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Bioética II O ser e a vida

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Academic year: 2021

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Bioética II O ser e a vida

A vida é uma forma especial de o ser se dar, formando isto que é a nossa dimensão ontológica própria. É próprio do espírito humano perceber a realidade em que se insere e de que é testemunha privilegiada. Desde que se pode perceber a presença deste testemunho, encontram-se dados humanamente matriciados que revelam que há uma preocupação especial com a diferença marcada pela vida. Assim, quer nos desenhos antiquíssimos em que a vida surge representada como algo de manifestamente importante pela positiva quer nos monumentos em que a morte se encontra associada a uma qualquer forma de celebração do que fora a vida e do que parece ser a esperança numa outra qualquer forma de continuidade reformada da mesma vida, é óbvia a relevância que a diferença específica própria da vida assume.

Não se sabe e nunca será possível saber quais as posições metafísicas que tais seres humanos assumiram perante esta especificidade, mas que tinham um grande apreço positivo pela vida, tal é inegável. É facilmente intuitivo passar da nossa experiência de vida própria para uma eventual representação especulativa do que poderia ter sido a atitude espiritual de tais seres humanos perante isto de estarem vivos. O contraste com o material inerte era, como é hoje, evidente: não somos do mesmo estofo total de uma pedra. Com ela partilhamos algumas características, como o estar aí, numa certa presença material irredutível, mas a pedra manifestamente não se auto-locomove, não fala, parece não sentir, não come, não procria.

Se estudarmos a literatura mais antiga, a partir deste ponto de vista, facilmente será possível perceber que a vida adquire nela uma importância esmagadora; aliás, não hesitamos em afirmar que, sem o tema da vida

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2 como seu sustento maior, não haveria coisa alguma de importante nesta literatura. Da vida, nas suas formas aparentemente mais frustres e ancilares, à vida dos seres considerados menores, mas já mais próximos do campo semântico do interesse humano, passando pela vida dos próprios seres humanos, à vida dos deuses, que é encarada como a fonte suprema de toda a vida, de onde esta emana e se espraia, constituindo o que há de verdadeiramente importante no mundo, todo o interesse fundamental se centra em torno da tentativa de compreensão do que a vida é em si mesma, sobretudo na diferença máxima com o seu verdadeiro contraditório, o nada. O próprio ser como um todo acaba por surgir como algo de vital e mesmo de vivo em si próprio. O mundo é um imenso vivente. Esta noção de força vital universal e integrada percorre não apenas as chamadas mentalidades míticas, mas ocorre também já dentro do campo histórico e historiográfico propriamente filosófico. O ser, no seu mais profundo de sua realidade matriz é um «bios kosmikos», uma vida cósmica.

O cerne do cosmos é entendido como vida. Esta é vista como anterior ao próprio cosmos em que o ser humano vive, pois apenas uma vida imensamente ou infinitamente poderosa disporia da força ontológica necessária para criar ou produzir tal cosmos. O sentido vital do cosmos é ontologicamente fundamental para o ser humano que vivia e vive segundo este tipo de consciência cosmológica vitalista (note-se que quem assim pensa ainda constitui a grande maioria da humanidade, ao contrário do que uma certa propaganda cientificista pode levar a crer).

Por exemplo, o primitivo «khaos» helénico pode ser interpretado como uma primeiríssima fonte absoluta de vida, totalmente informal, mas, assim,

totalmente diferenciável, em formas infinitas de possível vida. A sua

emergência diferenciada acaba por ser o todo do mundo que vemos e habitamos e que mais não é do que um contínuo brotar formal de vida. A própria morte mais não é do que uma forma, ainda cósmica em si mesma,

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3 de reordenar as formas de vida que se vão, com o próprio movimento vital,

desgastando.1

A vida parece, assim, assumir, desde o início, e desde que existem registos monumentais, um carácter concomitantemente mundano e extra-mundano, formal e informal, físico e metafísico. Sem dúvida que a vida é entendida como a realidade suprema possível, assumida simbolicamente como tal nos mesmos «deuses», formas infinitamente concentradas de vida, modelos paradigmáticos de vitalidade e de vida real. É assim que surgem não apenas os conhecidos deuses do panteão helénico, mas também os deuses das civilizações extremo-orientais, ameríndias, polinésias, por exemplo, mas também as imagens teológicas do divino nas chamadas religiões monoteístas; Deus é vida; a vida suprema, em si mesma, é Deus.

