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Mana vol.7 número2

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Academic year: 2018

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AIGLE, Denise, BRAC DE LA PERRIÈRE, Benédict e e CHAUM EIL, Jean-Pierre (orgs.). 2000. La Polit ique des Esprit s. Nant erre: Sociét é d’Ét hnologie. 443 pp.

Oscar Calavia Professor, UFSC

Como indica R. Hamayon no seu prefá-cio, o xamanismo desempenha hoje o papel que outrora correspondeu ao to-temismo ou ao animismo: representar a alteridade no seu conjunto, abranger to-da manifestação simbólica do pré-mo-derno, do pré-lógico e do pré-literário. Porém, à diferença do totemismo e do animismo, o xamanismo destaca-se pe-la agência, pepe-la capacidade dialógica e transcodificadora. O xamã é um primi-tivo à altura dos tempos.

Longe de rasgar as vestes perante essa estratégia dos espíritos, longe de exigir conceitos rigorosos, os organiza-dores do livro – fruto de um colóquio ce-lebrado em Chantilly, em 1997 – embar-cam numa acepção extremamente am-pla de xamanismo, que se dá ao luxo de ignorar todos os limites que classica-mente serviam para defini-lo. Não se detêm na fidelidade à prática ou à ideo-logia da caça: alguns capítulos, como o dedicado aos Puyuma de Taiwan, des-crevem uma transição institucional e simbólica em direção a um xamanismo agricultor e feminino. Também não se

limitam à velha fronteira entre o tran-se xamânico e a possessão: cultos “ ne-gros” , norte-africanos e brasileiros es-tão presentes no livro. Tampouco admi-tem barreiras entre o feiticeiro e o pro-feta – os capítulos sobre os Meo e os Ti-kuna expõem a extensa afinidade es-condida sob essa oposição, o que exige um exercício cuidadoso para destrinchá-los – nem, é claro, entre magia e reli-gião: o xamã, tão hábil para tomar as for-mas de uma onça ou de um cervo, o se-rá do mesmo modo para tomar a de um sacerdote, e as práticas extáticas podem ser flagradas no coração mesmo do cris-tianismo, do budismo ou do islamismo.

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identificar variantes no xamanismo dos povos Jê; há análises de mitos, rituais e escrituras sagradas; há histórias de vida de xamãs buriatos ou uzbekos e su r

-v e y sda atividade xamânica nas imen-sas extensões da Ásia Central. O livro poderia muito bem ser considerado uma apologia do sincretismo, esse termo des-terrado com uma certa má-fé do vobulário antropológico atual. Vários ca-pítulos fazem uso dele, ou o trazem à discussão, e quase todos se debruçam com cupidez sobre o encontro de pan-teões, de cosmologias e de retóricas, e sobre a homologia que permite esse co-mércio. Ou então se deliciam nessas pi-torescas justaposições que conformam o neo-exótico, como o hotel parisiense usado pelos marabutos imigrados como sucedâneo do deserto ou as explicações científicas de um eclipse integradas no mito cosmogônico Tsachila.

Entretanto, as preocupações cultu-ralistas estão sem dúvida em segundo plano. No primeiro, está a tenaz disputa por poder e legitimidade em meio a campos religiosos recém-criados. O nú-cleo da coletânea mais propício a uma leitura literal do seu título mantém-nos imersos no espetáculo da história re-cente, abordando as relações do xama-nismo com o comuxama-nismo ou o islamis-mo, ou com ambos, bem como com suas reações à queda de um e à ascensão do outro. Em geral, o velho xamanismo se sai muito bem. Mostra-se, por exemplo, mais hábil que o budismo para dar uma resposta simbólica aos horrores do regi-me k h m e rou às exigências do novo re-gime de mercado. Põe também em cir-culação versões alternativas, de sabor inevitavelmente “ reacionário” , da his-tória recente de países como Camboja ou Laos – e a conquista do poder pelo Pathet Lao pode ser vista, assim, como uma invasão da cidade pelos toscos es-píritos das montanhas.

Ao lado desse panorama pós-p e re s

-troik a, o caso sul-americano parece ofe-recer um repertório mais clássico, ins-crevendo-se numa tradição já longa de estudos sobre missões e sobre religiões indígenas que combina a etnografia e o exame das fontes documentais e que experimenta um certo auge em países como o Brasil, onde a história indígena é uma disciplina relativamente jovem. Paradoxalmente, as frias sociedades ameríndias, protagonistas de uma longa queda-de-braço com uma religião uni-versalista, têm permitido uma reflexão detalhada e profunda sobre esse tipo de embate, ao qual se reintegram agora sociedades, como as da antiga URSS ou as da península da Indochina, que es-tão de volta de ciclos candentes de mu-dança revolucionária. Há de um lado ao outro do globo ecos dignos de atenção. É o caso da C oréia, onde uma antiga convivência entre o budismo e o xama-nismo se vai deteriorando porque o bu-dismo quer se livrar de contágios “ ar-caicos” para enfrentar a irresistível as-censão de um cristianismo moderniza-dor. Situação que contrasta com a da América do Sul, onde o catolicismo pro-cura a aliança ou a cooptação simbólica dos mundos afro ou indígena perante a ameaça comum dos pentecostais de ori-gem norte-americana.

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“ trivialização” ou a “ mercantilização” do xamanismo atual podem ser, por sua vez, expedientes forçados para resgatar a honra da modernidade. La Politiq u e d e s Esp rits não cai nas armadilhas da autenticidade, e evita, a todo momento, distinções dúbias entre xamanismos tra-dicionais e reinventados. Este é mais um dos seus méritos.

A variedade do livro, sem dúvida um dos seus atrativos, é em certo senti-do ilusória. Variasenti-dos são os cenários e os nomes dos protagonistas; variados são, até certo ponto, os estilos de antro-pologia que nos guiam através de cada uma das regiões – quanto ao cerne da questão, todavia, a diversidade é muito pouca. Parece que, por mais heterogê-neos que sejam os xamanismos e as re-ligiões mundiais, as modalidades do seu encontro se distribuem pelo mundo sem atender a latitudes e longitudes. As três regiões percorridas são exemplos e não variantes de uma mesma situação. Talvez essa indiscriminação seja resul-tado de opções mais ou menos cons-cientes dos autores: a ênfase está nos momentos de “ negociação” , aqueles em que, por assim dizer, os espíritos po-dem tomar a iniciativa e fazer sua polí-tica. Poucos capítulos, no entanto, di-zem alguma coisa sobre o campo reli-gioso em que essa política acontece, ou sobre as eventuais especificidades de cada religião universalista no seu trato com os fantasmas atávicos. A guerra e a repressão ficam demasiadamente à mar-gem. A caça ao bruxo é parte essencial da história das religiões, agora não me-nos que no passado, mas aparece escas-samente na coletânea, mais interessada em demonstrar a sua ineficácia a longo prazo. A persistência de velhas práticas e de velhos pleitos é, quem iria imagi-nar, a notícia.

CHAVES, Christ ine Alencar. 2000. A M archa Nacional dos Sem- Terra: Um Est udo sobre a Fabricação do Social. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/ UFRJ. 446 pp.

Ant onádia M ont eiro Borges Doutoranda, UnB

A M arch a N acion al d os S e m -Te rra: Um Estu d o sob re a Fab ricação d o S ocialé uma versão revista da tese de doutora-do da antropóloga C hristine Alencar Chaves, defendida na Universidade de Brasília. Na esteira de uma produção acadêmica voltada à compreensão an-tropológica dos fenômenos políticos, o presente estudo singulariza-se como et-nografia de um ritual. Partindo de per-guntas sociológicas clássicas – como efetivamente o social é fabricado? On-de se fundam as representações so-ciais? –, a autora sustenta uma resposta certeira, não menos canônica: através de ações sociais ou, mais precisamente, através de atos de sociedade.

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morte de dezoito trabalhadores no mas-sacre de Eldorado dos Carajás. Cami-nhantes seculares, cujo solo moral se-gundo a autora é a nação, encontravam na Marcha a oportunidade de criar e re-criar seus lugares no mundo, para além de onde partiram.

