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Novos paradigmas: revistas feministas na década de 90

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Novos paradigmas: revistas feministas na década de 90

PAMELA C. PENHA*

Este artigo busca pensar a imprensa feminista produzida nos anos 90 tomando como ponto de partida a Revista Presença da Mulher lançada em 1986. A partir da contextualização dos feminismos no Brasil ao longo desse período e suas principais formas de atuação e discussões, observa-se as complexidades experimentadas pelos movimentos feministas na conjuntura da democracia recém reestabelecida, permeada por escândalos de corrupção, crise econômica e política. Fundamentalmente, reflete-se sobre alguns dos significados da democracia para as mulheres na conjuntura do país naquele momento.

Em seu artigo “Feminismos brasileiros nas relações com o Estado. Contextos e

incertezas” Lia Zanotta apontou que a tendência dos movimentos feministas brasileiros

em fins dos anos 1980 e ao longo da década de 1990 foi organizar-se em ONG’s. E segundo Céli Pinto (PINTO, 2003) essa entrada das ONGs no cenário político expressará uma maior profissionalização do movimento, onde diversas figuras importantes do feminismo brasileiro passaram a integrar o corpo de destacadas ONGs. O que se observa, portanto é uma nova forma de atuar dos movimentos feministas no Brasil no período pós ditatura, e como pontuado por Elizabeth Cardoso “cada nova entidade feminista que surgia achou por bem fundar uma publicação para divulgar e debater suas ideias” (CARDOSO, 2004).

As publicações selecionadas na pesquisa em questão, inserem-se no contexto chamado de segunda geração dos periódicos feministas. Segundo a classificação feita por Elizabeth Cardoso,

[...] a primeira (de 1974 a 1980), com linha editorial voltada para as questões de classe e para as diferenças sociais; a segunda (a partir de 1981), voltada para a questão de gênero, com linha editorial priorizando os temas específicos da mulher e tendendo para a especialização (daí as publicações dirigidas para saúde da mulher, legislação sobre as questões femininas, violência contra a mulher, sexualidade feminina, entre outras). (CARDOSO, 2004, p. 14)

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Em minha pesquisa abordo as publicações: Presença da Mulher lançada em 1986, as publicações Enfoque Feminista e Fêmea lançadas no início da década de 1990 e a publicação Fazendo Gênero lançada ao fim da década de 1990.

Entretanto, neste artigo destaco a revista Presença da Mulher, lançada portanto em 1986, sob a luz das resoluções do VI Congresso do Partido Comunista do Brasil ( PCdoB), em 1983, “neste Congresso foi apresentado um informe especial: ‘A luta pela emancipação da mulher’ que fundamenta as bases da corrente emancipacionista e as tarefas do Partido nesta frente”(ARRUDA, 2008: 11). Com a fundação da União Brasileira de Mulheres (UBM) em 1988, a revista seguirá como uma importante ferramenta de divulgação das ações da UBM. A revista contará com a participação entre suas colaboradoras de várias mulheres ligadas ao PCdoB e à UBM.

A revista Presença da Mulher, era inicialmente uma publicação bimestral, tornando-se posteriormente trimestral, publicada pela Editora Liberdade Mulher Ltda até a edição nº 29 em 1997, e partir da edição nº 30 a Editora Anita Garibaldi assume a produção, distribuição e sua comercialização em parceria com Conselho Editorial e da União Brasileira de Mulheres (a partir da edição nº 38 de 2001, encontra-se escrito “Presença da Mulher é uma publicação trimestral da União Brasileira de Mulheres e da Editora e Livraria Anita Ltda”).

A revista é lançada, ao longo das efervescências da Constituinte1. Em sua edição número 1, o editorial afirmava seus objetivos alegando que a revista pretendia “[...]refletir as aspirações da nova mulher que surge [...]. Discutir os conflitos e responsabilidades advindos dessa nova postura. Noticiar e analisar as batalhas que travamos de norte a sul

