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I Concurso de Crônicas e Contos da AMB Categoria: Crônicas

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Academic year: 2021

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I Concurso de Crônicas e Contos da AMB

Categoria: Crônicas

1º lugar

Confidências à Mafalda

Mafalda, há quanto tempo você me acompanha,

ouvindo minhas preocupações, alegrias e ansiedades?

Quantos segredos contados, confissões expostas. Até

lágrimas já compartilhei. Sem contar as histórias de

vidas passadas aqui na UTI que dividi com você.

Lembra-se de Tony, aquele rapaz de boa aparência

que se internou aqui sem diagnóstico? Como foi difícil

contar à família que o jovem saudável tinha aids.

Recor-do como se fosse hoje: a família a contestar o resultaRecor-do

dos exames, a dizer que havia algo errado, não se

confor-maram e queriam que o filho morresse. Quantas vezes

entrei em minha sala e recuperei a calma,

desabafando-me com você.

Também não sai da minha cabeça aquela linda

meni-na que chegou à UTI pediátrica com 50% de seu corpo

queimado. Apesar de acostumado com casos graves,

fiquei extremamente abalado ao ver a criança desfigurada,

brincando como se nada tivesse acontecido. Mais

emocio-nante foi ouvir de sua mãe, uma mulher de força

incom-parável e abnegação sem igual, que ela estava feliz por ver

a filha viva e que tudo daria certo. Uma fé que emociona

e que toca fundo na gente. E você ouviu tudo. Ficou ali,

passiva, tranquila, enquanto eu tentava, a duras penas,

afogar a emoção diante de uma situação tão difícil.

Parceria e confiança são palavras que se aplicam bem

ao nosso dia a dia de alegrias e tristezas vivido junto

na UTI. É bom ter alguém para dividir a alma, sem ter

medo de ser julgado, criticado ou mal entendido. Você

faz há anos esse importante papel, sem pedir nada em

troca. Mantendo-se calada à frente de meus

pensamen-tos e opiniões. Funcionando como um alterego.

Lembro bem da primeira vez que a vi sentada junto

ao leito de Carlos, velando seu sono. Há cerca de 10 anos,

um grave acidente ocorrido numa estrada de Mato

Gros-so trouxe Carlos, em estado de coma, para nossa UTI.

Era um homem alto de boa aparência, com pouco mais

de 40 anos. Assim que ele chegou à UTI, seu nome me

chamou a atenção. Soava conhecido. Puxei pela memória

e, claro, lembrei-me de já ter encontrado com o

publici-tário de sucesso em alguns eventos sociais.

O caso era grave. Carlos tinha muitas fraturas,

mas o que mais nos afligia era um sério

traumatis-mo craniano e de tórax. Em pouco tempo, além dos

cuidados com Carlos, nossa equipe se deparou com

familiares extremamente nervosos com a situação.

Nanci, a esposa que você tão bem conhece, chegou

desolada, acompanhada das duas filhas

adolescen-tes que não paravam de chorar e perguntar pelo pai.

As três davam mostras de desequilíbrio e desespero,

muito naturais por conta da situação.

Afinal, Carlos era o pilar da família. Com o

conví-vio percebemos que era ele quem dirigia não apenas

o dia a dia de sua empresa, mas também a rotina da

casa. As decisões – todas – ficavam sob sua batuta. A

esposa, moça jovem e inteligente, era artista plástica,

com curso no exterior e prêmios internacionais. A ela

cabiam as tarefas mais intelectuais, menos práticas.

Contas, compras, administração da casa estavam

fora das suas atribuições. E a partir daquele

momen-to, a moça de família abastada que sempre fora

trata-da como princesa e poupatrata-da trata-da administração trata-da

vida teria que enfrentar o acidente do marido,

acom-panhar sua luta pela recuperação, encarar possíveis

sequelas e ainda assumir integralmente a empresa e a

casa. Um desafio tão grande quanto o de Carlos.