É sobre o ritual dessa travessia que se debruça Christine Chaves. A autora acompanha os passos trilhados por cen-tenas de homens e algumas dezenas de mulheres entre a Praça da Sé (SP) e a Praça dos Três Poderes (Brasília). Na Marcha, acompanhando um grupo pa-ranaense, ou fora dela, a etnógrafa pro-cura atentar para o que se passa nas es-tradas, nos acampamentos diários, nos comícios e também para o que ocorre em outras tribunas: na mídia, no gover-no e nas coordenações centrais do Mo-vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Sintetizando uma caminhada de gerações, a Marcha ainda expressava, metonimicamente, as experiências de acampamento e assentamento por que passaram muitos dos marchantes: cada dia era também “ um ensaio e uma re-petição, em ponto menor, da própria Marcha nacional” (:91). A autora inclui a participação na Marcha como uma fa-ceta do processo de formação dos sem-terra. Os marchantes foram escolhidos em assembléia, nas suas regiões de ori-gem, por serem considerados militantes qualificados para o que se tinha como um sacrifício. As assembléias, como ve-mos em todo o livro, são espaços sociais legítimos para a efervescência e a va-zão de juízos morais. Tratava-se, por-tanto, de eleitos que em holocausto se-riam oferecidos em nome do sagrado – sendo este relativo ora à terra, ora ao próprio MST. Como em um rito de pas-sagem, esses homens e mulheres, cober-tos de chagas e júbilo, retornariam aos seus, como peregrinos contemplados.

Essas imagens próprias de uma ma-triz cristã, atualizadas através do catoli-cismo popular, são exploradas ao máxi-mo pela autora. A Marcha é um rito de sacralização do MST, de redenção do sem-terra. Com perspicácia, Christine constrói o primeiro capítulo como uma espécie de gênese da Marcha, com seis dias de peregrinação e um sétimo de descanso e redenção. A redenção é com-provada pelo saldo mostrado aos mar-chantes através do apoio de outros tra-balhadores, dos comunicados do pró-prio MST e das notícias desabonadoras veiculadas nos meios de comunicação. Na primeira semana, as agruras da via-gem ainda não haviam se mostrado por completo. Caminhando no populoso Es-tado de São Paulo, os sem-terra ainda não tinham se deparado com os terrí-veis problemas que se abateriam sobre a Marcha, problemas que também se-riam uma síntese extrema e trágica das condições de vida de todos os que nela estavam representados.

Além disso, os sem-terra marchan-tes e a Marcha em si eram índices que apontavam também para os interpre-tantes, para a multidão que os via pas-sar. Qualquer um, o morador da cidade do interior ou o editor do grande jornal metropolitano, todos que observavam os passantes, mais ou menos distantes, dirigiam seu olhar para a terra, para pés que pisavam o chão. A terra tornava-se um símbolo comum, mesmo que com sentidos distintos: “ a Marcha inteira co-municava” (:71).

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não se mostrava um ator político ordi-nário. Tanto o repertório político então acionado quanto suas expressões de lu-ta não se davam no mundo tradicional da política, mundo este associado no senso comum a regras burocráticas, a concepções iluministas conformadoras do Estado-nação, a noções de direito e cidadania e, ainda, ao clientelismo – es-sa prática “ tradicional brasileira” .

É nesse sentido que a abordagem performativa utilizada pela autora se mostra adequada para interpretar tal fenômeno. A etnografia da Marcha ex-pande e caracteriza de um modo novo o universo da política. Mesmo sendo de caráter proposicional e planejado, o efeito (perlocucionário) do ato ou da pa-lavra proferida na Marcha ultrapassa seu sentido referencial. A Marcha pas-sou a ser muito mais que um mero ca-minhar. Entrelaçando esses vínculos, Christine Chaves oferece-nos um qua-dro minucioso da organização da Mar-cha e, tangencialmente, do próprio MST. Vemos um exército que se esten-de em fileiras pelo campo esten-de batalha. Próximos ao fron t– não por acaso as pe-rigosas BRs –, os soldados; longe dali, nas funções de estratégia, os coman-dantes desse movimento. Os soldados lutavam por bandeiras que levavam consigo, à frente do grupo, durante to-do o percurso: a bandeira to-do MST e a bandeira do Brasil. Uniformizados, de bonés, camisetas, sandálias havaianas e capas amarelas para enfrentar as chu-vas, esses soldados sabiam que “ um passo a mais era um passo a menos” (:94) rumo à vitória.

Entretanto, como se esses sinais não lhes bastassem, encenavam todos os dias a sua “ mística” , essa concepção nativa que a autora trata de desvendar. A mística atualiza-se em forma de atos rituais, sendo também um sentimento. Através dela o indivíduo se sente

inci-tado por algo inexplicável, mágico – como resume um assentado: “ a gente sente na carne a coisa” . Uma reflexão maussiana a respeito desse fenômeno não é apenas adequada, como necessá-ria. É um outro marchante que nos leva a concluir: “ fizemos o ato mais para nós mesmos” .

A Marcha é, portanto, um exercício de compreensão, para o nativo, para a etnógrafa e para todos nós. Uma com-preensão que se dá com a travessia, co-mo na costura mimética feita a cada passo entre campo e cidade, intercala-dos pelos marchantes. Dessa costura nasce mais do que um texto, mas uma espécie de colcha de retalhos, que cada marchante levou consigo até Brasília e de lá para o mundo – uma mensagem de todos para todos. O marchante é o mensageiro, o bardo. Nesse ponto pa-rece residir a força simbólica da cami-nhada (:100).

Christine Chaves convence-nos da importância da etnografia pela qualida-de peculiar do seu trabalho qualida-de campo: o deslocamento simultâneo de nativos e antropóloga. Outro aspecto fundamen-tal dessa construção etnográfica é o uso dos diários escritos por dois marchantes, José e Antônio. As vozes e versões dos três são confrontadas, sobrepostas, dan-do ao texto uma densidade concreta de múltiplas vozes e sentidos. Através dos diários, somos conduzidos a experiên-cias de toda ordem e assim passamos a ouvir a voz da “ massa” , também cha-mada, em momentos de crise, de lú m

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dos amigos” . As demandas por água, comida, fumo e havaianas foram sendo silenciadas à medida que o medo toma-va seu lugar entre os marchantes. Quan-to mais próximos de seu objetivo final, a chegada a Brasília, mais eles recea-vam um desfecho funesto. O silêncio im-perava no fim da Marcha. Como resu-miu magistralmente um marchante: “ no combate não se conversa: é a morte” . Ao longo do caminho, marchantes fo-ram expulsos, por indisciplina – asso-ciada em geral ao consumo excessivo de álcool – ou pela suspeita mais grave de se tratar de infiltrados. Essas deci-sões eram tomadas em assembléias e levadas a cabo pelos marchantes res-ponsáveis pela segurança. Somente quando da expulsão dos infiltrados es-tes eram entregues à polícia.

Por fim, destaco dois episódios para sintetizar a chegada triunfal da Marcha Nacional a Brasília, descrita com minú-cia por Christine Chaves. Os “ combali-dos marchantes” , alquebracombali-dos depois da longa travessia, protagonizaram um episódio de valor simbólico inestimável para a compreensão do significado da Marcha. Ao longo dos milhares de qui-lômetros caminhados, os sem-terra vi-ram seus corpos se esvaecerem. Porém, como se todo esse sacrifício não bastas-se, chegando à cidade, com os pés em carne viva, os marchantes ainda se diri-giram a um hemocentro local para doar seu sangue! Passado esse sacrifício co-letivo, no dia 19 de abril, dois dias após o assalto à capital federal, viram tom-bar, queimado nas ruas do Plano Piloto, um índio Pataxó Hã-Hã-Hãe. Aqueles que ainda estavam acampados em Bra-sília encenaram um ato público repu-diando o assassinato de G aldino Jesus dos Santos. Ao vasto repertório da Mís-tica dos sem-terra se acrescia mais um triste fato. A revolta de todos se conver-teu então em energia social para uma

luta que nitidamente não era apenas dos sem-terra.

C omo vemos, o texto de C hristine Chaves – e dos outros marchantes, An-tônio e José – coloca-nos em contato com os elementos usados nas místicas e em protestos às ações governamentais. Estes são levados a falar por si. À beira da estrada, a bandeira do MST é ani-mada, tornada uma espécie de ventrílo-quo e se põe a falar de seus anseios. Es-sa mágica simpática, no sentido preco-nizado por Frazer, se dá de forma seme-lhante em outras ocasiões. Os marchan-tes, por exemplo, atearam fogo em um boneco do Ministro Jobim e em um ou-tro do Tio Sam. Quando em Brasília, os sem-terra ainda destroçaram o Ministro Jungman e o Presidente Cardoso, arre-messando-lhes raízes de mandioca. Co-mo bem sugere a autora: “ o rito é o cria-dor da força e do poder mágico, isto é, da crença coletiva que, justamente por ser coletiva, é dotada da noção de po-der eficiente” (:87). Ao presidente não restou outra alternativa do que ir “ se queixar ao Papa” , em uma viagem que fez ao Vaticano durante o período da Marcha, já que os bispos locais já ha-viam manifestado seu apoio aos mar-chantes, em carta da CNBB.

