SINTOMAS DE ANSIEDADE EM ATENÇÃO PRIMÁRIA
Flávio Dias Silva
Ansiedade pode ser definida como um estado de angústia, preocupação e/ou apreensão. É um sentimento frequentemente acompanhado de outras queixas mentais, como pensamentos excessivos, medos intensos, insônia e irritabilidade, ou físicas, como palpitações cardíacas, tremores e parestesias periféricas ou perto da boca. Estes sintomas fazem parte de um mecanismo normal de “reação de luta ou fuga”. Isto quer dizer que mediante ameaça significativa tendemos a ficar ansiosos. E de fato a ansiedade pode ser benéfica, pois aumenta nosso nível de vigilância e prontidão para enfrentar desafios. Situações corriqueiras da vida como um teste escolar ou uma entrevista de emprego podem gerar sintomas de ansiedade, de maneira que a pessoa fique atenta e focada nas atividades necessárias para ter sucesso no desafio. Por exemplo: a pessoa em iminência de uma entrevista de emprego provavelmente pensará bastante sobre como se comportar e o que falar sobre seu currículo, e vigiará seus horários para não se atrasar para o encontro, talvez até experimentando uma ou outra noite de insônia.
A tabela 1 relaciona frequentes sintomas de ansiedade.
Tabela 1: Sintomas e sinais de ansiedade.
Mentais Físicos
Preocupações excessivas (a respeito de um ou diversos temas)
Dificuldade de concentração Insônia
Irritabilidade
Desrealização (sensações de irrealidade) ou despersonalização (sensação de estar distanciado de si mesmo)
Medo de perder o controle ou “enlouquecer”
Medo de morrer
Palpitações, coração acelerado, taquicardia
Sudorese
Tremores ou abalos
Sensações de falta de ar ou sufocamento Fadiga
Tensão muscular
Dor ou desconforto torácico Náusea ou desconforto abdominal Sensação de tontura, instabilidade, vertigem ou desmaio
Calafrios ou ondas de calor
Parestesias (anestesia ou sensações de formigamento)
Em algumas ocasiões, entretanto, a ansiedade pode se tornar excessiva e seus sintomas podem atrapalhar a vida da pessoa. Esta ansiedade excessiva –patológica– está associada a complicações como maior procura de cuidados médicos, maior risco de depressão e abuso de substâncias psicoativas –incluindo os calmantes da família dos benzodiazepínicos–. Quando esta situação ocorre, é importante ajudar a pessoa a entender a origem de seus sintomas e lhe ofertar ajuda.
Entendimento das queixas de ansiedade
A ansiedade pode ser sintoma de qualquer um dos diversos problemas de saúde mental, como os transtornos de ansiedade propriamente ditos, mas também depressão, transtornos psicóticos, abuso de substâncias, entre outros. Pode também ser sintoma de problemas psicossociais frequentemente não revelados em uma primeira consulta, como violência domiciliar, assédio moral, disforia de gênero e, em crianças e adolescentes, bullying. Além disso, pode ser resultado de um problema clínico como hipertireoidismo ou arritmia cardíaca. Ou seja, sempre que diante de uma queixa ou observação de estado de ansiedade, recomenda-se que o médico faça uma ampla avaliação de possíveis causas psíquicas e clínicas.
A Classificação Internacional de Doenças (CID-10) da Organização Mundial da Saúde tradicionalmente classifica os transtornos de ansiedade em um capítulo que engloba “Transtornos Neuróticos, Transtornos Relacionados com o Estresse e Transtornos Somatoformes”. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria (DSM-5) propõe mudanças no entendimento da classificação dos Transtornos de Ansiedade. O DSM-5 propõe o desmembramento deste capítulo em cinco, dado a sugestão de estudos que estes seriam transtornos com fisiopatologia diferentes: Transtornos de Ansiedade, Transtornos Relacionados a Trauma e Estressores, Transtorno Obsessivo-Compulsivo, Transtornos Dissociativos e Transtornos de Sintomas Somáticos. Além disso, algumas condições relacionadas em outras categorias na CID-10 (como transtornos de ansiedade na infância) foram realocadas nestes novos capítulos. A tabela 2 ilustra como ficaram organizados os Transtornos de Ansiedade neste manual. Para um melhor entendimento de cada um destes transtornos, recomenda-se leitura adicional.
