• Nenhum resultado encontrado

Palavras-chaves: abuso do direito, teorias, evolução

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Palavras-chaves: abuso do direito, teorias, evolução"

Copied!
9
0
0

Texto

(1)

Vicente de Paulo Saraiva

Subprocurador-geral da República

Professor da Universidade Católica de Brasília

RESUMO - Trata o autor do tema “abuso do direito”, suas origens no direito romano, bem como seu desenvolvimento na Idade Média, por meio da teoria dos atos emulativos (teoria subjetiva) e sua evolução até a moderna doutrina do abuso do direito de caráter objetivo. Ressalta, também, diversos diplomas legislativos (Constituição Federal, legislação civil, administrativa, trabalhista, processual e penal) que abarcam a referida teoria, destacando que a sua caraterização vincula-se ao desvio de finalidade e não ao exercício de ato contrário ao direito.

Palavras-chaves: abuso do direito, teorias, evolução

ABSTRACT: The author deals with the subject "abuse of right", its origins in the Roman Law, as well as its development in the Middle Age, by means of the theory of the emulation acts (subjective theory) and its evolution until the modern doctrine of the abuse of right, with an objective character. Diverse legislative acts (Federal Constitution, civil, administrative, working, procedural and criminal legislation) are also appointed, for they adopt the cited theory, detaching that its characterization is associated with the finality deviation and not with the exercise of acts contrary to the law.

(2)

Não é de hoje que se acusa o direito romano de patrocinar o direito abusivo. É de se relevar que, na etimologia de abusus, o sentido primitivo da preposição ab é de separação/afastamento, com as variadas conotações daí decorrentes. Sua presença, como prefixo, na composição do verbo abuti (do qual abusus se deriva), confere assim, primeiramente, a idéia de utilização do bem até sua consumação; e, só em segunda acepção, a de usar livremente (abusar), mesmo em desarmonia com a finalidade da coisa.

A acusação se apóia em máximas, como, por exemplo, a de GAIO (Digesta. 50, 17, 55): Nullus videtur dolo fácere qui suo jure útitur (= Não parece que haja procedido com dolo quem usa de seu direito); como a de ULPIANO (Digesta. 43, 29, 3, 2): dolo malo non videtur

habere quí suo jure útitur (= não parece estar imbuído de dolo mau

quem usa de seu direito); como, ainda, a de PAULO (Digesta. 50, 17, 151): Nemo damnum facit, nisi qui id fecít, quod fácere jus non

habet (Não pratica um dano, senão aquele que fez aquilo, que não tinha

o direito de fazê-lo).

Esse direito onímodo sobre a propriedade, entretanto, não é norma que se releva atribuir propriamente ao direito romano. o jus utendi et abutendi (= direito de usar e de abusar) é de obra dos intérpretes e glosadores (sécs. XI/XVI), comentando textos que aparentam repudiar limitações à liberdade de dispor, pertinentes ao sistema do jus civile (= direito civil/quiritário). Observe-se que, a partir do séc. II do Império, considerações éticas já vêm opor-se ao absoluto exercício ao direito de propriedade, seja condenando a utilização do bem com a intenção de lesar terceiro, seja sinalizando que

(3)

interesses públicos ou privados podem exigir certa contenção no exercício do domínio.

E assim, discernimos em ULPIANO, textos como (Digesta. 39, 3, 1, 12): si non ánimo vicíno nocendi, sed suum agrum meliorem faciendi id fecit (= se [a pessoa] não fez aquilo com o ânimo de prejudicar o vizinho, mas [de tornar] melhor sua [própria gleba]); e ainda, p. ex.,

em PAULO (Digesta. 39, 3, 2, 9): si modo non hoc ánimo fecít, ut tibi nóceat, sed ne sibi nóceat (= se [aquilo a pessoa] fez, então, não com

o intuito de prejudicar a ti, mas para não prejudicar a si próprio).

