• Nenhum resultado encontrado

Universidade de São Paulo Escola de Comunicações e Artes Departamento de Artes Cênicas

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Universidade de São Paulo Escola de Comunicações e Artes Departamento de Artes Cênicas"

Copied!
53
0
0

Texto

(1)

Universidade de São Paulo

Escola de Comunicações e Artes

Departamento de Artes Cênicas

Mariana Ferreira Martins

Os Filhos de Alba - (Relatos Cênicos de Infâncias Periféricas)

São Paulo/SP Dezembro - 2019

(2)

MARIANA FERREIRA MARTINS

Os Filhos de Alba - (Relatos Cênicos de Infâncias Periféricas)

Monografia de trabalho de conclusão de curso, co-orientada por Cauê Tanan, apresentada como requisito para aprovação na disciplina ministrada pela Profa. Dra Maria Lúcia de Souza Barros Pupo,

componente curricular do Curso de Licenciatura em Artes Cênicas da Universidade de São Paulo.

Área de concentração: Licenciatura

São Paulo 2019

(3)

Mariana Ferreira Martins

Os Filhos de Alba - (Relatos Cênicos de Infâncias Periféricas)

Monografia apresentada à Universidade de São Paulo, como parte das exigências para obtenção

do título de Licenciado em Artes Cênicas

São Paulo, 5 de dezembro de 2019

BANCA EXAMINADORA

_____________________________ Profa Dra Maria Lúcia de Souza Barros Pupo

_____________________________ Profa Carolina Angrisani

_____________________________ Prof. Dr. Felisberto Sabino da Costa

(4)

DEDICATÓRIA

À Dona Ana, minha vó, pois parte do que sou vem de tudo que ela foi. Aos Erês que foram a razão desta pesquisa. Aos meus pais Regina e Antônio por me darem a vida, o amor e o sustento tanto quanto foi necessário e possível.

(5)

AGRADECIMENTOS

À Dona Baiana por me dar o “sacode” necessário para iniciar o projeto “Os filhos de Alba”.

Ao Sr. Exu Tranca Ruas, por me acompanhar e levar os danados até a minha aula.

Ao Sr. Sete Sepulturas, aos meus Exus e Pombogiras por cuidarem de mim nesse período.

Aos meus Erês por estarem sempre comigo.

Ao Babalorixá Alexandre Meireles, ao Sr, Pena Branca e a toda a egrégora da Casa de São Lázaro por cederem espaço em nosso Ilê para ensaios.

Ao diretor e aos funcionários do Comenius, por cederem espaço para realização de aulas e ensaios.

Ao meu irmão Antônio por ceder espaço em seu salão para ensaios.

A cada um de meus alunos, aos moradores e amigos que contribuíram com histórias e relatos.

Aos colegas que se graduam também esse ano, pelo apoio mútuo. Sem vocês, não seria possível.

Ao amigo Cauê, que me co-orientou de maneira afetuosa e dedicada. À Carol Angrisanis, minha primeira professora de teatro, que está presente nessa banca. À Malu por seu olhar atencioso e assertivo. À amiga Paula por revisar este trabalho. Ao amigo Nemuel por me ouvir e motivar, cedendo um teto para que eu pudesse dormir e chegar à faculdade a tempo.

(6)

Aos meus companheiros de trabalho Victor Gimenez (Thato Ribeiro), Andressa Santos, Marcela Rangel, Luiz dos Santos, Mariana Bitencourt, João Marcos Godoy e Jhennyfer Santine, por toparem esse desafio comigo e não desistirem de mim, como eu jamais desistiria deles.

(7)

RESUMO

O presente trabalho busca investigar através do teatro, a(s) infância(s) na Favela da Alba.

Construindo através da troca entre o núcleo artístico e as crianças que fazem aula no projeto e os moradores das redondezas, narrativas que aqui serão apresentadas em forma de relatos, misturando dados reais e dados fictícios.

Através dos relatos, provocar para a percepção de infância(s) aqui chamadas periféricas, e buscar refletir sobre suas particularidades e a necessidade de serem pensadas. Fazendo um levantamento de histórias que nos contem também um pouco da história da região da Favela da Alba.

(8)

SUMÁRIO

Prólogo: “Pelos becos da Favela da Alba” ...p.1

1. Projeto “ Os Filhos de Alba” ...p.9

2. Infância(s) ...p.14

3. “Histórias de verdade, histórias de mentira” ...p.23

4. Relatos ...p.26 4.1 “Pipa, bolacha e pega-pega” ...p.26 4.2 “Bolacha” ...p.26 4.3 “Pega-pega” ...p.29 4.4 “Pipa” ...p.30 4.5 “Piolho” ...p.31 4.6 “Córrego” ...p.34 4.7 “Castelo de madeira” ...p.36 4.8 “Carro” ...p.37

Epílogo : “Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar” ...p.41

(9)

“PELOS BECOS DA FAVELA ALBA”

Abro os olhos e me sinto cansada, as pálpebras pesam mil quilogramas cada. Pigarreio e desligo o despertador do celular, enrolo e como se tomasse força levanto de uma só vez falando para mim mesma: “ Vamo lá”. Recordo das manhãs em que tinha 12 (doze) anos e acordava ainda mais cedo, ansiosa para chegar na aula em pleno sábado, onde encontraria a Carol que foi minha primeira professora de teatro, e os demais colegas. Isso tudo na E.E. Professor João Amos Comenius, escola que fica na Vila Santa Catarina, escola em que estudei e que hoje recebe o projeto “Os Filhos de Alba”, assim como há 13 (treze) anos recebia um projeto de teatro similar, na grade do “Programa Escola da Família” que se mantém de pé mesmo com tantos cortes de verba pública, graças a ação de voluntários.

Imagino quantas crianças hoje, 13 (treze) anos depois, poderiam estar acordando como eu acordava, dessa vez para encontrar a mim, a Andressa, o Thato e a outras crianças. Lembro de um dia, no semestre anterior, quando saía da casa do meu então companheiro às 8h50 de carro. Eu precisava passar em casa e pegar os materiais da aula, que se iniciaria às 10h. No trajeto (cerca de 5 minutos), vi 3 (três) de meus alunos chegando na escola às 9h da manhã... Sorridentes, saltitantes e ansiosos. Uma hora antes do início da aula. Sorrio com a lembrança, e pego em cima da mesa da cozinha os lambes impressos pela Marcela, atriz do nosso núcleo artístico que também fez teatro comigo há 13 (treze) anos.

Marcela é mais que uma antiga colega, uma inspiração. Alguém que admiro muito. Lembro de quando era criança e via a Marcela, apenas 2 (dois) anos mais velha que eu, atuando e como eu gostava de tudo que ela fazia, os jogos, os improvisos, tudo. Parece que hoje nada mudou, vê-la em cena tantos anos depois (um reencontro, já que não nos falávamos há muito), reaviva dentro de mim todas as motivações para iniciar esse projeto.

(10)

formou, tem um trabalho digno, um filho lindo e ainda assim topou fazer parte deste projeto, acende uma luzinha lá dentro, no coração, os mais românticos diriam. Marcela topou fazer teatro para contar as histórias de infâncias como as nossas, e também das que não tiveram o mesmo curso e, mais do que isso mostrar que as infâncias aqui, na “Favela da Alba” e nas redondezas, não somente existem mas resistem.

Isso tudo me dá forças para virar o copo de café amargo e continuar o meu trabalho. Penso em como quero as aulas cheias de crianças, e para que isso aconteça precisamos movimentar, precisamos colar os lambes e distribuir os cartazes e folhetos que ela imprimiu. Os lambes dizem frases escolhidas pelos atores e por mim:

“Quem são os filhos de Alba?” (essa resposta começaria a se esboçar ao longo do processo, que está previsto para terminar em Abril/2020)

“Até na enchente as crianças brincam.” (frase encontrada em notícias de jornal sobre a região e que já começava a nos dar pistas de quem seriam esses filhos da favela Alba)

“Cada bala perdida vira uma estrela cadente”. (frase poética dita em um ensaio ao fazer jogos teatrais tendo como material poético histórias de crianças que morreram na região da favela da Alba)

Dobro a esquina da rua sem saída em que moro, travessa da Alba. Olho o terreno baldio, abandonado, cheio de lixo, onde tantas crianças vem empinar pipa nas férias e dias de calor. “Bica”, “Divinéia”, “Vietnã”1, “Alfaia” e logo ali a Alba, a Souza… Tudo

pertinho, de 5 (cinco) a 15 (quinze) minutos de distância da Mascote. A Mascote é um bairro rico e cheio de escolas particulares, condomínios e casas chiques. Dobrando a esquina da rua de casa lembro da pipa. Lembro da pipa. Lembro do dia em que virei um número estatístico, ali, na Travessa da rua Alba, Zona Sul de São Paulo, Vila Santa Catarina. Mas sobre a Pipa, vocês lerão mais adiante. Continuo minha

1 “Bica”, “Divinéia”, “Vietnã” são nomes informais de Comunidades na região da Favela da Alba.

