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A INTERSUBJETIVIDADE REFERENCIAL E O LIVRO DIDÁTICO DE PORTUGUÊS OS ALUNOS LÊEM O QUE O LIVRO ESCREVE?

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A INTERSUBJETIVIDADE REFERENCIAL E O LIVRO DIDÁTICO DE PORTUGUÊS – OS ALUNOS LÊEM O QUE O LIVRO ESCREVE?

ALEXANDRE BATISTA DA SILVA (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO), ALEXANDRE BATISTA DA SILVA (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO).

Resumo

Esta comunicação busca avaliar as atividades didáticas de leitura em língua materna, considerando o conceito de intersubjetividade referencial (Sinha & Rodriguez, 2008), que postula a necessidade de os referentes visualizados num contexto de interação serem observados pelos interactantes numa perspectiva sócio–cognitivista – no sentido atencional, funcional, interacional, sócio–histórico e, sobretudo, epistêmico (Gerhardt, a sair). Constata–se que o conhecimento partilhado é um construto que não pode se aplicar apenas à percepção dos referentes num plano objetivo de representação, mas deve também reconhecer as dimensões sócio–cognitivas de constituição de um dado conceito – em específico, para nós, a dimensão epistêmica, porque, em sala de aula, coexistem e convivem pelo menos duas diferentes dimensões epistêmicas de pensamento – a realidade construída pelos alunos e a que é suposta pela escola. Verificaremos, com base na avaliação de uma atividade de leitura de livro didático de língua portuguesa de ensino médio, se o livro assume como realidade a cognição dos alunos: os conteúdos que o livro atribui à construção de mundo dos alunos são de fato representativos do seu pensamento? Formula–se essa questão nos termos da relação institucional mantida entre os agentes escolares e os alunos, do universo sócio–cultural de onde eles provêm, e das expectativas acerca dos valores e pensamentos que os alunos assumirão a partir do contato com os conteúdos escolares. A atividade de leitura será aplicada a duas turmas de primeiro ano do ensino médio. Escolheu–se um texto literário para a análise, em virtude do fato de que, embora todo texto seja epistemicamente cognizável, a leitura de um texto esteticamente marcado implica explicitamente a consideração da dimensão epistêmica da sócio–cognição. Em termos comparativos, as reflexões realizadas observarão os desencontros entre a expectativa do livro e as respostas dos alunos, que para nós representam, eminentemente, uma forma de cognição estreitamente situada e vinculada ao ambiente escolar.

Palavras-chave:

sócio–cognição, livro didático, atividades de leitura.

Antes de proceder à formulação dos conceitos que norteiam nosso trabalho, é preciso colocar de início o inquietamento que o motiva: a desconfiança, na falta de melhor termo, de que, na escola, o que está na mente dos agentes escolares não é necessariamente o que está na mente dos alunos. Esse "mismatch" de pensamentos, crenças e conceitos acarretará, em última instância, um abismo que não poderá ser transposto apenas com o fato de que professores e alunos falam o mesmo idioma. Podem falar, mas não se ouvem, não se traduzem.

Esse inquietamento rege a nossa busca por aportes teóricos que supõem a mente partilhada e a cognição social, para entender como funciona a mente da pessoa no momento em que ela se dispõe a ser um aluno e estar em sala de aula interagindo com os demais agentes escolares.

Parte desta busca é o que se segue abaixo, inicialmente com a exposição do que estamos compreendendo aqui como intersubjetividade referencial (Sinha & Rodriguez, 2008). Após isso, avaliamos uma atividade escolar de leitura tendo em

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mente tal conceito e seus corolários, discutindo como podemos chegar a compreender as possibilidades de interação entre a escola e o aluno, a fim de que o processo de aprendizado seja satisfatório. Escolhemos uma atividade de leitura de livro didático de ensino Médio, relacionada a um texto em prosa do movimento romântico, escola literária do século XIX no Brasil.

