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Dignidade humana e filosofia hegeliana

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Dignidade humana e filosofia hegeliana

Resumo

Embora tema antigo, o debate acerca dos fundamentos da dignida-de humana ganhou força na modignida-dernidadignida-de com a Revolução Fran-cesa e as ideias Iluministas. Kant foi um dos primeiros a univer-salizar a ideia de dignidade, vinculando-a à autonomia moral do homem, enquanto faculdade de determinar a si mesmo e agir em conformidade com a representação de certas leis. Paralelamente, as teorias jusnaturalistas fundamentavam a dignidade humana na própria natureza do homem, vinculando-a a um suposto “estado de natureza” do qual os direitos inalienáveis teriam derivado. O obje-tivo do presente trabalho é discutir como Hegel, comparativamente a outros pensadores de sua época, concebia a dignidade humana. Embora sua teoria não exclua uma concepção ontológica da digni-dade, vinculada a determinadas características inerentes à condição humana, Hegel atrela-a principalmente à viabilização de determi-nadas prestações e garantias. No sistema hegeliano, a dignidade humana vincula-se à ideia de Eticidade, locus que sintetiza o indi-vidual e o universal, de tal forma que a dignidade efetiva-se como resultado de um longo processo histórico. Não apenas a dignidade e os direitos que a garantem, incluindo aí os “direitos naturais”, são resultados de um processo histórico, mas também o próprio su-jeito desses direitos. O homem enquanto homem nunca havia sido reconhecido como sujeito de direitos. Entre os gregos e romanos, apenas alguns eram livres. As conquistas históricas da humanidade levaram-nos à condição de reconhecimento da liberdade para todos os homens, o que Hegel afirma no §36 da Filosofia do Direito, “to-dos devem ser pessoas e respeitar os outros como pessoas”. Assim, apenas localizar a dignidade na natureza humana ou buscar os “direitos naturais” num fictício estado de natureza, como se nesse contexto houvesse dignidade ou direitos, é insuficiente. A raciona-lidade do real é que traz à consciência da humanidade os conceitos necessários ao seu caminhar em direção à dignidade. Somente por meio de garantias histórico-institucionais, alcançadas no momento do Espírito Objetivo, pode-se reconhecer e garantir a efetivação da dignidade em seu sentido lógico-conceitual, já presente na Ideia. Somente dando-se conteúdo real à dignidade é que ela se estabele-ce nas consciências humanas históricas.

Introdução

A dignidade humana converteu-se na atualidade em uma questão problemática, não apenas do ponto de vista prático, político e social, como um princípio que define o que se deve alcançar nas mais diferentes situações nas quais a humanidade se encontra, mas especialmente na definição filosófica e na operacionalização de seu conceito.

Silvana Colombo de Almeida Mestranda em Filosofia pela UNESP

Bolsista CAPES sil_colal@hotmail.com Palavras-chave Hegel; Dignidade humana; História.

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Entretanto, o presente trabalho tem por intuito enfrentar a questão sob o viés hegeliano, tratando a dignidade como uma construção relacional que se obtém mediante o reconhecimento do outro, tornando, assim, o conceito mais amplo e móvel historicamente, podendo incorporar diversidades sociais e culturais. Neste viés, a compreensão da dignidade passa de um caráter meramente inato a uma concepção de reconhecimento coletivo, enquanto herança histórica de civilização.

1. Entre a Razão e a História

A questão da dignidade humana em Hegel está intimamente rela-cionada ao seu conceito de liberdade.

Hegel é sucessor e contemporâneo de diversas teorias referentes à liberdade, como as teorias de Spinoza, Kant ou Fichte. Entretanto, diferentemente desses autores, Hegel desenvolve um sistema que visa esclarecer o desenvolvimento da liberdade desde o momento do lógico, da Ideia, até o Espírito Absoluto. Assim, a liberdade para Hegel tem um sentido lógico-conceitual e um sentido histórico--institucional (HEGEL, 1970, §§ 31-32, Zusatz).