(11)

caminhada.

Encontro meus parceiros de trabalho. Thato (nome artístico do Victor) meu melhor amigo, ator no núcleo artístico, assim como a Marcela. Meu parceiro de dúvidas, inquietações, angústias e vontades de desistir que mandamos embora com a necessidade de fazer valer cada história que escutamos e vivemos. Filho do já falecido Edmilson, porém lembrado por todos que moram e já moraram na Souza, rua paralela com a Alba. Thato é homem, negro, gay, ator, morador das redondezas. Filho do Edmilson… O Thato resiste mas parece que no final das contas, havia muito mais do Edmilson no Thato do que ele mesmo podia imaginar. Mais que a cor, mais que os traços. Uma força para falar de onde veio com garra, com amor, com respeito e reverência às histórias de crianças que assim como ele se fizeram ali, na região da Favela da Alba, e as que não se fizeram…as que assim como Edmilson, são falecidas. Juntos estamos eu, Thato, Marcela, Andressa, Luiz e Mari.

Distribuímos o material impresso entre nós. O sol está a pino no momento que começamos a descer a Alba. Descemos a ladeira e encontramos muitas pessoas passando. Ainda juntos cada um vai entregando panfletos conforme sente vontade. Entro em um salão de beleza onde crianças sentadas esperam suas mães, tias, irmãs... Entrego panfletos para elas. Uma menina de aproximadamente 7 (sete) anos me pergunta:

“Tia, é de graça?”

“É sim meu amor, espero você lá”. - Respondo com um sorriso no rosto, já imaginando ela na aula.

Andamos mais um pouco, passamos pela entrada do córrego, muita gente andando, comércios tão improvisados quanto os barracos, gente sentada em cadeiras à beira da rua. Conversas e observação. Os olhos nos seguem. Penso em todas as vezes que por ali passei sozinha, nas vezes que fugia para Alba para chorar, exausta e me

(12)

sentia bem por não ser “notada”… os olhares que por vezes pousavam em mim eram de apoio, como se todos ali entendessem que chorava porque a vida é de fato exaustiva. Os olhares agora eram muito mais de curiosidade para saber o que estávamos fazendo. Chegamos à ponte por onde vemos amplamente o córrego passar, e lembro de um outro dia, em que tiramos uma foto e eu me senti estranha por parecer turista na minha “quebrada”2, mas valeu a pena, pois essa mesma foto se

transformou em um desenho da Andressa e o desenho agora estampava nossos cartazes e panfletos. Decido subir até a rua em que morei, outra travessa da Alba, onde existe um beco por onde corta-se caminho até a Souza. Digo à Andressa:

- “Eu morava ali… mas o muro antes era amarelo.”

Entramos no beco e logo na primeira casa entrego panfletos para duas crianças que estavam com a tia. Duas meninas.

“Tia, é de graça?” - Uma delas me pergunta.

A pergunta vem novamente de uma das crianças. Que assim como a anterior, com menos de nove anos, já se preocupa com o fato de não poder pagar. Entramos mais no beco. Pessoas nos olham, não quaisquer pessoas, os olheiros3 nos olham, e tudo

está bem. Já sabiam da nossa chegada desde que descíamos a ladeira. Um bar em um beco de meio metro de largura, pergunto a uma moça:

“ Posso colar um cartaz aqui, moça?”

“Pode, é do teatro é?” - A moça de dentro do boteco responde.

“É sim” - Respondo ainda me acostumando com a dinâmica.

2 Quebrada: dialeto informal que designa localidade, favela.

3 Olheiro: gíria pela qual são chamadas as pessoas que trabalham para o tráfico de drogas, avisando

quando há algum problema ou situação diferente na comunidade.

(13)

A velocidade das notícias de quem entra e quem sai é maior do que os nossos próprios passos.

Continuamos até a ladeira que sai na rua Souza. A ladeira é a rua onde mora a família da Tia Generosa, que há 20 anos iniciou a festa das crianças, para agradecer pela recuperação dos gêmeos, que hoje em dia, ninguém sabe direito quem são. Assim começou a festa de “Cosme e Damião” que acontece anualmente na Souza. Hoje se chama “Festa das Crianças” e é regada a muito doce que alguns hoje negam ser de “Cosme e Damião”. Mas todos que ali moram, sabem que foi por essa tradição que a festa começou.. Aponto pra casa da família da Tia Generosa e digo:

“É aqui que mora a família da fundadora da “Festa das Crianças”. No dia que a gente veio eles tavam todos desconfiados, falando pouco, do portão pra fora. O Victor falou que era filho do Edmilson… pronto! Abriram o portão, pediram pra entrarmos, separaram foto… contaram histórias… uma das mulheres contou que pegou o Victor no colo (risos).

E passando pela Souza, não tem como não lembrar do Edmilson, o pai do Victor. Edmilson mesmo falecido nos abriu muitas portas e eu não poderia por ali passar sem lembrar dele, que eu sequer conhecia, mas de quem ouvi falar um bocado. Todos gostavam dele por ser gentil e sempre querer ajudar a todos. E me lembro também da mãe do Victor, Alessandra. Que o criou apesar de muito custo, afastado de um universo no qual nenhuma criança deveria estar inserida, mas aqui estão, e cá estamos.

Passamos em frente uma igreja evangélica, deixo alguns cartazes e panfletos, a pastora nos convida a vir um dia a fazer atividades ali. Agradecemos o convite e seguimos. Descemos a rua até encontrar um outro beco, esse daria no campinho, espaço criado há muitos anos pelo crime organizado e onde hoje ocorrem bailes funk quase que semanais. Passamos o beco estreito e nos dividimos para cobrir uma área maior. Todos os barracos abertos e um cheirinho de alho fritando. Uma mulher

(14)

conversa com outra porta com porta, quase não há espaço para passar… Abrem caminho e continuam a conversa. E assim seguimos entregando panfletos para as crianças que encontramos no caminho e que não são poucas em um sábado de Sol.

O cheiro de comida sobe, em alguma casa alguém começa a preparar o arroz, e o som de panela de pressão no fogo indica que também terá feijão. Crianças passam a todo tempo, algumas muito pequenas, bebês de 2 (dois) anos acompanhando seus irmãos maiores de 6 (seis) anos ou mais. Olho para Andressa, e é quase impossível decifrar o seu rosto, um misto de curiosidade com descoberta, atenção…

São muitos detalhes de um universo muito diferente do dela.

Andressa é uma atriz e assistente de aula incrível, compartilhamos o anseio por ver a aula cheia de crianças. Ela mora em Itapevi e vir até a Alba dar aula para crianças, como um dia fomos, para ela significa “algo a mais”, nas palavras dela mesma. Palavras que talvez ela saiba nomear ao longo do processo ou talvez sequer seja necessário. O que ela vive dizendo é que sábado de manhã, acordar super cedo para estar aqui às 9h30 é muito mais fácil que qualquer outro dia em qualquer outro horário. Fato curioso e provocativo, já que nos outros dias temos ensaios apenas do núcleo artístico que dirijo. Ao olhar para ela, sorrio, tropeço e caio em câmera lenta enquanto meus colegas riem. Levanto e rimos.

O beco abre, fica mais largo e antes de entrar no próximo estreito, um bar. Uma mãe com muitas crianças ao seu redor pega o panfleto curiosa, a menina de aproximadamente 6 (seis) anos pergunta:

“Tia, é de graça?”

“ É sim meu amor” - respondo novamente, já me acostumando à pergunta recorrente.

Do lado esquerdo o córrego ralo corre, fazendo barulho suave, muito menos perceptível com tanta criança rindo, brincando, gritando e se esgueirando nos becos.

(15)

O cheiro é de molhado, de roupa guardada. Mas tem um certo frescor vindo do céu e casas abertas. O tempo começa a mudar. Passamos por cima do córrego por uma tábua bamba, velha e duvidosa, mas muito funcional. Roupa pendurada em cima do córrego, nos varais improvisados e o cheiro de amaciante se mistura ao da comida. Lembro da minha vó:

“A gente é pobre mas é limpo. E na nossa panela sempre vai ter um arroz, um feijão…”

Chegamos no campinho onde crianças estão jogando bola, poucas crianças pro tamanho do campo. À direita do campinho tem 2 (dois) botecos e 1(um) na ponta dentro do beco. Saímos novamente na Alba, e dessa vez subimos a ladeira para entrar em outro beco. Avisto a Marcela e o Luiz falando com uma moça, nos reencontramos sem planejar. Ouço de longe o Luiz perguntar:

“Moça, como faz pra chegar na rua?”

