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Palavras-chave: Felicidade. Sentidos. População em situação de rua. Pessoas em situação de rua.

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SENTIDOS ATRIBUÍDOS À FELICIDADE POR PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA 1

Leandro Araújo Freitas 2

Resumo: A contemporaneidade é marcada por um zeitgeist onde ―o caminho para a felicidade‖ estrutura-se mais no ―ter‖ do que no ―ser‖. Apesar dessa lógica, onde a subjetividade é influenciada pelo que Sawaia classificou como uma inclusão perversa, existem pessoas que vivem em condições que divergem do que seria

―previsto‖. Enquanto a rua seria comumente considerada apenas como um ―local de passagem cotidiano‖, para essas pessoas é local de instalação e de permanência, ou seja, seu local de moradia; onde estão permanentemente à mercê da imprevisibilidade que tal condição implica. Então, será que quem quase nada tem pode ser feliz também? E o que seria felicidade para tais pessoas? Visando investigar os sentidos atribuídos à felicidade por pessoas em situação de rua, esse artigo teve por objetivos específicos a identificação das definições atribuídas à felicidade, a identificação da existência de fatores relacionados à materialidade nos sentidos atribuídos à felicidade, a identificação da existência de projetos de vida em tais sentidos, assim como a identificação do entendimento dessas pessoas quanto à implicação individual para a promoção da própria felicidade. Para coleta de dados foram realizadas entrevistas semiestruturadas com três participantes do sexo masculino que permaneciam, à época, nos arredores da praça central do município de Florianópolis. Essas entrevistas continham perguntas relativas tanto à caracterização e história de vida, quanto ao entendimento do que é felicidade e quais os fatores mais relevantes para sua promoção. A pesquisa indicou que os vínculos afetivos ocupam lugar de destaque, sejam os vínculos com a família, com amigos ou ainda com demais pessoas em situação de rua. Pretende-se, por meio desse artigo, ratificar a necessidade de atenção a essa população que segue

―envolta‖ em um ―véu de invisibilidade‖ que necessita ser desvelado por meio de ações que ultrapassem o assistencialismo e que estejam fundamentadas na promoção da autonomia, no resgate e fortalecimento de projetos pessoais, na valorização da dignidade humana e que mantenham observância aos direitos sociais constitucionais.

Palavras-chave: Felicidade. Sentidos. População em situação de rua. Pessoas em situação de rua.

1 Artigo apresentado como trabalho de conclusão de curso de Psicologia da Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do título de Psicólogo. Orientadoras: Profª.

Camila Felipe Tonn, Msc.; Profª. Zuleica Pretto, Dra. Palhoça, 2018.

2 Acadêmica do curso de Psicologia da Universidade do Sul de Santa Catarina.

leandroaraujofreitasl@mail.com

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1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

artigo 6º: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. (BRASIL, 1988)

Essa produção teve por motivação verificar a existência de sentidos atribuídos à felicidade que ultrapassem a lógica prevalente em nossa sociedade, que a condiciona à obtenção e acumulação de bens e patrimônio. O público (pessoas em situação de rua) foi objeto de trabalho em outras duas atividades do discente pesquisador, ao longo do segundo semestre dos anos de 2017 e 2018, onde os contatos e vínculos estabelecidos foram muito enriquecedores, no sentido de promover mudanças quanto às visões geralmente atribuídas a esse público, ultrapassando certamente os ―rótulos limitantes‖ que tendem a demarcar essas pessoas. São pessoas, com suas histórias, suas vivências, seus potenciais e seus afetos; que necessitam de reconhecimento e valorização de suas singularidades ultrapassando, portanto, a realização de ações ―massificadas‖ e que por vezes limitam-se às necessidades assistencialistas mais emergenciais.

1.1 REFLEXÕES QUE ACOMPANHAM A HUMANIDADE

Dentre as reflexões que promovem sentidos à existência humana, as discussões sobre felicidade estão presentes desde épocas remotas. Nas sociedades ocidentais inicialmente era atribuída aos desígnios dos deuses, passando a ser considerada de responsabilidade do indivíduo a partir da filosofia socrática (FERRAZ et al., 2007). Após o Iluminismo, as culturas ocidentais passam a considerar que todo indivíduo teria o direito de atingir a felicidade, e movimentos como a Revolução Francesa trazem-na como um dos valores a serem almejados pela sociedade (CSIKSZENTMIHALYI, 1990; MCMAHON, 2006 apud FERRAZ et al., 2007). Nas sociedades contemporâneas permanece a relevância da temática, constando até mesmo, por exemplo, na Declaração de Independência dos Estados Unidos, que ressalta que ―todo homem tem o direito inalienável à vida, à liberdade e à busca da felicidade‖ (LUNT, 2004 apud FERRAZ et al., 2007).

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Mesmo que a felicidade seja, em linhas gerais, compreendida por todos, sua busca e até mesmo compreensão dela pelos fatos que a promovem são reflexos dos valores sociais que são vivenciados nos dias atuais, e que são amplamente proferidos pela pedagogia da autoajuda, que intitula diversos livros como: ―Lei da Felicidade‖; ―Os Segredos da Felicidade‖; ―O Mapa da Felicidade‖ dentre outros. Por vezes, essa lógica impõe ao sujeito um imperativo de felicidade, uma busca incessante onde estímulos são alternados mas não há êxito, permanecendo a ―tal felicidade‖ como ―fugaz‖.

Ainda que a felicidade seja compreendida de modo geral e no senso comum, pode-se ponderar que o seu entendimento tende a variar entre os sujeitos, dentre outros fatores, conforme aspectos culturais e os valores que cada um possa considerar como mais ou menos importantes para sua realização. Há, contudo, um contrassenso: apesar de o tema ser investigado há considerável tempo, houve pouco progresso no campo teórico quanto à compreensão e integração das informações sobre a felicidade e o bem-estar subjetivo (DELA COLETA; DELA COLETA, 2006).

1.2 PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA

Em uma sociedade que supervaloriza a lógica do ―consumo exacerbado‖, da obtenção material como ―um caminho para felicidade‖ e onde essa lógica figura como ―pano de fundo‖ para a constituição das relações que, por sua vez, moldam-se de maneira tão frágil e descartável quanto os objetos que precisam ser ―trocados periodicamente‖ para a satisfação do anseio de consumo (BAUMAN, 2004), existem grupos de pessoas que por diversos fatores (que vão desde a falta de oportunidades a escolhas de padrões de vida diferentes) vivem ―à margem‖ dessa premissa.

Dentre esses grupos marginalizados, as pessoas (ou a população) em situação de rua compõem um fenômeno social cada vez mais presente nos centros urbanos. Barata (2015) exemplificando o vertiginoso crescimento dessa população no município de São Paulo apresenta resultados do censo de 2011 que demonstram um crescimento de 65% em 10 anos, totalizando cerca de 14.500 pessoas. Não foram localizados dados de estudos recentes em Florianópolis com tal estimativa, somente com dados relativos a 2007/2008 indicando a existência de 426 pessoas

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em situação de rua em Florianópolis (SWOBODA, 2015). Quanto às informações prestadas na mídia sobre o tema, foi localizada reportagem realizada em agosto de 2017 por um veículo de comunicação, que remetia a aproximadamente 800 pessoas em situação de rua na capital catarinense3.

O conhecimento da real dimensão da situação é complexo, em especial pela inexistência de dados oficiais sobre a população em situação de rua. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), órgão vinculado ao Ministério do Planejamento brasileiro lançou em 2016 o estudo ―Estimativa da população em situação de rua no Brasil‖. O documento destaca que as estimativas elaboradas utilizaram, por base, o Censo do Sistema Único de Assistência Social (Censo SUAS), que abrangeu 1.924 municípios no território nacional. Com as informações dessa amostragem, foi elaborado um modelo teórico cujo resultado indicou a estimativa de mais de 101.000 pessoas em situação de rua no território nacional no ano de 2015 (IPEA, 2016). Contudo, destaca-se que essa falta de dados oficiais implica em consequências diretas, como o prejuízo à adequada implementação de políticas focadas nesse público, além de reproduzir a invisibilidade social dessa população (idem).