Tal é a importância que a vida assume.

Este breve percurso pela importância inicial da noção de vida ajuda-nos a entender melhor os problemas de sentido que uma redução da vida a uma mera realidade material acarreta, eliminado quase tudo o que é humanamente relevante na mesma noção de vida. Uma possível redução puramente materialista da noção de vida e de tudo o que se encontra a jusante desta noção irá imediatamente eliminar dimensões humanas de uma noção que se confunde, em sua mais lata compreensão, com a mesma realidade humana como um todo: o ser humano é, no limite, a sua vida, plenamente entendida, pelo que qualquer redução da grandeza da noção de vida é imediatamente uma redução da mesma vida humana que manifesta.

Muitos dos supostos problemas tratados pelas bioéticas relevam necessariamente de reduções indevidas da noção de vida, com

1 De notar que não é, como se diz habitualmente, o tempo que esgota ontologicamente os seres, mas são estes que se desgastam ontologicamente em seu movimento ontológico próprio, assim criando o tempo. Segundo esta mentalidade, a vida surge sempre como uma forma de empréstimo de possibilidade, que tem o seu máximo de possibilidade no momento inicial e que vai sendo diminuída à medida que se vai diferenciando e aparentemente crescendo. Fundam-se aqui os chamados mitos da idade de ouro inicial da humanidade.

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4 consequências também imediatas sobre a noção de vida humana e de humanidade e pessoa humana, precisamente como concretizações dessa

mesma noção.2

O facto de se empregar o termo «noção» em vez do termo «conceito» deriva, assim, da necessidade de se procurar mostrar que a vida e a vida humana são realidades virtualmente infinitas em potencialidade ontológica própria, sendo, deste modo, impossíveis de ser conhecidas ao ponto de se poder delas cunhar algo como um conceito. No entanto, como pretendemos mostrar brevemente, é impossível que a humanidade tenha sequer podido ser propriamente humanidade sem que tivesse de «vida» e de vida própria sua, «vida humana», apreendido uma qualquer forma nocional, sempre imprecisa, sempre em redefinição, mas que guarda, já, algo de fundamental, de uma realidade imensa, impossível de dominar logicamente, mas passível de ser acedida através de formas muito próximas e primeiras de intuição. Talvez esta intuição primeira se possa especulativamente pôr na seguinte forma, manifesta para cada próprio indivíduo humano, enquanto sujeito de conhecimento de si próprio: «eu sou

a vida que sou».

Esta é uma afirmação absoluta do ser humano em sua forma vital. Sem esta afirmação, qualquer seja o seu modo formal, não há ser humano

2 Não é mera coincidência que o primeiro grande programa de eutanásia tenha sido pensado e implementado logo nos primeiros tempos do regime nazi. Foi, aliás, o percursor técnico e logístico do programa mais geral de eliminação de «indesejados», que incluía, para além de pessoas judaicas e outras racicamente incorrectas, segundo os executores, pessoas homossexuais, pessoas com problemas mentais e com toda uma variedade de doenças que as tornavam inúteis ou prejudiciais ao regime nazi. O «holocausto» mais não é do que um super-programa de eutanásia de todos aqueles cujas vidas incomodavam de alguma forma o regime nazi. Tratou-se da implementação de um princípio onto-cosmológico de morte, por oposição (com origens metafísicas) a um princípio onto-onto-cosmológico de vida. Tratou-se de uma nova e radical forma de cultura que inverteu completamente o sentido último universal, transformando o motor do cosmos de uma força infinita de vida para uma força infinita de morte. Como é evidente, o resultado não pode ser senão o da morte total do cosmos. Os próprios proponentes desta mutação cosmológica puderam experimentar as consequências lógicas do seu pensamento. O símbolo gráfico desta nova formulação principial cosmológica podia ser visto na forma da caveira que, por exemplo, os famigerados SS usavam no boné da sua farda para-militar. Sobre este assunto, consultar: LIFTON Robert Jay, The Nazi Doctors. Medical Killing and the Psychology of Genocide, s. l., Basic Books, 1986, XIV + 561 pp., bem como o nosso estudo: «Eutanásia: a solução final», em

http://www.caritas.pt/cr/index.php?option=com_content&view=article&id=536:eutanasia-solucao-final&catid=60:etica&Itemid=64.

