• Nenhum resultado encontrado

Mana vol.7 número2

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2018

Share "Mana vol.7 número2"

Copied!
38
0
0

Texto

(1)

Introdução*

Pou co te m p o a p ós se e n volve r com a a n trop olog ia , a p e ssoa d e p a ra -se com u m a p a re n te p a ra d oxo. O s a n trop ólog os sã o, d e u m la d o, fa scin a d os p e la re corrê n cia d e p a d rõe s socia is; d e ou tro, m ostra m -se cé ticos ou d e s-con fortá ve is q u a n to a e lu cid a r e sse s p a d rõe s sob a form a d e u m siste m a . En fa tiza m , p ois, a o m e sm o te m p o, re g u la rid a d e e im p re visib ilid a d e , a s sim ila rid a d e s d a h u m a n id a d e e a p a rticu la rid a d e d o su je ito h u m a n o, d e te rm in ism o e ca os. É p or isso q u e a id é ia d e fra cta lid a d e — p a d rõe s e sca la re s a u to-sim ila re s [se lf-sim ilar scale d p atte rn s] q u e p od e m e m e rg ir d e siste m a s ca óticos — p od e re ve la r-se tã o a tra tiva . Q u e ou tra im a g e m ca ra cte riza ria m e lh or o p roje to a n trop ológ ico?

N e ste e n sa io, e xp loro o p ote n cia l d a id é ia d e fra cta lid a d e ju n ta m e n -te com u m a d e su a s p rop rie d a d e s, a a u to-sim ila rid a d e e sca la r [scale d se lf-sim ilarity ], e p rop on h o a n oçã o d e p e rson itu d e [p e rson h ood ] fra cta l com o m od o d e p e n sa r a p e ssoa a m e rín d ia . Q u a n d o fa lo d e p e rson itu d e fra cta l, e stou e n fa tiza n d o ta n to o e n ce rra m e n to d e p e ssoa s in te ira s e m p a rte s d e p e ssoa s q u a n to a re p lica çã o d e re la çõe s e n tre Eu s [se lv e s] e O u tros [alte rs] e m d ife re n te s e sca la s (in tra p e ssoa l, in te rp e ssoa l e in te r-g ru p a l): d ois la d os d e u m a m e sm a m oe d a1.

M e u m é tod o con siste e m fu n d ir a sp e ctos d e d u a s te oria s a n trop ológ ica s d e se n volvid a s e m re g iõe s d ista n te s: a id é ia d o “ d ivíd u o” m e la -n é sio (Stra th e r-n 1988) e a id é ia d o p e rsp e ctivism o a m e rí-n d io (Vive iros d e C a stro 1998)2, u sa n d o com o g a n ch o o fio d a re la cion a lid a d e , isto é , a con stitu içã o re la cion a l d e p e ssoa s e con te xtos. Este é u m e xe rcício d e “ m e la n e sia n iza r” a Am a zôn ia , d e sta ca n d o os e le m e n tos d e troca -d om q u e su ste n ta ria m u m a on tolog ia p e rsp e ctivista , cu jo p rop ósito é a b rir u m ca m p o d e in te rp re ta çã o p a ra ce rtos te m a s a m a zôn icos b e m con h e cid os. Tra ta -se , a n te s d e tu d o, d e u m e xp e rim e n to: o le itor fica a ssim a visa d o

FRACTALIDADE E TROCA

DE PERSPECTIVAS

(2)

d e q u e o ob je tivo d e ste te xto é su g e rir con e xõe s m a is q u e a p re se n ta r ve r-d a r-d e ira s r-d e scob e rta s.

Ba se a re i m in h a a n á lise n a com p a ra çã o d e trê s g ru p os a m e rín d ios situ a d os n o Bra sil: os Ara w e té , u m p ovo d e lín g u a tu p i-g u a ra n i, ca ça d or-h orticu ltor, d o q u a l or-h oje e xiste a p e n a s u m a a ld e ia n o m é d io Ip ixu n a (u m trib u tá rio d o rio Xin g u , n o Esta d o d o Pa rá ); os cé le b re s Tu p in a m b á , d a m e sm a fa m ília lin g ü ística , h a b ita n te s d a costa b ra sile ira n a é p oca d a conq u ista p ortu g u e sa ; e , fin a lm e n te , os Wa ri’ (ta m b é m con h e cid os n a lite ra -tu ra com o Pa k a a N ova ), d a fa m ília lin g ü ística Txa p a cu ra , q u e vive m n o oe ste d o Esta d o d e Ron d ôn ia . Alg u m a re fe rê n cia ta m b é m é fe ita a os Ach u a r d o con ju n to jíva ro, n a Am a zôn ia e q u a toria n a e p e ru a n a . O fio u tiliza d o p a ra lig a r e sse s g ru p os sã o os te m a s d a g u e rra e d o ca n ib a lism o h u m a n o ou d ivin o3. O le itor ta m b é m d e ve se r a le rta d o d e q u e , e n q u a n to os d a d os sob re os Ara w e té e Wa ri’ sã o e xtra íd os d e su a s re sp e ctiva s e tn o-g ra fia s, o m a te ria l q u e u so p a ra os Tu p in a m b á te m u m e sta tu to d ife re n te : p rove n ie n te n ã o d e fon te s h istórica s d ire ta s, m a s d a a n á lise d e Vive iros d e C a stro e m From th e En e m y ’s Poin t of V ie w, é in e vita ve lm e n te a fe ta d o p e la s in te rp re ta çõe s d e sse a u tor. Alé m d isso, a lg u m a s d a s a firm a çõe s re la tiva s a os Tu p in a m b á d e ve m se r lid a s n ã o com o fa tos, m a s com o su g e stõe s a n a lítica s.

(3)

Alguns t emas ameríndios

Foi n ota d o h á m u ito te m p o (Se e g e r e t alii 1979) q u e a s socie d a d e s a m e -rín d ia s con fe re m p riorid a d e à id e n tid a d e , m a is d o q u e à solid a rie d a d e ju ríd ica ou e con ôm ica , com o o p rin cip a l re fe re n te d a org a n iza çã o socia l. Tra b a lh os p oste riore s re ve la m — n a e con om ia p olítica (Riviè re 1984), n a e sca tolog ia e p rá tica s fu n e rá ria s (C a rn e iro d a C u n h a 1978; Vila ça 1992; Vive iros d e C a stro 1992), n a org a n iza çã o socia l e siste m a s d e n om in a çã o (M a yb u ryLe w is 1979) — a op e ra çã o d a “ sim b ólica d o id ê n tico e d o d ife -re n te ” n a socia lid a d e a m e rín d ia , sob d ive rsa s ve ste s con te xtu a is:

Eu : O u tro : : C on sa n g ü ín e os : Afin s

Vivos : M ortos N ós : In im ig os Pre d a d or : Pre sa H u m a n o : Divin o

M a scu lin o : Fe m in in o

Esta s op osiçõe s, n a m e d id a e m q u e sã o b á sica s, n ã o sã o e stá tica s. Q u e m é Eu e q u e m é O u tro d e p e n d e d e q u e m e stá se n d o com p a ra d o. A d in â m ica d e ssa ca te g oriza çã o é re su m id a n o u so a ra w e té d o te rm o b ïd e :

“ A op osiçã o b ïd e x aw ˜i é a form a forte d e u m a op osiçã o ce n tra l n o p e n sa -m e n to a ra w e té : b ïd e , ‘n ós’, ‘a g e n te ’, e a m ˜-ite , ‘ou tro’, ‘os ou tros’. A m ˜ite [ou

tro, n ã op a re n te ] n ã o é u m a ca te g oria d e p e ssoa , m a s u m a p osiçã o, a d e a lte -rid a d e e m re la çã o a u m p ólo n ã o-m a rca d o, u m ‘ou tro’ ve rsu s u m ‘m e sm o’” . (Vive iros d e C a stro 1992:64-65)

Isso se a sse m e lh a a o e m p re g o d o te rm o jíva ro sh u ar:

“ Esta e xp re ssã o se re fe re a u m con ju n to m u ltin ive la d o d e re la çõe s e n tre te r-m os con tra stivos: a ssir-m , se g u n d o o con te xto, o te rr-m o sh u ar se re fe re à ‘m in h a

p a re n te la b ila te ra l’ e m op osiçã o a ou tra s, ‘m e u g ru p o loca l’ e m op osiçã o a ou tros g ru p os te rritoria is, ‘Ach u a r’ e m op osiçã o a ou tra s u n id a d e s trib a is jíva ro, ‘J íva ro’ e m op osiçã o a b ra n cos ou ou tros ín d ios, e a ssim p or d ia n te .” (Ta ylor 1996:204).

(4)

u m in im ig o m orto é in corp ora d o p e lo m a ta d or e se tra n sform a e m sê m e n q u e va i “ e n g ord a r” su a e sp osa : “ [e ]fe tiva m e n te , […] o m a ta d or te rá u m filh o: o jam [a lm a ] d o in im ig o m orto.” (Vila ça 1992:103104) C om o tra ta -m e n to ritu a l d a tsan tsa jíva ro, a ca b e ça d o in im ig o m orto, e sp e ra va -se p rod u zir n o a n o se g u in te u m a cria n ça e n tre os p a re n te s d o m a ta d or (De s-cola 1997:276). N o ca so d os Tu p in a m b á , p od e se -ia , com b a se n a in te r-p re ta çã o d e Vive iros d e C a stro, e sr-p e ra r u m a a ssocia çã o sim ila r. Atra vé s d a e xe cu çã o d e u m in im ig o, d a in corp ora çã o sim b ólica d e se u sa n g u e e d a a q u isiçã o con com ita n te d e n ovos n om e s e d e u m a id e n tid a d e p e ssoa l [se lfh ood ] re n ova d a , os ra p a ze s a tin g ia m o e sta tu to d e p e ssoa s p le n a s, q u e a p e n a s e n tã o p od e ria m ca sa r-se e te r filh os le g ítim os (ve r Vive iros d e C a stro 1992:151). Alé m d isso, é p ossíve l su g e rir, com b a se e m d a d os e xiste n te s p a ra ou tros g ru p os, q u e e sse s n om e s fosse m e stre ita m e n te a ssocia d os à a lm a d o in im ig o. M a n te n h a m os p ois e m m e n te e ssa s p rop o-siçõe s.