Estudos realizados com o foco nessa população demonstram algumas características presentes que remetem à expressiva vulnerabilidade vivenciada por esse público, como a precariedade da sua condição de vida e saúde, a marginalização, a dificuldade de acesso a direitos humanos e sociais básicos, a exposição a fatores de risco e violência (VAN WIJK; MÂNGIA, 2017). E diante de uma complexidade existencial tão indiscutível, qual seria a compreensão de felicidade para esses sujeitos?

1.3 FELICIDADE: ONDE TEM PARA ―VENDER‖? POSSO ―COMPRAR‖, MESMO SEM DINHEIRO?

Bebida é água!

Comida é pasto!

Você tem sede de quê?

Você tem fome de quê?

3 https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/800-pessoas-moram-nas-ruas-de-florianopolis-80-sao- usuarias-de-drogas.ghtml

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A gente não quer só comida A gente quer comida Diversão e arte A gente não quer só comida A gente quer saída Para qualquer parte A gente não quer só comida A gente quer bebida Diversão, balé A gente não quer só comida A gente quer a vida Como a vida quer Bebida é água!

Comida é pasto!

Você tem sede de quê?

Você tem fome de quê?

A gente não quer só comer A gente quer comer E quer fazer amor A gente não quer só comer A gente quer prazer Pra aliviar a dor A gente não quer Só dinheiro A gente quer dinheiro E felicidade A gente não quer Só dinheiro A gente quer inteiro E não pela metade (Titãs: “Comida”)

Dado que, por vezes, os sentidos atribuídos à felicidade não se mostram diferenciados dos fatores que tendem a promovê-la, tem-se que uma das

―armadilhas‖ do entendimento do conceito seja condicioná-lo (ou restringi-lo de modo direto e limitado) ao patrimônio material do sujeito, ―armadilha‖ essa que surge com base nos valores perpetuados pelas configurações sociais que engendram o modo de produção da vida, no atual momento histórico. Mas afinal, o dinheiro traria ou não felicidade? Seria possível ser feliz com ―muito pouco‖? Como seria interpretada a felicidade para aqueles que vivem diariamente em situações precárias, muitas vezes sem o mínimo necessário para subsistência? E, em especial: O que se pode aprender com as visões dessa população a respeito do tema e o que isso interfere no entendimento do conceito de felicidade?

Sawaia destaca a importância de se investigar o tema junto ao público, à medida que:

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Perguntar por sofrimento e por felicidade no estudo da exclusão é superar a concepção de que a preocupação do pobre é unicamente a sobrevivência e que não tem justificativa trabalhar a emoção quando se passa fome.

Epistemologicamente, significa colocar no centro das reflexões sobre exclusão, a ideia de humanidade e como temática o sujeito e a maneira como se relaciona com o social (família, trabalho, lazer e sociedade), de forma que, ao falar da exclusão, fala-se do desejo, da temporalidade e de afetividade, ao mesmo tempo que de poder, de economia e de direitos sociais. (SAWAIA, 2001 p 98).

O enfoque a esse público provoca, invariavelmente, uma reflexão quanto às exclusões sociais e à complexidade de delimitação do fenômeno. Inicialmente, pode- se tender a recair na simplificação do tema, restringindo-o a um fenômeno da ordem do ―singular‖, de decorrência individual do sujeito. Contudo, quanto à temática, Sawaia (2001, p. 08) destaca a necessidade de

abordar a exclusão social sob a perspectiva ético-psicossociológica para analisá-la como processo complexo, que não é, em si, subjetivo nem objetivo, individual nem coletivo, racional nem emocional.

Para subsidiar essa análise mais sistêmica e multifatorial, observam-se características de fenômenos sociais relacionados às pessoas em situação de rua que ultrapassam a singularidade dos indivíduos que acabam por serem os atingidos por essa exclusão, mas que por sua vez auxiliam na compreensão da situação e de sua real dimensão. São elas: desqualificação, desinserção, desafiliação e a apartação social (SAWAIA, 2001).

Para a compreensão desses conceitos, poder-se-ia resumi-los da seguinte forma: desqualificação guardaria relação com a percepção e atribuição e até

―responsabilização‖ (aos indivíduos) de seus ―fracassos individuais‖ nas adequações e integrações sociais e, dentre elas, em especial a relação com o emprego (PAUGMAN, 1991, 1993, apud SAWAIA, 2001). Desinserção seria o distanciamento da dimensão simbólica do indivíduo ante aos sistemas de valores da sociedade, colocando-os ―fora de norma‖, ―sem valor‖ ou ―inútil social‖ (GAUJELAC E LEONETTI, 1994 apud SAWAIA, 2001). Desafiliação, por sua vez, seria a ruptura de pertencimento: “Efetivamente desafiliado seria aquele cuja trajetória é feita de uma série de rupturas com relação a estados de equilíbrio anteriores” (CASTEL, 1995 apud SAWAIA, 2001). Por fim, a apartação social, que representa a separação do

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sujeito como ―não semelhante‖, remetendo a um ser não somente excluído da lógica consumista, mas sim cuja exclusão é, basicamente, quanto a ―não ser do gênero humano‖ (NASCIMENTO, 1995 apud SAWAIA, 2001).

Ao focar na felicidade para essas pessoas em situação de foca-se, também, na inversão da lógica de invisibilidade, colocando ―luz e atenção‖ nessas pessoas que têm tantos desafios diários de sobrevivência e que necessitam terem suas singularidades respeitadas e validades, tendo suas existências consideradas muito além de visões ‗massificadas‘:

(...) No entanto, cotidianamente essa população é tratada com homogeneidade: as pessoas são esvaziadas de singularidade e de história.

Mais do que a naturalização do fenômeno das pessoas que moram nas ruas, talvez interesse aqui um tipo de relação que se estabelece com esta população, que raramente é encarada, mas evitada — física, visual e afetivamente —, humilhada e violentada. (DELFIN et al., 2017)

Tais pessoas, que sem uma residência fixa sobrevivem embaixo de marquises, pontes e viadutos; apresentam existências que poderiam ser consideradas como ―luta‖. Luta contra as intempéries do tempo, luta contra a fome, luta contra os olhares da sociedade, luta contra a invisibilidade social. Mas também, e porque não, luta para ser feliz. Mas como seria essa luta pela felicidade? E como seria essa felicidade propriamente dita? Afinal, seria possível ser feliz mesmo em situações tão adversas?

Problematizando os sentidos atribuídos à felicidade, discute-se também sobre os sentidos atribuídos à própria vida, visto que a felicidade remete à satisfação do sujeito quanto à própria vida (PAIS-RIBEIRO, 2012). Ou seja, esse contentamento também guardará relação com as expectativas e referências singulares para determinação de tal nível de satisfação do sujeito. Ainda, antes mesmo do foco na temática da ―felicidade‖, o próprio estudo dos ―sentidos atribuídos‖ apresenta dupla importância: uma no que tange à diferenciação de sentido e significado e a outra, que faz emergir os aspectos subjetivos relacionados ao tema ―felicidade‖. Nessa direção, González Rey (2007) apresenta que

Os significados, mesmo que com grande freqüência representem vias de expressão dos sentidos, não expressam de forma direta nem linear o sentido associado ao conteúdo significado. Por essa razão, o significado desdobra-se de diferentes formas na linguagem e aparece no pensamento sempre associado a determinados sentidos. Nos meus trabalhos, tenho enfatizado essa relação, assumindo o pensamento não como uma função

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cognitiva, mas como uma função de sentido do sujeito. Daí, a importância das reflexões dos sujeitos para os estudos dos sentidos subjetivos (GONZÁLEZ REY 2000, 2002, 2004a, 2004b, 2005 apud GONZÁLEZ REY 2007).

