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A interrupção voluntária da gravidez no romance Quéreas e Calírroe de CáritonA

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A interrupção voluntária da gravidez no romance Quéreas e Calírroe de CáritonA

Autor(es):

Barroso, Maria do Sameiro

Publicado por:

Associação Portuguesa de Estudos Clássicos; Instituto de Estudos

Clássicos

URL

persistente:

URI:http://hdl.handle.net/10316.2/30429

DOI:

DOI:http://dx.doi.org/10.14195/0872-2110_51_5

Accessed :

8-Jun-2021 04:35:39

digitalis.uc.pt impactum.uc.pt

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Boletim de

Estudos Clássicos

Associação Portuguesa de Estudos Clássicos

Instituto de Estudos Clássicos

Boletim de Estudos Clássicos

F

S

Coimbra

Junho de 2009

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A I

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V

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Q

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ALÍRROE DE

C

ÁRITON

Quéreas e Calírroe, o mais antigo romance da história da literatura

ocidental, foi escrito por Cáriton de Afrodísias, cidade da Cária, localizada na

antiga Anatólia, actual Turquia, no século I a.C.1; é uma das fontes mais

citadas, na História da Medicina, em relação ao aborto (interrupção

voluntária da gravidez, na nomenclatura actual), na Antiguidade2.

O romance, tendo surgido como género literário, como uma expressão menor, depois da glória da poesia épica e lírica, do teatro e da historiografia, era, na sua essência, constituído por histórias de tema ligeiro e sentimental, organizadas em prosa, seguindo um esquema estrutural flexível e utilizando uma linguagem acessível e despretensiosa, girando em torno de aventuras,

terminando com um final feliz3.

Cáriton narra a história de Calírroe, filha do general Hermócrates, vencedor dos atenienses na campanha contra a Sicília. Situa a acção do romance no início do século IV a.C. Calírroe, uma jovem muito bela, casa com Quéreas, que, suspeitando da infidelidade dela, lhe dá um pontapé que a deixa inconsciente. Considerada morta, Calírroe é sepultada viva, até que uns piratas, saqueadores de túmulos, a libertaram e levaram como escrava para a Babilónia onde casa com Dionísio, «o primeiro cidadão de Mileto e por

assim dizer de toda a Iónia»4.

É antes de decidir aceitar o casamento que Calírroe descobre que está grávida de Quéreas, o marido que ama. Esta situação coloca-a perante um dilema: interromper a gravidez ou deixá-la evoluir e deixar nascer o filho. No início, a primeira hipótese parece-lhe mais conveniente. Plângon, a escrava _________________

1Cáriton, Quéreas e Calírroe, tradução do grego, introdução e notas de Maria

de Fátima de Sousa e Silva, Lisboa, Edições Cosmos, 1996, introdução, p. XIX.

2 Konstantinos Kapparis, Abortion in the Ancient World, London, Gerald

Duckworth, 2002, p. 3.

3Sobre este assunto ver Maria de Fátima de Sousa e Silva, Cáriton, Quéreas e

Calírroe, introdução, pp. XI-XII.

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que Dionísio pusera ao seu serviço e que, no banho, já se apercebera da proeminência do ventre da sua senhora, aconselha-a vivamente a seguir essa opção.

As razões de Calírroe prendem-se com o facto de ser escrava e de ter que dar à luz um escravo, com muitas interrogações quanto aos seus meios de subsistência e sem a possibilidade de conhecer o pai. Plângon defende esta opção para não enganar Dionísio, o seu senhor. Aconselha-a a esquecer o passado e iniciar uma vida nova, casando com este outro marido. Para Calírroe, uma outra questão também se coloca, a sua virtude: «Trata-se de uma escolha de muita responsabilidade: a minha virtude ou o meu filho».

Contudo, tal como acentua Plângon, quanto mais Calírroe se sente compelida a optar pelo aborto, mais se apossam dela os sentimentos maternais: «Há razões de peso para cada uma das hipóteses. Numa pesa a lealdade da esposa, na outra o amor de mãe».

Falando com o próprio filho, Calírroe menciona o método que tencionava utilizar para a interrupção da gravidez como: «um veneno que te mate». Tendo vencido o amor pelo filho, Calírroe, aconselhada por Plângon e

com a sua ajuda, resolve casar com Dionísio5. Aos olhos de Dionísio, o filho

nascerá de sete meses, mas Plângon encarrega-se de se assegurar que este aceitará, com todo o agrado, esse filho.

Segundo Konstantinos Kapparis, Cáriton, sendo homem, identificou com sucesso o ponto de vista feminino do dilema que se coloca à mulher que se vê confrontada com uma gravidez ilícita, quer por razões de honra quer

por motivos sociais6. Segundo R. Johne, o tratamento deste tema é único na

Antiguidade e não voltou a haver mais nenhum exemplo deste género, na literatura, sendo crucial a importância que o aborto assume no

desenvolvimento do enredo7.