A intersubjetividade referencial e a interação em sala de aula

A intersubjetividade referencial (Sinha & Rodriguez, 2008, mas tratada anteriormente por Sinha, 1999, como referência conjunta) pode ser definida como a condição interacional em que os interactantes estão visualizando, ou melhor, capturando em suas mentes, um mesmo objeto, numa situação de atenção conjunta (Tomasello, 1999), em todas as dimensões em que isso pode acontecer: atencionais, funcionais, comunicativas, sócio-históricas e epistêmicas. Este conceito emerge de uma discussão mais ampla realizada atualmente, na literatura em ciência da cognição, sobre a mente partilhada (shared mind), que leva em conta as pessoas cognizando articuladamente à sua interação em contextos microssociais, os quais, entre outras características, são materializações de normas, convenções e demais saberes acumulados de ordem cultural. Estes saberes estão presentes na compreensão que as pessoas atribuem aos objetos que manipulam, estando aí incluídos os referentes lingüísticos, já justamente considerados por Salomão (1997) como enquadres de uma realidade considerada.

Dessa maneira, os objetos postos à participação na atenção conjunta estão embebidos das normas e convenções que regulam toda ação conjunta, condição que requer uma compreensão dos padrões segundo os quais devemos identificar os objetos de conhecimento em classe. Trabalhos focados nas práticas educacionais indicam que a compreensão das coisas não se desarticula da sua inserção normativa numa prática social (cf. Kleiman, 1998): "aprender a ser um aprendiz" (Sinha, 1999) representa compreender esses padrões. Sobre isso, a questão desta comunicação é em que termos, localizando um contexto como o da sala de aula, estas normas de compreensão dos objetos precisam ser levadas em conta na comunicação entre os alunos e o professor por intermédio do livro didático.

Para as teorias em Lingüística Cognitiva que advogam uma relação não objetivista entre a construção de significados pelas pessoas e sua relação com o mundo (sua ecologia, seus valores, suas culturas etc.), esses objetos, tornados referentes via linguagem, não são apartados do mundo material e não material, tradicionalmente chamado "universo bio-social", que os engendrou (Salomão, 1997). Podemos, daí, supor que não haja uma distinção fundamental entre o que é percebido e o que é conceptualizado, ou, seja, aquilo que existe e aquilo que pensamos que existe: trata-se da mesma coisa. Pensando essa proposição relacionada ao universo de sala de aula, é natural especular se o que existe para a instituição escolar existe também para o aluno.

Refletir sobre isso se torna necessário porque a mera suposição de que há um conhecimento partilhado entre alunos e professor não é suficiente para o aprendizado: não se tem a garantia de que alunos e professor estão enquadrando de fato o mesmo referente, e a polissemia potencial de toda forma lingüística não é o único motivo desse problema - há outros a serem considerados:

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1- Como não se pode apartar conceptualização de percepção, talvez nem os recursos pedagógicos que facilitem a visualização dos conceitos possam dar conta do seu partilhamento na interação de sala de aula. Há que se pensar numa

práxis que se proponha articular o conhecimento do aluno, que deve sempre servir

como ponto de partida do processo de aprendizado, aos referentes dados como conteúdos em aula;

2- Para haver atenção conjunta e intersubjetividade referencial, é necessário que as partes em interação estejam de fato comprometidas em procurar olhar para o mesmo objeto; isso inclui abrir mão da suposição a priori de que nosso interlocutor está conceptualizando determinado objeto da mesma forma como estamos. E isso é difícil, porque, muito embora não falemos sobre as coisas, mas sim sobre o que acreditamos que as coisas sejam, o senso comum sobre a comunicação é descrito por meio da metáfora do conduto: a idéia de que empacotamos as coisas que pensamos, enviamo-las para nossos interlocutores, e eles as desempacotam e as recebem, isto é, as entendem, exatamente tal como as pensamos.