Quando observada a atuação da psiquiatria e psicologia, por exemplo, tem-se que em linhas gerais o foco tem sido majoritariamente quanto aos sintomas e questões ―disfuncionais‖ dos sujeitos, ou seja, um foco maior nas doenças mentais, na compreensão dos fatores que desestabilizam a saúde mental e na redução de sintomas (FERRAZ et al., 2007). Mesmo a classificação entre ―pessoas saudáveis‖ e

―pessoas doentes‖ muito presente, em especial, no campo da psiquiatria (CLENIGER, 2004 apud FERRAZ et al., 2007) acaba por fortalecer essa lógica

―focada na doença e no sintoma‖. Tem-se, com isso, certo êxito quanto à redução do mal estar das pessoas, mas sem necessariamente aumentar o bem estar desses indivíduos. (FERRAZ et al., 2007).

Essa situação fica explícita também quanto às produções acadêmicas. Em pesquisa em bases de dados de artigos científicos, tem-se uma expressiva desproporcionalidade quando compara-se, por exemplo, a quantidade de resultados relacionados à depressão e à felicidade4. Desta forma, a investigação da temática da felicidade propõe fomentar o aparecimento de novas possibilidades de observação dos fenômenos psicológicos relacionados à promoção da saúde mental, em especial por inverte-se a lógica prevalente de atuação “a posteriori‖ (de ―busca de uma cura‖

ou de ―redução de sintomas‖) para uma lógica focada em promover saúde, qualidade de vida e bem estar e, com isso, atuar na prevenção para que ―a doença‖

não se instaure.

Segundo Ferraz (et al., 2007):

A felicidade é um fenômeno predominantemente subjetivo, estando subordinada mais a traços psicológicos e socioculturais do que a fatores externamente determinados. A identificação desses fatores é particularmente útil na subpopulação que é mais predisposta a doenças mentais, favorecendo o desenvolvimento de abordagens preventivas, com potencial repercussão nas áreas social e ocupacional.

4 Tomando por exemplos duas bases (Scielo e Bireme) e utilizando como argumento de pesquisa as palavras ―felicidade‖ e ―depressão‖, temos os seguintes resultados: Felicidade: 200 na Scielo, 4.267 na Bireme; Depressão: 2.623 na Scielo e 335.264 na Bireme.

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Ao se refletir sobre quais subpopulações seriam mais predispostas às doenças mentais, emergem fatores como a carência de vínculos afetivos, baixa escolaridade, exposição a situações estressantes e traumáticas, insegurança, precariedade material e de acesso à saúde e até mesmo o uso abusivo de álcool e outras drogas (VAN WIJK; MÂNGIA, 2017). Desta forma, é razoável considerar que em alguns agrupamentos sociais essas características estão mais presentes que em outros e, dentre aqueles mais fragilizados pela incidência de tais fatores, inequivocamente destacam-se as pessoas em situação de rua. Com isso apresenta- se a pergunta de pesquisa: quais os sentidos atribuídos à felicidade por pessoas em situação de rua?

Destarte, entende-se por relevante a presente pesquisa científica, cujo objetivo é investigar os sentidos atribuídos à felicidade por pessoas em situação de rua em Florianópolis. Para tal, a mesma se propõe a identificar, para esse público:

as definições atribuídas à felicidade, a existência de fatores relacionados à materialidade nos sentidos atribuídos à felicidade, a existência de fatores relacionados aos vínculos afetivos nos sentidos atribuídos à felicidade, a existência de projetos de vida nos sentidos atribuídos à felicidade e o entendimento dessas pessoas quanto à implicação individual para a promoção de felicidade.

2 MÉTODO

Este artigo é fruto de uma pesquisa de natureza qualitativa, haja vista que o foco está no significado individual e na importância da interpretação da complexidade de cada situação. Teve objetivo exploratório, pois buscou identificar o que pessoas em situação de rua compreendem a respeito da felicidade, assim como visou identificar emoções e sentimentos que emergem quanto ao tema, ou seja, quais os sentidos que os mesmos atribuem à felicidade. A pesquisa possui corte transversal na medida em que o fenômeno não será analisado em um longo período de tempo. Quanto ao delineamento, foi de estudo de campo, tendo sido realizado através de entrevistas semiestruturadas, de modo a possibilitar o contato com as narrativas dessas pessoas, suas práticas discursivas e suas produções de ―sentidos‖

no cotidiano.

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Os participantes foram pessoas em situação de rua5 que costumam permanecer no centro da cidade de Florianópolis SC. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com três indivíduos masculinos, com idades de 31, 48 e 53 anos, que estão em situação de rua há 3, 1 e 7 anos respectivamente.

Foram lançadas perguntas relativas à caracterização dos mesmos (sexo, idade, escolaridade, tempo em situação de rua e breve história de vida até que se visse em situação de rua), assim como questões relacionadas especificamente à temática da felicidade explorando, em especial, os pontos indicados nos objetivos da pesquisa, transitando desde respostas que traduziam suas percepções e opiniões, àquelas que guardavam relação com passagens de suas vidas. Desta forma, foi possível ter contato com fragmentos das suas histórias de vida que guardariam mais relevância, segundo eles mesmos, para que se vissem em situação de rua, além de falas que continham dados para analisar o entendimento de cada um quanto à temática da felicidade.

Ao longo do semestre o pesquisador discente realizou outro trabalho com pessoas em situação de rua no Centro de Florianópolis, vinculado a uma unidade de aprendizagem de estágio obrigatório, relacionado ao campo do trabalho, estando com tal público semanalmente, num período de três meses consecutivos. Por intermédio de tal atuação, foi possível manter contato com diversas pessoas e, a partir destes contatos e do estabelecimento de vínculos, foram realizados convites para participação, que sempre foi ressaltado como sendo de caráter voluntário, e que poderia haver desistência a qualquer tempo. Optou-se realizar prioritariamente com pessoas junto as quais houve maior estabelecimento de vínculo, onde tal relação estabelecida ao longo de diversos contatos favoreceu para que a realização da pesquisa ocorresse sem maiores desconfortos. Nas tentativas realizadas junto ao público feminino não houve aceitação e desta forma o processo foi conduzido com participação exclusiva de homens.

Um dos cuidados na seleção foi no sentido de evitar abordagem de pessoas que estivessem apresentando sinais visíveis de alterações expressivas decorrentes do uso de álcool e outras drogas e que, desta forma, pudessem ter maior dificuldade no entendimento dos propósitos da pesquisa ou mesmo quanto às questões

5 Destaca-se que dentre os participantes, houve pessoas que estavam alternando entre dormir na rua, em abrigo ou ainda em casas temporárias ou de amigos, contudo compreendeu-se que tais variações não prejudicariam a representatividade e participação dos mesmos.

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(perguntas) componentes da pesquisa. As entrevistas foram realizadas na Praça XV de Novembro6, sempre limitada a uma entrevista por dia. As mesmas ocorreram em locais que favoreceram a discrição e não exposição dos participantes, posto que era possível perceber a aproximação de eventuais transeuntes e desta forma eventualmente interromper, ainda que brevemente, o diálogo. Todo o processo de pesquisa foi realizado seguindo os preceitos éticos previstos no projeto científico que antecedeu a esta produção, tendo sido submetido e autorizado pelo respectivo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de ensino de vínculo do pesquisador, inclusive no que tange à realização das entrevistas diretamente nas ruas / arredores do centro de Florianópolis. Ressalta-se que para todos os participantes foi formalizado TCLE, sendo disponibilizada uma via do documento para cada um deles e cujos principais pontos foram ressaltados e esclarecidos pelo pesquisador, assim como eventuais dúvidas.