Cáriton pretende manter Calírroe fiel ao marido distante. Nada a poderia levar a traí-lo e a casar com outro. Só algo mais nobre, como um futuro promissor que lhe dará a garantia de poder educar convenientemente o seu filho, a convencem a casar com Dionísio, embora contra os seus sentimentos,

_________________

5 Cáriton, Quéreas e Calírroe, p. 35-37.

6 Konstantinos Kapparis, Abortion in the Ancient World, London, Gerald

Duckworth, 2002, p. 4.

7 R. Rohne, The Novel in Ancient Word, Leiden, 1996, apud Konstantinos

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Ao apresentar Calírroe perante a hipótese de pôr fim à gravidez, mas acabando por recusar esta opção, Cáriton acentua a integridade e o elevado carácter moral da heroína. Esta surge, aos olhos do leitor, completamente ilibada de qualquer suspeita de adultério, motivo que tinha levado Quéreas a dar-lhe um pontapé na região epigástrica, que, ao atingir o plexo solar, lhe provocara a perda de consciência (e a bradipneia, que foi interpretada como falta de respiração). O segundo casamento, paradoxalmente, é forçado pelo

amor ao marido e pela sua dignidade8.

Tanto os problemas de honra e de exclusão social, resultantes de uma gravidez fora do casamento, como os motivos sociais, nomeadamente a dificuldade de uma escrava em assegurar os meios de subsistência à criança nascitura, são problemas de todos os tempos.

Outro aspecto curioso é o julgamento de Quéreas. Na Antiguidade, o adultério ou qualquer tipo de relação ilícita (moecheia) era tido como uma ofensa contra a autoridade masculina. A acção de um sedutor era frequentemente punida com o homicídio, pelo marido, pai ou irmão da mulher seduzida, porque era considerado o instigador do crime cometido por um homem contra outro homem. Desde as leis de Drácon, em Atenas, no século VII a.C., são explicitados os casos nos quais, após ter cometido um homicídio, um homem não deve ser condenado:

Se se matar alguém, sem ter esta intenção, num concurso atlético, ou numa luta na estrada, ou involuntariamente, na guerra, ou alguém apanhado a ter relações sexuais com a sua esposa, mãe, irmã ou filha, ou concubina mantida com a intenção de ter filhos libertos, o assassino não deve ser condenado por estes motivos.

Outras penalizações impunham multas severas e humilhações corporais e públicas, tal como surge, nas leis de Gortina, em Creta e em Atenas.

Sabe-se que as leis não puniam as mulheres que cometiam adultério ou eram apanhadas em qualquer tipo de situação ilícita, em Atenas, até ao séc.V a.C. Em 451, Péricles introduziu uma lei, segundo a qual só o produto de dois cidadãos podia ser um cidadão. Com esta lei, a mulher deixou de ser vista como apenas um acessório biológico necessário ao processo de reprodução. O seu papel foi reconhecido por lei e foram introduzidas precauções estritas, _________________

8Sobre este assunto ver Konstantinos Kapparis, Abortion in the Ancient World,

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destinadas a proteger a legitimidade dos filhos e manter os filhos, nascidos fora do casamento, à parte da cidade. O estado decidiu intervir e ordenar que o marido se divorciasse da mulher adulta, sob pena de privação de direitos civis, caso se recusasse. A mesma lei impunha sanções às mulheres às quais não era permitida a entrada nos templos públicos e o uso de jóias.

No romance Quéreas e Calírroe, parece continuar a estar implícito que, se um homem matasse a sua mulher, por, num acesso de fúria, a ter apanhado

em adultério, teria direito à defesa9.

Sabe-se que o aborto era praticado, embora fosse condenado pelo

Juramento hipocrático:

Não darei veneno mortal algum a quem mo pedir, nem fornecerei tal conselho. Igualmente me absterei de dar a uma mulher um pessário

abortivo10.

Platão, no Teeteto, pela voz de Sócrates, cuja mãe, Fenáreta, era «a

mais famosa e hábil parteira»11, refere o assunto com a maior naturalidade:

S. – Também são as parteiras que dão medicamentos e podem usar encantamentos [d] para provocar as dores de parto e, se quiserem, podem fazê-las acalmar, levando a darem à luz as que estão com dores de parto e ainda, se lhes parece que se deve abortar um nascituro, provocam o aborto?

Teet. – Assim é12.

O método que Calírroe refere, o «veneno que te mate», é equivalente ao que hoje chamamos o aborto medicamentoso auto-induzido.

Nos tratados De mulieribus e De natura muliebri, do Corpus

Hippocraticum, são dadas múltiplas receitas de drogas abortivas orais ou

aplicadas em pessários vaginais. Entre as plantas com efeito abortivo, _________________

9 Konstantinos Kapparis, Abortion in the Ancient World, pp. 100-101.

10 Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, in Hélade, Coimbra, Instituto

de Estudos Clássicos, 1990, p. 215.