“Ó… segue direto no beco e quando ver um monte de gente olhando pro alto é só virar lá”. - a moça responde.

Nos juntamos e seguimos andando. Pensando no porquê as pessoas estariam olhando pro alto, ainda mais agora que começava a garoar. Chegamos e de fato há pessoas olhando pro alto, homens, mulheres, crianças. Se quer piscam, uma ou outra olha para a gente em lapsos, e sorriem. Começa uma garoa rala, espaçada… e os rostos todos voltados pro alto, para a rua de onde chegam pessoas. A garoa não afugenta ou impede sua tarefa, que é olhar… O que se vê quando se olha sempre pro alto, pegando sol, pegando garoa... poderia ser poético se não fosse uma condição tão intrínseca desses moradores que trabalham muitas vezes da porta de suas casas.

Voltamos a sair na Souza, é dia de Samba na laje. O Luiz se anima em pedir um litrão no bar de cima. Já colamos os lambes, entregamos panfletos e é dia. A rua Souza agora está fechada pra começar o samba. Estão servindo uma feijoada cheirosa e até

(16)

a garoa rala decide cessar.

O Luiz é um colega de faculdade, está no projeto contribuindo com a dramaturgia e assistência de direção. Gosta de música boa, gosta de samba, curte o espaço e observa. A escuta que ele tem é absurda, de conseguir se envolver no projeto e transformar algumas das minha dúvidas em palavras, em poemas, em texto. Gente chega, gente vai, gente vai e volta… e o Luiz pega cerveja no bar que fica mais na parte de cima da rua e volta. Fico imaginando os dias em que ele vem dar rolês por aqui sozinho, só pra tomar um refrigerante e ficar por ali. O Luiz é assim. Ele não mora na Alba, mora na Vila Santa Clara e vem de lá pra cá somar com a gente… panfletar, trocar ideia, construir. E nesse momento, olho pra ele e desejo que fique, que fique ali com a gente tomando um “litrão”4, que fique lá com a gente entrando nos becos,

ouvindo histórias e através de jogos construindo juntos esses relatos e trazendo um pouco dele.

Cantamos o samba pra Ogum, e dançamos. A Mari ri… ela já conhece a região, de tanto passar pela Alba de ônibus para ir para sua casa no Jabaquara, decidiu descer e também ficar. Ela fica com a gente, samba com a gente, canta com a gente, e dá uma ajudinha na produção que cá entre nós é uma mão na roda.

A hora passa que nem vemos, terminamos mais uma cerveja e cada um segue seu caminho… Andressa passa pelo beco mais uma vez e pega o ônibus para o metrô, hoje ela chega em Itapevi antes da meia noite. Luiz segue para Vila Santa Clara. Mariana segue pro Jabaquara. Eu, Marcela e Victor andaremos 10 (dez) minutos para chegarmos nas nossas casas

4 Litrão: forma popular como é chamada a cerveja vendida em garrafas de 1 litro.

(17)

PROJETO “OS FILHOS DE ALBA”

O Projeto “Os Filhos de Alba” iniciou-se a partir do anseio por desenvolver um trabalho artístico e afetivo na região em que moro, de forma a trazer à tona histórias de infâncias periféricas contadas através do teatro. Com isso, mostrar como essas infâncias resistem a uma estrutura social onde o conceito de infância apenas se aplica a classes dominantes e abastadas, colocando crianças periféricas ainda mais à margem.

Trata-se de um projeto que a partir do segundo semestre de 2019 conta com duas frentes de trabalho que se complementam, sendo uma delas a de aulas de teatro para crianças e jovens cuja faixa etária varia de acordo com a demanda do semestre (as turmas são renovadas semestralmente podendo as crianças e jovens se inscreverem a cada novo semestre).

No segundo semestre de 2018, período em que o projeto efetivamente não havia se estabelecido, a turma era composta maioritariamente por crianças entre 7 e 12 anos. Já no primeiro semestre de 2019, que abarca o período de março a junho, a turma contava com a participação de 10 alunos entre 10 e 15 anos. E a turma atual iniciada em Agosto/2019, prevista para término em Abril/2020 e que passa efetivamente a adotar o nome do projeto “Os filhos de Alba”, conta com a participação de 10 crianças entre 7 e 12, e 4 adolescente na faixa de 14 anos. As aulas acontecem no espaço da E.E. Professor João Amos Comenius, aos sábados das 10h às 12h, já que a escola fica aberta em função do Programa Escola da Família5.

A E.E. João Amos Comenius fica localizada na Av. Estevão Mendonça, 431, zona sul

5 O Programa Escola da Família, consiste na abertura das escolas públicas estaduais aos finais de semana, com o propósito de atrair os jovens e suas famílias para um espaço voltado à prática da cidadania, onde são desenvolvidas ações socioeducativas, com o intuito de fortalecer a auto- estima e a identidade cultural das diferentes comunidades que formam a sociedade paulista Lei 11.498, de 15 de outubro de 2003, Artigo 2°.

(18)

de São Paulo. Foi escolhida para sediar o projeto, devido ao fato de sua localização ser privilegiada no sentido de estar ao centro do bairro e receber alunos das diversas favelas existentes na região e também alunos que não moram nas favelas. Além de ter sido o local onde iniciei minhas primeiras aulas de teatro há 13 (treze) anos, também da grade do Programa Escola da Família. O diretor da escola regular é quem responde legalmente pela cessão do espaço, contando com a supervisão da coordenadora pedagógica do programa, sendo de minha responsabilidade a execução do projeto, e com o apoio e observação dos demais membros do projeto Thato e Andressa, que foram citados anteriormente no capítulo “Pelos becos da Favela Alba”.

Em ambas as frentes, utilizamos as histórias trazidas pelas crianças e jovens como material para jogos e dispositivos cênicos, histórias que ocorrem no seu dia a dia. Sendo esses relatos de natureza mista, no sentido de trazer não somente a violência, precariedade e dificuldades enfrentadas pela população periférica no dia a dia, mas também expor momentos de alegria, jogos, brincadeiras, uso potente da imaginação ao ressignificar espaços, como por exemplo o córrego, que vira cenário para diversas aventuras. Algumas serão relatadas nos capítulos adiante. Na frente de trabalho com as aulas das crianças, temos trabalhado nossa escuta.

O trabalho da outra frente, que chamarei aqui de núcleo artístico, consiste em através de dispositivos e princípios do Teatro do Oprimido de Augusto Boal (BOAL,2008), compor por meio de jogos, narrativas cênicas que contem histórias relacionadas à infância na região da favela Alba, tomando aqui por “favela da Alba”, um território ampliado que abrange diversas outras comunidades que se localizam muito próximas, com deslocamento de no máximo 15 minutos andando.

Nessa frente, dirijo um processo de pesquisa cênica, que através dos materiais levantados nas aulas com as crianças, observações, pesquisas teóricas e de campo com caráter informal na região, contará em forma de espetáculo a ser apresentado na E.E. João Amos Comenius e em outros pontos da região ainda a serem escolhidos,

(19)

não apenas essas histórias de crianças que viveram e morreram na região, mas também as histórias de pessoas que hoje são adultos, moradores e ex- moradores que de alguma forma, não importando o grau, tiveram sua infância afetada pelas condições periféricas as quais estavam sujeitos.

A região da Favela da Alba

A Rua Alba localiza-se na região Sul da cidade de São Paulo e tem a extensão de aproximadamente 3 km, iniciando próximo ao metrô Jabaquara e terminando próximo a Avenida Cupecê, conforme o mapa abaixo:

Mapa da região da Favela da Alba/ fonte: google.maps(2019)

A Rua Alba, é cercada por comunidades, onde centenas de famílias habitam em barracos que podem variar entre construções de madeira e mesmo alvenaria. Ao longo de sua extensão, pode-se encontrar paisagens muito divergentes. Na parte mais próxima ao centro da rua, onde no mapa pode ser localizado à altura da Vila Babilônia,

EIRA ,/'~ ... EGEP MINERAÇÃO ~ue leiro ilrtln rKing Q Q Nicom Q VILA ALEXANDRIA

i.;rupo ,ieury V Q Parque do Chuvisco PARQUE JABAQUARA Grupo Fleury • n Sede Administrativa '1" ' ... 011lci<"" JABAQUARA

Conceição

Fazend1nha Estação Natureza ·,,, ~,"'6,9 ft Paróquia Nossa VILA PAULISTA ALBA l!l,HO T Un HÁCARA ITE ALEGRE ,,>f

Y Senhora do Perpétuo ...