Todas as entrevistas foram transcritas para possibilitar a análise de conteúdo conforme as três etapas propostas por Bardin (2006), quais sejam: Pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. A etapa de pré-análise visa à organização do material para possibilitar o seu uso. Portanto foi realizada a leitura das transcrições das entrevistas e a escolha das informações constantes e objetos da análise, assim como a formulação de hipóteses e a elaboração de categorias que subsidiaram a análise, a saber: vínculos e afetos, bens e posses materiais, projetos de vida, liberdade, religião, ―viver o hoje‖, felicidade como modo como vê a própria vida, felicidade como ―estado de espírito‖. Além disso, os objetivos específicos foram utilizados como norteadores da análise, onde todos os fragmentos que guardavam relação com tais objetivos foram agrupados e analisados conforme essas categorias, possibilitando posteriores inferências e interpretações das informações e dados obtidos.

A apresentação dos dados foi organizada por meio de texto descritivo, destacando falas mais relevantes a cada uma das categorias abordadas. Nesse conteúdo discursivo pretende-se já elaborar as articulações com a teoria e as problematizações, assim como realizar eventuais cruzamentos de informações entre as categorias lançadas. De modo intencional os participantes, doravante

6 Praça localizada no centro do município de Florianópolis.

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denominados ―Demétrio‖7, ―Hermes‖8 e ―Alencar‖9― (nomes fictícios) não serão

―caracterizados‖ de modo aprofundado (ou ainda, eventualmente, poderão ter falas sem identificação de autoria) visando a manutenção do anonimato de suas histórias e o sigiloso de suas identidades. Optou-se também na transcrição literal de diversos fragmentos extraídos direto de muitas das falas, o que entende-se por favorecer um contato mais fidedigno com o teor das manifestações, mais direto, não se restringindo à interpretação do pesquisador.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.1 QUEM É AQUELE QUE VIVE NA RUA?

―não é fácil.. porque... são várias coisas que se passam na psique, no id, ego, no alterego, no superego... em todos os egos, nos Freud, nos Lacan, nos Dostoievski da vida, que precisam ser, né, condensados, resumidos, destrinchados e dar uma conseqüência para isso, ou seja, ao me conhecer eu conheço o mundo, ao conhecer eu e o mundo, nada me basta! Eu quero ir para o universo! Porque eu sou diverso, e quem está dormindo eu preciso acordar!‖ (―Alencar‖)

Ao trabalhar a temática da população em situação de rua uma pergunta geralmente se faz presente: O que aconteceu com essa pessoa até que ela se visse em situação de rua? Quanto aos participantes desta pesquisa, uma das questões que se assemelha é a valorização e busca de novas experiências pela mobilidade.

Enquanto ―Hermes‖ buscou a rua como uma possibilidade de conhecer novos lugares (no caso, Florianópolis), ―Demétrio‖ e ―Alencar‖ relataram terem vivido em inúmeras cidades, em diversos estados ou mesmo países. Contudo esses últimos tiveram episódios traumáticos cujas implicações restariam ―visceralmente‖ presentes ao longo de suas trajetórias.

A percepção de que tais traumas seriam, dentre outras questões, fatos relevantes (quase como justificativas) para que estivessem em situação de rua pode ser percebida em transcrições de suas falas. ―Demétrio‖ considera: “então, na

7 Uma referência a Deméter, deusa da agricultura na mitologia grega.

8 Uma alusão a Hermes, deus das estradas e das viagens (dentre outros) na mitologia grega.

9 Uma alusão a José de Alencar, um dos mais famosos escritores brasileiros.

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verdade o fator principal de eu ter me tornado um morador em situação de rua foi trauma de infância. O que hoje se chama de bullying na minha época era chamado de sarro, aqueles apelidos doloridos, então devido a um acidente doméstico eu sempre fui rejeitado na escola, com os amigos, né... então esse foi o fator mais importante...”. Quando questionado sobre o acidente em si, ―Demétrio‖

complementou: “Acidente doméstico. Tenho cicatrizes... ainda tenho... quando eu tinha três anos de idade eu me queimei. Meu pai levantava pra fazer café, eu levantava junto (...) Aí num belo 12 de outubro de 1972 (...) eu sei que ele deu uma descuidada e eu coloquei a mão na caneca, a caneca era de alumínio e ela queimou, ela queimou minha mão, e no susto eu caí e derrubei a caneca em cima de mim, então aquela água pegou assim no corpo, no rosto... e caiu por todo o corpo, e naquela época as crianças usavam muito aqueles pijamas de flanela, então aquela flanela grudou no corpo e aí fui pro hospital, fiquei 30 dias em coma, medicina na época muito precária, então ficou essas cicatrizes. Aí com seis, sete anos quando comecei ir pra creche, pra escola, então era rejeitado.. As pessoas me colocavam vários apelidos né... e ninguém se aproximava de mim… parecia que eu tinha uma doença, tipo no tempo lá bíblico, uma lepra… que se pegasse morria..

Então sofri tudo isso, então fui sempre rejeitado..”. Mas, apesar dos traumas decorrentes do acidente, ―Demétrio‖ indica ter concluído graduação, o que lhe gerou muitas oportunidades e certo conforto material, que se esvaiu: ―então, na minha mentalidade, então, depois com meu dinheiro eu comprava amigos, comprava pessoas para estar do meu lado… para suprir aquela necessidade então eu fui gastando, gastando, gastando e quando me vi estava todo endividado, com dívidas com agiota, aí perdi casa, carro foi daí que eu me vi em situação de rua, em 2013, em janeiro de 2013.‖ (―Demétrio‖).

Para ―Alencar‖ os fatos são ainda mais fortes: ―Eu perdi minha mãe com 2 anos e meio, meu pai aos 5 anos de idade ele falou para a irmã dele: „irmã, eu tenho 2 filhos pequenos, um de 5 e outro de 7 ou 8 (minha irmã, que mora aqui no centro), eu não tenho condições (a gente morava em Uruguaiana, ele era trabalhador braçal), preciso que você cuide desses meninos‟. E por motivos outros, saímos de Uruguaiana quando eu tinha 5 anos de idade, para Porto Alegre. E nesse processo, 2 anos depois, eu já estando em Porto Alegre, aos 7 anos, meu pai em Uruguaiana não quis vender nossas terras e foi enforcado, esquartejado em vários pedaços e se encontrou pedaços dele a dois, quase três quilômetros, porque bichos já tinham

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arrancado e levado.. ou seja, isso com certeza contribui também para um pouco de... sair do... né, se o mundo é assim, morar na rua para mim é tranqüilo. Então eu entendo também que isso é um fator.(...) Apanhei muito, com essa irmã do meu pai, com essa tia que eu chamo de „mãezinha‟(...)”.

Observa-se, com isso, que situações traumáticas, associadas às demais vivências e experiências, são compreendidas pelos mesmos como preponderantes para chegar à situação de rua, cuja população geral:

(...) é composta por indivíduos de diferentes realidades, mas que comungam da condição de pobreza sem pertencer à sociedade formal. Por diferentes ou parecidos motivos como a perda de emprego, uso de drogas, rompimentos de laços afetivos, muitos perderam a expectativa de vida e se refugiaram nas ruas (COSTA, 2005, apud ROCHA; EUZEBIO, 2013)

Contudo, ainda que o sofrimento seja fator presente, vê-se conversão de dor em esperança, à medida que tais pessoas direcionam esforços e atuam como protagonistas de movimentos e lutas relativas à defesa da população em situação de rua, gerando novos sentidos aos seus próprios desafios, como poderá ser visto adiante.