DAM ATTA, Robert o e SOÁREZ, Elena. 1999. Águias, Burros e Borbolet as: Um Est udo Ant ropológico do Jogo do Bi-cho. Rio de Janeiro: Rocco. 197 pp.

Amir Geiger

Doutor pelo PPG AS-MN-UFRJ

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propósito das (in)comunicabilidades en-tre Oriente e Ocidente; era o início de outro século e fazia sentido associar pa-ralelamente entre si os primeiros termos de cada dicotomia, supondo-as funda-mentais para a idéia de civilização. Cá entre nós, neste “ Ocidente ao ocidente do Ocidente” (parafraseando Álvaro de Campos), essa dualidade persistiu co-mo enigma da autodecifração brasilei-ra: sofremos de tradição ede progresso, e nenhum deles pôde, sozinho, forne-cer-nos modelo de redenção. As obras de Roberto DaMatta tornaram-se uma referência quanto a esse nosso drama da dualidade, e o livro sobre jogo do bi-cho, escrito em parceria com Elena Soá-rez, não foge à regra. Exercitando o ma-nejo de funcionalismos e estruturalis-mos como ascese (e por vezes tou r d e force) de um ofício ético de estranha-mento e relativização, ele se mantém fiel à sua discreta radicalidade de an-tropólogo e crítico cultural, capaz de re-correr a um “ nosso” (re)conhecimento do ou tropara esconjurar os pretensos críticos ou reformadores do famigerado “ país que não é sério” , os ressentidos de sua própria condição periférica, os in-sensíveis ou mesmo cínicos em relação ao país que insistem em julgar como meio culturalmente inóspito à grande civilização – em três palavras: o (impor-tado) etnocentrismo interno circulante.

Com seu statu sambíguo de prática arraigada/difundida e de atividade proi-bida/estigmatizada, seu lugar de char-neira entre o empreendimento capita-lista e a parasitação e corrupção do Es-tado, sua face dupla de “ vício” e de “ jo-go inocente” , o jojo-go do bicho parece de fato apontar para alguns de nossos im-passes, e demandar análise. Chega a ser surpreendente que não tenha mais cedo se incorporado à galeria das insti-tuições-chave estudadas por DaMatta, aquelas nas quais se dão as operações

de articulação e passagem entre as duas ordens dilemáticas – sociedade tradicio-nal e nação moderna – que nos consti-tuem. Poderíamos assim ver no livro prosseguimento de obras anteriores. Sua origem parece pedir tal leitura: é a dissertação de mestrado de Elena Soá-rez, defendida no PPG AS/Museu Na-cional, e que DaMatta, seu orientador, reapresenta com uma camada suple-mentar de comentários e ênfases, refor-ços e reafirmações de posições anteri-ores, novos diálogos com a literatura de ciências sociais, tudo acompanhado de uma nova fornada saída de sua usina de

in sig h ts em Niterói. O leitor avisado, aliás, acreditará perceber, em diversas instâncias, as costuras do texto, os pon-tos em que se dão as intervenções do professor sobre a narrativa e as obser-vações da discípula. Reconhecerá en-tão, no estudo de mais essa instituição popular brasileira (ao lado de carnavais, malandros e heróis), o p re te x toda já co-nhecida e reincidente elaboração matti-ana a respeito do Brasil. Nesse quadro, por assim dizer, paradigmático – uma investigação de base a fundamentar reaplicações de uma teoria original; o objeto tornado em índice, “ marca regis-trada” da condição brasileira –, teríamos no livro uma ilustração do que seria uma escola damattiana, tivesse o próprio Ro-berto optado por uma posição menos li

-m in arem nossa antropologia. Mas essa impressão de d é jà v u teórico e descos-tura textual não está à aldescos-tura dos signi-ficados envolvidos.

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ob-servação abre a análise substantiva que autora e autor apresentam, e fica logo claro que não se trata de acrescentar mais um tema ou objeto à lista das tare-fas acadêmicas. Notar tal lacuna do pensamento social é pôr em questão to-do um sistema estruturato-do de represen-tações sobre o Brasil, e estudar o jogo do bicho (por exemplo) torna-se equi-valente a criticar o imaginário quiméri-co dos projetos nacionais. No centro dessa crítica, há uma percepção antro-pológica que tem caráter de ruptura: “ os bichos são mais importantes do que os bicheiros” . Isso significa quebrar com os sociologismos ou economicismos re-dutores e adotar a perspectiva maussia-na da totalidade do fato social, da im-plicação do jurídico, religioso e econô-mico com o morfológico, o estético, o expressivo. Mas está em jogo também uma espécie de “ fato interpretativo to-tal” , que abrange os vários planos do estudo e remete a uma solidariedade forte, na qual o ob je to e scolh e o m é to-d o: a ousadia ou ao menos o inconfor-mismo do princípio proposto (“ os bichos são mais importantes” ) decorre dire-tamente e é a expressão teorizada da consciência adquirida no trabalho de campo, conforme mostra Elena Soárez em seu relato de pesquisa. O livro se de-senvolve como uma demonstração de que é possível corresponder à exigên-cia nativa de uma antropologia cosm o

-lóg ica e n ão sociológ icado Brasil. O primeiro capítulo traz uma histó-ria mais que elucidativa do desenvolvi-mento do jogo do bicho, nascido no iní-cio da República sob a forma de simples evento promocional do Jardim Zoológi-co fundado por um nobre do Império, o barão de Drummond, em Vila Isabel, bairro por ele construído em terrenos de sua propriedade. O rapidíssimo sucesso da promoção engendrou modificações significativas: o que era um simples

sor-teio dentro dos limites do Zoológico – o animal marcado no ingresso de entrada deveria corresponder àquele escolhido pessoalmente pelo barão – logo se tor-nou um jogo, com a introdução da pos-sibilidade de escolher o “ bicho que vai dar” , isto é, de ter palpites e ap ostarem determinado resultado do sorteio, e sem para isso ser necessário freqüentar o Jardim Zoológico, graças a uma rede (ainda descentralizada) de intermediá-rios ou b ook m ak e rse de agentes finan-ciadores independentes, que “ banca-vam” as apostas. Desse modo, coetânea à modernização e ao igualitarismo re-publicano recém-im p lan tad os, aparece uma possibilidade formal de ascensão social, cuja concretização no entanto é buscada, não pelo trabalho (desvalori-zado numa sociedade marcadamente escravocrata), mas com recurso a uma série de figuras extraídas do domínio natural (os b ich os). Esse quadro inicial já fornece a imagem-mestra do livro: a modernidade domesticadora, que põe os animais selvagens dentro de jaulas e os expõe para o lazer e instrução gerais, produz também a contrapartida primiti-va desse movimento, pondo os bichos (selvagens e domésticos) à solta no “ imaginário urbano” da capital.

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nem construtividade social, em que o enriquecimento é dos ricos – portanto, um “ mero” jogo de e sp e cu lação. A pia-da então corrente – “ Que bicho deu?” , “ Deu Deodoro!” – é muito mais do que sátira: propõe, com fina ironia, uma “ desbestialização” por bicho interpos-to, e de lambuja pontua a selvageria da modernização. “ Sob a capa da passivi-dade o povo lê o que vem de cima como um teatro de ‘bichos’” (:99).

O jogo do bicho, portanto, como sin-toma; donde também os bichos como metáfora: o capítulo 3 se debruça sobre o sistema dos 25 animais, classificando-os segundo classificando-os atributclassificando-os comumente as-sociados a eles na elaboração das apos-tas – originadas tipicamente de “p alp i

-te s” , isto é, de eventos e circunstâncias submetidos a uma lógica da abdução (que autora e autor não chegam a men-cionar diretamente). Dessa interpreta-ção não poderia deixar de resultar um “ retrato cultural” , uma evidenciação de relações constituídas nos mais diversos campos sociais. O capítulo se desenvol-ve num terreno modesenvol-vediço, em que as estruturações correm o risco de afrou-xar-se em petições de princípio e amor à simetria. Não é no entanto menos ne-cessário à economia geral do estudo, e funciona perfeitamente – talvez não co-mo acesso a um co-modelo estrutural, pois nem parece ser essa a intenção, e sim como demonstração do poder da hipó-tese central.

