústia do ser humano ante a marcha do tempo (DAMASCENO: 2001, pp. 363-365).

O teatro antigo também nos fornece informações concernentes à linguagem feminina relatando oportunidades que as esposas usufruíam para lançarem mão de táticas. Compartilhamos com os pesquisadores acerca do teatro grego que a sociedade se faz representar nas peças teatrais, que através delas, os gregos, analisam e levantam questões de seu próprio cotidiano e refletem sobre ele. Para James Redfield, um tema que os trágicos e os comediógrafos lançam mão é a ameaça do poder feminino, um perigo de que os cidadãos percam o controle sobre as mulheres. Quer em sentido trágico quer em sentido cômico, o poder feminino é sempre tratado como uma perturbação da ordem natural das coisas, provocada ao mesmo tempo pela loucura e pela fraqueza dos homens (REDFIELD: 1994, p. 153).

Esta preocupação de Redfield nos faz refletir sobre o Festival das Thesmophórias, objeto de reflexão do comediógrafo Aristófanes. Além de abordar o próprio ritual festivo em homenagem as deusas Deméter10 e Perséfone11, ele enfatiza as relações grupais, a fala feminina e aponta indícios de desvios ao modelo mélissa.

Nesta peça de Aristófanes, especialmente, nos deparamos com esta diversidade no que diz respeito à comunicação, às relações de gênero e ao corpo como anunciador de um discurso. Por intermédio de suas personagens, o comediógrafo diversas vezes enfatiza a fala

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Filha de Cronus e Rhea. Deusa da terra, da vegetação e da fertilidade em geral, principalmente do cereal. Deméter gerou Perséphone.

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feminina destacando-a, ou seja, elogiando a fala de uma das personagens como podemos verificar nos seguintes versos: Nunca ouvi mulher mais engenhosa do que esta, nem mais hábil ( ) a falar ( ) . Tudo que ela diz é justo. Examinou todos os aspectos da questão, ponderou tudo e, com inteligência, soube encontrar argumentos sutis, bem arquitetados (ARISTÓFANES. As mulheres que celebram as Thesmophórias. vv. 435-440). Esta festa, era uma ocasião que as esposas possuíam liberdade de expressão, onde tradicionalmente tinham a oportunidade de dialogar livremente e trocar impressões, já que era um ritual onde só as esposas legítimas participavam. As esposas usufruíam de um momento que fazia parte das programações atenienses e, a partir deste, criavam um espaço especificamente feminino para trocar, planejar, enfim, agir taticamente.

Burke ao abordar a linguagem afirma que os historiadores passaram a reconhecer a necessidade de seu estudo. Ele defende que as reflexões sobre a linguagem devem ser vistas como parte da cultura e da vida cotidiana (BURKE: 1995, p. 9). De acordo com o pesquisador, a linguagem é um instrumento em potencial nas mãos da classe dominante, um instrumento que pode ser empregado tanto para mistificar ou controlar quanto para comunicar (BURKE: 1995, p. 13).

Além dos momentos de fala, comprovamos que na comédia há destaque para o registro escrito12, para os espaços que tratam da união das mulheres com outras mulheres e com o que o autor considera como afeminado. No que diz respeito à união entre as mulheres, o comediógrafo nos remete a uma situação interessante, através da personagem do Parente de Eurípides quando este está disfarçado de mulher. Neste momento, seu discurso é de mulher e ele lança mão justamente da união entre as mulheres para se aproximar delas e defender seu parente.

Uma das formas de ocupação do espaço público pelas esposas era através dos festivais e, neste, a circulação das informações se fazia presente. Observamos que as esposas dos cidadãos atenienses criaram um lugar social que era eminentemente delas, nos reportando à ocupação da agorá ( ) pelos cidadãos. O espaço público, de acordo com Sian Lewis, por excelência era a agorá, o centro da pólis, o local onde as informações circulavam com maior

12

Primeira Mulher

Era isto que eu queria dizer publicamente. O resto vou escrevê-lo aqui com a secretária (ARISTÓFANES.As mulheres que

celebram as Thesmophórias. vv. 433-435).

Além desta preocupação na comédia. Outro exemplo encontra-se na tragédia de Eurípides Hipólito. Fedra deixa registrado em uma plaqueta, antes se enforcar, a causa de sua morte e seu registro vale mais do que a palavra de Hipólito.