3.2 COMO O VIVER NA RUA SE ARTICULA COM A MATERIALIDADE E, POR SUA VEZ, COM A FELICIDADE?

“a rua... ela é tão romântica, que depois que você conhece a rua, depois que você sai, por mais que você queira aquilo não vai sair de você. Então automaticamente eu sempre vou ser rua, eu sempre vou ser...” (―Demétrio‖)

Quando questionados sobre atividades de lazer, os participantes apresentaram, desde momentos em lugares considerados belos (―ir ao mirante da ponte Hercílio Luz”, “passear” e “ir à praia”), como práticas esportivas (“futebol” e

“xadrez”), assim como atividades culturais (―ler livros e jornais‖) ou de entretenimento geral (―ouvir músicas‖), respostas essas que poderiam facilmente ter sido fornecidas por qualquer adulto, de qualquer classe social. Contudo, apesar dessa semelhança, fica demarcada uma diferenciação quanto aos bens materiais, posto que dois dos participantes relataram uma quase inexistência de recursos. A exceção apresentada

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era quanto a um participante que relata ter posses (terras), mas que tais bens não remetem a boas lembranças: ―porque aquela é uma terra de sangue, e só isso que eu quero falar‖.

Nas interpretações quanto à temática da posse de bens e sua relação com a felicidade houve, de certo modo, percepções singulares: enquanto ―Demétrio‖

considera existirem bens necessários (bens considerados por ele como básicos, como moradia e transporte) e outros supérfluos, ―Hermes‖ coloca que ―bens são felicidade comprada”, ao tempo que ―Alencar‖ considera válido almejar bens: ―Ela passa por ali, mas ela não ta afixada nisso, né... Quando eu falo assim, e eu falo aos sete ventos, e a gurizada já não me agüenta mais, „eu vou ter um Porsche na garagem e eu vou para Nova Iorque‟. Então, a felicidade também passa por isso, senão eu não estava falando, só que, antes disso, eu vou ajudar as pessoas que estão precisando‖. Apesar do distanciamento de visões, convergem ao consenso quando se manifestam sobre a relação entre o trabalho e a felicidade.

Mostra-se salutar compreender o ―estar em situação de rua‖ também como uma alternativa escolhida, ainda que diante de reduzidas opções (ou campo de possibilidades), e que por sua vez possa ser promotora de melhorias nos sentidos atribuídos às próprias vidas de tais sujeitos, mesmo que tal ―opção‖ possa fomentar um sofrimento: o sofrimento ético político (SAWAYA, 2001). Destaca-se que tal possibilidade (a de estar em situação de rua como uma ―opção melhor ante ao que está posto como alternativas‖) mostra-se de difícil compreensão àqueles operados pela lógica prevalente, que colocam tais pessoas (em situação de rua) em situação de ―apartação social‖. Essa apartação representa a separação do sujeito como ―não semelhante‖, remetendo a um ser não somente excluído da lógica consumista, mas sim cuja exclusão é, basicamente, quanto a ―não ser do gênero humano‖

(NASCIMENTO, 1995 apud SAWAIA, 2001). Portanto, estar em situação de rua também é uma forma de se contrapor aos valores, às ―imposições‖ lançadas por uma lógica (coletiva) que inclui pelo ter, e exclui pelo não ter.

Essa mesma exclusão dá-se, de modo antagônico, por uma ―inclusão‖ que afeta a todos em maior ou menor escala. Tem-se a ―inclusão perversa‖ (SAWAIA, 2001). Essa advém das apropriações materiais e simbólicas relacionadas aos valores prevalentes que se vinculam à lógica capitalista contemporânea. Ou seja, é uma inclusão pela reprodução de valores postos, que retroalimentam o sistema simbólico de pertencimento, à medida que coloca um ―imperativo‖ para o indivíduo: é

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necessário ―jogar o jogo‖ da acumulação para pertencer; ainda que a efetiva satisfação seja inatingível, pois, tão logo seja alcançado qualquer ―objetivo de aquisição‖, imediatamente o mercado promoverá ―nova meta‖, novos anseios de aquisição – objetos de desejo – com alegações e ―associações‖ dessa ―nova meta‖

como pretensa aproximação da perfeição – fazendo com que o próximo produto seja ainda mais perfeito, adequado e ―necessário‖ (BERTINI, 2014). E com tal

―movimento incessante‖ de impelir sujeitos a ―desempenharem seus papeis na roda do consumo‖, coadunam aqueles que se vêem incluídos e que promovem a manutenção dessa lógica, portanto, perversa, no sentido em que se demonstra aprisionadora deles mesmos; e que no pólo oposto, coloca como ―sem valor‖

aqueles que à margem da sociedade vivem padrões destoantes às premissas de trabalho, produção e consumo.

Constatou-se que para todos participantes, uma compreensão de que o trabalho pode ter um papel instrumental (restrito à remuneração, sem identificação) ou como sendo meio de autorrealização e satisfação, conforme exemplificado em falas como: “porque tem gente que trabalha com o que gosta, daí se sente feliz né...”

(―Hermes‖), “o trabalho está literalmente ligado à felicidade, no caminho da autorrealização, ou seja, fazer o que gosta mas também ser um componente dessa felicidade através do trabalho.” (―Alencar‖). Percebe-se, portanto, a existência de fatores relacionados à importância que o trabalho pode ter nos sentidos atribuídos à felicidade por esses sujeitos. Importante destacar que ao analisar os sentidos atribuídos às relações com bens materiais e trabalho, verifica-se que independente do grau de importância dado, essa valorização não se sobrepõem à valorização dos vínculos afetivos: “o afeto traz muito mais felicidade do que uma televisão de plasma, né?” (―Alencar‖). Mas... de quais vínculos e afetos está-se falando?

Muito do imaginário popular a respeito de pessoas em situação de rua remete a uma visão de total rompimento: rompimento de vínculos afetivos (amigos e parentes), assim como a abnegação de sua história passada. Tal visão remete ao conceito de ―desafiliação‖, citado anteriormente. Contudo, foi possível constatar que para o público participante desta pesquisa, além de estabelecerem contatos com familiares, tais contatos apresentavam expressiva importância em suas dinâmicas de vida, o que destaca as diversas possibilidades inerentes às singularidades.

Quando questionados sobre se mantinham contato e qual a periodicidade, posicionaram: “Todos os dias! Santa internet!” (―Demétrio‖, se referindo aos contatos

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com sua mãe e demais membros da família), “Eu mantenho assim uma vez por mês, às vezes um mês inteiro, e quando tenho um dinheirinho vou na internet, falo com ela direto.” (―Hermes‖, se referindo aos contatos com sua mãe) e “Tenho! Falo com eles direto. Provavelmente agora no começo de novembro eu vou lá, provavelmente não, eu vou lá no começo de novembro!”(...) hoje faço mais contatos, estive lá no aniversário da minha mãezinha, minha segunda mãe, irmã do meu pai que me cuidou desde pequeno, desde os cinco anos idade, fez 95 anos, estive em Porto Alegre vi meus primos (...)” (―Alencar‖, se referindo aos contatos com sua ―mãe‖ e com seu filho), “Cara eu não vou ficar repetitivo da família que eu já falei isso aí e a minha busca é bem maior...” (―Demétrio‖).

Ou seja, emerge uma questão relevante na caracterização de tais indivíduos:

é possível ver-se em situação de rua sem uma total ruptura de suas histórias de vida, onde a manutenção dos contatos com familiares e/ou amigos apresenta um aspecto presente em suas vidas. Desta forma, a lógica de total falta de opção e falta de ingerência quanto às escolhas não é absoluta, mas trata-se do resultado da negociação da realidade (VELHO, 1999, p. 22) que o indivíduo faz diante de sua existência. Tal negociação ocorre em dialética com dois conceitos: diante de um

―campo de possibilidades‖, que são as alternativas lançadas, as opções disponíveis (VELHO, 1999, p. 40) e dos ―projetos‖ singulares, sendo esses a conduta organizada para atingir finalidades específicas (idem).