A tríade hegeliana da Ideia, Natureza e Espírito demonstra o cami-nhar da liberdade desde o seu conceito, que se encontra perfeito na Ideia - mas que ainda está em si, inconsciente no homem - passan-do pela exteriorização na Natureza, até chegar à sua plena consci-ência no Espírito, quando já não é mais apenas em si, mas também para si, consciente da sua plenitude. A Ideia tem realidade, mas ainda não tem existência (efetividade), necessitando manifestar-se na Natureza. No Espírito, aquilo que existe retorna para junto do que tem realidade, ou seja, a Natureza retorna à Ideia.

O elemento objetivo da manifestação da liberdade aparece na sua exteriorização, no seu Dasein. Ou seja, o desenvolvimento do Es-pírito é o movimento da realização da liberdade, que aparece na objetividade histórica das relações e intervenções humanas, cons-truindo o seu sentido histórico-institucional. O homem é elemento do Espírito, ele existe na Natureza, mas também é Ideia. O sujeito aparece como um dos momentos do Espírito, o Espírito Subjetivo. Entretanto, Hegel não compreende a liberdade como confinada à subjetividade, mas como o processo de efetivação que abarca o momento subjetivo e objetivo do Espírito (HEGEL, 1995, § 513). O Espírito Objetivo representa, juntamente com o Subjetivo, o aspecto histórico do desenvolvimento de autoconsciência da liber-dade, que vai culminar no Direito e no Estado. Hegel repudia as teorias a respeito do Estado e do Direito que recorrem à ideia de restrição recíproca da liberdade entre os sujeitos, que afirmam que o Estado limita a liberdade dos indivíduos em prol da defesa da segurança, propriedade, ou outro direito.

Hegel desenvolve uma teoria do Estado que coloca a mediação das vontades-livres como condição garantidora da liberdade, condição sem a qual não é possível a verdadeira liberdade. O Estado não limita a liberdade dos indivíduos, mas a promove e possibilita. Para Hegel, o Estado enquanto totalidade ética não implica a negação

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do individual, da particularidade, em função do coletivo, do uni-versal, mas sim a mediação dessas duas esferas, levando à efetiva-ção da liberdade.

Jaschke (2004, p.60), tratando desse tema, afirma o que segue: Hegel, finalmente, repudia, em seus Princípios da Filosofia do

Direito, o modo como Kant e Fichte pensam o conceito de

li-berdade, recorrendo à ideia de restrição recíproca. Obviamente não existe dissenso entre eles em relação à justificação jurídica intersubjetiva. Pois a vontade livre que, para Hegel, constitui a base do direito também não é vontade isolada, mas uma von-tade mediada intersubjetivamente. Ela é sim vonvon-tade que quer a liberdade, e essa é também a liberdade do outro. Poder-se-ia mesmo dizer que Hegel pensa a constituição intersubjetiva da esfera do direito ainda mais profundamente do que quando ele a ancora no interior do próprio conceito de liberdade, fazendo surgir a verdadeira liberdade, não como resultado de uma limitação recíproca da liberdade natural, ou seja, da liberdade ainda não-mediada intersubjetivamente.

Em Hegel, ser livre é ser sujeito, assim como ser sujeito é ser li-vre, uma vez que o sujeito não possui a liberdade, ele é liberdade. Entretanto, a liberdade efetivamente manifestada ocorre na inter-sujetividade, na comunidade ética de sujeitos que reconhecem o outro. O sujeito hegeliano não enxerga apenas seu eu singular, mas também um eu universal, atribuindo ao outro a mesma atividade livre que atribui a si mesmo. O conceito de vontade livre não é o de uma vontade isolada, mas sim o de uma vontade, que, unificada sob a lei da liberdade, é de todos aqueles que gozam do direito. Assim, apenas por um longo processo, o Espírito alcança a forma plena da liberdade. Este processo é a História, que, em sua essência, é o progresso na consciência da liberdade (HEGEL, 2001, P.22). Entretanto, para Hegel, além das esferas do espírito subjetivo--individual e do espírito objetivo, há ainda a esfera do Espírito Absoluto, que se decompõe na arte, na religião e na filosofia, momento no qual a liberdade é plenamente compreendida em seu desenvolvimento histórico e encontra aí o seu conceito, agora ver-dadeiramente consciente de si. Para Hegel, apenas no Espírito Ab-soluto pode-se ser plenamente livre. Isto é, apenas nesse momento realiza-se, no espaço e no tempo, a Ideia Absoluta já contida na Lógica abstrata.