Tais limitações remontam ao período pré-clássico (da fundação de Roma à Lex, Aebutia: c. 149/126 a. C.), ampliando-se nos períodos clássico (até o fim do reinado de Diocleciano: 305 d. C.) e pós-clássico (até à morte de Justiniano: 565 d. C.).

Aliás, desde a Lei das XII Tábuas (ed. Riccobono) que aos proprietários de terrenos vizinhos se impõem limites à construção ou cultivo em volta do imóvel (VII, 1); impunha-lhes, ainda, tolerar certa projeção dos galhos das árvores de seu vizinho (ib., 9), bem como o recolhimento de seus frutos (ib., 10); tinham, também, de permitir a passagem pelo seu terreno (ib., 7).

O critério clássico é o externado por ULPIANO (Difesta. 8, 5, 8, 5) de que in suo ... háctenus fácere licet, quátenus nihil in alienum

immittat (= somente é lícito ... fazer [algo] em seu próprio (terreno], na

mesma medida em que não invada o [do] vizinho). Menção especial merecem a áctio aquae plúviae arcendae (= ação [do direito] de canalizar a água da chuva); e o direito de permitir a terceiro passar ou

(4)

ancorar o barco nas margens de um rio que transcorra por sua propriedade (Digesta. 1, 8, 5, par.). Ademais, constituições de Augusto (63 a. C. – 14 d. C.) e de Trajano (53-117) estabeleceram a altura máxima para as construções nas cidades grandes; e uma outra, de Antonino Pio (86-161), obrigou a venda do escravo que tivesse sido maltratado por seu dono (Institutioness. 1, 53).

Por sua ves, no direito pós-clássico agravam-se as restrições à altura das construções nas cidades (Codet 8, lo, 12, 1); e, se tratasse de construções no próprio terreno, restringiam-se aquelas superiores às necessidades da área no que diz respeito às águas; ou ainda, restringiam-se as construções que prejudicassem a ventilação do prédio contíguo (Codex 3, 34, 14, 1). Impressionante: chega-se até a determinar a perda da propriedade, que não tiver sido cultivada por seu dono, em prol daquele que a amainou por mais de dois anos (Codex. 11, 59, 3), numa autêntica reforma agrária. Além disso, o proprietário do terreno tem de admitir as escavações de terceiros na exploração das minas, com direito apenas a um décimo do produto conseguido, percentual também devido ao Estado (Digesta. 8, 4, 13, 1), num prelúdio aos códigos hodiernos de Mineração.

Porquanto, em lapidar aforismo, não estavam em jogo somente interesses privados, senão também os da própria república (Instituta. 1, 8, 2): Éxpedit enim rei públicae, ne quis sua re male utatur (= Pois é do interesse da República que ninguém use mal de sua [própria) coisa).

Pelo que se vê, os romanos perceberam a necessidade de se coibir o abuso do direito, mas não formularam textos taxativos nesse sentido. Foi pela Idade Média, entretanto, máxime pelo séc. VI d. C. e por

(5)

influência da ética cristã, que se iniciou a teoria dos atos emulativos: esta partia do pressuposto de haver a intenção de lesar a outrem – recaindo a ênfase, assim, ao aspecto subjetivo. SALEILLE, JOSSERAND, BONNECASE e MAZEAUD & MAZEAUD defenderam esse aspecto, dando nascimento à doutrina moderna do abuso do direito, que se vem consolidando desde o século XIX nos Códigos dos mais diversos países. Opõe-se a estes, contudo, a corrente objetivista, para a qual basta a

ausência de utilidade em favor do próprio titular do direito, para

configurar seu abuso. (Sobre a doutrina do abuso, no direito moderno, v. SALVATORE ROMANO, in Enciclopédia del Diritto, vol. I, s. v. Abuso del Diritto (Diritto attuale); MARIANO D’AMELIO, in Novissimo Digesto

Italiano, vol. 1, t. 1, s. v. Abuso del Diritto; ELCIR C. BRANCO, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 2, s. v. Abusar e Abuso; R.