Contudo, ao observar a inconstância e volatilidade características do que é

―estar em situação de rua‖, percebe-se semelhança entre essa ―impermanência‖ e um modo singular (no sentido de ―diferente‖, contudo comum a todos os participantes) de ver o mundo e a vida: com um viés mais ―imediatista‖. Esse entendimento da concretude que os cerca com foco no ―agora‖ é evidenciado quando verificadas as manifestações para a pergunta: “qual(is) o(s) momento(s) mais feliz(es) de sua vida?”. Das respostas fornecidas, enquanto um participante apontou momentos singulares como o nascimento da filha, dos netos e a obtenção de auxílio idoso para sua mãe; os demais posicionaram-se de modo semelhante:

para ―Hermes‖ “O momento mais feliz da minha vida é quando acordo, a cada dia”, enquanto que para ―Alencar‖, a resposta fornecida foi: “sabe qual o momento mais feliz da minha vida? O momento que estou vivendo agora! Porque ontem eu não me lembro exatamente, e o amanhã eu nem sei se vai chegar, então hoje, o agora, é o momento mais feliz da minha vida”.

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3.3 FELICIDADE: PROJETOS DE VIDA E IMPLICAÇÃO PESSOAL

“Meu empuxo sou eu mesmo, né! Quem comanda o meu universo sou eu, né.. mesmo que... ninguém vai construir um universo a partir de um universo desconexo, eu vou construir meu universo a partir do caos, mas o caos tem milhões de informações, aí eu tenho que organizar esse caos, organizar esse turbilhão, né... que... tu vai pra lá ou vai pra cá? Tu vai se associar com essa ou aquela pessoa? Tu vai conversar esse assunto ou aquele assunto, você vai fazer essa escolha ou aquela escolha? Você está fazendo a escolha errada... ah.. então vou fazer... então você não quer, você não vai atingir seus objetivos... então, organizando esse caos, os fatores externos que chegarem eu vou saber driblá-los, assimilá-los, aceitá- los e decodificá-los, para que eles se tornem do limão, uma limonada.”

(―Alencar‖)

Uma questão salutar é a compreensão de que ―estar em situação de rua‖

também é fruto, em maior ou menor ―grau‖, de escolhas de tais sujeitos [escolhas essas que sempre serão limitadas, conforme o ―campo de possibilidades‖ que se apresente ao indivíduo (VELHO, 1999, p. 40), que por vezes destoam da lógica prevalente relativa às constituições sociais]. Tanto a percepção de ingerência dos rumos de seu destino, assim como a percepção de seus papeis de principais protagonistas na ―construção‖ de suas felicidades constaram ao longo de suas falas, com reflexões relativas à articulação entre aquilo que é de ingerência do sujeito e aquilo que decorre de fatores externos, com limitado controle pelo sujeito. Como exemplo dessas falas, tem-se: “Eu sou, eu determino a minha felicidade e meu destino, e os acontecimentos também determinam minha felicidade e meu destino, mas... o mix do equilíbrio entre saber, entender, que às vezes as coisas não dependem de mim, e não deixar passar batido quando elas dependerem de mim e eu ficar olhando a banda passar... é nisso que me refiro!” (―Alencar‖).

Essa compreensão quanto à implicação individual surge como um ―primeiro passo‖ (em conjunto com a compreensão das variáveis que compõe a realidade e o

―campo de possibilidades‖ que se apresenta) rumo à elaboração e realização de projetos que, quando existentes, são constantemente perpassados, ―atravessados‖, obstados por fatores externos que promovem rupturas (descontinuidades) dos estados de equilíbrios anteriores (retornando às características de desafiliação), posto que a dinâmica do ―viver em situação de rua‖ contém características como a inconstância, a falta de segurança e imprevisibilidade. Essas características, que surgem como obstáculos para consecução de projetos, compõem uma relação

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dialética entre determinação e autodeterminação, e emergem quando verifica-se o entendimento dos participantes quanto a como se vêem no futuro (se consideram que no futuro – 1 ano - estariam ―mais‖ ou ―menos‖ felizes). Todos os participantes não se posicionaram a esse respeito, considerando quase como ―desnecessário e inútil‖ pensar no futuro e destacando a importância de viver o hoje. Fragmentos como "Eu não sei nem o dia de amanhã… falar daqui a um ano... cara, daqui um ano eu não sei, eu não posso te responder essa pergunta" (―Hermes‖) ou ―Então eu já imagino a felicidade, então a felicidade é agora! Ela não vai ser daqui um ano…‖

(―Alencar‖), acabam por demonstrar uma postura mais ―imediatista‖, postas as dificuldades (relativas à situação de rua) de continuidade de seus projetos.

Mesmo com os desafios inerentes às situações que vivenciam, foram identificados projetos de vida, que por sua vez mantinham aderência à valorização dos vínculos. ―Alencar‖ destacou a sua motivação principal (atualmente) quanto ao seu objetivo de lançar seu livro e como tal realização possibilitaria, também, a consecução de outra meta: ajudar pessoas necessitadas. Segundo o mesmo, “a felicidade vai me trazer a minha realização que é o meu ideal de escrever meus livros, de legar não apenas um dinheiro auferido, em função da venda, da tiragem, etc, mas também um legado que vou proporcionar para essas questões que eu já tenho falado anteriormente, embora talvez não tenha nem sido gravado, mas é ajudar comunidades, ajudar com esportes, com lazer, né.” (―Alencar‖).

Essa meta (auxiliar quem precisa), por sua vez, é compartilhada por

―Demétrio‖, que destacou em vários momentos a importância, para sua vida, de manter-se em movimento político e crítico, em defesa dos menos favorecidos, em especial das pessoas em situação de rua. Falas como “desde muito jovem eu coloquei na minha mente, eu trabalhei muito pra isso, que eu sempre iria ajudar o próximo... Eu farei o possível pra não ver pessoas passando todas as dificuldades que eu passei, (...) Então hoje eu posso dizer que eu sou muito mais feliz que antes porque hoje eu realmente, eu encontrei a causa que eu sempre busquei e que eu tava em outros caminhos (...)” (―Demétrio‖) ilustram essa percepção. Desta forma convergem diversos fatores (materialidade, projetos, afetos, liberdade e implicação própria) como promotores de felicidade contrapondo os valores prevalentes que condicionam a felicidade à obtenção e acumulação de bens.

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3.4 MAS AFINAL, O QUE É FELICIDADE PARA PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA?

“Então você considera que você é feliz por estar cercado de pessoas felizes?” (pesquisador)

“E por saber que a felicidade são coisas muito pequenas, não estão baseadas em dinheiro e bens materiais, embora isso também contribua, mas não são as coisas fundamentais.. eu penso em uma coisa maior, uma coisa espiritual a qual eu não consigo explicar, mas eu sei que existe.. tipo essa conversa!” (―Alencar‖)

Pais-Ribeiro (2012) indica que o conceito de felicidade seria “o grau no qual a pessoa avalia globalmente a qualidade de sua vida de uma forma positiva, ou seja, quanto a pessoa gosta da vida que leva” (VEENHOVEN, 1997 apud PAIS-RIBEIRO, 2012). Com isso emerge um aspecto importante dessas conceituações: A felicidade não somente guarda relação direta com a vida (em si) dos sujeitos, mas também, e em especial, guarda relação com o modo como os sujeitos compreendem e interpretam suas próprias vidas, considerando o dia a dia, a oportunidade e as interações ocorridas. Nesse sentido, é oportuno ressaltar o entendimento de Ferraz et al. (2007): A felicidade é um fenômeno predominantemente subjetivo, estando subordinada mais a traços psicológicos e socioculturais do que a fatores externamente determinados. Tal posição é ratificada pela percepção de todos, quando unanimemente posicionam considerarem-se como principais protagonistas, responsáveis pela felicidade de suas vidas.