A n a tu re za re la cion a l d o d ivisor ca n ôn ico Eu / O u tro, ju n ta m e n te com a s p a ssa g e n s d e O u tro a Eu q u e tê m q u e ocorre r d e vid o à n e ce ssid a d e d o e xte rior p a ra a re p rod u çã o socia l, p e rm ite m -n os a va n ça r a su g e stã o a n a lítica d e q u e , ca p a ze s d e tom a r a s p osiçõe s d e Eu e d e O u tro, p e ssoa s sã o con stitu íd a s com o re la cion a lm e n te d u a is. De ssa m a n e ira , p od e m se r vista s com o com p ósitos d e Eu / O u tro — ou n ós/ in im ig os, con sa n g ü ín e o/ a fim , p re d a d or/ p re sa , e a ssim p or d ia n te . Um a se g u n d a d e riva çã o a n a lí-tica , tom a n d o e m p re sta d o d e M . Stra th e rn , é q u e a p e ssoa é d ivisíve l: e m ce rtos con te xtos, su a in te g rid a d e p od e se r rom p id a (a in d a q u e p or e xtra -çã o força d a ). É e m virtu d e d e ssa s d u a s con d içõe s — d u a lid a d e e d ivisib i-lid a d e —, e n tã o, q u e p e ssoa s p od e m a ssu m ir ou se r força d a s a a ssu m ir u m a p osiçã o e m u m d os la d os d o d ivisor ca n ôn ico Eu / O u tro.

Do p on to d e vista d e u m a te oria d a troca , p od e r-se -ia p rop or se r a troca sim b ólica ou re a l d e p a rte s d a p e ssoa o q u e p e rm ite a tra ve ssa r o d ivisor ca n ôn ico. A p a ssa g e m é m e d ia d a p or u m a tra n sa çã o: o in im ig o d á se m p re u m a p a rte d e si m e sm o. Assim , e m u m se n tid o stra th e rn ia n o, sa n g u e / ca b e ça s torn a m -se p a rte s tra n sa cion á ve is d a s p e ssoa s. Um d u p lo jog o d e m e tá fora e m e ton ím ia p a re ce e sta r e m a çã o: d e u m la d o, p a rte s d o O u tro sã o in corp ora d a s, o O u tro é u m Eu m e tafórico; d e ou tro, p a rte s d e ou tra s p e ssoa s se torn a m p e ssoa s: os filh os d os m a ta d ore s w a ri’ e jíva -ro, o n ovo n om e (a lm a ?) d o m a ta d or tu p in a m b á .

(5)

ctivis-m o coctivis-m o te oria ilu ctivis-m in a a con ce p çã o in d íg e n a d o corp o e d e su a re la çã o com a d in â m ica d a id e n tid a d e e a lte rid a d e .

A on tolog ia p e rsp e ctivista a m e rín d ia p od e se r vista com o “ m u ltin a tu ra lista ” : su p õe u m a su b je tivid a d e b ru ta q u e con strói su a s m ú ltip la s re a -lid a d e s ob je tiva s (n a tu re za s). A con sciê n cia com u m a d ive rsa s e sp é cie s e a os h u m a n os d á a tod os u m a p e rsp e ctiva sob re o m u n d o. Pe ssoa s sã o, p ois, d e fin id a s com o su je itos p ote n cia is, a q u e le s com a ce sso a u m p on to d e vista . Te r u m a p e rsp e ctiva con fe re a a n im a is e p la n ta s u m a “ h u m a n i-d a i-d e ” p e la q u a l vê e m a si m e sm os i-d a m e sm a m a n e ira com o os h u m a n os se vê e m : ja g u a re s tê m e sp osa s, filh os, clã s, ca sa s, e fe ste ja m d o m e sm o m od o q u e os h u m a n os. E, tod a via , u m ja g u a r, e n q u a n to p re d a d or, ve rá u m h u m a n o com o p re sa (p or e xe m p lo, u m p orco-d o-m a to), n a m e sm a m e d id a e m q u e o p orcod om a to, com o p re sa , ve rá u m h u m a n o com o p re d a d or (p or e xe m p lo, u m ja g u a r). O p on to é q u e ja g u a re s, p orcos e h u m a -n os vê e m a s coisa s d a m e sm a m a -n e ira , m a s o q u e e le s vê e m é d ife re -n te , e d e p e n d e d a p e rsp e ctiva : h u m a n os p od e m ve r a si m e sm os com o su je itos (cu ltu ra ), m a s sã o a o m e sm o te m p o o ob je to (n a tu re za ) d e ou tra su b je -tivid a d e , e vice -ve rsa . A p a ssa g e m d e su je ito a ob je to é u m a m u d a n ça d e p osiçã o, d e p e rsp e ctiva . C on se q ü e n te m e n te , o con te ú d o d e ca te g oria s ta is com o su je ito/ ob je to ou n a tu re za / cu ltu ra n ã o é e stá tico, m a s re la cion a l.

N e sse m u n d o p e rsp e ctivista , é o corp o q u e fu n cion a com o o p rin ci-p a l d ife re n cia d or. Pa ra a lé m d o b e m d ocu m e n ta d o foco a m e rín d io n a fa b rica çã o, m od ifica çã o e d e stru içã o d e corp os (Se e g e r e t alii 1979), o corp o com o locu s d e d ife re n cia çã o é ta m b é m se d e d e p e rsp e ctiva . O q u e você vê , o m u n d o q u e você con strói, d e p e n d e d o corp o q u e você te m (Vive iros d e C a stro 1998:478). C orp os p a re ce m se r con ce b id os com o ve s-tim e n ta s q u e p od e m se r troca d a s (Riviè re 1994), n ã o, tod a via , p a ra e n cob rir u m a re a lid a d e in te rn a : n ova s ve ste s, isto é , corp os m od ifica d os, tra -ze m n ova s ca p a cid a d e s. M a s, e n tã o, o corp o p re cisa se r e n te n d id o n ã o com o o a sp e cto m a te ria l d a p e ssoa , o se r físico, e sim , a n te s, com o “ fe ixe d e a fe cçõe s” , u m con ju n to d e ca p a cid a d e s e com p orta m e n tos típ icos d e u m se r (Vive iros d e C a stro 1998:478).

Um a te oria p e rsp e ctivista in te g ra a im p ortâ n cia d os n om e s e a d a d e cora çã o corp ora l. Sã o, p a rcia lm e n te , n om e s e orn a m e n tos q u e p e rm i-te m a su si-te n ta çã o d e u m a on tolog ia p e rsp e ctivista e m fa ce d a fixid e z d a s p e le s h u m a n a e a n im a l. Ele s se torn a m e vid ê n cia d a d ivisib ilid a d e e d a n a tu re za d u a l d a s p e ssoa s, fa ze n d o d o corp o u m ob je to socia l p ar e x ce l-le n ce , u m su b stitu to p e rfe ito d a troca m a te ria l (Tu rn e r 1995:147).

(6)

-tro. Um a te oria p e rsp e ctivista , con tu d o, m ostra com o o corp o é a se d e d a p e rsp e ctiva e com o su a m od ifica çã o é o q u e e fe tu a m u d a n ça s d e p osi-çã o. Em b ora tod a troca d e p a rte s corp ora is se ja u m a m od ifica osi-çã o corp o-ra l, im p lica n d o q u e a ú ltim a in clu i a p rim e io-ra , a rg u m e n ta re i q u e e ssa tro-ca d e p a rte s d o corp o d e se m p e n h a u m p a p e l d istin to n a su ste n ta çã o d e u m a on tolog ia p e rsp e ctivista .

A f ract alidade vist a de pert o

Pe rm ita m -m e a g ora su g e rir d e q u e m a n e ira a id é ia d e fra cta lid a d e p od e fa ze r con ve rg ir u m a te oria d a troca e u m a te oria d o p e rsp e ctivism o, n o e xa m e d e trê s ca sos q u e ilu m in a m a sp e ctos d ife re n te s d e sse e n con tro. Prim e iro, va m os e xp licita r os p re ssu p ostos d e sta a n á lise .

(7)

2) Ad ota n d o u m a visa d a stra th e rn ia n a , isto é , o p on to d e vista d o d om , ve ja m os a s p e ssoa s com o d ivíd u os: a q u i a d u a lid a d e é e vid e n cia d a p e la p ossib ilid a d e d e a n e xa r e d e sa n e xa r p a rte s d e p e ssoa s e m re la çõe s d e troca . M e u u so d a id é ia d e p e ssoa s d ivisíve is n ã o é u m ca p rich o a n a lítico. A n a tu re za p a rtíve l d a p e ssoa a m a zôn ica re q u e r p ou ca d e m on stra -çã o6. Pa ra a lé m d os ca sos já m e n cion a d os, p od e m os le m b ra r com o a s cria n ça s a ra w e té e a ch u a r tê m u m a a lm a n ã o com p le ta m e n te a n e xa d a ou fixa d a n o corp o, o q u e a s torn a su sce tíve is à d oe n ça . Em g e ra l, m u ita s d a s re striçõe s d a cou v ad e , com u n s n a Am a zôn ia , tê m com o p re m issa a fra g ili-d a ili-d e ili-d a in te g ra çã o corp o-a lm a (ve r Vive iros ili-d e C a stro 1992:183; De scola 1997:233). Doe n ça s (e m q u a lq u e r id a d e ) e o a to d e m a ta r te n d e m a a frou -xa r o la ço corp o-a lm a . C re io q u e os com e n tá rios d e Vive iros d e C a stro a p rop ósito d os Ara w e té se a p lica m a vá rios ou tros g ru p os: “ [q ]u a lq u e r u m q u e n ã o te n h a a in d a con sciê n cia ou q u e te n h a ca íd o in con scie n te e n con -tra -se e m p e rig o: ou a in d a n ã o é u m se r h u m a n o com p le to, ou e stá p re s-te s a d e ixa r d e sê -lo” (Vive iros d e C a stro 1992:194). Le m b re m os ta m b é m a a m p la d ifu sã o d e m otivos com o a p e rd a d a a lm a e os a sp e ctos d a p e ssoa q u e a p a re ce m e m son h os e a os q u a is se a trib u i in d e p e n d ê n cia d o su je ito.

Be m , u m a p e ssoa n ã o d ivid id a se m p re p a rticip a d a s re la çõe s com o u m te rm o, isto é , u m a p e ssoa cu ja q u a lid a d e -d e -su je ito é p osta e m p ri-m e iro p la n o p e la ce rte za d e se r u ri-m tra n sa tor e ri-m u ri-m re la cion a ri-m e n to d e troca , e m op osiçã o a u m a p e ssoa d ivid id a q u e p a rticip a e n q u a n to sig n i-fica n te , op e ra d or d e u m a re la çã o7. O p e ra d ore s, se g u n d o G e ll (1999) e Stra th e rn (1992), con stitu e m a “ ob je tifica çã o d e u m a re la çã o” , u m va lor p u ra m e n te re la cion a l, p e ssoa s cu ja q u a lid a d e -d e -ob je to é p osta e m p ri-m e iro p la n o p e la ce rte za d e e sta re ri-m se n d o tra n sa cion a d a s. A ri-m a rca d a p e rson itu d e é a ssim a p ossib ilid a d e d e tra n sa cion a r e se r tra n sa cion a d o; a m a rca d a con d içã o d ivin a é a im p ossib ilid a d e d e se r tra n sa cion a d o: p od e -se troca r com os d e u se s, m a s os d e u se s ja m a is sã o troca d os.

(8)

cio-n a d a . De p ois d a tra cio-n sa çã o, tod os re a ssu m e m su a q u a lid a d e “ cio-n orm a l” d e p e ssoa s su je ito/ ob je to; com o foi su g e rid o a cim a , e com o se rá d e ta lh a d o a b a ixo, o O u tro é e n g lob a d o p e lo Eu , o in im ig o é e n g lob a d o p e lo m a ta d or.