Analisando sucintamente o sistema hegeliano, conforme apresen-tado acima, depreende-se que Hegel não foi partidário das teorias jusnaturalistas modernas, que dominavam o pensamento filosófico de sua época no que tange à liberdade, ou ao conceito de dignida-de humana dignida-dela dignida-derivado.

Para Hegel, a razão, que embasa o direito natural moderno e as teorias de seus partidários, não pode ser um princípio abstrato sem mediação com a realidade efetiva, e a história não pode ser consi-derada simples facticidade, mas sim a história da liberdade. A ra-zão deve estar mediada com sua formação histórica, uma vez que a história é o desdobramento da razão, o que está claro na conhecida afirmação de Hegel contida na sua Filosofia do Direito de que “O que é racional é efetivo e o que é efetivo é racional”.

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2. Da Necessária Passagem da Moralidade à Eticidade

A conceituação de dignidade humana é comumente tratada pelos pensadores modernos e contemporâneos, dentre eles um dos maio-res interlocutomaio-res de Hegel, Kant, como sendo derivada da capaci-dade humana de agir e pensar racionalmente, centralizando toda a discussão sobre a dignidade humana no respeito à autonomia do sujeito racional.

Nesta afirmação, nota-se a identificação entre dignidade e capaci-dade de ação racional, o que acompanha todo o caminho do pen-samento ocidental sobre esse conceito.

Hegel, introduzindo a história em sua compreensão de dignidade humana, entende que a dignidade constrói-se e realiza-se mediante a relação com o outro. Enquanto para Kant o respeito à autonomia de um pode resultar na limitação dos demais, caracterizando uma va-lorização do individual, para Hegel, o reconhecimento de um outro igualmente digno somente pode-se compreender mediante a consi-deração de uma coletividade construída no âmbito das relações. Sob o prisma meramente ontológico, ou religioso, a dignidade não serve de parâmetro para demarcar concretamente as questões éticas atuais que envolvem a vida humana. Ela necessita ser descentrali-zada do indivíduo e colocada na base das relações e no desenvolvi-mento histórico humano.

A dignidade humana é um conceito complexo culturalmente e di-nâmico historicamente e é infrutífero localiza-lo numa concepção formal vazia e abstrata.

Kant afirma que a autonomia da vontade, entendida como a fa-culdade de determinar a si mesmo e agir em conformidade com a representação de certas leis, é um atributo apenas encontrado nos seres racionais, constituindo assim, o alicerce da dignidade huma-na. Para ele (KANT, 2007, p.79) “Autonomia é pois o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional”. Já para Hegel, a dignidade é uma qualidade a ser conquistada. O ser humano não nasce digno, mas torna-se digno a partir do momento em que assume a sua condição de cidadão dentro de uma comunidade ética. Nesta concepção, a dignidade necessita de reconhecimento, o que se encontra esclarecido na máxima de que “cada um deve ser pessoa e respeitar os outros como pessoas” (HEGEL, 1970, §36). É na relação com o outro que se é reconhecido humano. Assim, o efeito desse reconhecimento recíproco é a pró-pria dignidade. A tradução desse reconhecimento é a capacidade de liberdade do homem.

Segundo a lição de Kurt Seelman (2013, p.106):

[...] se se atribui como objeto da dignidade aquilo que precede qualquer reconhecimento, subtrai-se dela, na procura da “vida humana pura”, a dimensão social, para adquirir-se, por meio disso, a indisponibilidade da dignidade.