Reforçando que a felicidade é essencialmente singular, pretende-se explicitar os sentidos e significados atribuídos pelos participantes. Contudo, não se trata de tentativa de ―delimitação‖ desse construto às questões que emergiram pelos mesmos. O foco principal deste trabalho repousa na caracterização dos sentidos da palavra felicidade para esses sujeitos, sentidos que extrapolam a limitação do significado (conceito), de modo a investigar e se aproximar do que é a soma de todos os acontecimentos psicológicos que essa palavra desperta na nossa consciência (VYGOTSKY, 2001, p. 144).

A reflexão sobre os sentidos atribuídos à felicidade faz com que surjam

―aproximações e distanciamentos‖, à medida que por vezes os sentidos atribuídos remetem (e, mesmo, se confundem) aos fatores que favorecem seu acontecimento.

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Pais-Ribeiro (2012), em revisão sobre o tema, destaca essas nuances quanto ao significado de felicidade:

A literatura considera a felicidade como indicador de bem-estar subjectivo (Diener, 2006; Lyubomirsky & Lepper 1999), sendo, neste sentido, confundível com outras medidas deste tipo: Veenhoven (1997; 2000) refere que felicidade, satisfação com a vida, qualidade de vida, bem-estar, denotam o mesmo significado e são utilizados como sinônimos. Felicidade pode significar prazer, satisfação com a vida, emoções positivas, vida plena, ou sensação de contentamento entre outros (Diener et al, 2003). Porque a felicidade tem tantos sentidos quer na linguagem popular como na acadêmica, Diener (2006) diz que tanto pode representar as causas como os efeitos, por exemplo, pode significar humor geral positivo, avaliação global de satisfação com a vida, viver uma boa vida, ou as causas que fazem as pessoas felizes no seu contexto de vida. A investigação sobre a felicidade começou por a utilizar como um equivalente de contentamento, satisfação com a vida e uma sensação de bem-estar (RAMM,1996).

Essas nuances foram ilustradas pelas falas dos participantes. Inicialmente, quando questionados diretamente sobre o que seria felicidade, as respostas fornecidas pelos mesmos foram: “servir ao próximo” (―Demétrio‖), “se sentir bem consigo mesmo” (―Hermes‖) e “estar cercado de pessoas as quais eu gosto”

(―Alencar‖). De imediato observa-se a presença de fatores relacionados aos vínculos afetivos, surgindo também a questão de propósitos (servir ao próximo). Segundo Ferraz et al. (2007) a felicidade guarda relação com os sentidos atribuídos à sua experiência em ―ser-no-mundo‖, sendo uma ―compreensão coerente e lúcida do mundo; ou seja: a felicidade autêntica requer uma maneira coerente de viver‖

(CLONINGER, 2004 apud FERRAZ et al., 2007). Essa conceituação acarreta na implicação da consciência (enquanto ―compreensão‖) do sujeito em relação à sua realidade, tendo papel central nos sentidos atribuídos à felicidade, ou seja, seu entendimento guarda relação com o modo como considera e interpreta a própria existência. Cabe destacar que quando perguntados sobre os fatores que promovem a felicidade, um dos participantes lançou como resposta “ser autêntico / ter uma vida autêntica”, o que pode ser considerado como aproximação do conceito relativo a ―ter uma maneira coerente de viver‖.

Quando questionados em relação à percepção da própria felicidade, todos os participantes posicionaram que se consideram felizes, atribuindo (em uma escala de 0 a 10) os valores: 7, 7 e 8. Quanto às percepções relativas ao comparativo de sua felicidade hoje e antes de estarem em situação de rua, todos os participantes

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destacaram que se consideram mais felizes hoje, justificando desde a questão do

―pertencimento‖ a uma ―causa maior‖ (o movimento da população em situação de rua, movimento esse que 2 dos 3 entrevistados participam), da liberdade proporcionada e do contato com pessoas em semelhante ―situação‖ / semelhantes

―problemas‖ (histórias de vidas também marcadas por perdas, traumas, rupturas de relações e dificuldades na ―adaptação social‖ pretensamente necessária e posta).

Quando questionados sobre um comparativo entre sua felicidade hoje e há um ano, somente um considerou estar atualmente um pouco menos feliz, devido às limitações de locomoção, decorrentes da necessidade de uso de bengala por problemas de coluna. Destaca-se, ainda, que segundo a percepção dos participantes os mesmos consideram ter liberdade, pondo-a como fator fundamental para considerar-se feliz, nada obstante não considerarem os vícios como cerceadores da própria liberdade, haja vista que todos posicionaram terem vícios.

Ao adentrar na problemática dos vícios e sua relação com a felicidade, houve aproximação dessa com os prazeres decorrentes. Contudo, algumas falas destacaram vícios como conseqüência de suas condições: “assim, quando a gente não preenche os espaços, os vácuos, quando a gente não preenche vazios, quando eu não preencho vácuos e vazios e necessidades que não são satisfeitas, naturalmente eu vou buscar dentro de algumas coisas que potencialmente são taxadas como vícios, independente de quais vícios seja, pode ser vício de jogo, vício de alguma droga, vício até de ver novela das oito, que pode ser uma droga também, e, ou seja, mas quando todo aquele equilíbrio social, econômico, que é praticamente a mesma coisa, cultural, de realização pessoal, e de, também, da parte espiritual, quando essas coisas estão em equilíbrio, as escolhas naturalmente vão ser levadas a efeito pra coisas boas, então hoje eu não, eu tenho vários vícios, alguns vícios danosos para mim mesmo, né… nocivos, né… ervas daninhas nas minha escolhas, em função de eu não estar sendo realizado pelas coisas pelas quais a minha essência pede, que também muito passa por essa realização do trabalho, no meu caso específico da leitura, da escrita e da expressão da comunicação. Então isso vai ser substituído, mas hoje realmente tenho isso. Mas assim… e eles me ligam à felicidade. Essa felicidade momentânea, só que ela é muito momentânea, ela é instantânea muitas vezes. Depois vem a frustração, não em forma de desânimo ou depressão, mas vem a frustração de… „pô, cara… um cara com esse potencial..‟” (―Alencar‖).

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Surgiram outras questões comuns nas percepções dos participantes, como a liberdade como pré-requisito para felicidade, a felicidade mais fundamentada no

―hoje‖, a felicidade como satisfação da própria vida e a felicidade como um ―estado de espírito‖, por vezes inatingível. Essas percepções podem ser identificadas em falas como: “Eu acho que a pessoa só consegue ser feliz quando realmente ela descobre que ela pode ser livre, que ela pode ter liberdade que ela quiser... então só assim, porque se você ficar preso, qualquer coisa, você não vai ser feliz...Se você não tiver liberdade, você não vai ser feliz.” (―Demétrio‖), “Eu acho que eu só descobri a minha felicidade quando eu parei com isso, quando aprendi a viver o hoje, a viver o agora.” (―Demétrio‖), “Sabe qual o momento mais feliz da minha vida? O momento que estou vivendo agora! Porque ontem eu não me lembro exatamente, e o amanhã eu nem sei se vai chegar, então hoje, o agora, é o momento mais feliz da minha vida” (―Alencar‖), “mas a felicidade como diz o Frejat, é um estado imaginário. Então eu já imagino a felicidade, então a felicidade é agora! Ela não vai ser daqui um ano… ou seja, ela vai continuar! Por que? Porque eu pretendo continuar! Então o importante é a minha felicidade agora…” (―Alencar‖), “felicidade é se sentir bem (...) onde você está, não importa a pessoa com que você esteja, a felicidade é você se sentir bem consigo mesmo. (...) Porque se o cara não se sentir bem com ele mesmo, vai se sentir bem com quem? Onde? Em qual lugar, né?” (―Hermes‖), “A felicidade ela pra mim ela é uma busca e alegria ela espontânea” (―Demétrio‖), “Porque a felicidade é um processo, eu nunca vou atingir a felicidade plena, nesse plano da terra eu não vou atingir a felicidade plena, mas a felicidade são estados de espírito e escolhas corretas e concretas.. Porque a felicidade evolui com um tempo, só que é um ideal “inalcansável”, pelo mundo ao qual a gente vive, que é um mundo capitalista,(...)” (―Alencar‖).