LIMONGI FRANÇA, ib., s. v. Abuso de Direito; MANUEL G. FERREIRA Fº,

ib., s. v. Abuso de Direito na Constituição de 1969, ALVINO LIMA, CAIO

M. S. PEREIRA Istituições de Direito civil,, vol. 1, pp. 396/399 (nº 118).

Cumpre observar que, por um lado, o exercício do direito em si, mesmo se vier a causar prejuízo ao terceiro (como na ação de cobrança e nos interditos possessórios, p. ex.), nem por isso se converte em abuso do direito. Por outro lado, a mera intenção de prejudicar o outro constitui, por si só, um ato doloso, se bem que do ponto de vista ético: porquanto, do ponto de vista jurídico, pode a malícia haver-se contido no exercício regular do próprio direito. Dá-se, então, a incidência do conhecido brocardo: Non omne, quod licet, honestum est (=Nem tudo que é lícito é honesto), denunciando que até

o legalmente legítimo pode ser desonesto. Por outro lado, mesmo que não haja a intenção de causar prejuízo a outra pessoa, caso tal venha a acontecer, já se transfigurará num abuso do direito, se ocorrer seja a

(6)

ausência de justo interesse próprio em seu exercício, seja a exigência de harmonia na convivência social.

Autores há, inclusive, como PLANIOL e BAUDRY-BARDE, que se insurgem contra a doutrina do abuso do direito, acusando-a de intrínseca contradição.- isto porque direito e abuso se repelem, este já se definindo como a inexistência daquele. A objeção perde substância, entretanto. Basta considerar que o exercício de um direito - mesmo legítimo, em princípio - deve restar condicionado ao resultado que dele vier a promanar: de modo que, deve-se coibir tal exercício se for desnecessariamente lesivo a terceiro; e deve-se limitá-lo se for necessário ao convívio social ou aos interesses do Estado. Ou seja: o abuso do direito não se conceitua como seu exercício contrário ao

direito, e sitn, como um desvio de sua finalidade.

Em nosso ordenamento jurídico, a vontade política da Nação deu expressão e vigor constitucionais a institutos jurídicos de direito privado, administrativo e econômico, refletindo a dinâmica social neles subjacentes. E assim é que a atual Constituição Federal/88 - na seqüência, aliás, de cartas anteriores se garantiu o direito de propriedade (art. 5º, XXII), previu a desapropriação por necessidade ou utilidade pública (ib., XXIV) e seu uso em caso de iminente perigo da coletividade (ib., XXV), tendo em vista a função social da mesma propriedade (ib., XXIII)., o titular do bem não poderá, então, opor-se a tais ingerências do Estado, senão quanto ao eventual injusto preço da indenização. E, se a mesma Carta assegurou a livre iniciativa das empresas, conformou-a aos ditames da justiça social, defendendo o consumidor contra o abuso do poder econômico pela dominação dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos

(7)

lucros (ib., XXXII; art. 170, caput e incs. III/V; art. 173, § 4º). Assegurou a mesma Carta política, o direito de petição em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder (art. 5º, XXXIV, a), garantindo ademais a proteção (mesmo preventiva) de direito líqüido e certo quando essa ilegalidade ou abuso provierem de autoridade pública, diretamente ou por delegação, mediante o mandado de

segurança (ib., LXIX) ou o habeas corpus

este na coação já efetivada ou na mera ameaça contra a liberdade de locomoção (ib., LXVIII). Mas remeteu à regulamentação da lei, ordinária ou complementar, a suspensão ou interdição de direitos (ib., XLVI, e), inclusive políticos (arts. 14, § 9º; 15, 1/V e 37, § 4º) - na proteção dos atributos inerentes à cidadania.