1 A vitória da Aliança Democrática (aliança formada pelo, Partido do Movimento Democrático Brasileiro

(PMDB) e pela Frente Liberal, dissidência do Partido Democrático Social (PDS) em 1984), no colégio eleitoral de 15 de janeiro de 1985, elegendo Tancredo Neves, no qual este havia se comprometido com a convocação de uma constituinte, como parte da conclusão do processo de transição do regime. Após a sua morte, coube ao vice-presidente, José Sarney, a convocação da Assembleia Constituinte. Instalada em 1º de fevereiro de 1987 após séries de debates e discussões sobre o modelo (congressual ou exclusivo), sendo, portanto, adotado o modelo congressual, os deputados e senadores eleitos em 1986 assumiriam também a função constituinte. Participaram da Assembleia Constituinte, 594 Parlamentares constituintes: 512 Deputados constituintes, sendo 487 eleitos no pleito de 15 de novembro de 1986 e 25 suplentes e 82 Senadores constituintes, sendo 49 eleitos no pleito de 15 de novembro de 1986, 23 eleitos em 1982, além de 10 suplentes. A ANC ficou distribuída entre os partidos que compunham a “Aliança Democrática” detendo 80% das cadeiras, os partidos considerados de esquerda (PCdoB, PT, PDT, PSB e PCB) com menos de 10%, enquanto PDS, PTB e outros partidos somando pouco mais de 10%. (MEDEIROS, 2013)

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do país [...]” (Revista Presença da Mulher, 1986). A compreensão desse novo período, demarcado na apresentação da revista Presença de Mulher, torna-se o ponto de partida desse trabalho, compreendendo a publicação, não como um espelho da realidade, mas como uma prática constituinte da realidade social (CRUZ; PEIXOTO, 2007) representativa do projeto e disputas do grupo que a impulsionava, as discussões sobre feminismo, relações de gênero e a conjuntura histórica na qual estava inserida.

Presença da Mulher era composta em média de 40 a 50 páginas, não é possível

verificar nas edições o número da tiragem, o que dificulta saber qual era extensão de número produzidos e distribuídos. Há a informação sobre pontos de vendas, como livrarias e bancas de jornais, permitindo verificar que a revista possuía circulação em diferentes Estados e regiões (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, São Luís, Recife). Contudo na edição nº 20 de 1991, em um encarte especial de comemoração aos cinco anos da publicação, é possível encontrar informações essenciais para caracterizar melhor a publicação, escrito pela diretora da publicação Ana Maria Rocha, o texto introdutório esclarece informações sobre o público alvo, o que permite compreender que a revista possuía “sua atuação num âmbito social mais delimitado e restrito” (CRUZ; PEIXOTO, 2007, p. 265)

O nosso público-alvo também foi muito discutido. Concluímos que ele seria de ativistas do movimento de mulheres, de lideranças comunitárias, de trabalhadoras, sindicalistas e da intelectualidade. Nesse contexto, a revista não visava chegar diretamente ao conjunto das mulheres, mas a lideranças que as utilizariam como instrumento de trabalho com as mulheres em geral e repassariam as informações nela contidas. (Revista Presença da Mulher, 1991)

Neste encarte especial há também relatos de colaboradores da publicação com qual Ana Maria da Rocha dialoga, e no relato de Margareth Marta Arilha, identificada como Integrante do ECOS (Centro de Estudos e Comunicação em Sexualidade e Reprodução Humana, organização não governamental) e colaboradora da Presença da

Mulher questiona sobre a tiragem da revista ao longo dos cinco anos, cuja resposta de

Ana Maria é "A tiragem da revista tem oscilado, já tivemos tiragem de vinte mil exemplares, de sete mil, de cinco mil e de três mil, variando um pouco com a maré do dinheiro” (Revista Presença da Mulher, 1991).

Em sua composição, a revista apresenta a combinação de artigos e notícias amplos, retratando as atualidades dos movimentos de mulheres, as lutas judiciais, as

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greves, a violência contra as mulheres, sobre maternidade, a saúde das mulheres, as condições de trabalho, o racismo e a opressão das mulheres negras, eventos e ações com a participação da UBM e as ações de parlamentares (aqui, destaca-se as ações das parlamentares do PCdoB) e apresenta um Encarte Teórico (ou Encarte Especial, como aparece em algumas edições), sessão incluída a partir da edição número 16 que se apresenta com foco em conteúdos como discussões sobre feminismos, relações de gênero, e ocupa um significativo espaço dentro das edições.

Os rumos dos movimentos feministas atuantes pelo Brasil no período de lançamento da revista, estavam passando por transformações em suas formas de atuar, de se organizar. Ainda mais evidente foi a atuação perante as eleições diretas para governadores e parlamentares em 1982. As problemáticas do processo de redemocratização atingiram diretamente as feministas, pois, um setor acreditava que o movimento deveria atuar com maior aproximação com o Estado, enquanto do outro lado havia aquelas que defendiam a autonomia do movimento. As feministas pertencentes aos partidos políticos, PMDB e PT, protagonizaram diversos embates, principalmente em São Paulo, com a vitória de Franco Motoro, eleito governador pelo PMDB. Como afirma Céli Regina Pinto, a organização das feministas em conselhos expressaria uma significativa relação com o Estado e seria espaço de embates entre diferentes grupos.