Essa hipótese central reaparece ao longo do livro; ei-la, numa de suas ver-sões: “ O jogo do bicho é um sistema classificatório de caráter totêmico que, paradoxalmente, surge no mundo urba-no e caracteriza um processo de moder-nização singular e contraditório, por não se conformar aos padrões deriva-dos da experiência inglesa, francesa ou americana, que até hoje são tomados como universais e exemplares” (:38-39).

Uma afirmação inteiramente conforme à visão mattiana já conhecida e sedi-mentada, mas que traz, como elemento menos usual, uma disposição primitivis-ta levada a sério. Se os bichos, de um ponto de vista que aceita a história, são metáfora e sintoma de nosso capitalis-mo selvagem, eles não são menos d e v o

-rad ore sdela, de um ponto de vista sis-têmico. O capítulo 2, leva às últimas conseqüências metodológicas e teóricas o espírito da e n trop olog iaestrutural: os bichos são mais importantes que os bi-cheiros p orq u eo palpite (cuja lógica de formação e de aplicação é aí analisada) funciona como máquina de esfriar a his-tória. Os bichos são acionados (nos so-nhos, nas associações de idéias etc.) por uma série de operações nada mo-dernas, parentes não só do totemismo, como das artes divinatórias e dos ritos sacrificiais. Mais que antimoderna, essa proliferação mítico-imaginária seria “ transmoderna” , na medida em que “ canibaliza” os valores, crenças e axio-mas básicos do sistema (enriquecimen-to individual por vias racionalizadas, re-lação instrumental com a natureza etc.). Recusando interpretações evolucio-nistas e adaptativistas (sobrevivência, “ resíduo animista” , na opinião de G il-berto Freyre; reencenação secundária do bandeirantismo, do enriquecimento rápido e fácil, segundo Viana Moog), autora e autor mostram que no centro da prática do jogo há uma operação ati-va – cognitiati-va, cosmológica – de leitura do mundo. O palpite não é recurso ins-trumental e quase aleatório para a apos-ta no jogo; esapos-ta última é que é uma for-ma de dar peso e conseqüências for- mate-riais (no limite, a mudança das condi-ções econômicas e de classe) a um ou

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li-gação entre duas ordens incomensurá-veis. “ O mundo dos bichos procede iso-lando o fato e prescindindo da cadeia [evolucionista, historicizante] de acu-mulações” ; toma os eventos “ como ‘si-nais’ ou ‘mensagens’ referidas a um có-digo de palpites – fontes ocultas de ri-queza e felicidade” e acredita ser possí-vel “ transformar probabilidade em des-tino e evento em estrutura” (:158-159).

Finalmente, o “ Palpite Inicial” , assi-nado por DaMatta e que funciona como introdução ao livro, pode ser lido como o “ arremate” que também é, e como transfiguração do argumento. Trata-se de perceber em tudo aquilo que parece em nós “ resistir” a um processo civiliza-tório pela via econômica modernizante, não a marca da barbárie inerradicável, mas uma alternativa de civilização. Tra-ta-se também de atentar para a mons-truosidade do capitalismo aqui implan-tado como parte do “ conjunto de insti-tuições exógenas que aqui chegaram sob a bandeira de serem apenas instru-mentos tecnicamente neutros de mo-dernização” , mas que “ invariavelmen-te assumem expressões locais e ga-nham novos significados” (:36). Trata-se, enfim – unamos primitivismo e críti-ca cultural –, de desmistificríti-car o críti- capita-lismo selvagem para remiticizar o ca-pitalismo d osselvagens. “ De fato, en-quanto Freud, em Viena, descobria e buscava exorcizar a irracionalidade dos sonhos [...] tomando-os como ‘via régia’ para o estudo do inconsciente, no Rio de Janeiro o barão de Drummond fazia justo o oposto, convocando o universo onírico como parte de uma loteria po-pular que destemidamente reintegrava o ‘primitivo’ e o mágico com o racional e o utilitário” (:31). O totemismo do bi-cho é, portanto, o operador crítico de nossa inconsistente ordem racional. Eis uma moral possível desse livro fab u lo

-s o, onde, com efeito, os bichos não se

pensam entre si, mas “ jogam” com os acontecimentos humanos e falam de um país peculiar, onde a modernidade ain-da não se separou ain-da tradição e o atraso se consolida a golpes de progresso.

VALE, Alexandre Fleming Câmara. 2000. No Escurinho do Cinema: Cenas de um Público Implícit o. São Paulo/ Fort aleza: AnnaBlume/ Secret aria de Cult ura e Desport o do Est ado do Cea-rá. 178 pp.

Horacio Federico Sívori Doutorando, PPG AS-MN-UFRJ

Para entender a dinâmica da recepção dos gêneros pornográficos torna-se chave a noção de e sp a ço d e e x ib ição. No cinema pornô, o filme vira pano de fundo do cenário público da platéia, on-de amiúon-de passa a ter lugar uma outra cena. A sociabilidade homossexual mas-culina e travesti, essa ou tra ce n a, em uma sala de exibição de cinema porno-gráfico, é o assunto do livro de Alexan-dre Fleming Câmara Vale, originalmen-te elaborado como dissertação de mes-trado em sociologia, em 1997, na Uni-versidade Federal do Ceará. A partir de uma pesquisa etnográfica feita em For-taleza entre 1995 e 1996, Vale desven-da os segredos do e scu rin h o d o cin e m a

para o olhar antropológico e insere-os na topografia sociossexual do espaço urbano contemporâneo.

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se-xuais dos travestis e outros freqüenta-dores que faziam do cinema Jangada sua “ casa” , “ alpendre” , “ quintal” , “ fa-culdade” , “ escola” até seu fechamento em 1996. A partir da migração do “ ci-nema familiar” para o sh o p p in g e da consolidação do m e rcad o g ay em áreas mais “ nobres” da cidade, Vale acha sen-tido histórico na confluência entre o pro-cesso de especialização do segmento pornô do circuito de salas de exibição cinematográfica e a reterritorialização, no centro da cidade, dos encontros en-tre tra v e s tis e h om e n s d e v e rd ad e, b i

-ch ase b o fe s. Uma combinação singu-larmente articulada de fontes tão hete-rogêneas torna o produto interessante tanto para os leitores não iniciados na temática abordada quanto para aqueles que vão comparar seus achados e inter-pretações com a recente bibliografia brasileira e internacional sobre cinema e pornografia, sociabilidade homosse-xual masculina e prostituição travesti.

Respondendo provavelmente à or-ganização da tese acadêmica, a obra está dividida em capítulos e subseções, separando os argumentos mais “ teóri-cos” dos achados da pesquisa e relatan-do com detalhe a construção relatan-do objeto de estudo. Essa construção do texto lem-bra uma outra etnografia de uma z on a m oralurbana, também publicada após ser apresentada como dissertação de mestrado, O N e g ócio d o M ich ê(1987), de N. Perlongher, com cuja obra o tra-balho de Vale guarda parentesco explí-cito. Outra referência central é o traba-lho de A. Leite, Fortale z a e a Era d o Ci-n e m a (1995), que forneceu o rico veio documental (jornalístico e visual) da pesquisa histórica, base dos capítulos II e III. A exploração de Vale merece ser inscrita na incipiente produção socioló-gica e antropolósocioló-gica sobre o “ sexo pú-blico” , da qual vêm à memória o traba-lho inaugural de L. Humphreys, Te a

-room Trad e : Im p e rson al S e x in Pu b lic Place s (1975 [1970]), e a recente cole-ção, Pu b lic S e x , G ay S p ace, organizada por W. Leap (1999).

No capítulo I, “ O Cinema Jangada como Lugar de Investigação” , Vale es-tabelece as condições de existência desse espaço le g ítim oe lim in arno pro-cesso de especialização das salas desti-nadas ao gênero pornô como uma espé-cie de g u e to d e sv ian te ,que acompanha a especificação e te rrit orializ a çãodos prazeres da platéia masculina. O capí-tulo II, “ Os Sentidos do Escuro ou No Escurinho dos Sentidos: Platéias, Trans-gressão e G êneros” , relata a constitui-ção do e scu rin h o d o cin e m acomo zona moral, palco de transgressões e lugar de socialização da sexualidade, desde a chegada das salas de exibição em For-taleza. Resulta esclarecedora a seg-mentação progressiva das salas segun-do gêneros cinematográficos e platéias, com produtos e espaços qualitativa-mente diferenciados para o público bur-guês e popular, masculino e feminino.