O e n g lob a m e n to a tra vé s d a troca d e u m a p a rte d a p e ssoa le va -n os à q u a lid a d e fra cta l a q u e q u e ro m e re fe rir: o e n ce rra m e n to d o tod o (d e u m a p e ssoa ) n a p a rte (d e u m a p e ssoa ); a con ve rsã o d e p a rte s d e p e ssoa s e m p e ssoa s in te ira s — o filh o d e u m m a ta d or w a ri’, o filh o d e u m m a ta d or jíva ro e , p od e m os a d icion a r e sp e cu la tiva m e n te , o n ovo n om e (a lm a ) d o m a ta d or tu p in a m b á . É n e ce ssá rio m a n te r e m m e n te , e n tã o, q u a n d o a d ia n te fa lo e m troca d e p a rte s d o corp o, q u e o q u e é troca d o é u m a ve r-sã o e m e sca la re d u zid a d a p e ssoa in te ira .

3) G ru p os e p e ssoa s (h u m a n os e n ã o h u m a n os) p od e m a p a re ce r com o u m a só p e ssoa q u a n d o com p a ra d os com ou tros g ru p os e p e ssoa s. “ Um a p e ssoa ” p od e a ssim se re fe rir a d ive rsos in d ivíd u os u n id os p e la p a rtilh a d e u m a p osiçã o com u m e m op osiçã o a ou tro g ru p o sim ila r. O statu s u n itá -rio d e u m g ru p o a p on ta p a ra a n oçã o d e corp o com o “ fe ixe d e a fe cçõe s” , com o o con ju n to d a s ca p a cid a d e s p a rtilh a d a s p or u m a e sp é cie . N e sse ca so, o q u e é p a rtilh a d a é u m a p osiçã o. C on su b sta n cia is w a ri’ p e n sa m e m si m e sm os com o u m corp o, a in d a q u e e xista m vá rios p a rticip a n te s d e ssa u n id a d e ; e le s ta m b é m a trib u e m o com p orta m e n to g re g á rio d os q u e ixa d a s a se u s corp os (Vila ça 1992:52). Dive rsos ou tros p on tos su ste n ta m e ssa id é ia : g u e rre iros costu m a m torn a r-se co-m a ta d ore s n os a ta q u e s, e m e sm o q u e a p e n a s u m d e le s te n h a ca u sa d o a m orte d o in im ig o, tod os os p a rtici-p a n te s sã o su b m e tid os à s rtici-p re ca u çõe s rtici-p ós-h om icíd io (ve r De scola 1997:304; Vila ça 1992:103, p a ra e xe m p los a ch u a r e w a ri’). N o ca so d os Tu p in a m b á , os a ld e õe s torn a va m -se co-d e vora d ore s d o in im ig o, tod os e le s com ia m d e su a ca rn e (Vive iros d e C a stro 1992:302), com o q u e p a ra se fa ze re m ig u a l-m e n te cu lp a d os e ob je tos le g ítil-m os d a vin g a n ça d e se u s in il-m ig os. O l-m e s-m o p od e se r d ito d os d e u se s a ra w e té : tod os cos-m e s-m a ca rn e d o s-m orto q u a n-d o n-d a ch e g a n-d a n-d e ste n o ou tro m u n n-d o (Vive iros n-d e C a stro 1992:211).

Tu d o isso é , b a sica m e n te , u m a e xp re ssã o d o ca rá te r con te xtu a l d a s ca te g oria s n ós/ ou tros a q u e n os re fe rim os a n te s, e u m a ou tra e xp re ssã o d a fra cta lid a d e : a p e ssoa -com o-g ru p o é u m a ve rsã o e m e sca la a m p lia d a d a p e ssoa com oin d ivíd u o e u m a ve rsã o d u a s ve ze s a m p lia d a d a p e ssoa -com o-p a rte . O q u e se torn a rá e vid e n te a d ia n te é q u e a p e rson itu d e fra c-ta l im p lica q u e re la çõe s e n tre p e ssoa s, e m q u a lq u e r e sca la , sã o ré p lica s u m a s d a s ou tra s, isto é , sã o a u to-sim ila re s.

(9)

Quadro 1: Relações signif icadas por uma pessoa dividida

Re lação Eu O u tro

In im iza d e (vin g a n ça ) N ós In im ig os

Afin id a d e C on sa n g ü ín e os/ C on su b sta n cia is Afin s

Pre d a çã o Pre d a d or Pre sa

Re p rod u çã o M a scu lin o Fe m in in o

M orte Divin d a d e s/ M ortos Vivos

“Desembrulhando” a pessoa f ract al8

Acom p a n h a r a tra je tória d e u m in im ig o tu p in a m b á , d o e sta d o d e in im i-za d e à fu sã o com o m a ta d or, e vid e n cia rá a q u a lid a d e fra cta l d a s p e ssoa s, re ve la n d o a s re la çõe s q u e a s con stitu e m .

A p e ssoa é con stitu íd a p or tod a s a s re la çõe s a cim a m e n cion a d a s (Fig u ra 1).

Figura 1: A const it uição relacional da pessoa t upinambá9

In im iza d e

Afin id a d e

M orte

Pre d a çã o

(10)

Q u a n d o o in im ig o é ca p tu ra d o e tra zid o à a ld e ia d o ca p tor, e le se torn a u m sig n ifica n te d a re la çã o e n tre in im ig os. Isso p od e se r visto com o o in im ig o d a n d o u m a d e su a s p a rte s, u m a in stâ n cia e m e sca la a m p lia d a d a p e ssoa d a n d o u m a p a rte d o corp o. C om o ta l, o ca tivo é u m a p e ssoa se p a ra d a ou d ivid id a , n ã o m a is u m te rm o m a s u m op e ra d or; a re la çã o d e in im iza d e , d e vin g a n ça , foi “ d e se m b ru lh a d a ” (Fig u ra 2).

Um a ve z n a a ld e ia in im ig a , o ca tivo p od ia se g u ir d u a s rota s: 1) e le p od e ria se r ofe re cid o com o d om a os a fin s d e se u ca p tor. Um re cé m ca sa -d o e sta va ob rig a -d o a forn e ce r ca tivos a se u s a fin s m a is jove n s p a ra a in i-cia çã o (d e m od o q u e e ste s p u d e sse m a d q u irir n om e s e ca sa r-se ). O ca ti-vo e ra d a d o a u m cu n h a d o com o con tra p a rtid a d a e sp osa p re via m e n te re ce b id a . N e sse con te xto, o ca tivo é u m a filh a d e irm ã p a ra os a fin s d o ca p tor, m a s ta m b é m p od e se r visto com o u m a con tra p a rtid a d o p róp rio ca p tor: u m m a rid o d e irm ã (Vive iros d e C a stro 1992:295). O q u e se ria a p a re n te m e n te u m a situ a çã o re cíp roca d e troca e n tre a fin s n o g ru p o d o ca p tor é a ssim d e sd ob ra d o: h á d ois tip os d e a fim , os q u e d ã o ca tivos e os q u e d ã o m u lh e re s, e in im ig os sã o d o p rim e iro tip o. 2) o ca tivo p od ia se r ta m b é m d a d o à irm ã ou filh a d o ca p tor. Aq u i o in im ig o ocu p a a p osiçã o d e tom a d or d e e sp osa .

N a m e d id a e m q u e p a re ce e sta r e n ce n a n d o a a fin id a d e e m si m e s-m a , re ve la n d o ca d a u s-m a d a s p osiçõe s p ossíve is d e a fin id a d e10, o ca tivo te m e m tod a s e ssa s troca s u m va lor d e re la çã o, e le é u m op e ra d or (u m a ob je tifica çã o) e m re la çõe s d e a fin id a d e in te rn a s a o g ru p o d o ca p tor, a s

Figura 2: A pessoa como um operador da relação ent re grupos inimigos

A fin id a d e

M o r t e

P r e d a ç ã o

(11)

m e sm a s re la çõe s q u e o con stitu íra m e m su a p róp ria a ld e ia . De ssa m a n e i-ra , a re la çã o d e a fin id a d e é “ d e se m b ru lh a d a ” (Fig u i-ra 3).

Re sta m a in d a trê s re la çõe s con stitu tiva s d a p e ssoa d o g u e rre iro. Esta s re la çõe s “ in te riore s” re q u e re m a re con stitu içã o d o ca tivo, q u e d e ve se r ou tra ve z fe ito te rm o, u m a p e ssoa p le n a cu ja q u a lid a d e -d e -su je ito é o q u e e stá se n d o va loriza d o. Ele e ra p re p a ra d o e d e cora d o p a ra o rito fin a l d e e xe cu çã o. Em u m d iá log o d e a b e rtu ra com o m a ta d or, re ve la va -se u m p re -d a -d or; sa b e n -d o-se m orto, te rm in a ria -d ize n -d o q u e se u p ovo já tin h a se vin -g a d o, com o se fosse e le q u e m e stive sse p a ra m a ta r e n ã o p a ra se r m orto.

“ Tod o o cu id a d o e ra tom a d o p a ra q u e o e n te e m via s d e se r com id o fosse u m se r h u m a n o, u m se r d e p a la vra s, p rom e ssa s e m e m ória s. In u m e rá ve is d e ta

-lh e s d o rito […] te ste m u n h a m e ste e sforço e m con stitu ir a vítim a com o u m su je ito p le n a m e n te h u m a n o” (Vive iros d e C a stro 1992:292).

O ca tivo tom a n d o a p osiçã o d o m a ta d or — tra ta se d e u m m om e n to cru cia l d e m ú tu a id e n tifica çã o. O ca tivo re p re se n ta o fu tu ro d o m a ta -d or (se r e xe cu ta -d o p e lo in im ig o), o m a ta -d or re p re se n ta o p a ssa -d o -d o ca ti-vo (q u e foi u m m a ta d or) (Vive iros d e C a stro 1992:291). Ele s e n ca rn a m a s d u a s fa ce ta s te m p ora lm e n te d e sloca d a s d a p e ssoa ; e m u m a le itu ra stra th e rn ia n a , sã o d u a s “ m e ia s-p e ssoa s” , e ju n tos, “ u m a ” p e ssoa . Q u a l d e ssa s coisa s e stá e m jog o — a re p rod u çã o socia l d o m a ta d or, a im orta li-d a li-d e li-d o in im ig o ou a con tin u ili-d a li-d e li-d e a m b os — li-d e p e n li-d e li-d a p e rsp e ctiva . O s Tu p in a m b á p a ssa va m d a re la çã o com os m ortos p a ra a re la çã o com os

Figura 3: A pessoa como um operador nas relações ent re af ins

no int erior do grupo inimigo

M orte

Pre d a çã o

(12)

in im ig os d e m a n e ira ta l q u e os in im ig os con tin h a m ca d a u m a h istória d o ou tro e e ra m ca d a u m o fu tu ro d o ou tro. Isto é a p e ssoa fra cta l “ e m fa b ri-ca çã o” .