Tabela 2. Proposta do DSM-5 para reorganização das categorias F40-F48 da CID-10 –
Transtornos Neuróticos, Transtornos Relacionados com o Estresse e Transtornos Somatoformes.
Transtornos de Ansiedade Transtorno de Ansiedade de Separação Mutismo Seletivo
Fobia Específica Fobia Social
Transtorno de Pânico* Agorafobia
Transtorno de Ansiedade Generalizada*
Transtorno de Ansiedade Devido a Outra Condição Médica
Transtorno de Ansiedade Não Especificado
Transtorno
Obsessivo-Compulsivo e Transtornos Relacionados
Transtorno Obsessivo-Compulsivo Transtorno Dismórfico Corporal Transtorno de Acumulação Tricotilomania
Transtorno de Escoriação
Relacionado Induzido
Transtorno Obsessivo-Compulsivo e Transtorno Relacionado Devido a Outra Condição Médica
Outro Transtorno Obsessivo-Compulsivo e Transtorno Relacionado Especificado
Transtorno Obsessivo-Compulsivo e Transtorno Relacionado Não Especificado
Transtornos relacionados a Trauma e a Estressores
Transtorno de Apego Reativo
Transtorno de Interação Social Desinibida Transtorno de Estresse Pós-Traumático Transtorno de Estresse Agudo*
Transtornos de Adaptação*
Outro Transtorno Relacionado a Trauma e a Estressores Especificado
Transtorno Relacionado a Trauma e a Estressores Não Especificado
Transtornos Dissociativos Transtorno Dissociativo de Identidade Amnésia Dissociativa
Transtorno de Despersonalização/Desrealização Outro Transtorno Dissociativo Especificado Transtorno Dissociativo Não Especificado
Transtorno de Sintomas Somáticos e Transtornos Relacionados
Transtorno de Sintomas Somáticos* Transtorno de Ansiedade de Doença*
Transtorno Conversivo (Transtorno de Sintomas Neurológicos Funcionais)
Fatores Psicológicos que Afetam Outras Condições Médicas
Transtorno Factício (inclui Transtorno Factício Autoimposto, Transtorno Factício Imposto a Outro) Outro Transtorno de Sintomas Somáticos e Transtorno Relacionado Especificado
Transtorno de Sintomas Somáticos e Transtorno Relacionado Não Especificado
*Transtornos de especial importância na atenção primária.
Críticas feitas aos modelos classificatórios como o DSM ressaltam que suas categorias diagnósticas não contemplam a complexidade dos problemas de saúde mental, o que pode levar a uma compreensão reducionista da vida de uma pessoa, e inclusive a taxar com um excessivo número de “comorbidades”. Entretanto, é necessário recordar que, para efetuar um ou mais diagnósticos, deve-se realizar um cuidadoso estudo dos fatores biopsicossociais envolvidos no problema. Neste sentido, vale citar dois referenciais importantes para os profissionais de atenção primária: a medicina centrada na pessoa e a abordagem familiar.
A medicina centrada na pessoa é uma estratégia de comunicação estudada já há vários anos por Moira Stewart e colaboradores que defende um método de quatro passos no atendimento de uma pessoa: 1) explorar a saúde, a doença e a experiência da doença; 2) entender a pessoa como um todo: o indivíduo, a família e seu contexto; 3) elaborar um plano conjunto de manejo dos problemas e 4) fortalecer a relação entre a pessoa e o médico. Tal método tem mostrado impressionantes resultados, como maior satisfação para o médico, melhor uso do tempo, menos reclamações, menos exames, encaminhamentos e reconsultas, e maior adesão e eficácia em alguns tratamentos. Referenciamos seu livro para leitura adicional.
A abordagem familiar consiste em entender o significado das queixas de saúde mental no contexto do grupo familiar da pessoa. Tal abordagem pode auxiliar na compreensão da natureza dos problemas, e encontrar recursos para o seu enfrentamento dentro da própria família. Há diversas maneiras de fazer isso. Assim, incluímos neste módulo uma conferência sobre este assunto com um médico de família e terapeuta familiar que falará um pouco desta valiosa ferramenta para avaliação da vida emocional de uma pessoa.
