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Academic year: 2021

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O estado-nação timorense, independente e soberano à luz do direito internacional, quer ver-se e sentir-se da mesma maneira, independente e soberano à luz da sua própria imaginação do futuro, com fronteiras e uma história fundacional comum, que o distingue dos seus ocupantes coloniais e dos seus países vizinhos. No processo de construção do estado em Timor Leste e após a presença centenária do colonialismo português e 24 anos de guerra de ocupação indonésia, a sociedade timorense começa a fazer ouvir as suas narrativas acerca daquilo que considera ser a sua história própria, enquanto ancoragem indispensável de uma parte da sua identidade, assim como sobre o seu complexo presente, que se transfigura em raiz e inflorescência do que imaginam os Povos daquela Terra ser a sua identidade no futuro.

Estas narrativas, que se constituem e se alimentam da complexidade do convívio incontornável entre um passado trágico e um futuro incerto, procuram no entanto, determinar de alguma forma os termos em que o presente se processa, se constrói e reconstrói para todas/os. É neste caldo fervente, povoado de contradições e esperanças, que as vozes das mulheres de Timor Leste emergem, como parte constitucional da sociedade e também do estado, que agora se considera a si mesmo o espaço e o tempo privilegiados da identidade timor.

É neste contexto que procuro desocultar as palavras e os conhecimentos, ouvindo com atenção epistemológica algumas mulheres, na presente fase de pós-conflito e de reconstrução nacional. Para levar a cabo tal propósito, procurei perceber, através da análise da imprensa local e internacional, de documentos produzidos por organizações e instituições nacionais e internacionais, da pesquisa bibliográfica e de um conjunto de entrevistas em profundidade a mulheres timores, como se manifestam e se articulam as narrativas sobre si mesmas, sobre a sua mátria e sobre a paz. É pois, através duma constelação de fontes e de discursos que procurarei traçar, ainda que de forma necessariamente inacabada, uma matriz do que mulheres daquele lugar pensam e dizem sobre si, o apaziguamento das suas

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vidas individuais e comunitárias e o que querem da paz. A autenticidade e o rigor do que sou capaz de saber sobre elas não residem, do meu ponto de vista, na tentativa de resgate de um imaginado momento original purificado por qualquer tipo de fronteira, temporal, cultural ou política. Pelo contrário, o que me interessa ouvir é, na realidade, aquilo que brota da brutalidade das condições e contradições presentes hoje em Timor Leste, um local impertinente e irrelevante num mundo sofisticado e atravessado por múltiplas globalizações, empenhado em construir-se a partir da radicalidade a que as cinzas da destruição o obrigam.

É importante explicitar que não se pode imaginar nem considerar que a totalidade das mulheres timores esteve ocupada e preocupada com a resistência ao invasor javanês. Mais uma vez, também em Timor Leste, as mulheres não podem ser entendidas como um grupo uno e homogéneo e, essa precaução, perpassa esta abordagem das narrativas e discursos destas mulheres sobre a sua história recente. Terá, com toda a certeza, havido muitas mulheres, como homens, que não só estiveram de acordo com os acontecimentos como beneficiaram com a nova situação, mantendo uma atitude de cooperação com as novas autoridades. Porém, é preciso ter em consideração que a narrativa dominante sobre a guerra é contra a ocupação indonésia e, quando se refere às mulheres e estas se referem a si mesmas no seio desta realidade, elas vêem-se como sendo uma maioria que pode ser representativa o que dizem ser o sentimento das mulheres do Povo de Timor Leste. Este processo de auto-representatividade tem, com certeza, consequências epistemológicas porque silencia as experiências de muitas outras mulheres que não resistiram e que viveram as suas vidas de uma forma diferente e povoada de um outro imaginário sobre si e sobre o seu país. No entanto, e para o que aqui me importa, e tendo consciência dos limites deste conhecimento, vou-me ater às vozes dominantes que consideram, que a maioria das mulheres timores esteve sempre contra a guerra e que, de alguma maneira, lutou contra ela para conseguir chegar à paz. Contudo, não é a procura a/o sujeita/o universal que mobiliza esta análise, mas sim, resgatar as vozes que falam desta realidade.