A noção de intersubjetividade referencial está atrelada ao fato de que, na essência do processo de aprendizado, sobrevive a compreensão funcional dos objetos como fatos sociais, porque, além de eles serem construídos via participação mútua dos personagens da cena de sala de aula, estamos tratando com elementos institucionalizados, reenquadrados, a partir da sua representação no universo de conhecimento exterior à sala de aula, para existirem dentro dela como objetos de aprendizado, avaliação etc. Em outras palavras: a compreensão dos objetos não diz respeito tão-somente à sua essência, mas também à sua funcionalidade canônica. Tal funcionalidade precisa ser capturável pelos alunos, e as atividades escolares precisam dar conta disto: da definição de um conceito, do seu enquadramento funcional-normativo, e da relação entre ele e os conhecimentos prévios do aluno, para que haja aprendizado.

Na próxima seção, tentamos perscrutar, através de uma breve atividade de leitura, se essa funcionalidade inerente aos conceitos é levada em conta nas atividades escolares.

O Romantismo na escola e na mente dos alunos

A escola parte de uma determinada suposição sobre os estados mentais dos alunos: a de que eles são capazes de compreender perfeitamente o que está sendo dito, e da forma como está sendo dito. Mas em que a escola se baseia para supor que seus objetos de conhecimento são exatamente os conceptualizados pelos alunos?

A resposta que aqui propomos para essa questão é a de que a escola se baseia na existência de um suposto plano objetivo de conceptualização dos referentes, isto é, já que para ela os referentes já estão conceptualizados a priori pelo aluno, resta apenas definir suas características, funções, finalidades etc., prática corrente num ensino baseado em metalinguagem, como é o ensino na escola brasileira em todas as disciplinas.

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É certo que não podemos de uma vez dar conta de justificar nossa resposta verificando todos os processos e materializações possíveis na transmissão de conteúdos. Por isso, como estamos interessados em discutir a leitura na escola, escolhemos uma atividade de leitura em especial, em que o conceito de Romantismo em Literatura é central. Para nós foi interessante selecionar especificamente a Escola Romântica porque se trata de um conceito que tem como contraparte, no universo de conhecimento prévio dos alunos, a idéia de romantismo como um traço da personalidade de uma pessoa cujas ações em sua maioria são motivadas pelas emoções e sentimentos. Então, para compreender o Romantismo como escola Literária, o aluno deve construir, de forma descolada do seu conhecimento prévio, a noção oferecida pela escola.

O procedimento consistiu em solicitar a 73 estudantes do Ensino Médio que, após terem assistido às aulas sobre o Romantismo na literatura brasileira, lessem um trecho de uma obra da Escola Romântica e respondessem a sete questões relativas a esse trecho (Cereja e Magalhães, 2003). Trata-se de um trecho do romance Senhora, de José de Alencar, um dos principais escritores associados à escola romântica no Brasil. O excerto narra o diálogo entre Aurélia e Fernando Seixas, na ocasião da noite de núpcias, em que a verdade sobre o casamento dos dois é posta pela heroína.

[Amor e dinheiro]

- O senhor não retribuiu meu amor e nem o compreendeu. Supôs que eu lhe dava apenas a preferência entre outros namorados, e o escolhia para herói dos meus romances, até aparecer algum casamento, que o senhor, moço honesto, estimaria para colher à sombra o fruto de suas flores poéticas. Bem vê que eu o distingo dos outros, que ofereciam brutalmente, mas com franqueza e sem rebuço, a perdição e a vergonha.

Seixas abaixou a cabeça.

- Conheci que não me amava, como eu desejava e merecia ser amada. Mas não era sua a culpa e só minha que não soube inspirar-lhe a paixão, que eu sentia. Mais tarde, o senhor retirou-me essa mesma afeição com que me consolava e transportou-a para outra, em quem não podia encontrar o que eu lhe dera, um coração virgem e cheio de paixão com que o adorava. Entretanto, ainda tive forças para perdoar-lhe e amá-lo.

