REIS, João José. Domingos Sodré: um sacerdote africano - Escravidão, Liberdade e Candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das letras, 2009.
Jucimar Cerqueira dos Santos1
Domingos Sodré: um sacerdote africano - Escravidão, Liberdade e Candomblé na Bahia do século XIX é uma biografia que revela alguns aspectos da estrutura social baiana da época, através de um africano que viveu no Brasil em grande parte do século XIX. Sua trajetória no Brasil funciona como guia para entender o universo dos libertos baianos, as diversas formas de alcançar a alforria e as relações interpessoais possíveis naquela sociedade. Através dele, também é possível analisar o mundo do candomblé em suas relações com a sociedade oitocentista e, num sentido mais amplo, é um guia para entender a dinâmica da escravidão e da liberdade num ambiente complexo.
Domingos Sodré nasceu por volta de 1795 (97), em Onim, a Lagos da atual Nigéria. Veio jovem ao Brasil, como escravo de um engenho no Recôncavo e em 1836 foi alforrriado. Aos poucos, começou a ganhar fama de adivinhador e feiticeiro. Era consultado por negros e brancos, mas foi preso por fazer trabalhos para “amansar senhores”. Comprou escravos, casou-se na Igreja e morreu em torno dos 90 anos, em 1887.
Liberto de destaque social pelas atividades exercidas, Domingos deteve capacidade de liderança tanto no âmbito financeiro, ao estar a frente de uma junta de alforria e pelo fato de possuir escravos, quanto no âmbito religioso, sendo considerado um babalorixá do século XIX. Ambos os setores, ele interligava na vida cotidiana a ponto de estar sujeito a problemas judiciais. A condição de “feiticeiro” e adivinho confere a Domingos lugar social particular. Se, por um lado, é perseguido em razão de práticas “mágicas” consideradas perigosas, por outro, a posição de líder religioso permite-lhe barganhar algum espaço no mundo dos brancos. Domingos teve de negociar com distintas forças e personagens sociais que conviveu, fez parte e recorreu a distintas
Historien (Petrolina). ano 5. n. 10. Jan/Jun 2014: 456-460.
instituições sociais, tanto formais como informais que fez parte tanto do mundo dos pretos, quanto dos brancos.
O autor do livro, João José Reis, possui o cargo professor do departamento de História da Universidade Federal da Bahia, com especialidade em escravidão. Suas pesquisas são sobre história social e cultural da escravidão, resistência escrava e movimentos sociais no Brasil do século XIX. Possui livros publicados como "A Morte é uma Festa - Ritos Fúnebres e Revolta Popular no Brasil do Século XIX", "Liberdade por um Fio - História dos Quilombos no Brasil", com Flávio dos Santos Gomes (Companhia das Letras), entre outros.
A partir desta biografia, Reis oportuniza o momento de realizar mais um trabalho de História Social, a partir de pessoas que não estiveram nas principais lideranças políticas, não foram grandes proprietários, muito menos brancos europeus colonizadores. Ele dá voz a homens e mulheres destituídos da chance de decidirem toda a trajetória de suas vidas, tomando como ponto de partida um liberto que obteve destaque por utilizar formas de resistência à submissão imposta pela elite de sua época. Tais elementos compõem uma obra que garante analisar aspectos do século XIX, através de uma linguagem prazerosa e envolvente.
A forma de organizar os capítulos da obra revela o objetivo do autor em permitir a saída de cena do biografado, para dar lugar ao seu universo e ao de outros personagens que integram o contexto da história. Sendo assim, essa forma de narrativa serve também de direção para “conhecer uma época, uma sociedade e em particular os homens e mulheres que compunham as redes de relações, com suas diferenças étnicas, suas hierarquias sociais e econômicas, suas instituições e práticas culturais” (p 16-17).