Ainda nas palavras de Seelman (2013, p.112):

Diferentemente de Kant, esse respeito recíproco do primeiro estágio como pessoa, como legitimado à detenção de direitos, não é um mero dever de virtude, mas, expressamente, um

imperativo jurídico. Ao lado e até mesmo antes do dever de

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jurídico de respeito desse centro de competência que é o ho-mem, ao qual dizem respeito os direitos individuais [...] O conceito de pessoa em Hegel está ligado à esfera jurídica, à “ca-pacidade jurídica” do indivíduo, embora ainda uma ca“ca-pacidade em potência. É uma manifestação ainda abstrata e indeterminada, uma vez que todas as pessoas são portadoras de direitos e deveres, sendo, portanto, fundamentalmente iguais. A personalidade contém a capacidade jurídica e constitui o conceito e a base do direito abs-trato que, por isso, é ainda formal (HEGEL, 2010, §36).

Nas palavras de Hegel (2010, §209):

O homem vale assim, porque ele é homem, não porque ele é judeu, católico, protestante, alemão, italiano etc. Essa cons-ciência, pela qual o pensamento vale, é de uma importância infinita, - apenas é insuficiente quando se fixa, enquanto

cosmopolitismo, num opor-se à vida concreta do Estado.

Com essa afirmação, Hegel reconhece a igualdade formal de todas as pessoas, e deixa clara a defesa de que esse reconhecimento só é realmente efetivo dentro da vida concreta do Estado, enquanto uma comunidade ligada por valores éticos cultural e historica-mente desenvolvidos.

Assim, para Hegel, o ponto de partida para a concretização da ideia de liberdade e, portanto, a efetivação da ideia de dignidade huma-na, é a pessoa de direito. É neste ponto que se inicia o desenvol-vimento da vontade racional e autônoma. Não é no fictício estado de natureza ou numa ideia abstrata a respeito de características humanas inatas que se localiza e fundamenta a dignidade, mas na sua objetivação, no Estado e no Direito.

Por essa razão, no Direito Abstrato, quando pela primeira vez surge a ideia de pessoa, a propriedade é tratada como direito fundamental do homem. É justamente no ato de se apropriar de algo que o homem natural se torna pessoa e afirma a sua individualidade. Nas palavras de Hegel (2010, §§41 e 43), em seus §§ 41 e 43, respectivamente:

A pessoa precisa se dar uma esfera externa de sua liberdade, a fim de ser enquanto ideia. Porque a pessoa é a vontade infi-nita sendo em si e para si nessa determinação primeira ainda totalmente abstrata, esse seu aspecto diferenciado, que pode constituir a esfera de sua liberdade, é igualmente determinado como o que é imediatamente diverso e separável dela. A pessoa, enquanto conceito imediato e, por isso, também essencialmente [indivíduo] singular, tem uma existência

natu-ral, em parte, em si mesma, em outra parte, como aquilo com o que se relaciona com o mundo exterior. – É apenas nessas Coisas que são imediatamente tais, e não determinações que são capazes de se tornar Coisas pela mediação da vontade, que aqui se fala a propósito da pessoa, a qual está, ela mesma, em sua imediatidade primeira.

A violação ao direito fundamental de propriedade significa a vio-lação aos direitos de personalidade, uma vez que a propriedade é uma manifestação da vontade autônoma e permite ao homem ser pessoa e adquirir consciência de si e de sua liberdade, ainda que de maneira rudimentar. Portanto, sem a garantia desse direito o

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Entretanto, no segundo momento da Filosofia do Direito, no mo-mento da Moralidade, acentua-se a fundamentação subjetiva da vontade livre, ou seja, evidencia-se a ideia da liberdade como auto-determinação. Aqui, o enfoque não é mais a pessoa do Direito, mas a pessoa da Moralidade, ou o sujeito.

O ponto de vista moral é o ponto de vista da vontade, que não é meramente em si, mas para si e infinita (HEGEL, 2010, §105), deter-minando que a pessoa passe a ser sujeito. A autodeterminação da vontade é, nas palavras de Hegel (2010, § 107), “um momento de seu conceito e a subjetividade não é apenas o aspecto de seu ser-aí, porém sua determinação própria”.