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longo da sua especialização, o roteiro pornô teria adquirido características es-tereotípicas – rítmicas, temáticas, ape-lativas – que converteriam a ação fílmi-ca em um ritual replicável ou ainda complementável. O pornô geraria uma

d is p osiçãoespecífica possibilitada pe-las regras desse ritual; mas a atividade na sala de exibição não dependeria, es-tritamente, do “ estímulo” do filme: os homens que freqüentavam o Jangada descobriram redes de sociabilidade di-ferenciadas, onde a p e rform an ce cine-matográfica era acompanhada por ou-tras p e rform a n ce s, materiais mas não menos imaginárias, na platéia: “ […] vo-cê ia lá e realizava, quem era v oy e u rse realizava, quem gostava de transar com quatro ou cinco homens se realizava, quem gostava de policial militar se rea-lizava, lá era, como se diz, um cinema de fantasias” , enuncia um entrevistado (:80).

O percurso histórico e conceitual precedente situa o espaço e o público da exibição pornográfica em uma pers-pectiva cultural e histórica. O capítulo IV, “ No Escurinho Urbano do Janga-da” , justificadamente o mais extenso, é fruto de um trabalho de campo etnográ-fico no cinema Jangada. Na d e scrição d e n sa da sociabilidade no interior do Jangada, que dá conta da proliferação de gêneros e papéis sexuais nas práti-cas dos freqüentadores, Vale apela à noção deleuziana de c ód ig o-te rritório, utilizada também por Perlongher em sua etnografia da prostituição masculi-na em São Paulo. Da mesma forma que entre os m ich ê spaulistanos de Perlon-gher, a trama classificatória enuncia “ uma espécie de plano de uma ‘carto-grafia do código-território existencial’ que ‘pairava’ sobre a cabeça dos espec-tadores-atores. Verbalizado por alguns, silenciado por outros, esse modelo era posto nos atos, nas condutas, nas

práti-cas e, principalmente, nas aparências corporais” (:100). Esta cartog rafia d e se -jan te operaria inclusive nas sensações corporais, imprimindo nas classifica-ções certo v alor e n e rg é tico, como no ca-so do silêncio como marca de masculi-nidade, que garantiria tanto a não-iden-tificação como homossexual quanto a própria excitação sexual. “ Para deter-minados espectadores, mediar lingüis-ticamente uma ‘pegação’ seria, em de-terminados casos, inviabilizar alguns contatos anônimos e efêmeros que ti-nham lugar no interior da sala. O silê n -cio p od e ria se r tan to con d ição d e p ossi-b ilid ad e p ara n ão te r q u e ad e rir ao cód ig o q u an to g aran tia cód e e x citação se -x u al” (:100-101, ênfases minhas). Este achado, ilustrado na conduta comple-mentar de b ich as e b ofe se de travestis e clientes, resulta esclarecedor para en-tender as trocas e a circulação de valor no campo homossexual. Evidencia-se a disputa do significado do p ú b lic o no “ cinema de pegação” : o lu g ar p ú b lico

intensificaria, para alguns freqüentado-res, as possibilidades do prazer sexual, enquanto para outros a presença de e s

-p e ctad ore sinibiria e reorientaria os en-contros sexuais para lugares m ais p ri-v ad os. Para outros, ainda, a atividade sexual se torna afirmação de privacida-de, mesmo n o espaço público.

Atenção especial merecem as tra-vestis que achavam no Jangada um es-paço protegido para a prática da prosti-tuição. Em paradoxo com o senso co-mum que associa passividade ao femi-nino e atribui masculinidade ao “ ativo” , no cinema pornô são as travestis que desempenham um papel ativ o, circu-lando à procura de clientes, mas tam-bém na exibição conspícua da sua m on

-tag e m para o resto das b ich as, em con-traste também com a outra face do mes-mo paradoxo, a p assiv id ad edos m ach os

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provocá-los, excitá-los, “ dar um close” neles. Nessa p e rform an ce, as travestis contestam a apropriação masculina do espaço do cinema como sítio de trocas

p riv ad as, portanto não poluídas pelo es-tigma do “ sexo público” , da visibilida-de do (homo)sexual. As travestis reivin-dicam esse espaço como simultanea-mente público e íntimo, tanto que se ferem a ele como “ escola” e “ casa” , re-criando na platéia, nos corredores e no pátio traseiro hábitos que evocam aque-les espaços. Embora restringidos à so-cialização travesti n e sse e sp aço p articu -lar, os achados de Vale enriquecem o conhecimento sobre as vidas desse gru-po e vêm ampliar o diálogo iniciado pe-las etnografias de H. Silva, Trav e s ti: A In v e n ção d o Fe m in in o (1993), N. De Oliveira, Dam as d e Pau s: O Jog o A b e r-to d os Trav e stis n o Esp e lh o d a M u lh e r

(1994) e D. Kulick, Tra v e sti: S e x , G e n -d e r an -d Cu ltu re am on g Braz ilian Tran s-g e n d e re d Prostitu te s(1998), que reali-zam discussões aprofundadas e polêmi-cas sobre os significados de se r trav e sti. Na reconstrução histórica que serve de marco à etnografia, a re con v e rsão do cinema Jangada para o gênero porno-gráfico, sua abertura para a prostituição travesti e o subseqüente fechamento da sala são explicados no contexto de ten-dências globais à especialização do centro das cidades como zona moral e à desaparição das grandes salas de exibi-ção pelo e fe ito d e su b stitu içãoda proje-ção na grande tela pela tecnologia digi-tal. Atravessada por esses dois proces-sos, a conjuntura do período estudado por Vale aparece como “ divisora de águas” na história do circuito exibidor local. Mas o horizonte dessa transfor-mação excede os limites empíricos da pesquisa: de um lado, o efeito de subs-tituição é uma hipótese ainda não com-provada e é possível argumentar que a imagem digital perfeita na TV familiar

não substituirá o ritual público do cine-ma; de outro, as lutas simbólicas na to-pografia sexual da cidade e no campo homossexual excedem o espaço do e s

-c u rin h o d o -cin e m a. Nas páginas da “ Conclusão” do livro, Vale prevê, como efeito da extinção dessa grande sala, a invisibilização (ou ainda a desaparição) da sociabilidade que ali tinha lugar, ao se redirecionar o tipo de exibição e de troca sexual que tivera lugar nesse lo-cal para uma rede de pequenos (menos

c om u n itá rios, mais in d iv id u a liz an te s) “ cinevídeos” , onde a sociabilidade do Jangada não teria e s p a çopara se de-senvolver. Esta afirmação contradiz os achados da etnografia do Jangada, por-quanto desconsidera a agência especí-fica e ubíqua das trav e stis, b ich as, g ay s, b ofe s, m ach os e “h om e n s d e v e rd ad e ”, à qual t a m b é mrespondem mudanças tais como a ampliação ou redução de um circuito de exibição. No relato da desaparição do Jangada constata-se um certo tom nostálgico, que evoca a voz dos antigos freqüentadores do cinema logo após seu desaparecimento. Ro-mantiza-se o passado idealmente co-munitário da v id a d om é stica no pátio do Jangada, enquanto o cinevídeo apa-garia essa dimensão do cotidiano ho-mossexual, silenciando os travestis e neutralizando a tensão “ implícito/explí-cito” que se produz (produzia, segundo Vale) na contraposição entre a g ritan te p e rform an cetravesti e o silêncio dos es-pectadores machos. O relato nostálgico e a retórica que apresenta as travestis como v ítim asda história produzem tam-bém um efeito positivo: ao ler o p re se n

-tede desorganização e predizer o fu tu

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VARGAS, Eduardo Viana. 2000. Ant es Tarde do que Nunca: Gabriel Tarde e a Emergência das Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria. 280 pp.

Cecília Campello do Amaral M ello Mestranda, PPG AS-MN-UFRJ

Como um autor conhecido e atuante em seu tempo, dono de um sistema de pen-samento próprio e singular, pode ser esquecido? O que está em jogo quando se excluem determinados autores de um campo de investigação? O que faz com que determinadas idéias sejam re-calcadas no processo de institucionali-zação de uma disciplina? Fruto de uma dissertação de mestrado defendida no PPG AS-MN-UFRJ em 1992, A n te s Tar-d e Tar-d o q u e N u n caaborda essas ques-tões, tendo como vetor analítico a traje-tória e as idéias de Gabriel Tarde (1843-1904), “ um intelectual que estabeleceu os princípios […] de toda uma sociolo-gia das nuanças, dos detalhes e dos re-lacionamentos infinitesimais, de uma microssociologia heterogênea” (:24); um “ crítico à reificação dos sujeitos co-letivos e à naturalização dos fenômenos macrossociais” (:33). O grande mérito desse livro é trazer à tona a força e a be-leza do sistema de pensamento de G a-briel Tarde, ativamente esquecido e re-legado a um plano secundário na histó-ria da disciplina; mas também se pode afirmar, por outro lado, que as contri-buições do livro superam as por si só instigantes idéias e os princípios do pró-prio Tarde. Temos aí um relato consis-tente do processo de emergência das ciências sociais na França, assim como uma análise heterodoxa do pensamen-to de Durkheim, contemporâneo e prin-cipal opositor de Tarde.