Não é fácil falar e ouvir as mulheres timores das últimas três décadas. Em primeiro lugar, os documentos escritos, que são normalmente aqueles que têm mais

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crédito e são utilizados na investigação científica assim como as informações neles contidas raramente estão desagregados por sexo e são sobretudo relatórios sectoriais. Alguns foram sendo feitos pelo governo indonésio e outros por algumas organizações humanitárias que, a partir de uma certa altura, puderam entrar e trabalhar no território. O que está disponível e acessível 74 é raro, e às vezes, de duvidosa consistência. A guerra em Timor Leste organizou e sistematizou um silêncio rigoroso, que resultou na ignorância sobre aquilo que se passava, como viviam e o que sentiam as pessoas, encurraladas na sua ilha, tantas vezes descrita como um enorme campo de concentração.

Uma das maiores fontes de informação sobre o Timor Leste das últimas décadas é o discurso construído acerca e em torno da resistência à ocupação indonésia e as questões políticas e do direito internacional que, ao problema, aparecem naturalmente associadas. Nele, são os homens os autores e os protagonistas, e como a luta pela independência política se sobrepõe sempre a qualquer outra, obscurece e dificulta o acesso a outros lugares e outros conhecimentos sobre e das sociedades timorenses. Uma outra característica do conhecimento que se consegue obter deste período é, que é essencialmente baseado em testemunhos directos de timorenses, alguns deles registados por activistas ou por jornalistas e que eram utilizados como depoimentos nas sessões sobre a descolonização e direitos humanos na ONU. Este conhecimento está espalhado por brochuras, relatórios e alguns livros, que tiveram como função principal recolher e registar ‘histórias’ que pudessem ajudar a fundamentar as pretensões à autodeterminação do povo de Timor Leste. Sem carácter académico, estes materiais podem conferir alguns problemas do ponto de vista da representatividade ou da validade, aos testemunhos ouvidos e descritos.

As mulheres timores são encontradas e percebidas nesta narrativa de resistência como testemunhas e como vítimas secundárias do todo fundamental que eram os heróis (homens) da luta nacional pela independência. Tal como nos alerta Dowler, em tempo de guerra, o discurso da solidariedade nacional sobrepõe-se

74 Há um conjunto de documentação que está em bahasa indonésia e à qual não acedo por não falar, nem ler,

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hegemonicamente a qualquer outro, nomeadamente os que abordam a igualdade e a justiça sexual (Dowler, 2002). Por isso, para além de serem apenas pequenos ‘pedaços’ que são encontrados na literatura geral sobre Timor Leste, na maioria dos casos os testemunhos das mulheres são, também eles, dedicados à luta nacional pela independência.

É interessante notar que a construção destas narrativas se baseia quer em testemunhos directos como indirectos. Alguns fazem parte das transcrições feitas das intervenções públicas de algumas destas mulheres e que constituíram prova da invasão e massacres, nas instituições internacionais. Outros são apenas a memória de palavras ditas em actos públicos por certas mulheres. Esta memória, repetida de boca em boca e passada a escrito em actas e relatórios de encontros e reuniões políticas, passou a ter o estatuto de palavras exemplares no imaginário da sociedade timorense actual. Algumas destas palavras foram pronunciadas por mulheres que, depois de mortas, se tornaram ícones da luta de libertação nacional, como Rosa Muki Bonaparte, Isabel Lobato ou Maria Goreti, entre outras. As palavras, que elas teriam dito um dia, tornaram-se documentos inquestionáveis para todas e todos que as têm vindo a usar. Ao longo dos anos, essas palavras passaram a fazer parte do legado que a resistência deixa às gerações futuras. Entre o mito e a realidade, elas hoje fazem parte da história até porque hoje, essas palavras, já foram sancionadas pela oficialidade e ortodoxia dos relatórios internacionais.