A institucionalização do movimento feminista junto ao Estado por meio da organização de conselhos estaduais e do Conselho Nacional passa pela vitória do MDB em alguns estados brasileiros em 1982. (PINTO, 2003, p.70) Criaram-se os Conselhos Estaduais da Condição Feminina, que no caso paulista além de ser composto em sua maioria por mulheres pertencentes ao partido governista, enfrentou oposição tanto das feministas ligadas ao PT, quanto daquelas ligadas às camadas populares, esse conselho também foi o primeiro a defender a criação de delegacias especializadas em atendimento às mulheres. Céli Pinto, aponta que nesses embates dentro do conselho estadual seriam a peça chave para se compreender os rumos do feminismo no Brasil após esse período, as feministas do PMDB conseguiram a criação do Conselho, mas ele não foi forte o suficiente para impor sua presença, “[...]os grupos são suficientemente fortes para romper a impermeabilidade estatal, mas não o bastante para ocupar um espaço nas instâncias decisórias.” (PINTO, 2003, p. 70)

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Em agosto de 1985 foi criado o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM), órgão federal com autonomia administrativa e orçamento próprio responsável por cuidar dos direitos das mulheres, atuou até 1989 e em 1988 liderou a formação do “lobby do batom”, sendo fundamental na organização das discussões referentes as questões das mulheres através de encontros e reuniões com feministas de várias partes do país. Juntos a esses grupos o CNDM apresentou aos parlamentares da Constituinte a Carta das Mulheres, dividida em duas partes, as exigências ligadas às questões sociais: justiça social, criação do Sistema Único de Saúde, ensino público gratuito em todos os níveis, autonomia sindical, reforma agrária e tributária, negociação da dívida externa; e às questões diretamente ligadas às mulheres: trabalho, saúde, direitos de propriedade, chefia compartilhada na sociedade conjugal, defesa da integridade física e psíquica, redefinição da classificação penal do estupro, criação de delegacias especializadas, e mais timidamente lia-se “Será garantido à mulher o direito de conhecer e decidir sobre o próprio corpo”. Mesmo não estando explícito a questão da legalização do aborto, essa questão foi retirada no documento apresentado pelo CNDM, “Proposta à Assembleia Nacional Constituinte”, Céli Pinto aponta como umas razões para isso ter acontecido a ligação do conselho ao governo e também, a falta de consenso entre a chamada bancada feminina, formada por 26 deputadas eleitas em 1986, representando 5,7% da Câmara dos Deputados, com um expressivo número de deputadas eleitas pertencentes a partidos mais à direita, como pontuou a autora, divididas entre PFL (Partido da Frente Liberal) e PDS (Partido Democrático Social). Embora de suma importância para as questões das mulheres, e um dos momentos políticos mais excepcionais para os movimentos feministas no Brasil, a atuação do CNDM, se deparou com os limites de sua atuação, não se sustentando no cenário político posterior ao da Constituinte.

Desde 1982, portanto, os rumos dos movimentos feministas já demonstravam as mudanças, eram fundados grupos ligados às universidades e a órgãos do poder público. Houve também uma certa especialização do movimento, atuando principalmente nas áreas de saúde e na segurança da mulher, e somado a isso, surgiam novas formas de produção da imprensa feminista, como aponta Elizabeth Cardoso.

A revista Presença da Mulher por suas características e temáticas relacionadas nas questões das mulheres, insere-se, na classificação feita por Cardoso na segunda

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geração de periódicos feministas. Os temas presentes em suas edições estão ligados ao contexto no qual foram produzidos, assim seus primeiros números abordam com destaque as discussões acerca da Assembleia Constituinte.