Se termos como “ sociedade” , “ ano-mia” ou “ representação coletiva”

po-dem hoje ser considerados metáforas “ cansadas” , Vargas mostra que as ten-sões inerentes a essas formulações já se revelavam em seu processo de emer-gência. O universo conceitual formula-do por Tarde poderia fornecer novas perspectivas para uma sociologia ou an-tropologia contemporâneas interessadas em explorar essas tensões e neutralizar o poder explicativo das dicotomias clás-sicas (como indivíduo x sociedade) ou de categorias substancializadas (como a própria noção de indivíduo).

A primeira parte do livro trata dos embates e agenciamentos políticos e in-telectuais que permearam o processo de emergência das ciências sociais na França em fins do século XIX; a segun-da aborsegun-da o “ encantamento de idéias” de Tarde em sua singularidade e diver-sidade. Essa organização do livro, privi-legiando a separação entre as idéias do autor e o campo de disputas político-institucionais de sua produção, escapa ao duplo risco de apoio excessivo no contexto – o que pode desfocar as idéias – ou de assunção das idéias como reali-dades em si mesmas, referidas a um contexto indeterminado. É possível es-colher entre “ mergulhar” diretamente nas idéias de Tarde ou se aproximar tendo um quadro referencial prévio.

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aten-ta a uma “ multiplicidade de agencia-mentos” , em busca da detecção dos

e fe itos d e p od e rcentralizadores do dis-curso sociológico clássico constituintes da ortodoxia durkheimiana. Para tanto, destaca a relativa dispersão dos autores e discursos sociológicos na segunda metade do século XIX na França, de-marcando as tentativas de articulação e os diversos projetos concorrentes à d é

-m arch e durkheimiana, organizados em torno de diferentes associações ou es-colas responsáveis pela construção e problematização desse novo domínio de saberes sobre o “ social” .

Nos capítulos “ Mudanças Ambiva-lentes” , “ Quando Saber também É Po-der” e “ A Panacéia Pedagógica” , o au-tor procura articular as inquietações morais e políticas da época com a estru-turação de um critério propriamente científico de validade dos discursos so-ciológicos. Há um investimento político na produção de novos saberes-poderes relativos ao “ social” ao qual a sociolo-gia e a pedagosociolo-gia de Durkheim se ade-quam perfeitamente dada sua declara-da preocupação em sanar os suposta-mente graves problemas sociais e mo-rais da sociedade francesa. Assim, essa sociologia vai definindo os critérios de cientificidade que, mais tarde, se torna-rão hegemônicos – racionalismo, rigor metodológico, objetividade, especiali-zação –, demarcando suas fronteiras disciplinares, distanciando-se da psico-logia, da filosofia e da literatura e cons-truindo, desse modo, uma “ zona onto-lógica específica do social” (:81).

Nos dois capítulos seguintes, Var-gas apresenta as continuidades presen-tes na formalização dos saberes sobre o social que se organizam em torno de um “ paradigma organicista” . O autor assinala que a metáfora do organismo, produto de um empréstimo às ciências naturais, traz efeitos de poder

impor-tantes para o processo de instituição da sociologia como disciplina: a crença em uma ordem social como totalidade su-pra-individual, a tendência à especia-lização e a luta pela sua conservação através da ordenação e equilíbrio de suas funções. O autor aponta também para outros signos que denotariam a in-tensificação do investimento político nos saberes sobre o social, tais como as disputas intra-universitárias e interdis-ciplinares, visíveis através dos pertenci-mentos e colaborações nas inúmeras re-vistas especializadas e sociedades to-madas pela “ febre” de tematização do social, cuja dinâmica vai, aos poucos, definindo o distanciamento entre os cursos “ prático-profissionais” e os dis-cursos “ científicos” .

Em “ Durkheim e o Domínio da So-ciologia” , Vargas discute as diferenças entre as trajetórias de Durkheim e Tar-de, confrontando a conquista tardia de titulações de prestígio do primeiro e a carreira “ meteórica” e bem-sucedida do último – que, em 1899, já é profes-sor-titular do Collè g e d e Fran ce. Apesar do percurso acadêmico relativamente conturbado do “ pai da disciplina” , Var-gas demonstra, a partir de Karady, co-mo se produz um co-movimento de organi-zação profissional e consolidação uni-versitária lado a lado à representação da sociologia de inspiração durkhei-miana como um grupo “ coeso” , apesar das tensões internas ao grupo. Seguin-do implicitamente a crítica de Tarde, Vargas faz uma análise refinada dos princípios subjacentes ao vocabulário durkheimiano clássico, a começar pela noção do social como realidade su i g e -n e ris, ou, visto de outro modo, da socie-dade como arte fato con ce itu al.

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an-tidogmatismo de Tarde sempre pairou como um “ fantasma” sobre Durkheim, uma vez que apontava para as tensões inerentes às noções mais caras a este último. Em “ Uma Sociologia das Nuan-ças” , Vargas revela os três grandes golpes que a crítica de Tarde desfere contra todas as formas de mecanicis-mo e organicismo do arcabouço teóri-co durkheimiano. Em primeiro lugar, Tarde rompe com a dicotomia livre-ar-bítrio/determinismo, propondo que ca-da ordem de determinismo intervém fortuitamente sobre outra, produzindo encontros-acidentes e, assim, propa-gando as diferenças. Em segundo lugar, Tarde questiona o estatuto propriamen-te ontológico do indivíduo, assumindo uma noção extremamente plástica do sujeito humano – “ a grande questão, […] não é saber se o indivíduo é livre ou não, mas se o indivíduo é real ou não” (:195). Ademais, recusa o olhar unitário que busca representações totalizantes, como a noção de sociedade ou de re-presentação coletiva que, para Tarde, não são categorias explicativas. Pelo contrário, é a própria noção de socieda-de ou a “ similitusocieda-de socieda-de milhões socieda-de ho-mens” que precisa ser explicada. Dessa forma, Tarde desnaturaliza as seme-lhanças sociais, buscando o mundo dos fenômenos elementares, infinitesimais, definidos pela diversidade. Para ele, as formas sociais não mudariam do mais simples para o mais complexo (o que seria um “ erro evolucionista” ); a com-plexidade é inerente ao social e a mu-dança seria a passagem de uma ordem de diferenças para outra.

Em “ O Estatuto do Social” , enten-de-se o que, para Tarde, seria o princí-pio subjacente constituinte da vida so-cial: uma distribuição mutante de certa soma de crenças e de desejos – “ a uni-dade das relações sociais não é dada a priori […], ela é sempre contingente e

se estrutura situacional e temporalmen-te, isto é, na simultaneidade das convic-ções e das paixões” (:212). As crenças e os desejos seriam fluxos que cruzam em todas as direções os domínios molares e moleculares, articulando o infra-indi-vidual dos “ detalhes infinitesimais” ao domínio supra-individual das represen-tações, concepção que dissolve a linha tão bem traçada por Durkheim demar-cando o social e o individual.

No capítulo intitulado “ Princípios Cosmológicos” , verifica-se como Tarde afirma simultaneamente o acaso e a ne-cessidade: o real é apenas um caso do possível, um fragmento do realizável; está por definição e m e x ce sso.Note-se que as potencialidades não atualizadas continuam a existir virtualmente e a

afe taro que realmente existe: “ no real, há séries causais múltiplas e indepen-dentes. Se, dentro de cada uma delas, tudo é rigorosamente determinado, no real essas séries se encontram contínua e inexoravelmente, e seus encontros nada têm de determinado: eles são for-tuitos, situacionais e atuais” (:215). O segundo princípio cosmológico é a afir-mação da diferença como definidora da existência humana e social, na qual o lugar da identidade seria mínimo. Se-gundo Tarde, haveria uma tendência (que Vargas qualifica de antropocêntri-ca) de “ imaginar homogêneo tudo o que nós ignoramos” .