A moça agitou então a fronte com uma vibração altiva:

- Mas o senhor não me abandonou pelo amor de Adelaide e sim por seu dote, um mesquinho dote de trinta contos! Eis o que não tinha o direito de fazer, e que jamais lhe podia perdoar! Desprezasse-me embora, mas não descesse da altura em que o havia colocado dentro de minha alma. Eu tinha um ídolo; o senhor abateu-o de seu pedestal, e atirou-o no pó. Essa degradação do homem a quem eu adorava, eis o seu crime; a sociedade não tem leis para puni-lo, mas há um remorso para ele. Não se assassina assim um coração que Deus criou para amar, incutindo-lhe a descrença e o ódio.

Seixas, que tinha curvado a fronte, ergueu-a de novo, e fitou os olhos na moça. Conservava ainda as feições contraídas, e gotas de suor borbulhavam na raiz de seus belos cabelos negros.

- A riqueza que Deus me concedeu chegou tarde; nem ao menos permitiu-me o prazer da ilusão, que têm as mulheres enganadas. Quando a recebi, já conhecia o

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mundo e suas misérias; já sabia que a moça rica é um arranjo e não uma esposa; pois bem, disse eu, essa riqueza servirá para dar-me a única satisfação que ainda posso ter neste mundo. Mostrar a esse homem que não me soube compreender, que mulher o amava, e que alma perdeu. Entretanto ainda eu afagava uma esperança. Se ele recusa nobremente a proposta aviltante, eu irei lançar-me a seus pés. Suplicar-lhe-ei que aceite a minha riqueza, que a dissipe se quiser; consinta-me que eu o aconsinta-me. Essa última consolação, o senhor a arrebatou. Que consinta-me restava? Outrora atava-se o cadáver ao homicida, para expiação da culpa; o senhor matou-me o coração, era justo que o prendesse ao despojo de sua vítima. Mas não desespere, o suplício não pode ser longo: este constante martírio a que estamos condenados acabará por extinguir-me o último alento; o senhor ficará livre e rico. (ALENCAR, J. Senhora. São Paulo: FDT)

Tomaremos, para fins de análise neste texto, apenas a questão seis. A propósito, as outras questões suscitam tão-somente uma operação de "recorte-colagem", que solicita aos estudantes a reconstituição da cena descrita no trecho. A questão selecionada para análise nos é particularmente interessante porque solicita ao aluno a identificação das características do estilo romântico presentes no texto. Em outras palavras, a proposta da questão do livro é a de que o estudante identifique o texto como representativo da Escola Romântica na literatura brasileira, articulando as características do romantismo dadas nas páginas anteriores ao trecho apresentado.

Seguem abaixo a questão e algumas das respostas mais significativas dadas pelos alunos.

6. Que elementos tipicamente românticos caracterizam a situação em que se encontra Aurélia?

Resposta oferecida pelo livro: Podemos apontar, entre outros, a busca de sentimento sinceros numa sociedade hipócrita (oposição entre a essência e a aparência das pessoas) e o drama do amor ferido.

Algumas respostas oferecidas pelos alunos:

1. a indignação de quando ele via se casar com outra, e quando ela ainda tem esperança a vontade de se atirar a seus pés.

2. O amor que não se concretiza pois há muitos obstáculos que não podem, ser vencidos. A capacidade de matar ou morrer em nome do amor da personagem São traços que sempre ocorrem na temática romântica.

3. os elementos românticos podem ser caracterizados por dor, vingança, justiça, ódio, indignação, etc.

4. O amor incondicional, pois o ama mais que tudo... é capaz de perdoá-lo por tudo o que aconteceu e se ele não "quizer" o seu amor ela é capaz até de morrer de solidão. E a indeuzação de sua beleza.

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5. sua indignação pelo desprezo de Fernando; sua esperança de que ele a aceitasse mesmo não havendo reciprocidade desse sentimento e sua submissão a uma situação que possivelmente não lhe trataria felicidade, já que ele não a amava, apenas título.