Hegel resguarda no momento da Moralidade o que há de mais sagra-do na autonomia sagra-do sujeito agente, o direito de moralidade como o direito de autodeterminação da vontade (WEBER, 2010, p. 64). Hegel (1995, § 503) afirma:



O indivíduo livre que é somente pessoa no direito (imediato), agora é determinado como sujeito – vontade refletida sobre si mesma, de modo que a determinidade do querer em geral como ser-aí, nele seja como a sua, diferente do ser-aí da liber-dade em uma Coisa exterior.

A Moralidade, portanto, trata das condições da responsabilidade subjetiva. Para Hegel, a Moralidade pergunta pela autodetermina-ção da vontade, pelos propósitos e intenções que movem o sujeito que age (HEGEL, 2010, §110).

O Direito não pergunta pelos princípios subjetivos que movem mi-nhas ações, mas a Moralidade trata do direito que o sujeito tem de saber e reconhecer o que tem origem na sua vontade. A Moralidade é pressuposto básico para o desenvolvimento da dignidade huma-na, que ainda assim encontra-se incompleta.

Interpretando Hegel, Thadeu Weber (2009, p. 114) afirma que, tratando-se da Moralidade, “a realização dos meus fins, portanto, inclui o reconhecimento da vontade dos outros; requer o reconhe-cimento da liberdade como princípio universal”.

Entretanto, para Hegel, a liberdade como princípio universal não se concretiza se não se avança em direção à objetividade ética. A responsabilidade não pode ser observada apenas do ponto de vista subjetivo, sob pena de ser abstrata e vazia de sentido efetivo. Em Hegel, a Moralidade é um momento no processo de determinação do princípio da liberdade, mas ele vai além e desenvolve, na Etici-dade, o desdobramento objetivo das vontades livres.

Hegel acusa Kant de não ter ultrapassado o ponto de vista subje-tivo, de ter desenvolvido uma moralidade que trata do dever-ser, mas não se preocupa com como ele será cumprido, o que ocorrerá, pra Hegel, na Eticidade, locus da realização objetiva nas institui-ções sociais.

Ao fixar o princípio supremo do agir, Kant permaneceu, na pers-pectiva hegeliana, na moralidade subjetiva, o que seria insuficiente. Para Kant, entretanto, isso seria fundamental, em virtude da neces-sidade do caráter a priori de que deve estar investido esse princípio supremo. Kant acredita que estando vazio de conteúdo empírico, o princípio torna-se válido para todos. Assim, na visão kantiana, os resultados e as consequências não podem ser o fundamento

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minante de uma ação que pretende ter valor moral, mas apenas a intenção do agente e o respeito à lei.

Esse caráter indeterminado da moral kantiana é alvo de críticas de Hegel, que os tem por abstratos, formais e a-históricos (WEBER, 2009, p.123), podendo neles caber qualquer conteúdo.

Hegel ultrapassa a subjetividade da vontade tratando das determi-nações objetivas, da mediação social da liberdade. Não há como realizar plenamente a liberdade humana, e garantir a sua dignida-de, fora de uma determinada estrutura social.

A dignidade não existe isoladamente, como característica natural, mas é conquistada nas instituições éticas, nas palavras de Hegel: na família, na sociedade civil e no Estado. É necessária a inter-mediação dessas instituições para que a liberdade e a dignidade manifestem-se em sua completude, e reencontrem o conceito. O âmbito da Eticidade limita tão somente a liberdade natural do indivíduo, libertando-o dos seus instintos naturais e de sua subjetivi-dade indeterminada. Para Hegel, a dignisubjetivi-dade não existe nesse estágio indeterminado, não existe apenas enquanto característica natural do homem, ela precisa ser objetivada. A vontade livre autônoma é con-fundida com a vontade natural e imediata, mas a dignidade só existe na intersubjetividade, onde a liberdade é assegurada mediatamente, estando suprassumida no ético e garantida pelas instituições das quais se é membro (Mitglied). Hegel (2010, §153) argumenta:

O direito dos indivíduos para a sua determinação subjetiva até a liberdade tem seu cumprimento no fato de que eles perten-cem à efetividade ética, visto que a certeza de sua liberdade tem sua verdade em tal objetividade e que esses possuem

efetivamente no ético sua essência própria, sua universalidade

interna [...].