Ao se r m orto, o ca tivo é d ivid id o m a is u m a ve z. Pod e ría m os su g e rir q u e su a d u a lid a d e m a scu lin o/ fe m in in o é d e se m b ru lh a d a n a d istrib u içã o d a s p a rte s d e se u corp o? A ca rn e é con su m id a p rin cip a lm e n te p or m u lh e -re s, os crâ n ios (ossos) sã o q u e b ra d os p e lo m a ta d or. De ta l m a n e ira q u e :

m a scu lin o : fe m in in o : : ossos : ca rn e

Se re te m os a id é ia d e q u e o n om e tu p in a m b á e ra u m e le m e n to d ivi-n o d a p e ssoa , u m a m a ivi-n ife sta çã o d a a lm a , ve m os com o e ssa d u a lid a d e h u m a n o/ d ivin o é d e se m b ru lh a d a n a se p a ra çã o e n tre o n om e (q u e va i com o m a ta d or) e a su b stâ n cia (q u e va i p a ra o re sto d a a ld e ia ), a d icion a n d o m a is u m p a r à a ssocia çã o a cim a :

m a scu lin o : fe m in in o : : ossos : ca rn e : : n om e s (d ivin o) : su b stâ n cia (h u m a n o)

A d u a lid a d e p re d a d or/ p re sa d o ca tivo e ra ta m b é m re a liza d a : u m a ób via p re sa ca n ib a l, e ste e ra ta m b é m u m n ã o tã o ób vio p re d a d or ca n i-b a l. O m a ta d or e ra o ú n ico q u e n ã o com ia o ca tivo11:

“ [...] a fa sta n d o-se p a ra su a ca sa a p ós a p a n ca d a fin a l, […] a p lica va m -lh e n o p u lso os lá b ios corta d os d o in im ig o, com o se a in ve rte r a re la çã o ca n ib a l […].

J e ju a n d o p or d ia s e m su a re d e , com u m fio d e a lg od ã o a m a rra d o e m torn o d e se u p e ito (com o u m ca d á ve r?) […]. Fin a lm e n te , o m a ta d or e ra e sca rifica -d o (p a ra q u e o sa n g u e n ã o a p o-d re ce sse e m su a b a rrig a ).” (Vive iros -d e C a s-tro 1992:293)

De ssa m a n e ira , a s re la çõe s sã o d e se m b ru lh a d a s: a con stitu içã o re la -cion a l d o ca tivo, su a d u a lid a d e m u ltin ive la d a , é ou e n ce n a d a — p . e x., q u a n d o e ste a ssu m e u m va lor p u ra m e n te re la cion a l d e a fin id a d e —, ou re ve la d a n a con stitu içã o m e sm a d e se u se r — p . e x., n om e s (d ivin o) e su b stâ n cia (h u m a n o).

(13)

i-ra s: p od e a g oi-ra se ca sa r le g itim a m e n te , p ois foi a fin iza d o p e lo ca tivo; m or-re u e or-re ssu scitou , o q u e fa z d e le u m se r a lg o d ivin o; e , o m a is im p orta n te d e tu d o, e le se torn a u m in im ig o. Tod a s a s re la çõe s q u e fora m d e se m b ru lh a d a s a tra vé s d o ca tivo sã o re con stru íd a s n a p e ssoa d o m a ta d or, e o le n -to p roce sso d o ca tivo n o ca m p o d o in im ig o p od e b e m se r u m a e xib içã o d a q u ilo e m tu d o q u e o ca tivo va i se torn a r. O m a ta d or e n g lob ou , “ com e u ” , se u in im ig o, e , n o fin a l d a s con ta s, você é o q u e você com e . M a s, o q u e com e o m a ta d or? Re la çõe s (ve r Vive iros d e C a stro 1992:303) (Fig u ra 4).

In cid e n ta lm e n te , e ssa d e scriçã o d e ixa cla ro com o u m a p e ssoa a p e -n a s co-n té m re la çõe s d a s q u a is e le / e la p a rticip ou . Você só p od e tom a r u m a p osiçã o se você a con té m . É p or isso q u e o m a ta d or te m q u e m orre r; p a rticip a n d o e m u m a re la çã o d e m orte , e le se torn a im orta l. Isso ta m b é m d á a os m a ta d ore s, q u a n d o ca p tu ra d os (in im ig os), a ca p a cid a d e d e sig n i-fica r a im orta lid a d e n o d e se m b ru lh o e tra n sm issã o d e se u e le m e n to d ivi-n o: se u s ivi-n om e s.

Va m os d iscu tir a g ora u m ca so a ra w e té , on d e p od e m os ve r, n o p ro-ce sso d e m orte d a p e ssoa , u m d e se m b ru lh o sim ila r. As re la çõe s q u e os Tu p in a m b á m a n tin h a m com se u s in im ig os, os Ara w e té su ste n ta m com se u s d e u se s Ma ï.

Q u a n d o u m Ara w e té m orre , su a p e ssoa sofre u m a sé rie d e tra n sform a çõe s. Se u corp o a p od re ce , p roce sso q u e é cosform p re e n d id o cosform o d e con

-Figura 4: Reconst it uição do mat ador pelo inimigo12

In im iza d e : o m a ta d or é a g ora ob je to d a a te n çã o d o in im ig o, e sa b e d isso! Afin id a d e :

o m a t a d o r p od e ca sa r-se , e le se torn a u m a fim . M orte :

o m a t a d o r m orre , re ssu scita e a d q u ir e n o m e s. Pre d a çã o:

o m a ta d or e n g lob a , d e v o r a s e u in im ig o. Re p rod u çã o:

(14)

su m o ca n ib a l p or p a rte d e d ois tip os d e e sp írito, os ˜A ˜n ˜i e Iw i y ari, a Avó Te rra . Se u ˜i, u m p rin cíp io vita l e vid e n cia d o e m vid a p e la p u lsa çã o sa n -g ü ín e a e p e la im a -g e m d a p e ssoa , d ivid e -se e tom a d ois ca m in h os. Um d e se u s a sp e ctos torn a -se u m ta’o w e , u m e sp e ctro, u m d u p lo d o ca d á ve r, u m a e sp é cie d e corp o m e câ n ico d e sp rovid o d e su b je tivid a d e . Este se r p e rd u ra o te m p o d e d e com p osiçã o d a p e ssoa , tra n sform a n d o-se e m “ a lg o com o u m g a m b á m orto” , e e n tã o e m u m m a ca co-d a -n oite . Esse a sp e cto corre sp on d e à p a rte d o ˜i q u e e m vid a e sta va a ssocia d o à som b ra d a p e s-soa . A visã o d e u m ta’o w e p od e ca u sa r a m orte . Sã o te m id os p e los vivos, q u e a p ós u m a m orte se a fa sta m d a a ld e ia a té su sp e ita re m d e q u e o ta’o w e d e ixou d e e xistir. O ou tro a sp e cto d o ˜i, q u e corre sp on d e à vita lid a d e d a p e ssoa , sob e a os cé u s on d e vive m os d e u se s M a ï. Ali, os m ortos sã o p rim e iro p in ta d os com je n ip a p o, e m u m p a d rã o ch a m a d o “ a lm a n ova ” . Em se g u id a , e n con tra m -se com os M a ï, q u e re q u isita m p re se n te s (se o m orto é u m a m u lh e r, q u e re m fa ze r se xo com e la ). O s m ortos n u n ca sa tis-fa ze m e ssa s re q u isiçõe s. Esse com p orta m e n to a n tié tico é p u n id o p e los d e u se s com a m orte (os m ortos sã o in im ig os n o m u n d o d os M a ï). M ortos e d e sp e la d os (os M a ï con se rva m a p e le com o u m a e sp é cie d e trofé u ), e le s sã o e n tã o fe rvid os; su a ca rn e é com id a p or tod os os M a ï. Se u s ossos, tod a -via , p e rm a n e ce m , e sã o u sa d os p e lo d e u s Tiw a w i p a ra re con stitu ir-lh e s o corp o, q u e é d e p ois b a n h a d o (ou m e lh or, cozid o) e m á g u a e fe rve sce n te : isso “ ‘troca a p e le ’ d a a lm a e a re vive , torn a n d o-a forte e b e la . Um a a lm a m a scu lin a é p in ta d a com je n ip a p o, e m u m p a d rã o d e lin h a s fin a s; a a lm a fe m in in a te m su a vu lva p in ta d a ” (Vive iros d e C a stro 1992:211, ê n fa se s m in h a s). Tod a s e ssa s tra n sform a çõe s sã o con com ita n te s à d e com p osiçã o d o ca d á ve r d e u m m orto. N o fin a l, o m orto ca sa se e n tre os M a ï, e sta b e -le ce n d o com e ste s re la çõe s d e a m iza d e form a l, ap ih ï-p ih ã. De ssa m a n e i-ra , os m ortos (com o op e i-ra d ore s) a fin iza m os M a ï com re sp e ito a os vivos (Vive iros d e C a stro 1992:202-212).

(15)

re con stitu íd os. Se a m orte é coisa fe m in in a , se ja p orq u e se é com id o q u a n -to se ja se é u m a m u lh e r d oa d a a os M aï, o q u e p e rm a n e ce — os ossos (fu tu -ro M a ï) — d e ve , p orta n to, se r m a scu lin o (o q u e , a liá s, re ve la a n a tu re za re la tiva d o g ê n e ro com o u m a m e tá fora d o d ivisor Eu / O u tro; volto a isso a d ia n te ). Essa se p a ra çã o fin a l é ta m b é m u m a in stâ n cia d a se p a ra çã o d a sob re n a tu re za com re sp e ito à n a tu re za : “ só os ossos e sq u e ce m ” , d ize m os Ara w e té , q u e re n d o d ize r com isso q u e os m ortos, u m a ve z M a ï, te n d o sid o d e sp rovid os d e su a ca rn e , se d e d a s e m oçõe s e d a m e m ória , e sq u e -ce m os vivos.

A q u a lid a d e fra cta l d a p e ssoa é a q u i e vid e n cia d a n o e n ca ixe d e p e s-soa s e m p a rte s d e p e ss-soa s, com o re p re se n ta d o n a Fig u ra 5; é ta m b é m su g e rid a p e lo u so d o te rm o h iro (q u e se re fe re a q u a lq u e r con te n tor) n o con te xto d a m orte :

“ H iro, com o ˜i, te m u m sig n ifica d o p osicion a l. Um a p e ssoa viva é u m h iro e m op osiçã o a o e sp e ctro [o d u p lo d e riva d o d a som b ra ]; u m e sp e ctro é u m h iro

e m op osiçã o a u m a im a g e m ˜i [a vita lid a d e ce le ste fu tu roM a ï], e u m a im a -g e m [vita lid a d e ce le ste ] é u m h iro [o m orto é com id o, e le / a te m ca rn e e osso] e m op osiçã o à q u ilo q u e n ã o te m form a ou ca u sa , q u e é su b je tivo.” (Vive iros d e C a stro 1992:203)

Re la çõe s d e m orte , in im iza d e e re p rod u çã o sã o re ve la d a s a tra vé s d a se p a ra çã o d os a sp e ctos con stitu tivos d a p e ssoa e , com o n o ca so Tupinam -b á , re la çõe s d e p re d a çã o e a fin id a d e sã o re ve la d a s “ e m a to” : p rim e iro, n o d e se r com id o, e e m se g u id a n o d e ca sa r-se com os M a ï. Tu d o isso é p ossíve l p orq u e os m ortos sã o p e ssoa s d ivid id a s, op e ra d ore s n a s re la çõe s e n tre os M a ï e os vivos.