6. A palavra amor existente sempre em sua fala, o amor que deveria ser correspondido. O perdão dela para o Seixas sempre.

7. A situação de mulher traída, abandonada e ferida por amar um homem que não a merece.

8. quando ela coloca a culpa nela dizendo " que não soube inspirar-lhe a paixão que sentia, que deu "um coração virgem e cheio de paixão com que o adorava. 9. Ela querer de todas as formas conseguir o amor de um homem.

10. amor, prazer, paixão, desejos e ciúmes.

11. a forma com que ela reage a situação, a ponto de entregar toda sua riqueza ao amor de sua vida.

12. As palavras que expressão sentimento. Estavam vivendo um triangulo amoroso, Onde acabou sendo trocada, devido a outra ter mais dotes a oferecer.

13. As palavras sentidas. Ela expõe o que sente, Esta vivendo em um romance a três, onde foi trocada por outra que tinha dotes a oferecer.

14. Aurélia dispõe-se a largar sua fortuna, fazendo alusão a um pensamento romântico de que o amor basta. Além disso, sofreu por amor, humilhou-se diante de seu amado por ama-lo tanto.

15. a fixação por sua amada, seu sofrimento e raiva.

16. ódio e amor. Brigas que existem dentro dos relacionamentos. Uma paixão que suporta quase tudo para se ter a pessoa amada ao lado.

17. a discussão de um relacionamento onde o amor foi substituído pelo dinheiro.

18. a preferencia entre outros namorados, a escolha de um herói para romances, colher a sombra o fruto para flores poéticas.

19. Aurélia se encontra num triângulo amoroso, onde o seu amado lhe trocou por uma esposa que havia um dote.

20. Aurélia, como qualquer outra mulher enganada, mal amada, se encontra desesperançosa, desiludida, sem amor pela própria vida, não vendo mais sentido em nada, vontade de sumir no mundo, rancorosa.

Observa-se claramente nas respostas que nelas os alunos conceptualizam o romantismo como um referente do mundo biossocial extra-escolar, que entende as

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características românticas como sendo próprias de uma certa relação com o mundo das relações afetivas, ou como traço de personalidade (a pessoa é romântica e age como tal), não enquadrando, como era necessário, o objeto "Romantismo" conforme descrito no universo literário, ou seja, como estilo de época da literatura do século XIX.

Nesse sentido, é coerente que a grande maioria das respostas tenha apenas depreendido o conteúdo factual (e não ideacional) do excerto, com os alunos "lendo" os seus elementos conforme a sua própria percepção pessoal de romance, o que a nós evidencia que eles conceptualizaram o trecho de Senhora como conceptualizam as novelas e seriados de televisão, com seus elementos recorrentes: triângulos amorosos, problemas de relacionamento e demais questões do universo das relações afetivas do século XXI: observem-se os termos "prazer" (10), "romance a três" (13), "fixação" (15), "namorados" (18) e "mal amada" (20); veja-se também a visão crítica, hoje corrente, do amor idealizado, descartado em benefício de uma visão atual, mais pragmática, dos relacionamentos (14).

Numa perspectiva mais ampla de observação, ao constatarmos essa ausência de articulação, verificamos como a escola, ao solicitar dos seus alunos tarefas de leitura, falha ao limitar seu ensino à metalinguagem, fato corrente não apenas no ensino de língua mas também em todas as disciplinas. Pelos dados que observamos, este tipo de ensino leva o aluno a não ser capaz de detectar, a partir de um texto literário dado, os aspectos da Escola a que ele pertence, muito embora saibamos que durante as aulas o professor se preocupe em enumerar e exemplificar tais características.

O que pode estar acontecendo, então? O que acontece entre a fala do professor e a cognição do aluno, para que a existência dos referentes apresentados em aula não sejam sequer percebidos pelos alunos?