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5 algum. Toda a vida propriamente humana arranca desta afirmação e toda a bioética que se preze como algo de humano, tem de a ter em consideração.

A especificidade da vida

Toda a história do pensamento humano parece, então, dizer que há uma diferença irredutível própria da vida. Então que diferença é essa? É aqui que a questão encontra uma barreira epistemológica: aquele que pretende perceber o que é definitivamente próprio da vida, supostamente «o que a define», é, também ele, um ente que participa de isso que busca delimitar, definir. Uma situação formal sujeito-objecto, típica da ciência, é impossível neste caso, pois o mesmo sujeito é, também e necessariamente, objecto.

Tal significa que não é possível uma «ciência da vida» no sentido objectivo das mesmas «ciência» e «vida». A vida não pode simplesmente perguntar objectivamente acerca de si mesma. Tal implica que a biologia, enquanto questionamento sobre algo de que o mesmo questionante participa não é possível.

Assim, a biologia como ciência não é possível.

Mas, então, não há, há já muito tempo, constituída como tal, uma ciência chamada «Biologia»?

Sem dúvida que há, desde Aristóteles, uma actividade que se dedica a perceber o que é a vida, mas o que aquela nunca conseguirá será distanciar-se objectivamente da mesma vida, que também é, para poder sobre ela trabalhar objectivamente.

Assim sendo, o que a biologia faz é estudar parcialmente manifestações de isso que se revela como «biológico»; mais nada. Quando se pergunta: «mas, então, o que é a vida?», nenhuma resposta cabal

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6 emerge, nenhuma pode emergir. As respostas são todas laterais ao que deveriam dizer.

A impossibilidade de se responder substantiva ou essencialmente a esta questão levou a que se adoptasse uma abordagem meramente funcionalista, que permite explicar eventualmente todo o movimento físico interpretável como biológico, mas continua a não responder à questão fundamental.

Ora, o que é mesmo específico da vida?

Indubitavelmente, a vida surge como uma forma de movimento, manifestamente físico, entre outras formas de movimento físico. Não há, na nossa experiência, qualquer forma de vida que não se manifeste como forma qualquer de movimento. Mesmo nas versões metafísicas de vida, esta não existe senão como forma de movimento, por vezes tão subtil que se confunde com uma total quietude, mas que não é a quietude do nada, antes a quietude do movimento absoluto a que nada se opõe; algo como um movimento em que a inércia é concomitantemente nula e infinita (assim, o «motor imóvel» de Aristóteles).

Mas, neste nosso mundo, vida implica movimento. Todavia, tem de implicar algo mais ou todo o movimento seria vida e tal não sucede. A vida, então, supõe o movimento, mas é algo mais do que isso; pelo menos, é uma forma diferente de movimento.

Que diferença é esta?

A vida é a forma de movimento que coincide com o seu próprio princípio de movimento: todas as outras formas derivam o seu movimento de algo que lho confere exteriormente. A sua matriz de movimentação é análoga ao choque, do famoso exemplo das bolas de uma mesa de bilhar às três tabelas. Nenhuma destas bolas tem em si o movimento como princípio de mudança. O movimento vem-lhes de fora e delas não depende, não lhes é consubstancial – parece ser o termo mais apropriado. Mesmo que

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7 pensássemos uma mesa sem qualquer forma de perda de energia e um movimento futuramente infinito das bolas, o movimento inicial que estas têm depende sempre da comunicação de algo exterior. Se esta comunicação não ocorrer, nada há nas bolas que as faça movimentar-se. Este movimento é, assim, heterónomo. Inexistente sem a influência externa. A sua persistência é meramente inercial; a sua manutenção apenas função inercial do choque transmissor. Não faz parte do ser das bolas.

A fonte de movimento na vida, em isso que é vivo, faz parte do ser de isso que está vivo. Sem esta coincidência ontológica, não há vida ou movimento como vida, apenas mais um movimento, como o mencionado das bolas de bilhar. O movimento vital é, assim, autónomo. Sem esta autonomia, não há vida.

Este movimento de que aqui falamos é o movimento segundo a diferença, de que a translação espacial faz parte e de que é apenas um exemplo.