Relações com os mort os, relações com os inimigos: quest ões de escala

(16)

N a e sca tolog ia w a ri’, q u a n d o u m a p e ssoa e stá g ra ve m e n te d oe n te , su a a lm a via ja p a ra o m u n d o d os m ortos, on d e Tow ira Tow ira , u m h om e m com te stícu los e n orm e s, ofe re ce lh e ch ich a a ze d a . A a ce ita çã o, e q u iva -le n d o sim b olica m e n te a o e sta b e -le cim e n to d e u m a re la çã o d e a fin id a d e com Tow ira Tow ira , corre sp on d e à m orte d e fin itiva d a p e ssoa . Se e sta re je ita a b e b id a , vive rá (Vila ça 1992:250). Um m orto re ce n te é re fe rid o p e lo te rm o n ap iri, u sa d o e m d u a s ou tra s situ a çõe s q u e p e rm ite m e sta b e -le ce r u m a im p orta n te con e xã o sim b ólica e n tre m ortos re ce n te s, m u lh e re s e m a ta d ore s. N ap iri é u m a d e sig n a çã o a p lica d a a jove n s m oça s cu jos cor-p os sã o vistos com o cor-p ron tos cor-p a ra o ca sa m e n to: “ n acor-p iri é a m oça cor-p ron ta

Figura 5: Desembrulhando a pessoa f ract al araw et é13

C a d á v e r ˜i

E sp e c t r o Vita lid a d e Pe ssoa

C a r n e O ssos

H u m a n o / n a tu re z a H u m an o/ sob re n atu re z a

I n im ig o A ra w e té

Fe m in in o / h u m a n o M a sc u lin o / d iv in o U m a P e s s o a

U m a P e s s o a

(17)

p a ra e fe tiva r o ca sa m e n to, a a lia n ça ; p ron ta p a ra re ce b e r o sê m e n ” (Vila -ça 1992:104). O te rm o te m , p ois, u m a im p orta n te d im e n sã o te m p ora l, d e sig n a n d o u m a p e ssoa e m u m p e ríod o p a rticu la r: a m u lh e r n o m om e n to d a troca m a trim on ia l. N e sse se n tid o, re fe re -se a u m a “ m u lh e r d oa d a ” .

“ É in te re ssa n te le m b ra r q u e o m orto re cé m -ch e g a d o ta m b é m é ch a m a d o n ap iri, a ssim com o o m a ta d or (e é m e sm o a ssocia d o a e le ), o q u e p a re ce te r re la çã o com se u ca rá te r m e d ia d or e n tre vivos e m ortos. Se n ap iri é ‘m u lh e r

d oa d a ’ […], o m orto q u e ch e g a a fin iza os m ortos p a ra os Wa ri’; tra n sform a n -d o-os e m ‘g e n ros’ e ‘cu n h a -d os’, torn a -os p re sa s, k ara w a p ote n cia is, q u e é e xa ta m e n te com o os m ortos virã o a se con stitu ir p a ra os vivos.” (Vila ça 1992:250)

O s m ortos re a p a re ce m n a te rra com o q u e ixa d a s, q u e ta n to p od e m se r ca ça d os p e los Wa ri’, q u a n to a p a re ce r com o e stra n g e iros, q u e vê m d a n ça r n os ritu a is, ou in im ig os. O ú ltim o p on to q u e va le m e n cion a r é o m od o com o, n o fu n e ra l, os n ari p ax i, a fin s e p a re n te s d ista n te s d o m orto, com e m o ca d á ve r com o u m se rviço a os iri’n ari q u e , se n d o con su b sta n -cia is14d o m orto, n ã o d e ve m fa zê -lo, d e m od o a e vita r o a u toca n ib a lism o (Vila ça 1992:209).

(18)

Pa sse m os a g ora à re la çã o e n tre os Wa ri’ e se u s in im ig os. Um m a ta -d or con té m e m su a b a rrig a o sa n g u e -d o in im ig o, p a rte -d o q u a l e le tra n s-form a e m sê m e n . Isto é fe ito d u ra n te o p e ríod o d e re clu sã o ritu a l q u e se se g u e a o h om icíd io. Do m e sm o m od o q u e a s m oça s q u e a lca n ça ra m a m a tu rid a d e se xu a l e e stã o p ron ta s p a ra re ce b e r sê m e n , os m a ta d ore s d u ra n te a re clu sã o ta m b é m sã o ch a m a d os n ap iri, o q u e su g e re su a a sso-cia çã o a m u lh e re s n o m om e n to d a a lia n ça . Alé m d isso:

“ Essa a ssocia çã o [sa n g u e e sê m e n ] n os p e rm ite p e n sa r a p e n e tra çã o d o sa n g u e d o in im ig o n o corp o d o m a ta d or com o sim b olica m e n te a ssocia d a à re la -çã o se xu a l. Efe tiva m e n te , d e p ois d isso, o m a ta d or te rá u m filh o: o ya m [a lm a ]

d o in im ig o m orto.” (Vila ça 1992:103-104)

De p ois d a re clu sã o, o m a ta d or, q u e tra n sform ou p a rte d o sa n g u e d o in im ig o e m sê m e n , p od e “ e n g ord a r” su a e sp osa (Vila ça 1992:109).

N ote -se q u e aq u ilo q u e os m ortos faz e m aos v iv os — a fin izá -los — é o q u e o in im ig o faz a se u m atad or, a fin iza n d o-o a tra vé s d e re la çõe s se xu a is (p e n e tra çã o d e sa n g u e ), e situ an d o d e ssa m an e ira os in im ig os e os m ortos n a p osição d e O u tros: p rim e iro, o m a ta d or é u m a m u lh e r d oa -d a (com o u m m orto re ce n te ); se g u n -d o, e le se torn a con su b sta n cia l com o in im ig o (com o os m ortos re ce n te s re con h e ce m os m ortos com o cog n a tos). É p or isso q u e e le n ã o com e a su b stâ n cia d o in im ig o. M a s o re sto d os Wa ri’, e ste s sim a con som e m — o q u e é p re cisa m e n te o q u e os vivos fa ze m a os

Figura 6: Relações vivos/ mort os (operadores em it álico; t ermos em caixas)

Vive n te s

M ortos

Q u e ix ad a M o rt o s R e c e n t e s

P r e s a

M u lh e r D o a d a

(19)

m ortos e m form a d e q u e ixa d a . É ta m b é m o q u e os a fin s fa ze m a o m orto, com o u m se rviço p a ra os con su b sta n cia is d e ste , e m u m fu n e ra l w a ri’16. A Fig u ra 7 m ostra a s re la çõe s in im ig o/ m a ta d or.

Q u a n d o foca liza m os o p a r m a ta d or/ ca tivo, é p ossíve l visu a liza r, com o n o ca so tu p in a m b á , o e n g lob a m e n to d o O u tro p e lo Eu . O m a ta d or p od e n ã o com e r d a su b stâ n cia d o in im ig o m orto, m a s com e sim b olica -m e n te su a a l-m a tra n sfor-m a d a e -m sa n g u e (Vila ça 1992:112). A re la çã o e n tre os te rm os é m e d ia d a p e la troca sim b ólica d e sa n g u e e p e la in cor -p ora çã o d a a lm a d o in im ig o.

Q u a n d o n os d ista n cia m os, p or a ssim d ize r, e olh a m os p a ra isso a p a r-tir d e u m a e sca la d ife re n te , n ota m os q u e ta n to o in im ig o ca tivo q u a n to o m a ta d or sã o p e ssoa s d ivid id a s, op e ra d ore s n a s re la çõe s e n tre a s p osiçõe s g e n é rica s d e Wa ri’ e O u tro (te rm os). O in im ig o é u m op e ra d or: su a su b s-tâ n cia é ob je to d e p re d a çã o e , p orta n to, d e d e vora çã o. O m a ta d or é u m op e ra d or: con su b sta n cia l com o in im ig o, é p osto e m re clu sã o, p re cisa re p ou sa r e d ig e rir o sa n g u e d a vítim a , e e stá e m u m a re la çã o e sp e cia l com o re sto d o g ru p o. Essa id e n tifica çã o le va a p e n sa r n o in im ig o m orto e n o m a ta d or re clu so com o, sim u lta n e a m e n te , d ivid id os e fu n d id os: ju n -tos, con stitu e m u m a p e ssoa . N e sse p on to, a n oçã o d e M . Stra th e rn d e “ d ivíd u os” , com o foi visto p a ra os Tu p in a m b á , g a n h a u m a u tilid a d e m a is

Figura 7: Relações W ari’/ inimigos (operadores em it álico, t ermos em caixas)

Wa ri’

In im ig o

I n im ig o M a t a d o r

P r e s a

M u lh e r D o a d a

(20)

e xp lícita : “ u m a d u a lid a d e in te rn a é e xte rn a liza d a ou e licita d a n a p re se n-ça d e u m p a rce iro: o q u e e ra ‘m e ta d e ’ d e u m a p e ssoa se torn a ‘u m ’ d e u m p a r” (Stra th e rn 1988:15). O m a ta d or, n a p osiçã o d e u m a m u lh e r d oa d a , é a n á log o à alm a d e u m m orto (le m b re m os q u e a m b os sã o ch a m a d os n ap i-ri), q u e r d ize r, e le e q u iva le à “ m e ta d e ” d a p e ssoa q u e va i p a ra o ou tro m u n d o. O in im ig o, com o p re sa , se g u e o ca m in h o d o cad áv e r d e u m m or-to, a “ m e ta d e ” d a p e ssoa q u e é com id a p e los a fin s (Fig u ra 8).

Da d o q u e o ca d á ve r d o in im ig o a ca b a p or d e sa p a re ce r, p od e -se d ize r q u e , d e p ois d isso e a n te s d o le va n ta m e n to d a re clu sã o (q u e d u ra ce rca d e u m m ê s), o m a ta d or é “ m e ta d e ” d e u m a p e ssoa ; com o ve re m os a d ia n-te , u m p roce sso d e m od ifica çã o corp ora l o fa z com p le to m a is u m a ve z. A Fig u ra 9 re su m e a s re la çõe s vivos/ m ortos e a q u e la s e n tre in im ig os, m os-tra n d o com o e sta s se e sp e lh a m m u tu a m e n te .