Num primeiro momento da Filosofia do Direito, o objeto principal é a pessoa imediata e as vontades a ela pertencentes. Neste nível, tem-se uma noção abstrata do indivíduo, que é tido como uma pessoa de direito. No terceiro momento, do Estado Ético, as pesso-as, com seus interesses particulares, estão mediadpesso-as, ou seja, supe-radas e conservadas e o indivíduo é membro de uma corporação, do Estado. Nas palavras de Weber (2010, p. 71), “a vontade parti-cular, pelo processo de mediação, reconhece que sua dignidade se funda na “substancialidade ética”, ou seja, é assegurada e realizada nas instituições da eticidade”.

Apenas na efetividade ética os direitos dos indivíduos são respeita-dos e efetivarespeita-dos e a vontade autônoma realiza-se verdadeiramente. Na Eticidade, busca-se o equilíbrio entre as liberdades individuais e o interesse geral, dentro do Estado. Citando Hegel (2010, § 257), “o Estado é a efetividade da ideia ética, - o espírito ético enquanto vontade substancial manifesta, nítida a si mesma, que se pensa e se sabe e realiza o que sabe e na medida em que sabe”.

Na Eticidade, a subjetividade adequa-se ao conceito, e a vonta-de individual é superada e guardada (aufgehoben) no ético (2010, §142). O conflito que aparece entre a razão, enquanto puro pensar, enquanto dever-ser, e a sensibilidade, o ser outro, a

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Moralidade trata da fundamentação subjetiva da liberdade e a Eti-cidade da sua concretização.

Hegel (2007, § 603) afirma:

Nesse conflito entre a razão e a sensibilidade, a essência para a razão, é que o conflito se resolva; e que emerja, como

resul-tado, a unidade dos dois – que não é a unidade originária em

que ambos estão em um indivíduo só, mas uma unidade que procede da conhecida oposição dos dois.

Por essa razão, não basta, para Hegel, criar-se uma teoria das obri-gações normativas sem que se crie também uma teoria das insti-tuições. Teoria que leve em conta, inclusive, os valores objetivos do mundo, ou seja, do ambiente cultural e histórico em que estão inseridas as instituições.

Ademais, a questão do reconhecimento, tratada por Hegel prin-cipalmente na sua Fenomenologia do Espírito, amplia a noção da individualidade humana, que se encaminha até o universal con-creto. Não há dignidade humana natural e imediata, uma vez que almejar ser imediatamente digno significa querer ser abstratamente digno. A liberdade, pressuposto supremo da dignidade só existe na mediação das vontades, quando, então, se determina. Hegel (2010, §149) conclui:

A obrigação que nos liga apenas pode aparecer enquanto

delimitação contra a subjetividade indeterminada ou contra a

liberdade abstrata e contra os impulsos da vontade natural ou da vontade moral que determina a partir do seu arbítrio seu Bem indeterminado. Mas, na obrigação, o indivíduo tem antes sua libertação, de uma parte, da dependência em que está no mero impulso natural, assim como do abatimento em que se encontra enquanto particularidade subjetiva, nas reflexões morais do dever-ser e do poder-ser, e, de outra parte, da subje-tividade indeterminada que não chega ao ser-aí e da determi-nidade objetiva do agir e que permanece dentro de si, enquan-to uma inefetividade. Na obrigação, o indivíduo liberta-se para a liberdade substancial.