Em sua edição número 5 de julho/agosto de 1987 a revista trazia dois artigos sobre a Constituinte, escrito por duas deputadas constituintes, Anna Maria Rattes2, do PMDB e Lídice da Mata3 do PCdoB, duas visões distintas sobre o processo das discussões que permeavam a Constituinte. A primeira, no artigo intitulado “As mulheres e a Nova

Carta”, destaca os avanços nos debates sobre a questão da mulher, como o direito à

creche, ressaltando que ainda havia muito a percorrer e afirmando a necessidade de união de forças progressistas “[...]na batalha por pontos comuns, independente dos partidos” (Presença da Mulher, 1987). Enquanto, Lídice da Mata, em artigo intitulado “Uma

Avaliação geral” ressalta a forte presença de posicionamentos conservadores nos

debates, que poderiam representar retrocessos às pautas referentes à mulheres, e ao conjunto da população brasileira, citando que questões como a estrutura agrária permanecia inalterada, a deputada coloca a importância da participação popular na coleta de assinaturas nas emendas populares, ressaltando às mulheres a necessidade de mobilizações não apenas em pautas específicas.

Textos sobre as discussões presentes na Constituinte estão presentes também na edição número 6 de julho/setembro de 1987, no editorial escrito por Ana Maria Rocha, elencando a crise econômica e o arrocho salarial vivenciados no período, com críticas ao governo Sarney apresentando as vitórias conquistas sobre os temas voltados às mulheres e dificuldades dos debates na Constituinte. Principalmente reafirmando a defesa do sistema de governo parlamentarista e um artigo escrito por Lídice da Mata sobre a defesa

2 Segundo informações do Portal da Constituição Cidadã, Anna Maria Rattes, apresentou 468 emendas e

sendo 120 aprovadas, foi a 2ª vice-presidente da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher e membra da Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias. Durante o processo da Constituinte, a deputada, desligou-se do PMDB e, juntou com outros dissidentes, ao recém fundado Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) em 1988. Disponível em https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada.

3 Única deputada do PCdoB na Assembleia Constituinte, de acordo com o Portal da Constituição Cidadã,

Lídice da Mata apresentou 196 emendas e sendo 32 aprovadas, foi membra da Subcomissão do Sistema Eleitoral e Partidos Políticos e da Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantias e Garantias das Instituições. Atualmente Lídice da Mata é Deputada Federal pelo PSB/BA. Disponível em https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada.

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desse sistema, importante ressaltar que a atuação do PCdoB era favorável a implantação do parlamentarismo como sistema de governo, refletindo, portanto, no conteúdo da revista.

Assim os textos presentes na revista nesse período eram parte do contexto impulsionado nos discursos que permeavam a Assembleia Constituinte, que contou com uma importante participação das mulheres, desde as ações do CNDM (Conselho Nacional dos direitos da Mulher), sendo fundamental na organização das discussões referentes as questões das mulheres através de encontros e reuniões em várias partes do país, organizando em Brasília eventos para a discussão de propostas realizando campanhas midiáticas de conscientização sobre os debates das Constituinte.

As mudanças ocorridas no cenário político a partir da reabertura política e a promulgação da Constituição em 1988, contribuíram como elementos que levaram os movimentos feministas brasileiros a se redefinirem, suas discussões, as áreas de atuação e as relações com o Estado. É importante ressaltar que diversas figuras dos movimentos desde início dos anos 80, com as eleições para governadores, constituíram parte de governos, ocupando cargos estaduais, integrando secretarias. Em 1989, o editorial da edição número 13 expressava algumas redefinições, sob o título “Compromisso com a luta das mulheres”, Ana Maria Rocha delineava que as primeiras edições tinham como debate central a Constituinte, agora a revista expressava em suas páginas o foco nas eleições presidenciais, reforçando também o papel e objetivo da publicação, “a revista tem defendido a causa da emancipação da mulher não de uma forma isolada, mas inserida nas questões vitais de interesse da nação e do povo brasileiro” (PRESENÇA DA MULHER, 1989). A revista abre esta mesma edição com uma carta aberta na qual expressava uma crítica a intervenção do governo Sarney no CNDM.

As formas de atuação dos movimentos feministas ocorridas ao longo do processo da Assembleia Constituinte será bastante presente ao longo da década de 1991, como a forte presença do advocacy4, ação bastante característica dos grupos de mulheres ao longo da Constituinte, como observa Jacqueline Pitanguy, chamando a atenção para as atuações nos eventos promovidos pelas Nações Unidas, diversas conferências internacionais