Avaliação de queixas de ansiedade na prática clínica
Quando alguém revela sintomas de ansiedade em uma consulta é importante que o profissional saiba avaliar adequadamente não somente a natureza, mas também o impacto destas queixas. Estes dois fatores irão influenciar sobremaneira o manejo do problema. Uma avaliação cuidadosa possibilitará um diagnóstico situacional apropriado –incluindo a evidenciação de um ou mais problemas de saúde mental–. De uma maneira didática, pode-se sumarizar a abordagem das queixas de ansiedade em quatro passos:
1- Diferenciar ansiedade de euforia/irritabilidade/hiperatividade
Ansiedade é sinônimo de apreensão, uma sensação desconfortável e de angústia da qual a pessoa quer se livrar. Mas frequentemente as pessoas referem estar ansiosas quando na verdade estão experimentando outros sentimentos. Euforia é um estado de humor alegre e entusiasta –e geralmente a queixa não vem da pessoa, mas dos outros que notam essa alteração–. É comumente vista no Transtorno Bipolar. Irritabilidade, por sua vez, é um estado de raiva espontânea ou facilmente provocável. Pode ser característica da bipolaridade, mas também pode fazer parte de quadros de ansiedade ou depressivos, entre outros. Hiperatividade, por fim, é caracterizada por um estado de agitação psicomotora permanente, natural da pessoa, que necessariamente não reclama disso. Pode sugerir Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade ou mesmo um perfil de personalidade mais expansivo.
2- Avaliar a repercussão da ansiedade na vida da pessoa
Como já falado, sintomas de ansiedade podem ser parte de uma reação normal a um evento da vida. Frequentemente, se não há prejuízo claro para a pessoa, basta o profissional informar que as queixas são benignas e autolimitadas. No entanto, se houver indícios de impacto na qualidade de vida da pessoa ou sinais de problemas psicossociais ocultos, o profissional deve prosseguir a avaliação.
3- Esclarecer a origem ou etiologia dos sintomas de ansiedade
Um dos quadros mais frequentes em atenção primária são os sintomas de ansiedade desencadeados por dificuldades de adaptação a estressores diversos (ruptura conjugal, desemprego etc.) ou por estresses agudos graves (como assalto, sequestro ou perda traumática de ente querido). Estes são problemas categorizados como Transtornos Relacionados a Trauma e a Estressores. O subtipo chamado de Transtorno de Ajustamento, que pode cursar com sintomas de ansiedade ou depressão, aparece em alguns estudos como mais frequente que os próprios transtornos de ansiedade, e até três vezes mais comum do que depressão, em pessoas com doenças clínicas. Esse diagnóstico diferencial é importante porque, como este transtorno é autolimitado, o tratamento costuma ser predominantemente de apoio psicológico. Evitar o uso indiscriminado de medicamentos –especialmente benzodiazepínicos– pode ser importante para se prevenir problemas relacionados a estes, como efeitos colaterais ou mesmo instalação de dependência.
A propósito do apoio psicológico em crises de estresse, Eizirik e cols. sugerem a seguinte abordagem:
Escutar ativa e empaticamente a pessoa, procurando compreender a situação vivida.
Revisar como se desenvolveu a crise atual, de modo que a pessoa possa compreendê-la.
Identificar crises semelhantes no passado e o modo de resolução delas. Comprometer a pessoa em um esforço compartilhado para a resolução do
problema atual.
Apoiar passos práticos e realistas para resolver a crise atual.
Deixar de lado problemas crônicos e de personalidade, em um primeiro momento. Apresentar possibilidades terapêuticas e implementar o plano construído em
conjunto.
Outros problemas que podem originar sintomas de ansiedade também devem ser pesquisados, como o abuso de substâncias (álcool e outras drogas), a homossexualidade (ou mesmo disforia de gênero), os pensamentos obsessivos ou rituais compulsivos, por vezes vergonhosos, e os problemas de humor como a depressão. Por outro lado, pessoas que consultam demais devem fazer o profissional pensar em transtornos de sintomas somáticos. Ansiedade também pode ser manifestação prodrômica de quadros psicóticos como surtos maníacos ou de esquizofrenia. Por fim, não se pode esquecer de situações como simulação (para ganho secundário, como benefício social ou licença médica) e dos transtornos de personalidade –padrões inflexíveis de comportamento que diminuem a tolerância a frustrações–.