Teseu

Comove-me a visão da marca que este anel deixou aqui, mas tenho pressa em remover o fecho da mensagem e ler as palavras (Eurípides. Hipólito. vv. 942-944).

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visibilidade, e as ações seriam observadas por outros (LEWIS: 1996, p. 14). Os cidadãos atuavam neste espaço cotidianamente.

A linguagem feminina circulava na agorá, neste espaço que os homens estavam presentes. As mulheres também demarcaram, mesmo de forma menos intensa, seu espaço através da comunicação neste local que era oficialmente dos homens. Elas também marcaram sua identidade através da alteridade, neste caso, os homens.

Assim, podemos verificar na comédia de Aristófanes em análise, a extensão dos processos de comunicação das mulheres através da atuação das personagens e das falas que o comediógrafo criou para elas. Percebemos que as mulheres tiveram, no decorrer da peça, vários espaços para expor suas idéias, trocar opiniões e deixar registrado suas considerações.

Apreendemos que o comediógrafo concede, nesta obra, destaque aos laços de amizade entre as escravas e as esposas. Já que as escravas circulavam com mais freqüência no espaço público, ou seja, a mobilidade delas em permear este espaço era maior do que a flexibilidade que as esposas dos cidadãos possuíam, principalmente as bem-nascidas. Compreendemos que as esposas utilizavam as escravas como elo entre elas, pois conseguiam fazer circular suas idéias e mantinham-se interadas na koinonía. Dessa forma, as escravas teriam um papel na

trama feminina.

O cotidiano da sociedade ateniense clássica não era apenas caracterizado pela oralidade, a escrita também permeava este dia-a-dia. O interesse de Aristófanes em salientar na comédia estudada a preocupação das esposas com o registro indica que essas mulheres não estavam tão alheias aos rumos da pólis. Acreditamos que elas, no decorrer de suas vidas, registraram suas opiniões, suas idéias através, principalmente, da linguagem não-verbal, ou seja, dos gestos, da tecelagem, da roupa, da dança e dos bordados nos tecidos, fazendo da linguagem não-verbal uma tática de atuação, como apontaremos nos capítulos seguintes.

Percebemos uma preocupação não só com a escrita. Em alguns versos que compõem a obra, o autor por intermédio do coro destacou as habilidades das mulheres ao falar, denotando a existência de uma prática. Aristófanes, através do documento, enfatiza que havia uma experiência, pois nos discursos as personagens são caracterizadas por usar com sucesso a persuasão, utilizar argumentos sutis, bem arquitetados, como os oradores.

Nessa gama comunicacional o autor prioriza com abundância a fala. Detectamos que o

dizer ( ), o falar ( ) e a discussão ( ) estão presentes, com grande

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articulavam. É valioso destacar a abordagem da dança13. A presença desta no ritual denota a interação das esposas ao dançar, a sincronia nos passos, a questão rítmica. Essa sincronia existente na dança e que está inserida na comédia nos remete ao entrosamento das esposas no cotidiano. Sincronia implica em diálogo, em comunicação e integração. Nos remetendo ao

corpo que fala.

Luiz Garcia Iglésias em La Mujer y la Pólis Griega enfatiza a presença da mulher na vida pública de forma indireta. Para Iglésias, esta presença pode ser observada na política, quando as esposas emitiam opiniões que tinham peso nas decisões que seus esposos tomavam na Assembléia (IGLESIAS: 1986, p. 108). Assim, neste artigo, o autor aborda a transgressão, mesmo que de forma indireta, ao modelo construído pela sociedade dos atenienses. Verificamos que a fala feminina, mesmo de forma indireta, possuía grande relevância, saindo do espaço privado e atingindo o espaço público presente na pólis.