11 Platão, Teeteto, tradução de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri,

prefácio de José Trindade Santos, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 199.

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contam-se as folhas de mirto, de loureiro e de hera. Reproduzimos o texto

grego de De natura muliebri 10413:

Segundo J. Riddle (1992), trata-se provavelmente de drogas cuja eficácia os médicos conheciam mal e que eram provenientes da tradição oral

de parteiras e curiosas14.

O número de drogas utilizadas, tomadas isoladamente ou em misturas complexas, mostram a procura contínua de meios abortivos eficazes, mas pouco perigosos, e a necessidade de substituir plantas, tidas como abortivas, em certas regiões mas que não existiam em outras. É-nos difícil avaliar a sua eficácia.

Um estudo de G. Negri (Erbatio figurato: descrizione e proprietà delle

piante medicinale e velenose della flora italiana, Milão, 1960) refere que o

ciclame, a briónia, o pepino de sumo (elaterion) possuíam as qualidades abortivas que os médicos e farmacologistas antigos lhes atribuíam.

_________________

13 Charlotte Schubert/Ulrich Huttner, Frauenmedizin in der Antike, Düsseldorf,

Artemis & Winkler Verlag, 1999, p. 48.

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Outra planta mencionada por este autor, a aristolóquia, segundo J. Riddle, contém ácido aristocólico que tem capacidade para impedir a fixação do óvulo e mesmo de interromper uma gravidez no segundo trimestre. Estudos levados a cabo por este especialista em farmacologia antiga confirmaram o efeito anticoncepcional e abortivo de muitas das ervas

e plantas utilizadas15.

As drogas abortivas (ejcbovlia) referidas por Sorano de Éfeso, tais como o heléboro e o castóreo, eram utilizadas para provocar contracções uterinas e hemorragias, induzindo o aborto. Outras drogas eram embriotóxicas, quer

dizer, provocavam a morte fetal16.

Segundo J. Riddle, a ruda (ou arruda) referida por Plínio (NH 20, 143) contém calepensina que é tóxica, quando utilizada em doses elevadas.

Um excerto de Galeno ilustra o perigo do uso destas drogas, que apenas possuem um efeito terapêutico muito próximo do efeito tóxico:

A maior parte das drogas... são demasiado fracas para tal efeito,

porém algumas, embora sejam potentes, colocam em risco a vida humana.17

Tanto o texto de Platão como o romance de Cáriton aludem ao aborto de forma tão natural que parece não envolver riscos para a vida da mulher.

Sabe-se que isso não acontecia, como vimos. Mais consciente destes perigos é o poeta Ovídio.

Desde que, na sua insensatez, vai destruindo o peso que carrega [no ventre inchado,

jaz, em risco de vida, Corina, prostrada por padecimentos.18

O aborto punha efectivamente em risco a vida das mulheres, por motivos vários, decorrentes do método utilizado.

_________________

15 J. Riddle, Eve’s herbs, in Konstantinos Kapparis, Abortion in the Ancient

World, p. 15.

16 Charlotte Schubert/Ulrich Huttner, Frauenmedizin in der Antike, p. 493.

17 Galeno, 14, 152 ff, in Konstantinos Kapparis, Abortion in the Ancient

World, p. 16.

18 Ovídio, Amores, tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André,

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As razões mais frequentes eram: a hemorragia incontrolável, no caso de utilização de drogas que induziam a contractilidade uterina ou a infecção

uterina, seguida de peritonite, devida a retenção de restos embrionários19.

Neste caso, os médicos actuavam in extremis, pois o perigo de provocar infecção uterina, ao introduzir dilatadores, sondas e instrumentos de

curetagem, era grande20.

É possível que um epitáfio como este que transcrevemos se refira a este tipo de situação:

Aqui jaz Efésia Rufra, boa mãe, esposa boa. Morreu por causa duma febre maligna que os médicos lhe provocaram e que ultrapassou todas as

previsões.21

A febre provocada pelos médicos pode-se referir a uma intervenção ginecológica deste género.

Outra causa para a morte feminina era a ingestão de drogas embriotóxicas que, para serem eficazes, também eram letais para a mulher.

MARIA DO SAMEIRO BARROSO

_________________

19 Sobre outros métodos de indução do aborto, bem como outros aspectos da

Ginecologia e Obstetrícia antigas, ver o meu artigo “Sob a protecção de Lucina. Alguns aspectos da Medicina Obstétrica e Ginecológica Antiga”, Cadernos de

Cultura Medicina na Beira Interior, da Pré-História ao Século XXI, N. º XX, Castelo

Branco, 2006, pp. 93-103.

20 Konstantinos Kapparis, Abortion in the Ancient World, p. 84.

21 José d’Encarnação, Estudos sobre Epigrafia, Coimbra, Minerva, 1997 p.

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