4- Caracterizar o transtorno de ansiedade específico, se for o caso
Descartando as outras causas dos sintomas, o profissional deve considerar um transtorno de ansiedade propriamente dito. Geralmente, as informações coletadas na anamnese são suficientes para pensar em um transtorno específico.
A tabela 3 relaciona estes transtornos conforme o DSM-5 e suas principais características diagnósticas.
Tabela 3. Transtornos de ansiedade.
TRANSTORNOS DE ANSIEDADE
Transtorno de Ansiedade de Separação
Medo ou ansiedade excessivos envolvendo a separação de casa ou de figuras de apego.
Mutismo Seletivo Dificuldade persistente para falar em situações sociais específicas nas quais existe a expectativa para tal (p. ex., na escola), apesar de falar em outras situações.
Fobia Específica Medo ou ansiedade acentuados acerca de um objeto ou situação (p. ex., voar, alturas, animais, tomar uma injeção, ver sangue).
Fobia Social Medo ou ansiedade acentuados acerca de uma ou mais situações sociais em que o indivíduo é exposto à possível avaliação por outras pessoas.
Exemplos incluem interações sociais (p. ex., manter uma conversa, encontrar pessoas que não são familiares), ser observado (p. ex., comendo ou bebendo) e situações de desempenho diante de outros (p. ex., proferir palestras).
Transtorno de Pânico Ataques de pânico recorrentes e inesperados. Um ataque de pânico é um surto abrupto de medo intenso ou desconforto intenso que alcança um pico em minutos, no qual ocorrem sintomas como palpitações, coração acelerado, taquicardia, sudorese, tremores ou abalos, sensações de falta de ar ou sufocamento, dor ou desconforto torácico, náusea ou desconforto abdominal, entre outros.
Agorafobia Medo ou ansiedade marcantes acerca de situações como uso de transporte público, permanecer em espaços abertos ou em locais fechados ou em uma fila ou ficar em meio a uma multidão ou, ainda, sair de casa sozinho.
Transtorno de Ansiedade Generalizada
Ansiedade e preocupação excessivas (expectativa apreensiva), ocorrendo na maioria dos dias por pelo menos seis meses, com diversos eventos ou atividades (tais como desempenho escolar ou profissional).
Transtorno de Ansiedade induzido por Substância ou Medicamento
Ansiedade desencadeada por uso ou abstinência da substância.
Em atenção primária, o Transtorno de Ansiedade Generalizada e suas consequências, como o abuso de benzodiazepínicos, é um dos quadros mais vistos. Por isso, selecionamos os módulos do BMJ Learning sobre estes temas. E, ao final, preparamos uma simulação, para ajudar na reflexão sobre estes importantes problemas de saúde. Bons estudos!
Referências
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. DSM-5: manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2014. 992 p.
SADOCK BJ, SADOCK VA, RUIZ P. Compêndio de psiquiatria: ciência do comportamento e psiquiatria clínica. 11ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2017.
STEWART M et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2017.
CASEY P, BAYLEY S. Adjustment disorders: the state of art. World Psychiatry 2011;10:11-18. EIZIRIK CL, AGUIAR RW, SCHESTATSKY SS. Psicoterapia de orientação analítica: fundamentos teóricos e clínicos. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2015.
Transtorno de Ansiedade devido a Outra Condição Médica
Existem evidências, a partir da história, do exame físico ou de achados laboratoriais, de que a perturbação é a consequência fisiopatológica direta de outra doença.
Outro Transtorno de Ansiedade Especificado
Categoria na qual encaixam-se quadros de ansiedade não incluídos nas outras categorias, mas que causam prejuízo significativo a ponto de causar transtorno. Por exemplo, ansiedade generalizada não ocorrendo na maioria dos dias.
Transtorno de Ansiedade Não Especificado
Categoria na qual encaixam-se quadros de ansiedade não incluídos nas outras categorias, mas que causam prejuízo significativo a ponto de causar transtorno.