É pois, neste universo fluido e complexo de conhecimentos e discursos, que após o referendo de 1999, as agências especializadas da UNTAET, em parceria com ONGs transnacionais ou com as organizações e plataformas locais, procederam a vários estudos e produziram alguns documentos que procuram sistematizar informações relativas a Timor Leste e, também, relativamente às suas mulheres. Esses estudos não foram só efectuados, mas também foram publicados e difundidos através das agências da ONU, das ONGs e dos serviços do governo timorense. Neste material de estudo, que é extenso, apenas uma parte da informação é sexualmente analisada e diferenciada. Contudo, são as/os próprias/os autoras e autores desses relatórios que alertam para as dificuldades que tiveram na recolha dos dados, uma vez que as circunstâncias de destruição generalizada em que alguns deles foram

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iniciados, podem ter conduzido a uma importante incompletude e variados enviesamentos. Algumas das fontes destes relatórios e estudos foram documentação indonésia pré-existente, quer governamental quer não governamental, que também não consegue ser suficientemente exaustiva e completa, pelos mesmos motivos: população em fuga e dispersa por uma toponímia difícil, clima de guerra, ausência de recursos adequados e suficientes para recolher e tratar a informação. Relativamente a este período, existe também bastante literatura jornalística que permite encontrar alguma informação para fortalecer alguns aspectos do conhecimento que se desenha sobre as mulheres da terra de Timor.

Pela inconstância dos documentos escritos com que lido, sempre que se torna possível, o que penso saber é cruzado com todas as fontes de informação disponíveis para tentar estabelecer a objectividade, sem confundi-la com neutralidade, que aqui é vista como a inclusão no campo analítico de variados modos de comunicação e diversas informações sobre os mesmos temas ou problemas. Uma última nota parece-me necessária. De todo o material acessível e disponível, escolho em primeiro lugar tudo o que foi e é obra de mulheres timores. Evidentemente não excluo nenhuma fonte mas privilegio as produções que elas nos oferecem através das instâncias onde actuam. Procurei sempre que possível, trabalhar com documentação, canónica e não canónica, na qual a participação das mulheres timores, de forma directa ou indirecta, fosse relevante ou determinante. Tenho consciência que nessa selecção, observadora e observadas se podem confundir, mas qualquer exercício de reflexividade implica selecção e escolha. Assumidamente, procuro neste estudo, buscar aquilo que têm sido algumas percepções, hibridamente construídas, das mulheres timores sobre si e sobre paz.

Trata-se aqui de tentar construir, a partir de diversas fontes, cuja ortodoxia académica pode ser questionada, uma constelação de informações que me permita começar o diálogo a que me propus. Tendo clarificado que o material documental disponível, além de diversificado e difuso, pode estar contaminado de um hibridismo fundamental, trabalho de modo a que a teia que teço com as mulheres timores e o que consigo saber com elas, seja suficientemente compreensivo. Assim, neste trabalho não procuro estabelecer o discurso oficial feminista sobre a construção da

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paz em Timor Leste mas antes resgatar, em pleno processo de reconstrução pós-bélica, o que tem sido dito mas também o que tem sido silenciado. Este exercício é a forma que escolhi e me propus para contribuir para a construção de alternativas, a partir da imaginação incomensurável das comunidades humanas. Esta é, com certeza, apenas uma parte das narrativas de mulheres sobre si e sobre a paz, a que procuro reconstruir, a partir do que me é proporcionado pelas circunstâncias históricas, políticas e culturais. Este estudo é, ao mesmo tempo, um exercício da consciência cosmopolita ao qual preside a permanente preocupação de identificar as possíveis e desejáveis ‘zonas de contacto’ entre os diferentes saberes com que trabalho.

Envolvendo-me neste diálogo, tal como enunciado acima, não procuro fazer sínteses entre dois (ou mais) mundos, mas sim procurar em cada um deles o que pode ser mobilizado para conseguir mais conhecimentos que conduzam a mais justiça, menos danos sexistas, mais harmonia global e local e, por isso, mais paz. Procuro todos os momentos e indícios imperfeitos que já realizam ou antecipam a experiência de muitas pazes, e que podem servir para ajudar na luta contra o desespero e contra as dificuldades que se vivem quer em Timor Leste quer no nosso mundo povoado e vigiado por guerreiros.

Referências

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