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Ao retirar as idéias de Tarde do es-paço das virtualidades não realizadas, Eduardo Vargas convida-nos a refletir sobre os “ desencontros” ou descontinui-dades entre as idéias de um autor e os limites formais criados por determina-das tradições disciplinares, revelando-nos uma im e n sid ão d e p ossív e isa se-rem, a qualquer momento, reatualiza-dos e reinserireatualiza-dos nos debates contem-porâneos das ciências sociais. Essa so-ciologia “ andarilha” pode, no entanto, ser entendida, ainda hoje, como um de-safio à captura disciplinar, uma vez que se define pela afirmação da multiplici-dade e da diversimultiplici-dade enquanto tais, e pela mistura entre psicologia, ciência, li-teratura e filosofia – mistura à primeira vista improvável, porém fascinante, e que cabe aos leitores desvendar.

VELHO, Gilbert o e KUSCHNIR, Karina (orgs.). 2001. M ediação, Cultura e Polí-tica. Rio de Janeiro: Aeroplano. 344 pp.

Carmen Rial Professora, UFSC

Bons antropólogos, o Brasil tem muitos. Felizmente. Mas antropólogos que te-nham feito escola, que constituam em torno de si grupos formados por outros antropólogos, esses são bem mais raros. G ilberto Velho é um deles. Doutorado pela USP, consolidou a antropologia ur-bana no país (ou a antropologia das so

cie d ad e s com p le x as m od e rn ocon te m -p orân e as, como ele prefere), inspirando trabalhos que perscrutam nossas cida-des, etnografias ousadas que desven-dam um Brasil bem mais heterogêneo do que outros grandes intérpretes fa-ziam pensar.

De tempos em tempos, aparece um livro novo, numa produção fértil e

cons-tante. M e d iação, Cu ltu ra e Políticaé o último deles, organizado pelo próprio Velho e por Karina Kuschnir, uma ex-aluna sua. O livro é o resultado de um seminário realizado em 2000, no âmbito do projeto de pesquisa “ Mediação e Ci-dadania na Sociedade Brasileira” , coor-denado por Velho no PPGAS-MN-UFRJ. Os artigos foram divididos em três blo-cos temátiblo-cos e comentados, respecti-vamente, por Luiz Fernando Dias Duar-te, Celso Castro e Myriam Lins de Bar-ros, em intervenções que não explicam nem repetem o que acabamos de ler, mas iluminam certos aspectos dos tex-tos, levando-nos da etnografia a novos diálogos teóricos.

Articulando-se em torno da idéia da

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fato, a idéia de mediadores já aparecia em trabalhos anteriores de Velho (como

Pro je to e M e tam orfose , de 1994, por exemplo). Aqui, no entanto, esses b ro

-k e rsganham a centralidade da obra. G ilberto Velho assina a apresenta-ção, juntamente com Karina Kuschnir, além de um dos quinze capítulos do li-vro. São textos claros e simples que evocam os inspiradores da antropologia da comunicação cultural que a obra propõe: Weber, Simmel e, principal-mente, Schutz. Os indivíduos são as uni-dades mínimas significativas de uma sociedade onde aparecem diferencia-ções não presentes em sociedades tra-dicionais. “ Ressalte-se que em qualquer sociedade, por mais aparentemente simples, há diferenciação e desconti-nuidade em termos de papéis sociais e planos de realidade. No entanto, nas sociedades tribais e tradicionais, reli-gião, família e parentesco, trabalho e guerra imbricam-se de tal forma que a diferenciação em domínios não se apre-senta, em geral, de modo nítido” (:16). Os m e d ia d o re saceleram a comunica-ção, são intermediários entre mundos diferenciados, tradutores das diferen-ças culturais. O estudo de biografias e de trajetórias individuais foi o recurso utilizado para falar desses tradutores culturais.

O primeiro bloco do livro trata dos mediadores no campo da arte, música e literatura. Traz artigo de Hermano Vianna, que revela o encontro do morro e do asfalto na década de 60 através de “ um artista carioca de 28 anos, chama-do Hélio Oiticica, egresso chama-dos embates intelectuais/estéticos do concretismo e do neoconcretismo, [que] havia tido a petulância de trazer para o museu uma ala de passistas da favela e da escola de samba Mangueira para apresentar, em seus corpos e em estandartes, suas no-vas obras, intituladas justamente de

Pa-rangolés” (:31). Vianna, através de arti-gos de jornais, cartas e outras fontes, conta a história desse artista de van-guarda que sobe o morro da Mangueira em busca de inspiração, se apaixona pela vida cotidiana que encontra, e ali se estabelece. O artigo aborda, como pano de fundo, um momento de grande ebulição na arte brasileira e de apro-fundamento da relação cultura popu-lar/cultura da elite, com as discussões travadas entre os representantes dos CPCs (Centro Populares de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes), do teatro de Arena e show Opinião.

Um movimento inverso ao de Oitici-ca é estudado por Letícia Vianna, no ar-tigo que percorre a trajetória do rei (e inventor) do baião, Luiz G onzaga. En-tre o final da Segunda G uerra e meados dos anos 50, vemos G onzaga tocando nas esquinas do Mangue, em gafieiras, dormindo no morro de São Carlos, par-ticipando no programa de Ari Barroso, na rádio Tupi e, enfim, em salões como o Copacabana Palace, consolidando o baião na mídia. “ A música era (e é) um lugar privilegiado para a construção e afirmação de identidades regionais e nacionais. E o baião apareceu como música regional que trazia um se rtão

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e Mediação Cultural na Cidade do Rio de Janeiro” , onde vemos sua retomada hoje por estudantes cariocas.

Adriana Facina percorre as referên-cias usuais da antropologia urbana (Simmel, Escola de Chicago de Park e Wirth) para chegar à cidade da literatu-ra e especialmente a Nelson Rodrigues, que “ toma o Rio de Janeiro como o pró-prio mundo, como um laboratório onde são produzidos e testados sua visão de mundo, sua concepção acerca da natu-reza humana, seus preceitos ético-mo-rais, ou seja, tudo aquilo que informa sua dramaturgia e que pretende uni-versal” (:95). Nelson Rodrigues recria o Rio enquanto um mundo imaginado, onde áreas de anonimato (como o Cen-tro e a Zona Sul da cidade) contrapõem-se a territórios onde predominam rela-ções pessoais que “ definem e classifi-cam os tipo que nela residem” .

A predominância da “ pessoaliza-ção” no Brasil mereceu já uma vasta li-teratura. Mas, como isso efetivamente se realiza? Os capítulos do segundo blo-co fornecem exemplos, atuais e do pas-sado, de inúmeras relações sociais pes-soalizadas na esfera pública em geral, aí incluída a política. Karina Kuschnir estuda a trajetória biográfica de um po-lítico do Partido dos Trabalhadores, ori-ginário da Zona Sul e defensor das co-munidades carentes, revelando-o como um mediador, interessado em estabele-cer “ pontes de comunicação entre os universos pelos quais transita” , entre o poder público e a população. Alessan-dra Barreto, num artigo que dá conta de uma pesquisa ainda em andamento, aborda a associação de moradores e amigos do Leblon. Já Cristina Patriota de Moura opta por um político conheci-do, Pedro Ludovico, o interventor de G etulio Vargas no Estado de G oiás. É toda a história recente da era Vargas que vislumbramos através dos

confli-tos da elite de um Brasil p ro fon d, no concurso de vontades encarnado em Ludovico, e na vitória da moderniza-ção, materializada em uma nova cida-de: G oiânia.

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Entre os momentos mais fortes do li-vro estão os comentários que fecham os blocos. Luiz Fernando Dias Duarte res-salta a opção analítica dos autores em torno de um grande divisor (“ erudito e popular, individualista e hierárquico, Zona Sul e Zona Norte, grande tradição e pequena tradição, cidade e sertão, as-falto e morro” ), evocando o romantismo como iniciador dessa abordagem do so-cial a partir de metades complementa-res. Duarte usa a metáfora da capilari-zação para afirmar que a cultura brasi-leira teria buscado, até os anos 60, refe-rências na cultura popular, e a partir daí se voltado para o exterior (o que seria evidente na música, com a Bossa Nova e os movimentos musicais posteriores).

Outro comentarista, C elso C astro, além de sublinhar a presença da cidade e da política no segundo bloco, age ele mesmo como um mediador, aproximan-do os conceitos de “ campo de possibi-lidade” e de “ projeto” dos termos de Maquiavel, fortu n ae v irtú: “ [...] metade de nossa existência é determinada pela

fortu n a, por aquilo que não controla-mos; a outra metade pela v irt ú, a res-ponsabilidade inalienável que nos cabe por nossas ações” (:211).

Vários dos autores reunidos aqui su-biram o morro, aplicando às classes po-pulares conceitos teóricos forjados no estudo das classes médias. Fornecem assim uma ponte entre dois campos que tradicionalmente têm sido estudados de forma estanque, a partir de referências teóricas distintas. Os autores de M e d ia

-ção, Cu lt u ra e Política, nesse sentido, são eles também mediadores, servindo como comunicadores entre, pelo me-nos, esses dois campos da antropologia.