VILA MASCOTE

,l

. / Colégio São Sabas 9

RDIM LOS INGELES

Coléi:)1ô EM1lié l!'!t

de Villeneuve Y

Correios 9

r Pnmíc1a dos Pães

·Jd Prudencia ALEGRIA

ca:~~

i,!1~;

,

:;

'v 9 Stamma Fitness TAQUARITIBA HENRIQUE MINDLIN

n Escola Estadual João

y Amós CôMén1uS 9 Sod,e Doces DOCCA

.

' JARDIM ORIENTAL_._... Vaz Distribuidora n .,.,,..<P" de Doces Y UBSGeri Ferreira/ CEC

~ Hospital Mun1< T Arthur Ribeiro

NOVA MINAS J,E,RAIS

a ,.. a Ayumí Supermercados f

· Loja 5

Go gle AFONSO XIIT PINGO DE

(20)

-é onde conseguimos ver o córrego. Neste ponto, pode-se visualizar barracos mais à frente da comunidade e comércio periférico. Em outros pontos vemos casas mais “pomposas”, comércio que segue a mesma linha e não vemos barracos.

É preciso pautar que, o que é comumente chamado de “Favela da Alba” não é apenas uma favela, mas um conglomerado de favelas, que por facilidade, hoje, principalmente pelos meios de comunicação, nomeia-se apenas como “Favela da Alba”. Logo, o que chamamos nesta monografia e no projeto “Os Filhos de Alba” como “região da favela da Alba”, abrange mais de uma favela, cujos limites geográficos e imaginários hoje se misturam, mas que tem nomes diferentes e informais devido às histórias de divisão territorial que um dia estiveram presentes na região.

A Favela da Alba, bem como os seus arredores, dispõe de poucos aparelhos culturais, as escolas da região não dispõe de aulas de teatro em suas respectivas grades curriculares. A região é conhecida pelas aparições e citações em diversas notícias de jornal sobre mortes, violência policial, violência doméstica, roubos, perdas, e dor. Ao passo que conta com uma numerosa população de crianças, que podem ser vistas brincando na rua, nos becos, vielas, entre carros, bares, no córrego e redondezas. As perguntas: O que fazem essas crianças e jovens? Em que se resumem suas horas livres? Que memórias elas têm em relação às perdas que se dão no espaço em que vivem? São respondidas por elas mesmas, brincando em cima do desenrolar de suas próprias histórias e das demais que elas podem observar.

Está evidente que assim como crianças de zonas emergentes, estas crianças continuam a brincar, a ter uma infância, mas questionamos aqui, qual tipo de infância, e como crianças periféricas são vistas como “menos crianças” do que crianças inseridas em outros contextos, como pudemos expor nos capítulos anteriores na pesquisa da própria origem do conceito de infância, que sempre foi aplicado à crianças de classes dominantes, não havendo um olhar para crianças pobres e periféricas que por vezes precisam trabalhar dentro e fora de casa contrariando o estatuto da criança e do adolescente, que por si, não garante que crianças marginalizadas tenham as condições necessárias para viver o conceito de infância.

(21)

Não buscamos aqui romantizar essas relações, muito pelo contrário, não optamos por demonstrar apenas as relações de dor e perda, justamente por acreditar que a contraposição que se dá ao trazer à tona as relações de afetividade com o espaço, demonstra e traz uma potência lúdica de ressignificação, que resiste e precisa ser olhada para poder reconhecer e amparar, não apenas a dor pela dor, sem sequer lutar por aquilo que os anima, mas buscar no meio do caos as alegrias e afetos, conhecer suas motivações e capacidade de resistir e ampliar seus olhares. São esses os reais motivos de usar o teatro como ferramenta de luta, não porque a opressão existe na região, mas porque é preciso vencê-la, porque a resistência dessas infâncias nos mostra que o afeto e as possibilidades de uma infância periférica com melhores condições existem e precisam ser garantidas.

(22)

INFÂNCIA(S)

"A infância não é uma experiência universal de qualquer duração fixa, mas é diferentemente construída, exprimindo as diferenças individuais relativas à inserção de gênero, classe, etnia e história. Distintas culturas, bem como as histórias individuais, constróem diferentes mundos da infância." (FRANKLIN, 1995, p 7)

De uma maneira geral, ao perguntar à pessoas do meu cotidiano “O que é infância?” obtenho respostas um tanto quanto clichês, porém com certa verdade a partir das vivências dessas pessoas. “Divergente” é uma boa palavra para definir os lugares por onde tenho transitado e consecutivamente, as pessoas que tenho encontrado. Em um único dia, lido com pessoas de 3 (três) a 76 (setenta e seis) anos, pessoas que moram em favelas, e pessoas que moram em condomínios de luxo na cidade de São Paulo.

Essas pessoas tendem a repetir os mesmo padrões em suas respostas sobre o que é infância, ainda que na prática, as infâncias que as rodeiam não aconteçam da forma romântica que expressam em suas falas. Onde por vezes, essas ranhuras de discurso ficam mais evidentes nas falas mais periféricas, tanto de crianças quanto de adultos, onde todos expressam que a criança brinca, mas ninguém nega que as crianças moradoras de favelas (mais especificamente da “Favela da Alba” e outras favelas próximas, onde todo esse trabalho têm acontecido), trabalham.

De uma forma ou de outra, seja puxando carroça antes ou depois da escola, seja contribuindo com tarefas domésticas um pouco além de suas forças ou mesmo abrindo mão do período escolar para ajudar com as necessidades da família, existem crianças nessas favelas, que trabalham.

A ranhura de discurso nas bocas periféricas, são ranhuras que, se comparadas ao modelo romantizado de infância ocidental, tal qual veremos um pouco mais abaixo, pois coloca as crianças como seres “inocentes” que precisam de uma tutela, porém que no contexto das periferias, muitas vezes, “arcam” com responsabilidades que, idealmente seriam apenas dos adultos. Essa ranhura não isenta o outro lado, que não

(23)

precisa sequer pensar em infâncias que se dão longe dos seus olhos. As infâncias da “Favela da Alba” pouco ou nada lhes diz respeito, a única infância que existe, é aquela que eles alcançam, apartada da vida adulta e protegida em níveis variáveis de certas informações. Enquanto na favela da Alba, crianças ajudam a retirar água de seus barracos quando o córrego transborda, as crianças com quem tenho contato em condomínios de luxo, sequer sabem o que é um barraco.

A visão que temos hoje do que seja criança é ligada, naturalmente, ao nosso contexto histórico, social, científico (epistemológico) e cultural. Estamos habituados a conviver, pelo menos em certas classes sociais, com uma infância apartada da vida adulta (do trabalho, da sexualidade, da política etc), habitando um universo delimitado por assuntos escolares, certo vocabulário, certas brincadeiras e certos assuntos. Em outras épocas, existiram outras crianças, tratadas de outras formas, ocupando outros espaços dentro da família e da sociedade. No período medieval, como vimos, crianças e adultos trabalhavam duro. À noite, sentavam-se lado a lado e juntos deliciavam-se com as mesmas histórias, participavam das mesmas festas e, pelo menos em tese, estavam sintonizados com as mesmas inquietações. Se examinarmos a vida da criança pobre, habitante de uma favela, hoje, encontraremos situação similar. Num outro extremo, em nosso período histórico e em certas camadas sociais, podem ser encontrados jovens com mais de vinte anos de idade sem noção do que seja o trabalho ou o exercício da cidadania. (AZEVEDO,1999 , p 6)

No trecho acima, Ricardo Azevedo compara a infância periférica com a forma que se dava o trato com as crianças no período medieval, o que pode gerar um certo desconforto quando não encaramos ou vivenciamos a forma com que essas infâncias de fato acontecem. O que chama a atenção no trecho é a forma como o olhar sobre a infância está atrelado a mais de um fator, e a classe social é determinante para esse olhar. As infâncias na Favela da Alba e o trato a essas infâncias são fruto de uma conjuntura, que não encerra-se apenas no contexto inserido, mas nos olhares que vem ou deixam de vir de fora desse contexto. Esses olhares podem muitas vezes ser de exclusão e apagamento, o que torna-se preocupante se levarmos em conta o fato

(24)

de que estamos caminhando, no Brasil, para a construção de uma Sociologia da Infância, que precisa, em um mundo ideal, englobar a visão de quem vive essa realidade.

A sociologia da infância como campo de estudo tem se desenhado a partir do questionamento do seu objeto e o que pretende-se construir somando-se a outros campos do conhecimento (ROSEMBERG, 2003). Com isso já começamos a tomar consciência do quão importante pode vir a ser este trabalho, sobretudo o projeto “Os Filhos de Alba”. Que através do olhar do teatro, pode trazer relatos cênicos da existência dessas diversas infâncias e aspectos particulares de como se dão. Através das narrativas diversas não só de moradores adultos dessa região periférica, mas também da construção narrativa a partir de jogos realizados com as crianças da região, e com núcleo artístico que se debruça sobre o tema com a intenção de dar vida a um espetáculo teatral. Trazemos aqui, em forma de cenas, uma espécie de jogo dramatúrgico elaborado com essas narrativas que evidenciam essas infâncias e seus aspectos mais singulares.