A nós, parece claro que o ensino dessas características, bem como das características de todos os conteúdos escolares, deve ser antecedido de um ajuste referencial que permita ao aluno raciocinar um conceito escolar a partir da percepção que dele traz como conhecimento prévio. Mas esta prática a escola não oferece, como já foi fartamente apresentado na literatura relacionada ao assunto (cf. Ramos, 2001; Griffith & Ruan, 2005; Gerhardt, 2006; Fontana & Rossetti, 2007).

O mais interessante a notar é que, das 73 respostas, nenhuma delas apresentou uma resposta focada no entendimento do Romantismo como estilo literário, o qual, entre outros aspectos, discute o jogo de interesses e os casamentos por conveniência em confronto com o amor sincero, traços presentes também em outras obras do Romantismo urbano e rural, como Lucíola, A Moreninha, Inocência e Escrava Isaura.

Tais respostas nos levam a concluir pela absoluta ausência de intersubjetividade referencial no que tange à discussão em sala de aula sobre o movimento romântico nas turmas que realizaram a atividade. Ou seja, não houve aprendizado, porque os alunos não conseguiram articular o seu universo de compreensão do que é romântico com o que a escola define sobre Romantismo. Sobre isso, estamos convictos de que tal fato aconteceu porque a escola não se propõe a reconhecer o universo de compreensão dos alunos, como já afirmamos em outros trabalhos (Gerhardt & Silva, 2005, Gerhardt, 2006; Gerhardt, no prelo; Gerhardt, Albuquerque & Silva, no prelo).

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Para alcançar a intersubjetividade referencial

Sobre os resultados apresentados na tarefa que aplicamos, é possível fazer uma reflexão não apenas restrita ao ensino de leitura, mas também a toda prática escolar que envolva leitura, produção textual e gramática na escola. Sobre isso, reconhecemos, para uma devida referência conjunta propiciadora de aprendizado, a necessidade de visualizar duas tarefas metodológicas básicas:

1) Em primeiro lugar, verificar se o aluno conceptualiza um dado referente (o que na escola se denomina "conteúdo") no enquadramento funcional-normativo considerado pela escola.

2) Em segundo lugar, perscrutar se ele depreende as características desse conceito nos dados textuais ou gramaticais oferecidos em classe.

É necessário afirmar que, para a consecução desta segunda ação, a primeira já terá que ter sido levada a cabo, de outra forma o aluno apenas enumerará aspectos de coisas que para ele não existem, conceptualizando outro objeto, diferente do objeto apresentado à observação na aula, o que fica claro quando ele se defronta com exercícios e avaliações como o que analisamos neste trabalho.

Tal constatação a nós se apresenta como uma hipótese interessante para entendermos como se pode operar satisfatoriamente com a tarefa escolar de definição, detecção de conhecimento prévio e enquadramento funcional-normativo sobre um dado conceito, conforme já salientamos no início deste trabalho: em atividades de leitura, deve ser buscada antes de tudo a compreensão de que o aluno já tem em seu conhecimento prévio uma visão específica deste conceito, ou um diferente conceito relacionado ao mesmo significante, que precisa ser tomado como ponto de partida e articulado ao referente escolar, a fim de que ele perceba de que não se trata do mesmo objeto. Esta compreensão é pré-requisito para que as características do conceito, ou seja, o seu enquadramento funcional-normativo, sejam enumeradas e compreendidas.

Observa-se, com isso, que, para uma tarefa de leitura bem-sucedida, os conhecimentos que os alunos antecipadamente trazem sobre as coisas é fundamental. E que também é fundamental à escola, para que alguma coisa dê certo no processo ensino-aprendizagem, reconhecer que o aluno não é uma página em branco, e que as aulas trazem conteúdos apenas diferentes, e não melhores do que os conceitos já formulados por seus aprendizes. Esperamos que essa prática um dia seja realidade na escola brasileira.

Referências

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