Figura 8: A dividualidade w ari’ durant e a reclusão do mat ador17

Su b stâ n cia Alm a Su b stâ n cia Alm a

I n im ig o M a t a d o r

Substância

Su b stâ n cia Alm a Su b stâ n cia Alm a

I n im ig o M a t a d o r

A l m a

A sp e c to I n im ig o A sp e cto M atad or

Su b stâ n cia Alm a

I n im ig o

Su b stâ n cia Alm a

M a t a d o r

v

U m a P e s s o a U m a P e s s o a

Troca d e san g u e e p e rsp e ctiv a

Se g u e o ca m in h o d a a lm a : “ m u lh e r d oa d a ” ; torn a -se con su b sta n cia l com O u tros.

Um a Pe ssoa (m a t a d o r / in im ig o )

(21)

A m e sm a lóg ica p a re ce e sta r op e ra n d o n o ca so tu p in a m b á . Um tod o (o g ru p o in im ig o) d á u m a p a rte (o ca tivo) q u e sig n ifica re la çõe s d e a fin i-d a i-d e e in im iza i-d e e n tre i-d ois g ru p os in im ig os (te rm os). Um a re p lica çã o d e ssa re la çã o ocorre q u a n d o o ca tivo (tod o, te rm o) d á se u sa n g u e (p a rte , op e ra d or) a se u m a ta d or — u m m om e n to e m q u e , ju n tos, e le s vê m sig n i-fica r re la çõe s d e p re d a çã o, m orte e re p rod u çã o (Fig u ra 10).

A d ife re n ça d o ca so tu p in a m b á e stá e m q u e a li n ã o h á re la çõe s com os m ortos, a p e n a s troca s re cíp roca s e n tre in im ig os. M a s m e sm o se os in i-m ig os su b su i-m e i-m re la çõe s d istin ta s coi-m re sp e ito a o ca so w a ri’, e le s i-m a rca m a o m e sm o te m p o a se p a ra çã o e n tre d ois tip os d e re la çã o: e n tre m a ta -d or e ca tivo e e n tre g ru p os. Isso é e vi-d e n cia -d o p e la re ssu b je tiva çã o -d o ca tivo n o m om e n to e m q u e e le e stá n a im in ê n cia d e se r m orto. O s in im

i-Figura 9: Relações vivos/ mort os e ent re inimigos

M u lh e re s In im ig o Sa n g u e M a ta d or Q u e ixa d a s M u lh e re s

M a ta d or re clu so e In im ig o m orto e n q u a n to Um

Wa ri’ O u tro

v

v

v v

v v

v v

Pre d a çã o

C oito/ Afin id a d e

O b je to/ Te rm o

Su je ito/ Te rm o

En ce n a d o n a e xe cu çã o d o in im ig o

(22)

g os com o g ru p os sã o o p a ra le lo d os m ortos w a ri’, e é n e ssa e sca la q u e o p a r tu p in a m b á m a ta d or/ ca tivo é u m op e ra d or e n tre o g ru p o d o m a ta d or e o g ru p o d o in im ig o (te rm os).

Se , n o ca so w a ri’, os m ortos fa ze m com os vivos o q u e os in im ig os fa ze m com os Wa ri’, a ssocia n d o in im ig os e m ortos n a p osiçã o com u m d e O u tros, a q u i os in im ig os faz e m u n s aos ou tros o q u e e le s faz e m u n s aos ou tros, p or a ssim d ize r. A re la çã o re cíp roca e n tre in im ig os le va a u m a situ a çã o a lg o p a ra d oxa l d e a ssocia çã o d e O u tros a N ós, e é som e n -te a tra vé s d o d e sloca m e n to -te m p ora l q u e a e q u a çã o Eu = In im ig o p od e se r su ste n ta d a (Vive iros d e C a stro [1992:291-292] e stá ce rta m e n te cor-re to e m su b lin h a r a p rod u ção d o te m p o n o con te xto d a e xe cu çã o ritu a l d o ca tivo).

Figura 10: Relações ent re inimigos t upinambá

Afin s In im ig o Sa n g u e M a ta d or C a d á ve re s N om e s

M a ta d or re clu so e In im ig o m orto e n q u a n to Um

In im ig o' In im ig o

v

v

v v

v v

v

Pre d a çã o

Afin id a d e / M orte / Re p rod u çã o

O b je to/ Te rm o

Su je ito/ Te rm o

En ce n a d o n a s re la çõ e s com os in im ig os

En ce n a d o n a s re la çõ e s m a ta d or/ ca tivo In im ig os

(23)

Isso n os le va a d iscu tir o ca so fin a l d os Ara w e té . Aq u i os g u e rre iros g e ra lm e n te re torn a va m com u m a p a rte d o corp o d o in im ig o m orto, u m ú m e ro ou e scá p u la con se rva d os com o trofé u s, d a m e sm a m a n e ira q u e os d e u se s M a ï con se rva m a p e le d os m ortos. O m a ta d or e fe tivo, com o su a con tra p a rte tu p in a m b á , re tira -se e su b m e te -se a u m a sé rie d e in te rd i-çõe s, a b sorve n d o o sa n g u e d e su a vítim a e e sp e lh a n d o a m orte d e la com a su a p róp ria . Isso m a rca o p rin cíp io d e u m a n ova re la çã o com o in im ig o; e m vid a , o m a ta d or e a a lm a d a vítim a torn a m -se ap ih ï-p ih ã, a m ig os for-m a is, e o in ifor-m ig o d á ca n tos e n ofor-m e s p a ra q u e o for-m a ta d or os tra n sfor-m ita ; n a m orte , os d ois p a rticip a n te s d e ssa re la çã o se fu n d e m n a con stitu içã o d e u m ú n ico M a ï (Vive iros d e C a stro 1992:239-245). C om o n os e xe m p los w a ri’ e tu p in a m b á , o p a r m a ta d or/ in im ig o re ú n e a s d u a s fa ce ta s d a p e s-soa , e xp licita m e n te re ve la d a s n a m orte . O m a ta d or se g u e u m a tra je tória p a ra le la à d o a sp e cto vita l d o m orto, d o ˜i: ele morre ritualmente e ressus-cita p a ra e n tra r e m re la çõe s d e ap ih ï-p ih ã com o in im ig o (a ssim com o u m Ara w e té com u m m orre e e n tra n o fin a l e m u m a re la çã o d e ap ih ï-p ih ã com os M a ï). O in im ig o se g u e o ca m in h o d o ca d á ve r d e u m m orto: e le a p o-d re ce n a flore sta (p re su m ive lm e n te lib e ra n d o u m ta’o w e , u m e sp e ctro). Ele s sã o u m e o m e sm o, a a lm a -sa n g u e d o in im ig o foi in corp ora d a , o q u e fa z d e a m b os O u tros d os Ara w e té .

O s Ara w e té a p re se n ta m u m a ou tra va ria n te d a lóg ica a p re se n ta d a , n a q u a l se p od e ve r u m a com b in a çã o d e tra ços tu p in a m b á e w a ri’. De u m la d o, com o e n tre os Wa ri’, p od e m os a q u i d istin g u ir re la çõe s com in im ig os d a q u e la s com os d e u se s Maï. De ou tro la d o, os d e u se s Maï fa ze m a os vivos o q u e os Ara w e té fa ze m a se u s in im ig os18, a ssocia n d o os M a ï a os Ara w e té e n q u a n to “ N ós” . M a s isso le va à con tra d içã o n ota d a p a ra os Tu p in a m b á : os Ma ï com e m os m ortos re ce n te s, e le s sã o in im ig os, m a s a o m e sm o te m p o tom a m os se u lu g a r e n tre os vivos. O s Ara w e té sã o o e q u iva le n te te rre n o d o Ma ï, o In im ig o: a p e n a s o te m p o (a m orte ) é ca p a z d e su ste n ta r a e q u a -çã o Eu = In im ig o. O u tra d ife re n ça im p orta n te é q u e e n q u a n to os Tu p in a m-b á e os Wa ri’ re la cion a m -se com os in im ig os re cip roca m e n te , a re la çã o d os Ara w e té com os Ma ï n ã o é re cíp roca , os M a ï sã o d e stin o: d e stin o fin a l.

Troca de perspect ivas

(24)

Um m a ta d or é p osto e m re clu sã o, u m a “ m e ia ” -p e ssoa , d ivid id a : e le é con su b sta n cia l com o O u tro (in im ig o m orto). A re tota liza çã o d a p e ssoa d o m a ta d or a p ós a re clu sã o e n volve a a ssu n çã o, p e lo in im ig o d e n tro, d e u m a p e rsp e ctiva w a ri’. Isso é fe ito cu id a d osa m e n te a tra vé s d o b a n h o e d a p in tu ra a q u e se su b m e te o m a ta d or. De p ois d isso, o sa n g u e d e se u in im ig o o fe rtiliza : o in im ig o torn a -se u m filh o d o m a ta d or, e e ste p od e a g ora re a ssu m ir re la çõe s se xu a is com su a e sp osa . M a s isso é u m a in ve r-sã o d o p on to d e vista d o in im ig o: o filh o d o m a ta d or é a a lm a d o in im ig o; a tra vé s d a p in tu ra e d o b a n h o (m od ifica çõe s corp ora is), p oré m , fa z-se com q u e e le ve ja os Wa ri’ (in im ig os) com o “ N ós” (e xin im ig os). Esse e stá -g io te m se u p a ra le lo n o b a n h o a q u e é su b m e tid o o m orto a o ch e -g a r n o ou tro m u n d o, a p ós o q u e e ste re con h e ce os d e m a is m ortos com o cog n a -tos. Estan d o-se m orto, “N ós” (w a ri’) é u m a p osição d os m ortos. O q u e e xp lica com o os e le m e n tos d o p a r m a ta d or/ in im ig o sã o ob je tos te m p orá -rios (op e ra d ore s) d e ou tra su b je tivid a d e : u m é o ob je to d os W ari’ e n q u an -to m or-tos (u m a m u lh e r d oad a), o ou tro é ob je to d os W ari’ e n q u an to v iv os (p re sa, com id a). M od ifica çõe s corp ora is, p ois, com p le ta m u m a p e ssoa d ivid id a . Um a “ m e ta d e ” torn a -se u m tod o com u m a d u a lid a d e in te rn a Eu / O u tro. N a m e d id a e m q u e a q u a lid a d e -d e -su je ito é re cu p e ra d a , e la p od e se r in ve rtid a (u m m a ta d or p od e m a ta r d e n ovo ou se torn a r p re sa , os m ortos p od e m se r ca ça d os p e los vivos Wa ri’), e o q u e é re con stitu íd o é u m a p e ssoa .

Aq u i, o p a p e l d a troca e d o b a n h o-p in tu ra é cru cia l: p rim e iro, n a troca , u m in im ig o se torn a u m Wa ri’; se g u n d o, n o b a n h op in tu ra (d o m a ta -d or a p ós a re clu sã o e -d os m ortos re ce n te s -d e p ois -d a troca com Tow ira Tow ira ), os in im ig os (Wa ri’/ m ortos) sã o re con h e cid os com o “ N ós” (e x-in im ig os) (Fig u ra 11).