A importância de cruzar olhares e construir uma dramaturgia que tenta englobar diversas visões é de principalmente, e sobretudo, não deixar de dar voz aos próprios moradores da Alba, e por moradores, inclui-se aqui, as crianças. Jogar, e através do jogo, criar novos universos e formas de lidar com as adversidades. Utilizando o teatro como mais uma arma de resistência, já que o teatro é uma arma carregada (BOAL, 2013), que essa arma gere a aproximação da Favela da Alba com a Universidade de São Paulo (USP), e contribua com os questionamentos da Sociologia da Infância, a partir do jogo teatral. Que essas infâncias, no plural, estejam inclusas.

“12 de outubro de 2001, Dia das Crianças Várias festa espalhada na periferia

No Parque Santo Antônio hoje teve uma festa Foi bancada pela irmandade, uma organização

(25)

Tavam confeccionando roupa lá no Parque Santo Antônio, lá Lutando, remando contra a maré

Mas tá lá, tá firme

Tinha umas 300 pessoa no, na festa das crianças Comida, música

Tinha um grupo de rap de uma menininha de 10 ano cantando muito Aí saímo de lá voado

E fomos numa outra quermesse de rua também na Vila Santa Catarina Lá do outro lado da Zona Sul, quase no Centro

E chegamos lá a festa num tinha começado ainda Aí no caminho nós passamos por uma favela assim

E trombamos uns molequinho jogando bola e tal e começamos a provocar "Ei moleque, ce é santista, tal"

"Não, eu sou corintiano"

Eu falei, "ei, Marcelinho vai rebentar vocês"

Os moleque vindo naquela idéia de jogo, eu comecei a pesar do lado dos moleque

"E aí, mano, e aí, tá estudando e tal"

Aí o moleque falou assim "ih, esse aqui hoje xingou a mãe dele" Aí eu falei assim, "Porque você xingou sua mãe?"

"Ah, porque..." Não, nem foi isso, ele falou assim, eu falei

"Ganhou, cês ganharam presente?", Eu perguntei, num foi não, Neto!? "Cês ganharam presente?" Aí ele falou, "Ganhei foi tapa na cara hoje" Eu falei "Porque você tomou um tapa na cara?"

"Ah, minha mãe deu um tapa na minha cara Foi isso que eu ganhei, não ganhei presente não" Falou assim, ó, bem convicto mesmo

Aí eu falei assim "Porque você tomou um tapa na cara?" "Ah, porque eu xinguei ela"

"Mas porque você xingou ela?"

"Lógico, todo mundo ganhou presente e eu não ganhei porque?"

Aí eu fiquei pensando, né mano como uma coisa gera a outra, isso gera um ódio

O moleque com 10 ano tomar um tapa na cara no Dia das Crianças

Eu fico pensando quantas morte, quantas tragédia em família, o governo já não causou

(26)

Longe do pai, longe da mãe, dentro de cadeia Por culpa da incompetência desses daí, entendeu!? Que fala na televisão, fala bonito

Come bem, forte, gordo, viaja bastante Tenta chamar os gringo aqui pra dentro Enquanto os próprio Brasileiro tão aí, ó jogado No mundão, do jeito que o mundão vier

Sem nenhum plano tra-traçado, sem trajetória nenhuma, vivendo a vida, só E o moleque era mó revolta, vai vendo, moleque revolta

E ele tava friozão, jogando bola lá, pá

Como se nada tivesse acontecido, ali marcou pra ele

Talvez ele tenha se transformado numa outra pessoa aquele dia Vai vendo o barato, Dia das Crianças”

(RACIONAIS MC’S, 2001)

Para abordar em forma de relatos cênicos as infâncias periféricas, tendo como recorte a “Favela da Alba” e região, é necessário e desejável voltarmos nosso olhar para a origem do termo infância e suas implicações ao contexto a ser apresentado. Isso porque, o objetivo deste projeto inicialmente era apenas relatar essas infâncias e evidenciar a forma precária e de abandono nas quais elas se dão, porém ao longo do projeto ficou cada vez mais evidente o quanto essas infâncias se diferenciavam do imaginário de infância vigente em nossa sociedade, o quanto a realidade dessas infâncias choca-se com o ideário de infância encontrado em alguns dos autores que nortearam essa pesquisa, mas que sobretudo ficou latente a forma como essas crianças brincam com o que têm e da forma que podem, criando assim a imagem de infâncias que resistem persistindo em ser e existir apesar das adversidades. Essa reflexão criou a necessidade de pesquisar e falar não só da dor e da precariedade, mas também de como essas infâncias resistem, criando universos de brincar que conversam com a realidade que tem em suas vidas cotidianas:

Um menino que decide brincar de carrinho com um carro de verdade, crianças que caçam ratos imitando os pais, um córrego que vira rio e vira mar, ruas que viram campos de futebol. Crianças tentando ser crianças em meio à dureza do abandono ao povo periférico, nos fazem lembrar que criança também é povo.

(27)

A exposição de referências históricas e sociológicas em uma perspectiva urbana e ocidental, aqui ocorrem para que tornemos possível evidenciar através dos relatos cênicos, e contrapor a teoria até então levantada com as vivências que se dão na “Favela da Alba” e favelas próximas. Reiterando que essas vivências não estão de fato inseridas na mesma noção e conceito de infância, apesar dessa definição de infância nortear e vigorar em leis válidas em todo o território nacional de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído pela Lei Federal nº 8069 e promulgada em 13 de julho de 1990. Esse conceito de infância tal e qual temos hoje, sustenta-se a partir de uma lógica importada e, desconsidera as especificidades de uma favela. Especificidades essas, que tem raízes históricas e influências diversas que fazem com que sejam sentidas e vividas de uma outra forma, talvez menos higiênica e mercadológica se formos levar em consideração o que diz Ricardo de Azevedo quando cita a função a que serve a criação do conceito de infância, em explorar um nicho de mercado no qual produtos são pensados para essa categoria (AZEVEDO, 1999).

Analisando Phillipe Ariès, um dos autores mais consultados quando pretende-se abordar essa temática, nos traz a ideia de que a infância é uma característica humana, todos passam pelo momento de ser crianças. O que difere é a forma como essa fase foi percebida ao longo dos anos até chegar na forma atual, a que está presente nos imaginários urbanos(ÀRIES, 1981).

As culturas clássicas Gregas atrelaram o que hoje chamamos de infância, à ideia de educação, ou seja, a importância da criança e do jovem estava no fato de ter que ser educado. E já aqui encontramos uma característica que talvez tenhamos herdado: a educação não era para todos, e se esta antes estava atrelada à infância, isso explica o fato de que ainda hoje a infância enquanto conceito e prática não abarque os modos de vida de todas as crianças. Já na idade média, a educação é atrelada à ideias religiosas, e o olhar para a criança nesse quesito, fica por conta da educação religiosa,

(28)

clerical. Se até então os que não eram considerados cidadãos já não tinham acesso à educação, na Idade Média, não houve mudança significativa neste sentido e menos ainda na forma como a criança era percebida.

O conceito de infância moderno tal e qual ainda enxergamos hoje, como uma fase anterior e autônoma em relação à fase adulta, começou a ser esboçado no final do século XVII e início do século XVIII (ÀRIES, 1981). Outro ponto que não poderia deixar de ser esboçado aqui, é em que contexto esse conceito começa a ser percebido e esboçado: na classe dominante, mais propriamente burguesa, a partir de mudanças do vestuário. Uma visão comercial, relação direta com venda e criação de mercado. Já nas classes menos abastadas, a criança continuou sendo mão de obra, vide a crescente procura por essa mão de obra na revolução industrial. Ao passo que a criança burguesa começava a viver o esboço desse conceito de infância, a criança proletária retrocede para ser enxergada como apta a trabalhar na indústria como mão de obra barata porém essencial para o complemento de renda familiar naquele período.

Observar os relatos cênicos levantados, e principalmente, os processos pelos quais temos passado até chegar neles, é nos deparar com essa classificação histórica, que embora já aponte para a falta do olhar para a criança periférica acaba se encerrando na crítica das percepções da infância sem mapear como ela ou elas, se pensarmos em infâncias plurais, tem ocorrido em outros espaços que não o urbano burguês. É refletir buscando apontar o teatro como um dos novos caminhos de reconhecimento dessas infâncias e um possível mapeamento das suas especificidades e demandas, sem a pretensão de encontrar as raízes históricas ou mesmo estudar os fenômenos que as fazem ser como são, mas somar forças com as áreas que se voltam a esses estudos.