Por sua vez, em nosso Código Civil acha-se vazado um texto que pode ser mal interpretado (art. 524): “A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente o possua”. É verdade que não dispõe de norma expressa endossando a doutrina que repudie o abuso do poder (como o art. 226 do Código alemão (BGB) e o art. 2º do Código suíço). Apenas previne, por um lado, no inciso I de seu art. 160, não constituírem atos ilícitos os praticados no exercício regular de um direito reconhecido, quais os praticados em legítima defesa, em estado de necessidade ou sob coação irresistível. (Logo, a contrário sensu (=no sentido contrário), o exercício irregular passa a ser abusivo, obrigando ao ressarcimento do dano causado: art. 159.) Contudo, pelo art. 554 do mesmo Código opõe-se terminantemente ao uso nocivo da propriedade, facultando a seu dono ou ao inquilino impedir atos do vizinho que prejudiquem a segurança, o sossego ou a saúde dos habitantes do imóvel. E alerta, concomitantemente, para o abuso no exercício do

(8)

pátrio poder (art. 395); da autoridade marital (art. 233, III); dos meios de correção e disciplina (art. 395, I) e do mandato outorgado (art. 1.305).

Outros diplomas são vertidos no mesmo diapasão: na Consolidação das Leis do Trabalho, p. ex., adverte-se contra o abuso nos termos e execução do contrato de trabalho (art. 483, a). Processualmente, reprime-se o litigante de má fé, que responderá por perdas e danos em prol do lesado (CPC, arts. 16/18 e 35), reputando tal atitude como ato atentatório à dignidade da Justiça (art. 599, II e 600/601); semelhantemente, é punido com perdas e danos quem requerer por emulação a falência de uma empresa (LF - DL nº 7.661, de 21/06/45, art. 20); e considera-se atentado a prática de quem, no curso do processo, violar decisão judicial ou inova estado de fato (CPC, art. 879, I/III). No plano do direito administrativo, o abuso do direito se configura quando a autoridade se desvia das finalidades administrativas na prática do ato, distinguindo-se discricionariedade de ad arbítrium. (= ao [puro] arbítrio).

Por último, a liberdade de expressão, mesmo constitucionalmente assegurada, não isenta de indenização por dano material, moral ou à imagem da pessoa (CF, art. 5º, IV/V), caso se configure o abuso de imprensa, no seu direito de informar (Lei nº 5.250, de 09/02/67, arts. 12/17).

De observar-se que os "abusos", como tal denominados no Código Penal (como p. ex., o de exercício arbitrário do poder [art. 350] ou contra o incapaz [art. 173]), ou ainda em legislação repressiva extravagante (como p. ex., o de autoridade: Lei nº 4.898/65 [arts. 3º e

(9)

4º]), não podem ser integrados na doutrina do abuso do direito - por serem ditos abusos atos realmente contrários ao direito, e não, meros desvios de sua finalidade.

Referências

Documentos relacionados

Micro hibrido - Nos dias de hoje com o sistema start & stop temos um pequeno motor elétrico (12V-14V e <5Kw) com a única finalidade de ligar o motor nesta situação. Com isto

Além da alteração da idade para requerer a prioridade na tramitação processual, passando de sessenta e cinco para sessenta anos, o Estatuto do Idoso estendeu o benéfico da

A PROVA ESCRITTA DE CONHEIMENTOS, de caráter eliminatório e classificatório, terá 04 (quatro) horas de duração e conterá 40 (quarenta) questões objetivas de

O estudo teve o propósito geral de estudar o conhecimento profissional do professor de matemáüca de diferentes níveis de ensino, centtando-o no conhecimento

mediante apresentação da Carteira de Identidade Jovem que será emitida pela Secretaria Nacional de Juventude a partir de 31 de março de 2016, acompanhada de documento de

Nesta seção são apresentadas as limitações operacionais, marcações dos instrumentos e inscrições aprovadas pelo CTA necessárias para garantia de operação da aeronave

O presente trabalho utilizou o framework JAMS Jena Adaptable Modelling System na elaboração de um modelo hidrológico para a bacia do Ribeirão da Onça, a qual está localizada em zona

Adicionalmente procuraremos avaliar sinteticamente o que de mais significativo referiu a imprensa no “tempo longo” que vai da electrificação da rede até ao início do processo