Outro elemento evidente na obra são as lacunas apontadas pelo próprio autor. Fato que evidencia um trabalho historiográfico investigativo, em que a imaginação é um elemento decisivo à organização de idéias e acontecimentos. Por falta de documentos ou por documentos ainda não revelados, João Reis traça um método em que não absolutiza as afirmações do seu trabalho, inclusive, assume suas suposições e suspeitas que os documentos por ele escolhidos não deixaram claro ou não se fizeram possíveis para ele. Em vários momentos Reis escreve “dialogando” com o leitor, indicando percursos interpretativos, assumindo suas desconfianças e dúvidas, o que não desqualifica a precisão de seu trabalho, sofistica-o.
A respeito do Candomblé e a forma como ele é concebido no folhoso, trata-se do aspecto que mais me impele a ler e recomendar tal obra. É necessário valorizar tal segmento religioso, não só como definidor da religiosidade africana no Brasil, mas como uma fonte inesgotável de cultura, que deve ser reconhecida, respeitada e valorizada, para além da admiração pelo exótico, mas para esclarecer que não há agressão moral, nem deve ser crime acreditar e cultuar divindades que não significam, necessariamente, contrárias à cristandade.
O que hoje se pode entender como uma religião afro-brasileira era considerada uma espécie de contravenção sócio-religiosa causadora de desordem. A forma, muitas vezes divergente, com que as autoridades policiais lidavam com as práticas religiosas dos negros é um aspecto que os documentos analisados revelam. Enquanto os chefes de polícia detinham um controle mais rígido sobre as manifestações culturais africanas, os subdelegados, estando no trato com essas manifestações no dia a dia, tinham postura de negociação e tolerância. Estes fatores mostram-se como fundamentais à elaboração da obra, o que possibilitou a partir da prisão do liberto, nortear a narrativa e apontar diretrizes essenciais para uma explanação acerca da vida social no século XIX.
O livro permite compreender como é concebido um segmento religioso no Brasil, com um início conturbado, carregado de preconceitos e criminalização, os objetivos e a mistura de preceitos envolvidos no processo de formação do que hoje é o candomblé.
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O Candomblé era compreendido como uma reunião de negros, na qual ocorria batuques e imoralidades. Era visto também como uma ameaça de revolta e chamado de quilombos (no sentido de lugar de conspiração) por jornais que só endossavam o repúdio à religiosidade negra. Tal ameaça era para que não abalassem a ordem escravista: sustentáculo social, econômico e da estrutura de Estado em formação.
A rejeição ao candomblé, possivelmente deve ser por não representar os princípios culturais da elite da época. Esta elite buscava a formação de uma identidade nacional que atendesse aos seus valores. Entretanto, a partir desta biografia, é possível perceber o quão inevitável foi a existência dos espaços que aqueles negros e negras demarcavam no seio daquela sociedade, dentro da condição social que possuíam. A força do povo negro prevalece, inclusive a favorecer muitos brancos, que aturdidos por enfermidades ou problemas pessoais recorriam às práticas “mágicas”.
Às práticas “mágicas” em si e o uso de objetos, que funcionavam como prova para acusações, verifica-se uma análise semelhante ao que ocorre na Europa, num período chamado de “caça às bruxas”: mais de 100.000 pessoas, a maioria mulheres, foram julgadas por tribunais seculares e eclesiásticos, em diferentes partes da Europa, pela suposta prática de magia maléfica2. De forma similar, as práticas de curandeirismo e os
seus autores eram acusados no contexto da obra de João Reis, só não foram julgados com a mesma intensidade.
As consideradas práticas mágicas de bruxaria, feitiçaria e de adivinhação, entravam num bojo só de acusação e condenação, sob o argumento da falta de moralidade que as autoridades afirmavam existir. Determinados setores da sociedade estavam sempre atentos a denunciar qualquer ato que causasse desconfiança, pelo modo de vestir, formas de falar, cantos, danças e reuniões de negros. Domingos Sodré, sendo “papai”, teve momentos em sua vida no Brasil de forte atuação católica, participando de celebrações e sendo indicado e/ou convidado a ser padrinhos de muitos negros e mestiços. Fato que comprova a não resistência religiosa declarada dos adeptos das práticas mágicas à religiosidade cristã.
Percebe-se hoje que o candomblé é considerado uma religião, embora haja resistências a tal afirmação. Acredito que Domingos Sodré, assim como Mãe Meninha do