Há crianças de 8 anos que já trabalham. Há meninas de 11 anos que já são mães. Há filhos de pais separados. Há crianças que perderam o pai. Há traumas. Há temperamentos. Há sonhos. Há vivências absolutamente pessoais (o gosto, os prazeres, a perspectiva do sublime). Além disso, é

(29)

possível encontrar, num mesmo grupo, pessoas oriundas de tradições, culturas e concepções de mundo diferentes. (AZEVEDO, 1999, p 6)

As infâncias que se dão dentro da Favela da Alba tem suas particularidades, suas demandas e seu modo de resistir. Em que lugar o leitor localizará o ser crianças em cada um desses relatos, é uma indagação que nos move, pois faz parte do jogo aqui proposto.

O projeto “Os Filhos de Alba”, propõe-se além de trazer à tona os afetos de moradores e crianças com suas memórias e vivências de infância, dialogar ainda que de uma maneira mais poética (pelos meios da cena), com alguns dos apontamentos de Cleopatre Montandon, que apresenta a sistematização de elementos que estariam constituindo o novo paradigma que informa a Sociologia da Infância. Sendo de nosso

interesse o estudo da infância como construção social que não pode ser completamente separada de classe, sexo e etnia (MONTANDON, 1997).

E assim apresentar através dos relatos parte do que essas infâncias significam na comunidade em questão, trazendo o olhar de outros pesquisadores, estudantes e artistas pedagogos para a favela e a necessidade de se pensar esse espaço. Necessidade essa que se justifica pelo simplesmente pelo fato da existência dessa realidade que não pode ser ignorada e nem deve ser ignorada se buscamos uma pedagogia tal e qual propunha Paulo Freire (FREIRE,2011). Pedagogia essa que podemos também somar com as ideias esboçadas por Célia Maria Escanfella:

Ao reconhecer as crianças como atores sociais, dotados de competências, com algum grau de consciência do que sentem, pensam, desejam, que constroem universos específicos, além de participar do universo adulto, por vezes, contribuindo em sua transformação, os sistemas teóricos precisam ser reorientados, incorporando essa dimensão da prática social, em que as crianças são protagonistas. (PINTO,1997, apoud ESCANFELLA, p 8)

(30)

ampliado sobre as infâncias. E uma tentativa de chamar o olhar de pesquisadores de diversas áreas para as infâncias periféricas e suas especificidades, a partir do trabalho desenvolvido com as crianças da Favela da Alba e redondezas e garantir que cada qual com suas particularidades sejam respeitadas.

Fazer com que crianças periféricas, sobretudo as negras, sejam colocadas em pauta na discussão das infâncias, é contrapor o debate judicial em desenvolvimento sobre a responsabilidade criminal de crianças e adolescentes e as reformas judiciais em curso nessa área (PINTO,1997 apoud ESCANFELLA, p 8).

É reforçar que é preciso reconhecer antes de tudo que são crianças e resistem sendo crianças. É trazer nas vozes e imaginários delas mesmas o debate sobre crianças vítimas de maus-tratos, em situação de risco, de exclusão social ou em situação de pré-delinquência, situações de abandono e maus-tratos infantis.

(31)

“HISTÓRIAS DE VERDADE E HISTÓRIAS DE MENTIRA”

Nesse mundo ao lado nas praças públicas, durante as festas, ou à noite, após o trabalho, para escutar os contadores de histórias. Neste sentido, falar em “contos maravilhosos” ou “de encantamento” quando nos, onde a crença em fadas, gigantes, anões, bruxas, castelos encantados, elixires, tesouros, fontes da juventude, quebrantos e países utópicos e mágicos era disseminada, crianças e adultos sentavam-se lado a lado referimos às narrativas populares medievais pode ser considerado um equívoco. Não havia neste contexto, principalmente levando-se em conta as concepções populares, uma separação nítida entre o “real” e o “fantástico”. Mesmo hoje, pensando bem, essa separação é assunto complexo e discutível. (AZEVEDO, 1999, p 3)

Ao iniciar esse projeto, lidamos com diversas histórias. Algumas mesmo repetidas tomavam formas, detalhes, tons e cores diferentes quando contadas de uma boca ou de outra. Histórias essas, que não estavam escritas em lugar algum e que ainda assim faziam parte da história local, constituem o que a Alba é. Logo aí, já nos pusemos a pensar na importância de perpetuar histórias orais, e o quão negativo para uma sociedade pode ser a ideia de que história é apenas a escrita, marginalizando assim um conhecimento que se passa de geração em geração, sobretudo a história de uma região já marginalizada. O apagamento dessas histórias e seu registro através da oralidade é o apagamento das infâncias que existiram e existem no local. É torná-las invisíveis. E para isso Hampté Bá nos chama a atenção, o fato de que um testemunho é um testemunho, não importa se ele é escrito ou oral, e logo a questão seria quem endossa a veracidade desse testemunho(BÁ, 1988) . E se ele se torna menos válido quando embebido de ficção, seja ela verossímil ou fantástica. Ao longo do processo de ouvir, jogar e encenar as histórias da região da favela Alba, temos percebido que a ficção faz parte da história, endossa o real, e existe na lógica das crianças, tal qual existe na lógica de codificação freiriana6 que Márcia Pompeo anuncia e analisa em

(32)

seu trabalho com a comunidade de Taperá:

“Uma história chamou nossa atenção por envolver mais facetas de um problema: dois meninos que saíram da aula de judô, que acontece dentro da Base Aérea, e encontram um menino sozinho brincando. Era um menino que eles chamavam de “índio”, com quem costumavam brigar na escola. Tentando mostrar as habilidades adquiridas no judô, resolvem bater no “índio”. No meio da briga chega o pai do “índio”, caracterizado como doido pelo narrador, que ao ver o seu filho apanhando, resolve bater nos meninos do judô. Um deles foge e o pai bate no que ficou, violentamente, até que a mãe do “índio” chega e diz para seu marido: chega! Ele é só uma criança... Esta história nos interessou desenvolver. Mesmo sem saber se era uma história de mentira ou uma história de verdade, identificamos nela uma codificação nos moldes freireanos. Era a codificação relativa a um problema que vem ganhando destaque, mas que ainda é muito pouco aprofundado, o bullying. Mais do que isso, a história integrava o problema da violência no contexto das crianças e dos adultos, permitindo um maior aprofundamento do problema. Acima de tudo, era uma história que, independentemente de ser real ou imaginária, foi situada pelo grupo como uma história da Tapera, que aconteceu nos seus caminhos.” (NOGUEIRA, 2011, p 4)

Apesar da proximidade da maior parte dos artistas envolvidos com o território da Alba (que difere um pouco das experiências vividas pela autora acima citada pelo fato dos artistas da experiência em Taperá serem de fora da comunidade), encontramos nos relatos algo em comum: a ideia de que mesmo os dados ficcionais eram parte da história, principalmente por tratar-se de crianças, que utilizam por vezes o faz de conta para lidar com seus desafios da vida diária.

Outro dado importante para que possamos seguir para a leitura dos relatos é lembrar a quem lê, que além das características inerentes ao próprio exercício de contar, que torna aquele que conta parte do conto, podendo assim adicionar características diferentes ao mesmo conto quando contado por diferentes pessoas, temos ainda a

vivida. Neste sentido, a codificação transforma o que era uma forma de vida num contexto real, num “objeto” no contexto teórico (FREIRE 1979, p. 32).

(33)

soma dos jogos de teatro do oprimido(BOAL, 2015), que propõe muitas vezes o pensar sobre como aquela história poderia ter acontecido, como é o caso por exemplo do teatro fórum, onde algum membro da platéia pode assumir o lugar do oprimido e dar um novo rumo a história.

Os relatos a seguir, são nada mais nada menos que uma mistura entre o real e o fictício, verossímil e fantástico. Uma mistura de desejos, expectativas e elucidação de fatos sobre as infâncias na favela da Alba. E aqui caberá a quem lê deixar-se levar pelos relatos e construir ao passo que lê seus apontamentos sobre o jogo.

O teatro do Oprimido de Augusto Boal é utilizado ao longo do processo pois parte da premissa de que todos podem fazer teatro e este se dá através da própria experiência, e ainda, acrescenta que pode e deve ser utilizado como uma ferramenta de luta. O que mais chama, e tem nos chamado a atenção, é a forma como ele acredita que essa luta se dá no campo daquilo que ele vem a chamar de “Pensamento Sensível” (BOAL, 2013), que seria todo pensamento não simbólico, que não necessariamente se transcreve em palavras, embora muitas vezes possa vir a sê-lo. O pensamento sensível estaria afinado com as artes por englobar as sensações, imagens, sons, cheiros. Ora, cada um dos relatos aqui descritos, nos traz um misto de sensações que torna toda a experiência vivida, uma história de verdade.