4 Jacqueline Pitanguy defini advocacy como uma ação política desenvolvida junto ao Estado, ou outras

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8 segundo ressaltou Pitanguy, abriram um ciclo de eventos que “[...] podem ser considerados marcos de mudanças significativas na conjunção dos direitos humanos no cenário internacional” (PITANGUY, 2019, p. 90). Conferências, fóruns e congressos internacionais, promovidos principalmente pelo ONU, que contavam com a presença de ONGs, de organizações de mulheres. Essas participações expressavam também as mudanças pelas quais os movimentos estavam passando. Em 1991, na edição número 18, no artigo intitulado “Os novos rumos do feminismo”, Jô Moraes5, afirmava que

Na construção do novo projeto há elementos que significam grande avanço na prática do movimento feminista, especialmente àqueles que se referem ao rompimento de sua guetização [...]. Mas há também os que lhe ferem de morte como a sua visão reformista de aproximação com o Estado. (Revista Presença da Mulher, 1991)

Vera Soares em seu artigo “Movimento Feminista: Paradigmas e Desafios” publicado em 1994 na Revista Estudos Feministas, aponta as complexidades experimentadas pelos movimentos feministas na conjuntura da recém democracia,

As temáticas apresentadas pelo movimento feminista estão presentes hoje em diversos espaços, tanto em movimentos e entidades de mulheres como em espaços mistos. É certo que o movimento feminista está mais ausente "das ruas". O retraimento dos movimentos sociais é geral, mas o movimento feminista optou por centrar-se fundamentalmente na busca de espaços concretos de atividades e isto levou a uma multiplicidade de serviços gerados por organizações de mulheres. Apesar de assertivas em contrário, está longe de estar morto; ao contrário, tornou-se mais diversos e difuso, e tem transformado o movimento de mulheres. O feminismo construiu um largo arsenal de estratégias e táticas - protestos, serviços, proposição de políticas públicas, opções legislativas - e construiu coalizões com outros movimentos. Tem mantido fóruns do movimento de mulheres para as decisões de suas agendas e formas de atuação conjunta"(SOARES, 1994, p. 21)

Elucidando, portanto, as mudanças e ressalvas que Jô Moraes expressava em seu artigo de 1991 em Presença da Mulher. A redemocratização de fato como aponta diversas autoras mudou as relações dos movimentos feministas com o Estado ressignificando também suas formas de atuação. Os anos 90 trazem importante avanços nos debates sobre a questão da mulher, maior espaço na Academia para os grupos de pesquisa sobre a questão de gênero, novas formulações e discussões em maior amplitude sobre políticas públicas voltadas às mulheres,

A ONU se abre para as questões do gênero através das Conferências Internacionais, no que diz respeito à questão dos direitos reprodutivos, como se observa na Eco-92, realizada no Rio de Janeiro; na questão da violência, como se vê na Conferência de Copenhague, realizada em 1994; na

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9 Conferência do Cairo, em 1994, que coloca pela primeira vez a questão do direito da mulher na escolha da maternidade e do número de filhos; e na de Beijing, em 1996, que incorpora a formulação de políticas que eliminem a penalização das mulheres que recorrem ao aborto. (RAGO, 1995/1996, p. 43) A revista articulava essas mudanças, expressava em suas páginas notícias e resoluções de Conferências internacionais, chamando atenção ao que fosse destaque para a questão das mulheres, as manifestações de grupos de mulheres, as ações e discussões parlamentares.

A política de Estado Mínimo ampliada ainda no governo Collor abriu caminho para o desmonte das políticas sociais, seguida pelas privatizações de estatais. Nesse cenário as políticas neoliberais reconfiguraram a situação feminina ao longo da década. A desestruturação do mercado de trabalho, a elevação dos índices de desemprego, o avanço dos trabalhos informais, a terceirização e o aumento das privatizações marcaram os anos 90 e, afetaram significativamente as mulheres. Conjuntamente nesse contexto se ampliam a existência de ONGs no país, muitas engendradas a partir de movimentos sociais, coordenadas em grande parte pelas militantes do movimento das décadas de 1970 e 1980 (PINTO, 2006) e algumas financiadas por agências internacionais, como as Fundações, Rockefeller, Kellog, Ford, MacArthur , estas últimas também financiadoras de publicações feministas, respectivamente, as revistas Mulherio, lançada em 1981, e a revista Enfoque Feminista, lançada em 1991. As ONGs atuariam como “mediadoras entre as agências de financiamento e os movimentos de mulheres e formulam programas para estes, fornecendo serviços que vão desde oficinas e cursos de todo tipo à distribuição de alimentos, à organização de setores populares” (FONTENLA; BELLOTTI, 1999 apud D’ATRI, 2017, p. 225). Segundo D’Atri as ONGs são confundidas como o próprio movimento de mulheres, “como se fossem as próprias mobilizações e lutas que os movimentos realizam por reivindicações, exigências e denúncias” (D’ATRI, 2017, p. 225). Ainda segundo Pinto, as ONGs agem por meio de projetos, pautas e lutas específicas, e muitas vezes suas ações são pautadas pelas determinações das instituições que as financiam, segundo D’Atri, nesse contexto “o feminismo foi se distanciando cada vez mais de um projeto de emancipação coletiva” (D’ATRI, 2017, p. 226).