No que se refere à comunicação na obra, defendemos que Aristófanes lança mão das palavras: silêncio ( ), calar para depreciar o silêncio ( ) que era almejado pela sociedade masculinizada ateniense como virtude das esposas. E, para indicar que o silêncio ( ) era um artifício utilizado pelas mulheres no decorrer da comunicação. O autor, em alguns versos, contrasta o silêncio com uma fala. A linguagem se completa no ato em que um se silencia para ouvir o que o outro tem a dizer. Silêncio ( )! Calem-se! Atenção! Já está a pigarrear como fazem os oradores. Grandes coisas tem para dizer, com certeza (ARISTÓFANES. As mulheres que celebram as Thesmophórias. vv. 381-383). Concebemos que o silêncio pode ser entendido de duas formas: quando se cala e se aceita a imposição e simplesmente quando se cala, mas através deste silêncio há indícios de uma não aceitação.

O silêncio, sempre que possível, era ratificado pelos cidadãos, pois fazia parte do modelo mélissa, como podemos verificar na oração atribuída a Péricles por Tucídides. Nesta vemos o destaque do papel que as mulheres deveriam desempenhar na pólis, quando declara que sua glória será maior quanto menos se falar dela e quanto mais fiel a sua phýsis permanecer14. Para fugir do silêncio imposto pela virtude do não falar, as mulheres desenvolveram outras formas de comunicação.

Concluímos que, as esposas dos cidadãos atenienses abastados diluíram as margens do modelo ideal de esposa ao transgredir parcialmente uma de suas virtudes, o silêncio. A

13

Coro

Vamos, avancem com o pé ligeiro, façam a roda, dêem as mãos, marquem todas o ritmo da dança sagrada (ARISTÓFANES. As mulheres que celebram as Thesmophórias. vv. 955-956).

14

Se tenho de falar também das virtudes femininas, (...) resumirei tudo num breve conselho: será grande a vossa glória se vos mantiverdes fiéis à vossa natureza, e grande também será a glória daquelas de quem menos se falar, seja pelas virtudes, seja pelos defeitos (TUCÍDIDES. II, 45).

(33)

32

extensão de sua comunicação rompia os padrões estabelecidos e, se apresentava na dinâmica da pólis, na koinonía, logo há comunicação. Atenas não fala com uma só voz.

1.3. A integração dos grupos de esposas na pólis

Objetivamos demonstrar, neste estudo, que os grupos sociais nos quais as esposas estavam inseridas faziam parte da dinâmica da pólis, que neles elas criavam espaços de atuação diluindo o modelo mélissa e que a convivência, por intermédio do contato com o

outro, influía na formação e na reafirmação de identidade e nos laços de amizade.

Nesta perspectiva, o trato diário possibilitava às esposas atenienses uma maior mobilidade social, visto que, de acordo com o modelo ideal, não estaria reservado às esposas abastadas um desempenho em grandes proporções no espaço público. Dessa forma, o campo de ação das bem-nascidas estava direcionado para o espaço interno do oîkos, o privado e o cotidiano, enquanto que as menos abastadas e as escravas usufruíam de um raio mais extenso, pois elas trabalhavam como amas, parteiras, circulavam no espaço externo, etc, para ajudar no sustento familiar. Sobre as mélissai estava depositada uma cobrança mais efetiva em relação ao modelo mélissa. Na tragédia Hipólito, de Eurípides, esta questão se faz presente por intermédio da fala do próprio protagonista. De fato, vêem-se mulheres pervertidas tecendo na intimidade planos pérfidos que são levados para fora por criadas (EURIPIDES. Hipólito. vv. 696-698).

Quanto a esta questão, defendemos que, as esposas abastadas agiam no interior da sociedade dos atenienses, ou seja, nos espaços público e privado, exercendo suas tarefas na

koinonía. Almejando uma compreensão desses dois espaços de vivência dos atenienses

lançamos mão da definição elaborada por Neyde Theml. A historiadora concebe a construção e concepção destes dois espaços com a seguinte significação: o público era compartilhado por todos e a participação dos cidadãos neste espaço estava contida na lei. Já o privado, era um espaço restrito aos membros da família ou aos grupos formados por laços de amizade

philía15 (THEML: 1998, p. 22). Tais definições nos permitem, neste contexto, entender o público como a pólis e o privado como o oîkos.

15

(...) no primeiro caso, um espaço comum a todos, que não deveria ser privilégio de ninguém e onde a participação ativa dos cidadãos era recomendada ideologicamente por lei e, no último caso, um espaço privado que não tinha de ser partilhado por ninguém mais, além dos membros da família ou dos grupos formados por laços de amizade (philía) (THEML: 1998, p. 22).

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