Isso corre sp on d e a o tra ta m e n to d o ca d á ve r q u e é p rim e iro a ssa d o e d e p ois com id o; ta m b é m ra tifica o fa to d e q u e tod a troca d e p e rsp e ctiva é u m a m od ifica çã o/ tra n sa çã o corp ora l19.

(25)

g ru p o, su a q u a lid a d e -d e -m orto [d e ad -n e ss]. “ N ós” n ã o p od e se r se n ã o o O u tro d e ou tros.

O p a r troca / m od ifica çã o corp ora l ta m b é m p od e se r visto e m op e ra -çã o e n tre os Tu p in a m b á , m a s a q u i a e sca tolog ia se situ a n a s re la çõe s e n tre g ru p os in im ig os. Prim e iro, p or m e io d e u m a troca (ca tivo/ sa n g u e ), u m in im ig o torn a se p a rte d o g ru p o d o ca p tor ou o p róp rio ca p tor; se g u n -d o, p or m e io -d e m o-d ifica çõe s corp ora is (re ssu b je tiva çã o -d o ca tivo, n om e s n ovos), u m in im ig o (ca tivo, m a ta d or re clu so) torn a -se “ N ós” (Fig u ra 12).

O ca so d os Ara w e té é m a is com p le xo. Da d a su a re la çã o n ã o-re cíp ro-ca com os d e u se s M a ï, o m a ta d or a ra w e té , a o a d q u irir se u s tra ços d ivi-n os, n u n ca d e ix a re alm e n te d e se r u m M a ï, u m O u tro e n tre se u s con te r-rân e os. A re la çã o com os M a ï é m a is d e a tra çã o q u e d e troca re cíp roca , os M a ï n ã o sã o p e ssoa s (com o os m ortos Wa ri’), sã o d e u se s; n in g u é m com e os Ma ï. Ao se torn a r Ma ï, o m a ta d or n u n ca m a is re cu p e ra su a q u a -lid a d e -d e -p e ssoa [p e rson -n e ss].

O m a ta d or tom a o p on to d e vista d o in im ig o d e d u a s m a n e ira s: d e u m la d o, e le e sp e lh a a m orte d e su a vítim a ; d e ou tro, e le re ssu scita com o u m Ma ï n a te rra . O s Ara w e té tê m d ois tip os d e O u tro: os in im ig os vive n -te s e os Ma ï ca n ib a is. O m a ta d or é a m b os. Ele e n tra e m re clu sã o e ob se r-va in te rd içõe s (com o fa ze m p e ssoa s d ivid id a s), m a s se u corp o n ã o é d e p ois m od ifica d o, se ja p or p in tu ra s ou n ovos n om e s. O se g u n d o p a sso q u e ve

ri-Figura 11: Paralelos ent re mat ar e morrer para os W ari’

Troca : o in im ig o in se m in a o m a t a d o r (sa n g u e )

M a t a d o r M ortos

M atad or Re clu so M ortos Re ce n te s

C on su b sta n cia lid a d e com os Wa ri' (vivos)

C og n a tos d os M ortos (Wa ri' )

Troca : os vivos d ã o u m m o r t o : t r o c a m a trim on ia l sim b ólica com Tow ira Tow ira

Pin t a d o / b a n h a d o Ba n h a d o

Troca d e Pe rsp e ctiva s

Wa ri' torn a m -se In im ig os

v

Troca d e Pe rsp e ctiva s

In im ig o s t o r n a m - s e “ N ós” (Wa ri' )

v

(26)

fica m os p a ra os Wa ri’ e p a ra os Tu p in a m b á n ã o ocorre n e sse ca so. Dive r-sos fa tos in d ica m su a q u a lid a d e -d e -in im ig o [e n e m y -n e ss]: 1) o m a ta d or a ra w e té tra n sm ite os n om e s q u e a a lm a d e se u in im ig o lh e d á , m a s n ã o os “ ve ste ” e le m e sm o; 2) e le n ã o p od e re a ssu m ir re la çõe s se xu a is com su a e sp osa a té m u ito te m p o d e p ois d o h om icíd io, p ois d o con trá rio se ria se u in im ig o q u e m fa ria p rim e iro se xo com su a e sp osa ; 3) su a s a rm a s p re -cisa m se r m a n tid a s lon g e d e le n o p e ríod o p ós-h om icíd io, p a ra e vita r q u e o in im ig o se vin g u e n os con te rrâ n e os d o m a ta d or; 4) n os ca n tos q u e o m a ta d or ca n ta , é o in im ig o q u e ocu p a a p osiçã o d e su je ito; 5) m a is im p or-ta n te , o m a or-ta d or é a ú n ica p e ssoa p ou p a d a , n a m orte , d a a n trop ofa g ia d ivin a , p a ssa n d o d ire ta m e n te a o b a n h o re con stitu tivo (m od ifica çã o cor-p ora l). O m a ta d or ta m cor-p ou co lib e ra u m e scor-p e ctro (a lg u n s d ize m q u e o fa z, m a s a p e n a s u m in ofe n sivo).

O m a ta d or lib e rtou -se a ssim d e se u ta’o w e , se u e sp e ctro, o q u a l se e n con tra “ e n corp ora d o” [e m b od ie d ] n o ca d á ve r p u tre sce n te d o in im ig o. Está a q u i e m q u e stã o ta n to a con ve rsã o d o m a ta d or e m M a ï, e m u m in i-m ig o, q u a n to a in corp ora çã o d o in ii-m ig o a o i-m a ta d or. In ii-m ig os sã o p u ro ta’o w e20— a o se torn a re m u m su je ito com se u e xe cu tor e le s se torn a m ˜i, e d e u se s M a ï n a te rra . Tod a via , n a m e d id a e m q u e n e n h u m a m od ifica -çã o corp ora l com p le ta a p e ssoa d o m a ta d or, e le p e rm a n e ce d ivid id o, o ú n ico in d iv íd u o: “ Este é o p a ra d oxo d o g u e rre iro Ara w e té : p u ro e sp írito,

Figura 12: Paralelos ent re o homicídio t upinambá e t rocas com inimigos

Troca : o sa n g u e d o in im ig o é in c o r p o r a d o p e lo m a ta d or

(c o it o / p r e d a ç ã o )

M a t a d o r In im ig o (c o m o g r u p o )

M atad or Re clu so Cativ o

A fim / In im ig o (Re p rod u çã o socia l)

In im ig o’ (com o g ru p o) (Im o r t a lid a d e )

Troca : u m g ru p o in im ig o d á (p e r d e ) u m d e se u s m e m b ro s

M od ifica çã o corp ora l: o m a t a d o r a d q u ir e n o v o s n o m e s

M od ifica çã o corp ora l: re ssu b je tiva çã o d o c a t iv o a n t e s d a e x e c u ç ã o Troca d e Pe rsp e ctiva s

Tu p in a m b á torn a m -se In im ig os v

Troca d e Pe rsp e ctiva s

In im ig os torn a m -se “ N ós”

v

(27)

h om e m se m som b ra e se m carn e , e le é se u p róp rio in im ig o, e o ce n tro d e u m a socie d a d e se m ce n tro.” (Vive iros d e C a stro 1992:251, ê n fa se s m in h a s)

Se o m a ta d or é u m M a ï, e n tã o su a p osiçã o d e su je ito n ã o p od e se r re ve rtid a . Evid ê n cia d isso é a id é ia d e q u e e m te m p os p a ssa d os, os m a ta -d ore s n u n ca m orria m , m a s su b ia m a os cé u s e m ca rn e e osso (Vive iros -d e C a stro 1992:246) — e le s n ão p od e m se r fe itos p re sa. En q u a n to os n ã o-m a ta d ore s a ra w e té re a liza o-m a e q u a çã o Eu = In io-m ig o a tra vé s d o te o-m p o, m orre n d o, p a ssa n d o d e “ N ós” n a te rra (Ara w e té ) a “ N ós” n os cé u s (M a ï), u m m a ta d or a n u la o te m p o com su a m orte ritu a l e , a ssim , se torn a Eu e In im ig o n a te rra , e n corp ora n d o a p osiçã o a m b íg u a d os M a ï, q u e p rim e iro n os com e m , m a s e m se g u id a sã o o “ N ós” n o cé u . O p on to é q u e u m p ro-ce sso q u e te m in ício n a te rra , com o h om icíd io e a con ve rsã o e m in im ig o (p a sso 1), é com p le ta d o a p e n a s n o cé u , p or m e io d a m u d a n ça d e corp o n o b a n h o re sta u ra d or (p a sso 2). M a s e ssa a ssim e tria com re sp e ito a o p ro-ce sso sofrid o p or tod os os ou tros Ara w e té sig n ifica q u e o m a ta d or n u n ca d e ixa d e se r u m O u tro, n e m m e sm o n o m u n d o d os M a ï. Aq u i, e le é u m Ira p a ra d ï, u m se r te m id o p e los d e u se s.

“ Ao d e sig n a r o e sta tu to d o m a ta d or a ra w e té , o con ce ito d e Irap arad ï re ve la

-se c o m o -se n d o e s-se n c ia lm e n t e u m a p e rs p e c tiv a: se o s M a ï s ã o a o m e s m o te m p o o corre sp on d e n te ce le ste d os Ara w e té e u m a fig u ra çã o d o In im ig o, se e le s n os olh a m com olh os d e in im ig o, e se os olh a m os com o in im ig os, os Ira-p arad ï sã o os Ara w e té se Ira-p e n sa n d o a tiva m e n te com o in im ig os. Ele s sã o a lg o

q u e os M a ï te m e m , a ssim com o os m ortos com u n s te m e m os M a ï.” (Vive iros d e C a stro 1992:248-249)

O m a ta d or é u m O u tro n a te rra e m virtu d e d a troca com o in im ig o, e u m O u tro d os M a ï e m virtu d e d e u m a m od ifica çã o corp ora l21. A d ife re n -ça com os ou tros ca sos é q u e , a q u i, o p rim e iro p a sso d o p roce sso se d á q u a n d o o “ N ós” sã o os Ara w e té vivos, e o se g u n d o p a sso ocorre q u a n d o o “ N ós” sã o os Ma ï. Assim , e m lu g a r d e in im ig os (m ortos re ce n te s) se tor-n a re m “ N ós” (Ma ï), é o “ N ós” (Ma ï) q u e se tortor-n a itor-n im ig o (d os Ira p a ra d ï) (Fig u ra 13).

Veículos de perspectiva

(28)

-d ore s sã o p e ssoa s (ca tivos, m ortos re ce n te s); n o se g u n -d o, p a rte s -d e p e s-soa s (sa n g u e ) se rve m com o ta l. M a s se o sa n g u e p od e se r u m op e ra d or, é a p e n a s p orq u e é ca p a z d e sig n ifica r re la çõe s, e d e ve a ssim p od e r se r O u-tro e m u m a oca siã o e Eu e m u m a ou tra . O sa n g u e é u m fra cta l e m e sca la re d u zid a d a p e ssoa .