W ACQUANT, Loïc. 1999. As Prisões da M iséria. Paris: Raisons d’Agir. 190 pp.

Sérgio Paulo Benevides Mestre pelo PPG AS-MN-UFRJ

Examinar uma política pública não é ta-refa livre de dificuldades. Muitas vezes é difícil determinar seu impacto, verifi-car que efeitos tem sobre o problema que se tinha proposto resolver, quais são suas conseqüências indiretas. No entanto, talvez a primeira dificuldade seja anterior a tudo isso. Porque é ne-cessário, sobretudo, perceber que tam-bém a caracterização de um determina-do problema faz parte da construção de uma política.

É dessa premissa que parte Loïc Wacquant em A s Prisõe s d a M isé ria, ao examinar a orientação de repressão ao crime que resultou naquilo que o livro chama de “ Estado penal” . A definição da própria violência a ser combatida é parte essencial da formulação da estra-tégia para combatê-la. E, percebendo-se isso, pode-percebendo-se ir mais longe: percebendo-se o pro-blema de que se fala explicitamente não é um simples dado, anterior à polí-tica adotada para solucioná-lo, mas criado no seio dela, o que, então, moti-va a construção de tal política?

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desti-nados a programas sociais. E a articula-ção desses três elementos – ampliaarticula-ção do sistema penal, liberalização econô-mica e abandono ou redução das políti-cas sociais – faz parte de um programa que, a partir do thatcherismo britânico e do governo Ronald Reagan nos Esta-dos UniEsta-dos, se desenvolveu na América do Norte, para depois alçar vôo em di-reção à Europa e à América Latina, se-não a outras regiões também.

Wacquant recompõe o trajeto do discurso de defesa das estratégias coer-citivas sobre a delinqüência que resul-taram no desenvolvimento de um Esta-do penal e acompanha as conseqüên-cias dessa política em um livro que po-deríamos chamar de “ engajado” . Não nos deixemos contaminar imediata-mente por idéias negativas que porven-tura nos pareçam ligadas a essa palavra e que poderiam servir para desqualifi-car o minucioso trabalho que Wacquant nos apresenta. A s Prisõe s d a M isé riaé engajado não por ser tendencioso – ca-racterística que lhe seria injusto atribuir –, mas por apresentar-se clara e aberta-mente como uma intervenção em um debate político. E esse é um grande mé-rito seu, porque com isso trata tal deba-te como uma questão que vai muito além da escolha técnica da melhor es-tratégia para a resolução de um proble-ma social dado como evidente.

Inicialmente, a questão é desnatu-ralizar um certo discurso a respeito do que se identifica como “ a delinqüên-cia” , “ a violência urbana” , “ as incivili-dades” que seriam ao mesmo tempo causa e resultado dessa violência e “ as áreas sensíveis” , bairros pobres e “ de-gradados” , onde esse “ mal das grandes cidades” é gerado. Tal discurso localiza na “ excessiva generosidade” das políti-cas sociais e na tolerância com os pe-quenos delitos a origem da violência. É importante ressaltar neste ponto dois

aspectos. Primeiro, não se está falando de uma tendência genérica apenas tan-gível. Ao contrário, identificam-se os autores e difusores dessa voga, como William Bratton, ex-chefe da polícia da cidade de Nova Iorque, ou C harles Murray, James Q. Wilson e George Kel-ling, que, conforme Wacquant, produzi-ram textos importantes para a dissemi-nação de tais idéias. Segundo, esse dis-curso não é apenas falatório inócuo, mas incorpora mesmo a produção de tristes resultados, como o aumento da população carcerária americana: “ [...] em 1975, o número de detidos havia caído para 380.000 [...]. Dez anos mais tarde, a quantidade de prisioneiros sal-tou para 740.000, antes de ultrapassar 1,5 milhão em 1995 para depois atingir dois milhões no fim de 1998 [...].” (:72)

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empregados em 1999 (38.600 deles, agentes uniformizados); isto, à custa de uma redução do número de empregos no setor de serviços sociais, que, no mesmo ano, baixou para apenas 13.400 empregados. De fato, a criminalidade diminuiu nos últimos anos, mas isso tanto em Nova Iorque quanto em outras cidades americanas que não aplicaram a mesma política, conhecida em muitos lugares como de “ tolerância zero” , mas que, ironicamente, é chamada pelas au-toridades locais de programa de “ quali-dade de vida” . Ironicamente porque es-sa “ qualidade de vida” resultou, por exemplo, na criação de uma Unidade de Luta contra os Crimes de Rua, res-ponsável pela detenção, em dois anos, de mais de 45.000 pessoas por simples suspeição – em 37.000 casos não havia, desde o início, motivo algum que justi-ficasse as detenções e, em mais 4.000, os processos não foram levados adian-te. Integrantes dessa mesma unidade policial foram os responsáveis, em 1999, pelo assassinato do imigrante guineen-se Amadou Diallo, de 22 anos, morto com 42 tiros, que gerou uma série de protestos contra a política do prefeito G iuliani. Protestos que, por sua vez, fo-ram tratados novamente como caso de polícia e assim reprimidos.

Conforme uma pesquisa citada por Wacquant, quase 80% dos homens jo-vens negros e latinos de Nova Iorque fo-ram presos e revistados ao menos uma vez. Tristemente, o caso Diallo não era o primeiro exemplo de brutalidade poli-cial – em 1998, o imigrante haitiano Ab-ner Louima havia sido submetido a tor-turas sexuais em uma delegacia do Brooklin. E o que ocorre em Nova Ior-que é apenas um exemplo daquilo Ior-que se dá no plano nacional: “ Em probabili-dade acumulada sobre a duração de uma vida, um homem negro tem mais de uma chance em quatro de purgar

pe-lo menos um ano de prisão, e um latino, uma chance em seis, contra uma chance em 23 para um branco.” (:86) Assim, mais de um terço dos negros que têm entre 18 e 29 anos nos Estados Unidos está sob a ação do sistema policial-pe-nal de alguma forma – efetivamente presos ou, por exemplo, sob liberdade condicional. E não porque os negros te-nham uma inclinação maior para o cri-me. Estima-se que eles representem 13% do total de consumidores de dro-gas – e, no entanto, compõem mais de um terço das pessoas detidas e três quartos das pessoas presas por violação das leis antinarcóticos. Essa constatação se torna mais assustadora quando lem-bramos que, em geral, os que respon-dem ao sistema penal não porespon-dem votar – uma nova forma de exclusão de qua-dros votantes três décadas depois de se aprovar a legislação de direitos civis que estendeu o direito de voto aos negros. Ou seja: a “ qualidade de vida” do Esta-do penal americano é para poucos.

O objetivo do livro de Wacquant é poder servir de referência onde quer que se apresentem discussões acerca de políticas que tomem como modelo o desenvolvimento do Estado penal ame-ricano. No entanto, A s Prisõe s d a M isé -riaestende-se, sobretudo, a um debate europeu. E a G rã-Bretanha herdeira do thatcherismo é identificada como a grande porta de entrada da estratégia policial-penal de exclusão dos “ indese-jáveis” na Europa Ocidental – estraté-gia que se amplia em direção à Suécia, Holanda, Bélgica, Espanha, Itália e França. O resultado é muito semelhan-te: aumento notável da população car-cerária e incremento predominante de negros e estrangeiros (ou filhos de es-trangeiros) – turcos e marroquinos, por exemplo – entre os presos.

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garantir o cumprimento das regras para o bom funcionamento da sociedade, co-mo se poderia pensar de uma perspec-tiva que se ocupasse essencialmente do caráter normativo dos fenômenos so-ciais. C onforme a perspectiva sobre a qual Wacquant trabalha, trata-se de um instrumento de construção de uma de-terminada política aliada à generaliza-ção da insegurança salarial e social, um instrumento para encerrar a pobreza, para excluir os indesejáveis. E também, aliada à defesa da idéia de que qual-quer emprego é melhor que nenhum, a criminalização da miséria contribui pa-ra conformar o tpa-rabalho a uma situação de precariedade que ascendeu com o neoliberalismo em seu caminho para sepultar o keynesianismo e outras op-ções mais à esquerda.

Ainda que servisse apenas para montar esse quadro geral a respeito das políticas de repressão ao crime nos Es-tados Unidos e na Europa, o livro de Wacquant já seria de considerável im-portância. No entanto, pode-se ir além, uma vez que em A s Prisõe s d a M isé ria

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