Percebe-se o que se quer dizer, através do seguinte exemplo. Deste ponto de vista, a diferença entre um corpo (que só é corpo porque está vivo) e um cadáver reside no facto de o cadáver já não possuir princípio algum motor, próprio seu, capaz de o fazer diferenciar-se (se cair da mesa de autópsia, tal deve-se apenas a forças exteriores que o mobilizam, não a

qualquer princípio motor interior).3

Assim, e sabendo que não é possível definir o que seja a vida, podemos perceber que tudo o que lhe diz respeito concerne a um princípio

3 Amarra aqui o sentido subjacente à expressão popular «enquanto há vida, há esperança», pois percebe-se que apenas a prepercebe-sença do tal princípio interior de movimento pode permitir a diferenciação, que é o sustentáculo da «esperança». Desaparecido aquele princípio, deixa de haver «esperança», isto é, qualquer possibilidade de movimento autónomo, qualquer diferenciação, qualquer forma de vida. Isto aplica-se não apenas ao ser humano, mas a todos os seres que compartilham com ele isso de serem vivos. Tal ajuda, por exemplo, a dirimir as velhas questões acerca de os vírus serem ou não vivos, dado que têm em si o princípio de movimento próprio, seja ele dependente ou não de estímulos externos, o que é irrelevante, pois havendo estímulos e não havendo o princípio motor, não haveria sequer questão. Mas tal ajuda também a compreender que é possível haver vida desde que haja uma qualquer forma destes princípios, por exemplo, sintética (ver nosso estudo «Da essência do humano. Artificial intelligence», publicado on-line em www.lusosofia.net).

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8 interior de movimento, de diferenciação, independente de tudo o mais, enquanto princípio, mesmo que dependente em termos operacionais. A vida começa, deste modo, por ser uma real possibilidade, podendo, depois, ser uma realidade de diferenciação principialmente autónoma.

É esta principialidade autónoma que justifica a presença da vida num universo em que a entropia pareceria impedir a sua existência, cuja realidade se mantém à custa de enorme dispêndio de energia, dispêndio que, mais tarde ou mais cedo, anula a vida como tal.

Mas, enquanto dura, a vida é a prova de que é possível haver ordem anti-entrópica auto-mantida no universo. Mais: o segredo de sobrevivência da vida reside na outorga de um sistema de prolongamento que não depende do mero indivíduo, mas confia na pluri-individualidade e na transmissão interior da mesma possibilidade de sobrevivência vital, através dos diferentes modos de reprodução.

Assim, ainda que de modo finito e talvez breve, a vida como tal consegue contornar a entropia, passando a outros seres, através de tal passagem, também vivos, a possibilidade de terem em si a mesma capacidade de diferenciação autónoma.

Deste modo, o que é verdadeiramente próprio da vida é esta possibilidade e capacidade de transmitir a potência vital, como princípio interior de movimento próprio, irredutível a qualquer outra coisa: a sua redução, por exemplo, a algo de material, significa a sua destruição como tal. Esta capacidade é tão importante que a mesma continuidade vital, considerada de forma mítico-analógica, é dita como a mesma essência e substância divinas: os deuses ou Deus são o que são porque são esta vitalidade sem fim (quem assim for será como os deuses: a vida eterna, pedra filosofal...).

Sempre que se procura explicar o próprio da vida através de analogias com o que não é vida, elimina-se o próprio da vida. Assim, dizer que a vida

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9 é ordem, nada diz de substancialmente diferente relativamente ao restante do universo, que também é ordem. Se se quiser começar a adjectivar, cai-se, querendo precisamente o contrário, em formas míticas ou metafísicas. Nada de novo acrescenta dizer-se que é uma «ordem especial» ou algo no género. A vida também é ordem, claro que é «especial», mas não é só ordem e sua «especialidade» é precisamente o que se quer perceber.

O aprofundamento racional do que seja a vida reconduz-nos a territórios míticos ou metafísicos, aqueles mesmos que a ciência diz querer evitar. Assim, o que se pode dizer de certo acerca do próprio da vida é que é isso que nos permite, em absoluto, questionarmo-nos acerca do que é a vida.

O mais são descrições ou narrações funcionalistas, adaptadas à cultura vigente, como o foram as dos tempos bíblicos ou outros.

Para uma leitura crítica aprofundada acerca da relação da biologia com a bioética, recomendamos a leitura do nosso estudo: «Bioética? Da relação

entre a vida e a biologia», publicado on-line em www.lusosofia.net.

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