No nível da Eticidade, o ético é um modo de atuar “universal” dos indivíduos. Como um desdobrar da ideia de liberdade, e da conse-quente dignidade humana, o substancial, presente no Estado, é o resultado da mediação da vontade racional e autônoma. É o que assegura os direitos fundamentais dos indivíduos, não simplesmente como imediatos e naturais, mas como mediados pelas e nas institui-ções sociais. Hegel (1970, § 258) afirma na Filosofia do Direito que:

O Estado, como a efetividade da vontade substancial, que ele tem na autoconsciência particular elevada à sua universali-dade, é o racional em si e para si. Essa unidade substancial é um fim próprio imóvel e absoluto, no qual a liberdade chega a seu direito supremo, assim como esse fim último tem o direito supremo frente aos singulares, cuja obrigação suprema é ser membro do Estado.”

(Nota) A racionalidade, considerada abstratamente, consiste essencialmente na unidade e compenetração da universalidade e da singularidade, e, o que é aqui concretamente considerado, segundo o conteúdo, consiste na unidade da liberdade obje-tiva, isto é, da vontade universal substancial e da liberdade subjetiva, enquanto saber individual, e da vontade que busca seus fins particulares, e por causa disso, segundo a forma, num

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agir determinando-se segundo leis e princípios pensados, isto é, universais. – Esta ideia é o ser eterno e necessário em si e

para si do Espírito. (tradução nossa)

“O direito dos indivíduos à sua particularidade está igualmente contido na substancialidade ética, pois a particularidade é o modo exterior aparecendo, no qual o ético existe” (HEGEL, 2010, § 154). Estando o particular contemplado no substancial, sou autor das leis às quais estou sujeito e a isso denomina-se autonomia (WEBER, 2010, p. 71).

A autonomia não é ilimitada, mas vem acompanhada por instân-cias de mediação, que vão da família, passando pela sociedade civil e culminando no Estado. Mas se essa mediação significa limitação, ela também significa garantia de realização. As liberdades indi-viduais por si mesmas não têm eficácia se não estiverem sediadas numa base ética encontrada no Estado, não nos Estado históricos, mas no conceito de Estado desenvolvido por Hegel, um Estado que se almeja alcançar, e que é a única instancia capaz da garantia e prática dos direitos fundamentais e da dignidade humana.

Conclusão

Uma das grandes, senão a maior, contribuição de Hegel para o de-bate a respeito das questões éticas da modernidade, que refletiram fortemente nas teorias desenvolvidas na contemporaneidade, trata--se da distinção que estabeleceu entre a moralidade e a eticidade. Na visão de Hegel, uma ética subjetiva deve ser complementada por uma ética objetiva, que tem por intuito demonstrar o desdobra-mento da atuação das vontades livres, analisando as consequências no locus de sua efetivação, nas instituições sociais.

A Eticidade cuida das determinações objetivas ou da mediação so-cial da dignidade, tendo, desta forma, conteúdo e existência obje-tivos, que se situam acima dos caprichos pessoais. Assim, uma das críticas de Hegel ao formalismo kantiano está no fato de que, para Hegel, uma teoria da obrigação normativa deve culminar numa teoria das instituições sociais. O sujeito deve ser avaliado como membro de uma comunidade ética e não apenas com base nos as-pectos subjetivos que determinam o seu agir.

A verdadeira moral é social e histórica, e não baseada no direi-to natural a-histórico e anterior a qualquer constituição social e comunitária, assim como forma-se de maneira intersubjetiva, na relação com o outro, dentro de uma comunidade ética. Isso não significa, é claro, que tudo seja a posteriori. No movimento das mediações, o que permanece como universalmente coerente é o que servirá de critério último de moralidade.

Na vida prática, o indivíduo determina-se e, determinando-se, diferencia-se. E na Eticidade, sobretudo no Estado, a diferença é conciliada, suprassumida na universalidade, mas jamais, excluída ou extinta.

A análise do conceito e do fundamento da dignidade humana em Hegel reúne forma e conteúdo, eu e tu. Em Hegel, o sujeito se re-conhece no objeto e não se vê apartado dele. A lei que determina

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Referências

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