(34)

RELATOS

Os textos abaixo, são uma mistura entre o real e o fictício. Apresentam os elementos textuais da dramaturgia desenvolvida por mim e os membros do núcleo artístico, relatos de aulas e procedimentos pelos quais passamos até chegar a forma em que cada uma aparece.

BOLACHA, PEGA-PEGA E PIPA

Uma pipa cor de rosa, uma bolacha de morango, uma brincadeira, e três grandes tragédias onde não houve reviravoltas.

Bolacha

“Pego uma bolacha do meu irmão, uma bolacha de morango. Meu sabor preferido. Mas pego só uma porque meu padrasto não gosta que eu pegue as coisas do meu irmão. Droga, ele começou a chorar.

- Xiu! Pára, pára.

E já vem meu padrasto correndo.

- Eu não fiz nada!

Meu irmão vai para a sala com o pacote todo.

- Por que você está tirando o cinto? Eu juro que não faço mais isso...

E do nada, uma bolacha, outra, outra e mais uma, já não consigo mais falar! Não tem gosto bom. Quero vomitar. Ele começa a jogar as bolachas em mim. E cada vez mais forte, machuca meu rosto, meus braços, minha barriga, e cada pedacinho do meu corpo. Ele sobe a calça, coloca o cinto e vai para a sala brincar com o meu irmão. Minha mãe só descobre por conta dos farelos.”

Em uma aula das crianças, após os corriqueiros procedimentos de aulas chegamos

26

(35)

na seguinte instrução/pergunta:

“Em grupo vocês vão contar alguma situação que você passou ou viu alguém passar e queria ter agido diferente, feito algo sobre o acontecido mas por algum motivo, não precisa falar qual, não o fez.”

As crianças divididas em três grupos contaram histórias corriqueiras, em um grupo contava-se de um episódio em que uma professora brigou com um aluno que fazia

bullying com outro aluno. Um outro grupo conta da bronca de uma mãe. Até que uma

das alunas de um grupo fala:

- Professora, eu quero, eu quero contar…

Todos se olham porque sabem que dali sempre saem histórias… complicadas. Mas ninguém podia naquele momento imaginar, que em uma sala com crianças a partir de 7(sete) anos, um depoimento tão forte apareceria.

“Professora, a minha prima de consideração foi estuprada pelo padrasto.”

Na hora, o meu coração já acelerou, pois sabia que tinha uma aluna de 7 (sete) anos na sala, e em um segundo me percorreu o questionamento se aquilo era adequado, apropriado e o que os pais daquela criança pensariam da filha ser exposta a uma história como a que se seguiria. No momento, presa no fluxo dos meus pensamentos não pude interromper a menina que contava a história, então ela continuou:

“Ele ficou bravo porque ela pegou a bolacha do irmão dela e judiou da bixinha, deixou ela toda machucada e a mãe dela só percebeu quando chegou em casa porque foi tirar a roupa da menina pra dar banho e estava tudo pra fora.”

Neste ponto ela começava a querer dar mais detalhes do acontecimento, e eu interrompi, por perceber o teor que o relato iria tomar.

(36)

A instrução seguinte era escolher uma história de cada grupo e fazer uma “foto” do acontecimento. Nenhum grupo escolheu o da menina estuprada, o que confesso, me deu certo alívio.

Após essa aula a aluna nos contou a história com detalhes perturbadores. Levamos a história para os ensaios do núcleo artístico, trabalhamos com teatro imagem, também do teatro do Oprimido, onde fizemos jogos de construir imagens e a partir das imagens improvisar as cenas. O maior dos problemas era o quão explícito tudo aquilo soava e o nosso cuidado em não querer despertar em um possível público gatilhos psicológicos que pudessem ser prejudiciais ou mesmo interferisse na classificação indicativa de um possível espetáculo. Então, começamos a pensar formas cênicas e textuais de contar o relato, a partir de um poema escrito por mim:

“Socorro, corro, corro, só Só corro, corro…

Me pegou

Não deu borboleta na barriga, deu anjo

E do meio da rua eu pensei que ainda era anjo a vontade de correr para o córrego

e brincar com meus amigos....

Como pode um anjo dentro de outro? Corri pro meio da rua, achei que ia voar, o anjo voou lá pro céu, eu acho

Me estatelei no chão ralada e sorrio, ele virou estrela”

A partir disso, fizemos um jogo de contar a história da menina andando pelo espaço, criando imagens para o acontecido e assim, foi construído o texto.

As crianças apenas retomarão o contato com esse relato já em forma cênica e lúdica

28

(37)

a partir de Janeiro, onde daremos continuidade as aulas, que se encerram no dia 30/12/2019.

Pega-pega

O texto abaixo surge do relato de uma moradora que toma conta de crianças em sua casa. Ela nos conta que flagrou um dos meninos de quem ela cuida, um garoto de quatro anos de idade, mostrando o pênis para uma criança ainda menor, e quase tendo contato com a criança menor, cuja idade ela não nos revelou. Ela contou que ficou muito abismada e ao conversar com a mãe do garoto, descobriu que eles dormiam todos juntos, a mãe, o pai e o filho, na mesma cama. E a mãe achava que o filho estava dormindo, quando ela e seu marido tinham relações.

Essa história, contamos em uma aula onde apenas os adolescentes estavam presentes, todos com mais de 13(treze) anos. Por pura coincidência. Ao contarmos essa história, eles mesmos nos perguntavam se podiam contar histórias assim no teatro. Após uma conversa consideravelmente grande, eles mesmo chegaram a conclusão de que sim, desde que os atores fossem adultos e no caso deles, eles poderiam contar de algum jeito que não fosse “tão na cara” (palavras de um dos meninos aluno do projeto). A partir disso, eles fizeram uma cena onde um menino brincava de pega pega e todos fugiam dele com nojo. A escuta do relato somada à observação da cena das crianças nos ajudou a levantar o seguinte relato:

“Chego na escola ansioso para mostrar para as crianças mais novas a brincadeira que vi ontem à noite.

As crianças mais velhas nunca querem brincar comigo.

- Pedro, Pedro, vem cá.

A gente ri tanto, mas tanto que a professora parece assustada:

- Meu Deus, o que é que você estão fazendo ai? - Brincando, ué.

(38)

- E isso é lá brincadeira que se faça?

E o pega-pega acabou.

- É isso que dá dormir todo mundo junto no mesmo quarto.

- Professora, professora como você sabe que a gente dorme todo mundo junto

lá em casa?”

Pipa

O terceiro relato na temática de abusos sexuais, foi contado por mim. Chego no ensaio dos atores, e conto a história de uma menina que adorava soltar pipa com o irmão, apesar de não saber soltar e na verdade apenas observar a pipa voando e ajudar a por ela no alto. Um dia, ela e o irmão estavam na rua esperando a perua da escola, quando apareceu um homem, jovem, mas muito alto e pediu para menina subir no ombro dele para ver se a pipa tinha caído no telhado, a criança disse não e após muita insistência do homem, ela subiu, no momento que ela subiu, o homem cheirou a “piriquita”7 dela.

No ensaio, fizemos um jogo após ouvir a história no qual os atores tinham que criar uma narrativa enquanto andavam pelo espaço, em voz alta. Então após alguns minutos, eles se distribuem pelo espaço e quem ficasse no meio precisava contar os pontos da história, um por um, e a mudança de um ponto ao outro só podia acontecer mediante uma palma, que era dada por mim. No ponto final, onde o homem cheira a vagina da criança, as atrizes e o ator riam. Logicamente de nervoso, mas perceptivelmente, para quem estava de fora, como uma forma de se distanciar do abuso.

Logo após algumas tentativas sem conseguirmos chegar ao último nó, decido contar que a história aconteceu comigo, quando eu tinha 8(oito) anos, mesmo com minha mãe sendo sempre pontual em me dizer para não falar com estranhos, mesmo com minha avó falando que homem é um bicho do cão. Mesmo com tantas negativas da

7Piriquita: forma informal e popular que denomina vagina.

(39)

criança que fui, o homem cheirou a minha vagina.

Após isso, começamos a improvisar as narrativas, com a orientação de manter a linha de criar imagens e metáforas para contar a cena, depois de alguns improvisos, chegamos ao seguinte relato:

“Estamos eu e meu irmão na rua de casa, uma rua sem saída quando de repente… Passou um moço de terno branco… Nem de terno, nem de branco.

- Ô menina sobe no meu ombro pra ver se minha pipa caiu no telhado? - Não quero, a perua da escola já tá chegando.