Na edição número 36 publicada em 2000, em artigo de Jô Moraes6, intitulado

“Redescobrindo o feminismo original”, a autora expressa as transformações ocorridas no

período destacando entre “a diluição de suas instâncias autônomas de representação e o

6 Nesta edição Jô Moraes é apresentada como vereadora pelo PCdoB em Belo Horizonte, MG e membro

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10 enfraquecimento orgânico de seus núcleos de base” (Revista Presença da Mulher, 200), como as políticas neoliberais significavam retrocesso nas políticas públicas e ataques à direitos conquistados, as demandas feministas assumidas pelo Estado através de conselhos, ministérios, delegacias especializadas e políticas de ações afirmativas, expressa-se portanto uma institucionalização do movimento, citado por Jô Moraes como importante na compreensão da condição da mulher de sujeito de direitos, porém citando artigo de Virginia Vargas uma institucionalidade débil e em muitos casos mais próximos dos interesses do Estado e de partidos políticos do que das mulheres.

Nesse cenário as conquistas alcançadas tornam-se frágeis, e como pontuado por Margareth Rago em 1996,

[...]não garantem sua implementação adequada, exigindo, portanto, um trabalho constante e eficaz de monitoração e fiscalização, evitando-se ao mesmo tempo a ameaça de cooptação e institucionalização que paira sobre o movimento e as redes feministas em seu diálogo e negociação com o Estado. (RAGO, 1995/1996, p. 43)

Ao trazer em suas páginas essas discussões Presença da Mulher coloca-se como uma publicação conexa com as discussões provenientes da conjuntura e dos processos na qual estava inserida. Em seu lançamento a revista se propunha refletir as aspirações da nova mulher, o que se verifica em suas páginas é um diálogo com a realidade social conciliando com a articulação, divulgação e disseminação das ideias do grupo que a produzia e impulsionava.

As historiadoras Heloisa Faria Cruz e Maria do Rosário Peixoto apontam que a imprensa como fonte histórica não pode ter descaracterizada suas especificidades e, sim, deve-se buscar compreendê-las, principalmente na sua relação conteúdo/sociedade, uma vez que a imprensa não se constitui “como um espelho ou expressão de realidades”, compreendo portanto a imprensa como uma importante ferramenta de divulgação de posições, tornando público uma ideia, uma cultura e seus valores. Em alguns momentos, a utilização desse meio de comunicação para disseminação de pensamento foi adotada não apenas por grupos hegemônicos, mas também por aqueles que compreendiam a necessidade de se “forjarem novos espaços de atuação a partir de interesses não prioritariamente econômicos[...]” (PASCHOARELLI, 2004). Freitas ao citar o artigo de Barbara Godard, ressalta o significado da imprensa feminista,

“Os periódicos feministas têm existência fora do modelo dominante de publicação capitalista, às margens e em oposição, seja por meio de sua posição limite no que diz respeito ao mercado ou quanto a seu compromisso com a ideologia contestatória”. Os periódicos são desenvolvidos para

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11 fomentar as ideologias feministas: eles criam novos circuitos para disseminar entre as mulheres saberes e práticas que buscam transformar a condição feminina sob a qual as mulheres têm sido sujeitadas à opressão sistêmicas.” (GODARD, 2002, p. 212-213 apud FREITAS, 2018, p. 115)

Evidentemente é necessário compreender que a imprensa cumpre funções que ultrapassam simples representações de seu tempo histórico, mas também não é possível determiná-la apenas como produtora de discursos, a complexidade do estudo dessa fonte permite observar que ela se localiza como integrante da realidade na qual se constituiu, e conceber sua ação é buscar o lugar e o tempo no qual se escreve e com quais projetos se articula. O estudo da revista Presença da Mulher permite assim um vislumbre do seu contexto, sobre as discussões acerca dos movimentos feministas e a situação das mulheres em seu período de circulação.

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Referências

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