N o ca so w a ri’, a tra n sform a çã o d o sa n g u e (d o in im ig o) e m sê m e n (d o m a ta d or) é u m a in stâ n cia ju sta m e n te d isso. Pa ra os Ara w e té é o a sp e cto vita l, o ˜i d e u m a p e ssoa , q u e se torn a u m d e u s M a ï (“ N ós” n o ou tro m u n d o). Pa ra os Tu p in a m b á p od e m os su g e rir u m a a ssocia çã o e n tre sa n g u e (d o in im ig o) e n om e s (d o m a ta d or). Em tod os os ca sos, u m a p a rte d e u m O u tro se torn a u m Eu , a a fin id a d e é tra n sform a d a e m con su b sta n -cia lid a d e . É p orq u e p a rte s d e p e ssoa s (o sa n g u e , o ˜i a ra w e té ) p a rticip a m d a fra cta lid a d e d a p e ssoa q u e e sta se con stitu i com o d u a l e p od e a ssu m ir p osiçõe s op osta s, a d ota r d ife re n te s p e rsp e ctiva s. C on te n d o p a rte s tra n s-form á ve is e tra n sa cion á ve is, a s p e ssoa s sã o e la s p róp ria s d u a is, tra n sfor-m á ve is e tra n sa cion á ve is.

Figura 13: Paralelos ent re morrer e mat ar nos Araw et é

Troca : o sa n g u e d o in im ig o é in c o r p o r a d o p e lo m a ta d or

(c o it o / p r e d a ç ã o )

M a t a d o r M ortos

M atad or Re clu so M ortos Re ce n te s

d e u s M aï n a te rra d e u s M aï

Troca : os vivos d ã o u m m o r t o : c o n s u m o c a n ib a l p e los d e u se s M a ï

M o r t e

M od ifica çã o corp ora l: r e c o n st it u iç ã o a p a r t ir d os ossos, p or m e io d e b a n h o e p in t u r a

M od ifica çã o corp ora l: re con stitu içã o a p a rtir d os ossos, p or m e io d e b a n h o e p in t u r a Troca d e Pe rsp e ctiva s

A r a w e t é t o r n a m - se In im ig os v

Troca d e Pe rsp e ctiva s

In im ig os torn a m -se “ N ós”

v

v v

I ra p a ra d ï

Troca d e Pe rsp e ctiva s

(29)

Se foca liza m os a s tra n sa çõe s d e sa n g u e , p od e m os d isce rn ir a a lte r-n â r-n cia d e p osiçõe s, a re ve rsib ilid a d e d a s p e ssoa s. A tra r-n sa çã o d e sa r-n g u e w a ri’ p õe e m p rim e iro p la n o a d u a lid a d e m a scu lin o/ fe m in in o d a s p e s-soa s: o m a ta d or (m a scu lin o) é p rim e iro in se m in a d o e fe rtiliza d o (fe m in i-n o); d e p ois d o b a i-n h o e d a p ii-n tu ra , e le se rá u m ii-n se m ii-n a d or (m a scu lii-n o) d e su a e sp osa , a q u e m “ e n g ord a ” (Fig u ra 14).

Pod e m os ve r, n o ca so d os Tu p in a m b á , u m p roce sso sim ila r: 1) o sa n -g u e in im i-g o p e n e tra o m a ta d or; 2) o corp o d o m a ta d or é m od ifica d o p or n ovos n om e s e orn a m e n tos (sa n g u e tra n sform a d o), a p ós o q u e e le p od e ca sa r-se e te r filh os (Fig u ra 15).

Pa ra os Ara w e té , con sta ta -se q u e os vivos, q u a n d o m orre m , sã o p ri-m e iro con su ri-m id os (fe ri-m in in os) e d e p ois d e sp osa d os p e los Ma ï (Fig u ra 16).

Figura 14: A posição do mat ador w ari’ no homicídio rit ual

Wa ri’ I n im ig o Wa ri’

M a s c u lin o

Re c lu s ã o

M a s c u lin o Fe m in in o

Troca d e p a rte s d o corp o: o sa n g u e d o in im ig o é in corp ora d o p e lo m a t a d o r p o r in se m in a ç ã o

(30)

Figura 15: A posição do mat ador t upinambá no homicídio rit ual

(no caso da iniciação de um rapaz)

N ós In im ig o N ó s

Pre d a d or

Re clu sã o

Pre d a d or Pre s a

Troca d e p a rte s d o c o r p o : o s a n g u e d o in im ig o é in c o r p o r a d o p e lo m a ta d or

M od ifica çã o corp ora l: o m a ta d or a d q u ire n ovos n o m e s . E le p o d e a g o r a ca sa r-se e re p rod u zir-se

A fim

Figura 16: Posições no processo da mort e nos Araw et é

“ N ó s” A r a w e t é In im ig o “ N ó s” M a ï

Pre d a d or

P r o c e s s o d a M o r t e

Pre d a d or Pre s a

Troca d e p a rte s d o c o r p o : o s v iv o s d ã o u m m o r t o ; c o n su m o ca n ib a l p e los M a ï

M od ifica çã o corp ora l: o s m o r t o s s ã o re con stitu íd os a p a rtir d os ossos e b a n h a d os (c o z id o s), e e n t ã o ca sa m -se com os M a ï

(31)

Conclusão

A fra cta lid a d e d a p e ssoa re ve la -se a tra vé s d o d e se m b ru lh o d a s re la çõe s q u e a con stitu e m . Esse p roce sso re ve la u m a sim ila rid a d e a u to-e sca la r. O e n g lob a m e n to d o O u tro p e lo Eu é a con clu sã o d e ssa tra je tória : in im ig os torn a m -se N ós, vive n te s torn a m -se os m ortos. O p roce sso e n volve a troca d e p a rte s d o corp o e m od ifica çõe s corp ora is: n o p rim e iro ca so, O u tros (in im ig os) se torn a m Eu s (m a ta d ore s); n o se g u n d o, O u tros sã o re d e fin i-d os com o N ós. O p rim e iro é u m a troca i-d e lu g a re s n o in te rior i-d e u m a m e s-m a s-m old u ra — você se torn a e u e vice -ve rsa ; o se g u n d o é u s-m a s-m u d a n ça d e m old u ra s — você ve rá o m u n d o com o e u o via a n te s d a troca . O p rim e iro im p lica o m u ltin a tu ra lism o, o se g u n d o a h u m a n id a d e d a p osiçã o re fle -xiva d e su je ito. Esse s d ois p a ssos con stitu e m a e ssê n cia d o p e rsp e ctivism o: 1) e n g lob a m e n to (p re d a çã o/ in te rcu rso se xu a l) via tra n sa çõe s q u e fa ze m d e O u tros ve rsõe s d o N ós; 2) o corp o, com o se d e d e p e rsp e ctiva s, é m od i-fica d o, fa ze n d o O u tros ve re m o m u n d o com o N ós, q u e r d ize r, com o e x-O u tros. x-O “ N ós” se m p re te m a ú ltim a p a la vra , p ois se tra ta d e ca rre g a r a q u a lid a d e d e su je ito con sig o. Se o corp o é se d e d e p e rsp e ctiva s, e n tã o su a s p a rte s tra n sa cion a d a s, re a l ou im a g in a ria m e n te , sã o ve ícu los d e p e rsp e c-tiva . O p e rsp e ctivism o é , lite ra lm e n te , u m a troca d e p e rsp e cc-tiva s, a lg u m a s ve ze s m e d ia d a p e la troca d e p a rte s d o corp o, isto é , p a rte s d a se d e -d e -p e rs-p e ctiva . Essa s rs-p a rte s con tê m rs-p e ssoa s in te ira s: o sa n g u e e stá rs-p a ra a rs-p e ssoa a ssim com o a p e ssoa e stá p a ra o g ru p o, tod os sã o u m a “ p e ssoa fra cta l” .

A a n á lise d o m od o com o a s re la çõe s com os m ortos e a s re la çõe s com os in im ig os sã o a rticu la d a s, a cop la d a à id é ia d a p e ssoa fra cta l, m ostra -se com o u m a h e u rística ú til p a ra a com p a ra çã o. Re ve la ra m -se d e ssa m a n e i-ra os p a p é is cru cia is d a troca e d a s m od ifica çõe s corp oi-ra is, a ssim com o a s d ife re n ça s e n tre re la çõe s re cíp roca s (Wa ri’) e n ã o-re cíp roca s, ou d e re la çõe s “ d e a tra çã o” [atractor re lation sh ip s] (p a rticu la rm e n te e vid e n te s n o e xe m p lo a ra w e té , e m b ora ta m b é m p re se n te s n o ca so d os Tu p in a m -b á )22. Este s ú ltim os, p or su a ve z, su b lin h a m q u e , e m b ora e xista m a p e n a s d u a s p osiçõe s p ossíve is n a s re la çõe s b a se a d a s n a id e n tid a d e , n a op osiçã o Eu / O u tro, a b a se d e sse siste m a é u m a tría d e : tra n sa tor A, coisa tra n sa cion a d a e tra n sa tor B. Em u m p la n o, os q u e tra n sa cion a m sã o d ife re n cia d os d o q u e é tra n sa cion a d o (ve r Stra th e rn 1988:177); e m ou tro, A (d oa -d or -d e e sp osa / vivo/ in im ig o) é -d ife re n cia -d o -d e B (tom a -d or -d e e sp osa / m or-to/ n ós) com o a h istória é d ife re n cia d a d o d e stin o. Aq u i o te m p o e a m orte d e se m p e n h a m o p a p e l d ife re n cia d or.

Imagem

Figura 1: A const it uição relacional da pessoa t upinambá 9
Figura 8: A dividualidade w ari’ durant e a reclusão do mat ador 17
Figura 10: Relações ent re inimigos t upinambá
Figura 13: Paralelos ent re morrer e mat ar nos Araw et é
+3

Referências

Documentos relacionados

Lisboa:

A etnografia de Nimuendajú está na raiz não apenas do interesse de Claude Lévi- Strauss pelos Jê e pelo dualismo característico de sua organização social, como também daquele

Caso se apliquem os rótulos atuais — por exemplo, o de “classes médias”

Mas a mesma selva, que garante aos habitantes originais a sua existência como nação, também concedeu asilo aos seus inimigos mais terríveis, aqueles sujeitos quietos, de

“Cosmologies of Capit alism: The Trans-Pacif ic Sect or of t he ‘W orld

** N.T.. no meio do pátio, era formado pelos 14 sobreviventes de uma classe ain- da mais antiga. Se em 1944, a agora não oficial classe de meninos come- çar seu ciclo iniciatório,

Tudo porque eu estava descre- vendo como eram os Bakgatla na reali- dade, que eles iam à igreja, usavam roupas, alguns falavam inglês… e isso não era antropologia para alguns

há também uma forma de examinar po- líticas públicas – uma forma preciosa- mente exemplar, porque ultrapassa o olhar ingênuo, porque percebe que os alvos declarados da estratégia