Outro ponto em comum e, certamente o de maior destaque, foi a valorização dos vínculos, que consta presente e de forma muito relevante para todos os participantes, exemplificada em falas como: “tem que ter um equilíbrio nessas coisas, mas com certeza o que pesa mais é a afetividade dos meus amigos e dos meus familiares, e a minha própria, eu também tenho que me amar… hello!”

(―Alencar‖), "eu acho que isso é muito importante porque ninguém consegue ser feliz sozinho, e isso se a pessoa falar é mentira. Você tem que... Pra você realmente ter a sua felicidade você tem que criar vínculos” (Demétrio) e "Ah... é muito importante

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né... Porque para o cara ser feliz ele tem que ter algo para fazer ele feliz... um familiar, um amigo, uma esposa, um filho(...)" (―Hermes‖).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

―O recado que eu gostaria de dar aqui, igual ao que eu coloquei, assim... Eu gostaria que as pessoas pensassem mais nas pessoas, porque existem seres humanos e pessoas... Ser humano todos nós somos, mas pessoas infelizmente hoje ainda são poucas..‖ (―Demétrio‖)

Esta pesquisa científica tem como motivação inicial promover reflexões a respeito dos valores prevalentes em nosso zeitgeist (―espírito” de uma época, de uma era). Tem, portanto, como intuito também explicitar um posicionamento crítico ante a algumas das questões postas pelos modelos sociais prevalentes, almejando, com o cuidado de não parecer ―pretensão‖, a promoção de interrogações poderosas sobre valores da sociedade, visto que se posiciona em direção a esse conceito:

Interrogações poderosas são as contra hegemônicas, com capacidade de penetrar nos pressupostos epistemológicos e ontológicos do saber constituído, como as indagações que unem ciência e virtude, introduzindo a ordem do valor e da ética nos conceitos científicos. (SOUZA SANTOS, 1997 apud SAWAIA, 2001)

Ademais, é importante ressaltar que a presente produção científica buscou apresentar os sentidos atribuídos à felicidade pelos sujeitos participantes, sentidos esses que não devem ser entendidos como ―generalizáveis‖. Nada obstante, possibilitou contato com diversos fatos e percepções que certamente favorecem reflexões sobre o que é ―estar em situação de rua‖, e em especial, como a felicidade é considerada por pessoas nessa situação.

Destaca-se, diante dos dados e análises, a existência de fatores relacionados à materialidade, aos vínculos afetivos e de projetos pessoais nos sentidos atribuídos à felicidade, assim como percebeu-se entendimento dos participantes quanto à implicação individual na promoção de sua felicidade, o que abre a possibilidade de guiarem-se no sentido da busca pela autodeterminação em meio às determinações concretas, onde suas relações afetivas representam fator fundamental para sua motivação diária. A felicidade surge em suas falas com diversas roupagens, hora

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como liberdade, hora como ajudar o próximo, hora como o simples fato de respirar e viver os momentos proporcionados por essa mesma rua que tira (enquanto limitadora de autonomia), mas que também oferece acolhimento e possibilidades;

que oportuniza experiências e novos sentidos às existências e suas relações.

Muitos fatos ocorridos ao longo dos diversos encontros com essa população não constam neste artigo, contudo mereceriam citação, ainda que breve. Por diversas ocasiões o pesquisador testemunhou cenas fortes, como brigas, uso de drogas, conversas interrompidas pelo excesso de ratos transitando proximamente, dentre outros. Contudo, muitas cenas de solidariedade também permeiam o dia a dia dessas pessoas. Dentre elas, uma constatação inquietante para a lógica prevalente: mesmo não possuindo comida para ―depois‖, essas pessoas muitas vezes tendem a repartir o único alimento para algum semelhante que esteja necessitando imediatamente. E como aprender com esse gesto?

Em suas vivências cotidianas, permeadas por violências, negações e restrições às apropriações materiais, culturais e sociais; onde de modo contumaz vêem ―rasgados‖ seus direitos sociais básicos previstos na constituição, assim como constantemente sofrem com o cerceamento de seus direitos de expressão e de afeto, figuram pessoas que foram acolhidos pela rua e que, a partir desse movimento, se laçam além das adversidades promovendo novos sentidos às suas vidas. Aquilo que para muitos teria por resultado único a redução da ―potência de agir‖ acaba fomentando novos sentidos onde suas vidas, que para alguns seriam passíveis de classificação com o rótulo de ―dispensáveis‖, ganham novas roupagens, convertendo-se em ―serem necessários‖. Onde suas ―causas‖, seus trabalhos, seus projetos e suas ações focam na ajuda ao próximo, na solidariedade e impelem os mesmos a novas possibilidades para ―abrirem-se à humanidade‖ e que demonstram, também, possibilidades de existências com reflexões filosóficas e intelectuais que costumeiramente são desconsideradas, pois emergem desviantes aos padrões estabelecidos, que de modo geral valorizam a elitização da produção literária e intelectual. Existe, sim, muita sabedoria, intelectualidade e muito potencial artístico nas ruas, somente aguardando oportunidades e apoio para levarem-se ao conhecimento da população em geral.

Mais do que compreender os sentidos atribuídos à felicidade por tais sujeitos, mostra-se fundamental problematizar as limitações nos seus campos de possibilidades e, com isso, colocar foco no fato de que as necessidades desse

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público devem ser entendidas como muito além de questões emergenciais / assistencialistas. É necessário reforçar suas condições como sujeito de direitos, que deve ser respeitado como tal, tendo valorizadas sua dignidade, sua humanidade e que assim possam ter a oportunidade de gozar de suas potencialidades em maior plenitude. Para tal, que essa discussão possa subsidiar estudos e ações que tenham por objetivo o fortalecimento da autonomia dessas pessoas que seguem sob o manto da invisibilidade cotidiana e que, quando oportunizada a voz, podem nos agraciar com valiosos aprendizados e produções como esta:

A mordaça, a cultura e a rua

Barco navegando é coletivo Moça dançando canta, é motivo Trabalhar e não se atrapalhar é primitivo

Cantar e errar É não à omissão

Escutar “blues in the sky” é manter-se em pé Ter uma opinião e ouvir um não, é o mesmo que sim

Gostar de música brega é o breque moderno Manifestar indignação?

Construo o meu país e digo “não” à “inação”!

Revendo conceitos enlatados, fico desolado e mudo Sim, luto!

Sexta vou para o forró. É duvidar que coletivo pensa e dança Ter toda a razão sem gritar, é razoável Mas cansa!

Antagônico dizendo sandices? É preferível ao mito, omisso Amar uma mulher é querer ser, sem ler

Há-de-coração

Jogar futebol e falar esperanto é aprontar a mesa e ser a sobremesa Dizer que tem ideias modernas e ser “up-to-date” no país dos banguelas

Referências

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