- Por favor é rapidinho. - Meu irmão vai.

- Vai você que é mais leve. - Não sou não, sou a mais velha.

Subo sem querer e sem saber por quê.

- Quero descer! O que você tá fazendo? - pergunto ao homem.

Estou de frente pra ele no alto e me sinto desconfortável, me debato e avisto uma pipa rosa, cheinha de rabiola, mas uma pipa de verdade, não uma inventada por ele. Subo na pipa, puxo meu irmão pelo braço e saímos voando para longe daquele homem que sai correndo. Acho que eu nunca mais vou querer empinar pipa na minha vida!”

PIOLHO

“Mães ao mesmo tempo: Brenda!

Menina da escola, ao mesmo tempo que as mães: Stephanie!

Menina da escola: Stephanie, você ouviu a minha mãe conversando com a sua no telefone?

Mãe arquétipo 1: Ah, não lá vem você.

Menina da escola: Não? Como não, você não ouve a conversa dos seus pais? Mãe arquétipo 1: Ei, fala pra mim, o que é isso na tua mochila, menina?

(40)

Mãe arquétipo 2: Que bilhete é esse que você não me mostrou antes, filha? Mãe arquétipo 1: Nossa que bonito, agora você não pode ir pra escola.

Mãe arquétipo 2: Quando a professora mandou isso? Mas filha você tá lavando a cabeça…

Mãe arquétipo 1: Ninguém merece ficar olhando pra essa fuça o dia todo. Menina da escola: Eu não sou fofoqueira, eu ouvi sem querer, ué.

Mãe arquétipo 1: Quantas vezes eu falei pra prender esse cabelo? Passa agora pro banheiro e vai lavar esse fuá, porque shampoo não falta.

Mãe arquétipo 2: Chico eu não sei mais o que fazer, ela foi afastada da escola por causa disso. Ela tá lavando a cabeça Chico, tem dia que lava bem mais de uma vez. Eu não sei mais o que fazer, Chico.

Mãe arquétipo 1: Lava isso direito, se não o Chico vai pensar que a culpa de tantos piolhos é minha.

Menina da escola: Mas você é fofoqueira também! Quer saber ou não? Lembra aquela menina do segundo ano, que sumiu da escola? Então…

Mãe arquétipo 2: Filha eu sei que tá coçando muito, calma! Talvez a gente tenha que raspar o seu cabelo, mas vai ser pro seu bem. Vai parar de coçar depois, filha.

Mãe arquétipo 1: Sem chorar! Eu não tenho dó, vai ter que raspar sim! E se não sair, vou fazer igual a minha mãe, encher sua cabeça de vinagre.

Ambas as mães: Eu sou sua mãe.

Mãe arquétipo 1: E para com isso que nem deve estar doendo tanto. Mãe arquétipo 2:Você acha mesmo que não dá pra raspar?

Menina da escola: Então, parece que ela sumiu porque está cheia de piolhos Mãe arquétipo 1: Para de escândalo, já mandei parar de gritar.

Mãe arquétipo 2: Tá tão grave assim?

Mãe arquétipo 1: Droga, não era pra sair sangue, muito menos tanto assim.

Menina da escola: Eu não entendi direito, mas ouvi minha mãe dizer que a culpa é da mãe que é desnaturada e a menina parece ter vários pais.

Mãe arquétipo 2:Você acha que eu vou ter que ir pro médico?

Menina da escola: Eu sei que ela foi parar no hospital com a cabeça cheia de feridas. Mãe arquétipo 1: E a fila que não anda?

(41)

Menina da escola: Mas essa não é a pior parte. Mãe arquétipo 1: Ei, fala comigo.

Mãe arquétipo 2: Doutor, ela está com piolho há semanas, eu não sei o que fazer. Ela lavava a cabeça muitas vezes no dia, mas não curava, doutor. Não eu não sei o que fazer para tirar os piolhos da minha filha.

Mãe arquétipo 1: Fala comigo!

Mãe arquétipo 2: Onde tá minha filha, porque eu não posso ver minha filha? Mãe arquétipo 1: Fala comigo!

Mãe arquétipo 2: Doutor, me responde. O que aconteceu com ela, cadê a minha filha? Menina da escola: Ela morreu.”

A história acima, faz parte do imaginário da região, é muito comum ao comentar com moradores, que eles conheçam essa história. No nosso caso, ouvimos a história também da cuidadora de crianças. Em seu relato ela comenta o quão absurdo a história é para ela. Pois ela cuida de crianças pobres e realmente, na perspectiva dela tem pais que não ligam pros filhos, deixam eles largados, passando vontade, necessidade. Mas que a maioria das crianças que ela cuida os pais se esforçam muito para dar o mínimo para os filhos. Garantir que tenham uma fralda, um leite, às vezes um pacote de bolacha e Danone. E que para ela, era desleixo, falta de cuidado, pois passar um pente fino na cabeça da criança, não custava nada.

Durante os ensaios, buscamos trabalhar com as poucas informações que tínhamos, honrar a história dessa criança, sob a qual as informações eram muito escassas. Ninguém sabia dizer se a menina gostava de rosa, de azul ou amarelo. Quais sonhos ela tinha, quais brincadeiras gostava. Se que sabíamos a idade da criança. O que sabíamos é que na boca do povo, a mãe, era a desleixada.

Buscamos contar essa história englobando possibilidades e pontos de vista. Fizemos exercícios narrativos, onde a mesma atriz/ator contava a história em diferentes perspectivas, sendo elas: a de uma mãe que se importava sim com a filha, a de uma mãe que não, a da criança, a de um narrador observador e a da própria atriz. A cada

(42)

turno do jogo, as narrativas mudavam e se cruzavam, por vezes eram contadas sobrepostas. Ao final, chegamos ao relato acima.

O jogo consistia em uma variação da maratona, aprendida com a Profa Dra Maria Thaís, no departamento de Artes Cênicas da ECA-USP em 2016. Deixamos cadeiras espalhadas pela sala, e em cada uma dessas cadeiras havia a indicação de qual perspectiva aconteceria, havendo também as orientações de presente e observador, sendo presente a personagem e/ou perspectiva acontecendo como se fosse em tempo real, e a observadora como se já houvesse acontecido. As atrizes e ator tinham que se movimentar pelo espaço buscado um ritmo em comum que variasse do 1 (um) ao 9 (nove), finalizando apenas quando todos, juntos e sem combinar chegassem ao 9 (nove).

Essa história, também foi contada nas aulas das crianças. Que nos trouxeram por escolha delas, a perspectiva de crianças que possivelmente estivessem na convivência da menina. Nas cenas improvisadas aparecem diversos personagens, alguns se compadecem da colega, e a ajudaram a falar com a professora, outros cometiam bullying, outros ainda, demonstravam nojo. E da junção dessas personagens, inserimos a perspectiva da menina da escola.

CÓRREGO

“Meninos: Comido não morreu. Maicon: Ah não, de novo não?

Corpo: E depois de tudo, esses pirralhos vão brincar logo disso: eu mereço… Douglas: Se você tá brisando, problema teu. É sua vez.

Maicon: Vou só até 20… 1, 2, 3…20. Lá vou eu! 1,2,3 Douglas pego. Douglas: Ei não vale! Eu vi uma coisa no córrego.

Edmilson:1, 2,3 Edmilson salva o mundo, Maicon: Não, para! O Douglas roubou.

Referências

Documentos relacionados

Dentre as principais conclusões tiradas deste trabalho, destacam-se: a seqüência de mobilidade obtida para os metais pesados estudados: Mn2+>Zn2+>Cd2+>Cu2+>Pb2+>Cr3+; apesar dos

Todavia, nos substratos de ambos os solos sem adição de matéria orgânica (Figura 4 A e 5 A), constatou-se a presença do herbicida na maior profundidade da coluna

A two-way (eccentric versus concentric training) repeated measures (pre-training versus post-training) ANOVA, with a 5% significance level, was used to compare:

Local de realização da avaliação: Centro de Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação - EAPE , endereço : SGAS 907 - Brasília/DF. Estamos à disposição

Neste capítulo, será apresentada a Gestão Pública no município de Telêmaco Borba e a Instituição Privada de Ensino, onde será descrito como ocorre à relação entre

H´a dois tipos de distribui¸co˜es de probabilidades que s˜ao as distribui¸c˜oes discretas que descrevem quantidades aleat´orias e podem assumir valores e os valores s˜ao finitos, e

Esta realidade exige uma abordagem baseada mais numa engenharia de segu- rança do que na regulamentação prescritiva existente para estes CUA [7], pelo que as medidas de segurança

Se você vai para o mundo da fantasia e não está consciente de que está lá, você está se alienando da realidade (fugindo da realidade), você não está no aqui e