Carlos passou por uma cirurgia complexa, mas

de extremo sucesso. Os riscos de sequelas pouco a

pouco eram diminuídos e só o tempo nos diria como

aquele pai de família ficaria. Nesses casos a

interna-ção é longa. Muitos dias ou meses de UTI, no caso

dele foram sete meses. A família costumava revezar o

acompanhamento do paciente. Mas com Carlos havia

ainda certa diferença, e além dos pais do publicitário,

apenas Nanci e as filhas podiam ficar com o

pacien-te. Uma exigência da esposa, mais tarde confirmada

pelo próprio Carlos.

Nos primeiros dias, como sempre, a sala de

espe-ra ficava lotada. Mais de um acompanhante brigava

por permanecer com o paciente, mas após a

primei-ra semana, a vida lá foprimei-ra é mais forte e precisa ser

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retomada. No caso de Nanci, as obrigações com a

empresa e com a administração familiar se fizeram

imprescindíveis. A jovem, antes dondoca e

despreocu-pada, assumia a partir dali uma nova postura na vida.

E, o que parecia impossível, aconteceu: a então frágil

Nanci se mostrou uma fortaleza, assumiu os negócios

do marido, a rotina da casa, dividiu responsabilidades

com as filhas e ainda montou uma rotina de visitas.

Mas as atividades eram muitas para um dia de apenas

24 horas. E, por vezes, Carlos se encontrava sozinho.

Foi nesse momento, por volta do 20° dia de

inter-nação, que você chegou, Mafalda. Era uma tarde de

terça-feira, de um dezembro abafado, quando a vi pela

primeira vez, sentada em uma pequena poltrona à

beira da cama de Carlos. Toda de branco, saltava-lhe o

batom vermelho claro nos lábios grossos. Era discreta,

mas ao mesmo tempo sensual. Com estatura

media-na, cabelos castanhos claros devidamente presos e com

apenas alguns fios propositalmente caídos, vestia um

tailleur branco bem cortado e ajustado ao corpo. O

decote em “V” era disfarçado pelo estetoscópio. Um

charme a parte para deixar os fartos seios meio

escon-didos. Tudo em você era elegante, sem exageros, só

com um pouco de sedução. Seu rosto apesar de

marca-do por uma expressão forte transparecia também certa

delicadeza. Aos seus grandes e vivos olhos não

esca-pavam nada. Suas pernas longas, sempre cruzadas,

pareciam prontas para um salto, caso fosse necessária

alguma ajuda rápida ao paciente.

Entrei, cumprimentei e você continuou ali, imóvel

com aquele meio sorriso de sempre. Passava os dias

a fazer companhia a Carlos. Só saia da poltrona para

dar lugar a Nanci ou algum parente. Nunca deixou seu

posto. Seu nome, Mafalda, parecia não combinar com

a jovem e formosa enfermeira. Mas que aos poucos

passou a soar agradável em meus ouvidos.

Os meses foram se passando e em pouco tempo

Carlos teria alta, voltaria para casa. Era tudo que ele e a

esposa desejavam. Afinal, foram sete meses de

interna-ção, de angústias, dúvidas e esperanças.

Lembro que pouco antes de Carlos entrar na

sala de cirurgia, em seu segundo mês de internação,

Nanci veio aos prantos em minha sala. A

neuroci-rurgia era complexa – significava a chance de Carlos

recuperar os movimentos ou o risco de perdê-los

para sempre. A jovem transparecia nervosismo.

Segurou em minhas mãos e perguntou: “Doutor,

posso confiar, posso ter fé que tudo dará certo?”

Minha resposta foi firme: “Confie em Deus e nos

médicos que irão fazer a operação. Tudo dará certo.”

E ela com olhar marejado e voz fraca balbuciou:

“Vou confiar e se tudo der certo, agradecerei a Deus,

aos médicos e ao senhor. Como gratidão eu deixarei

Mafalda aqui. Sei que o senhor tem apreço por ela.

Mafalda será a sua companhia, sua enfermeira

espe-cial.” Fiquei espantado com a proposta. Mas naquele

momento só me restou abrir um sorriso e consentir

com a cabeça.

A cirurgia foi um sucesso. No dia de sua alta –

uma manhã fria de julho –, havia muitos pacientes

novos, em estado grave e eu só fiz correr de um lado

para outro, acompanhando as internações,

orientan-do a equipe... E mal me lembrei da estranha

promes-sa de Nanci, feita aos prantos no dia da cirurgia: “Se

meu marido se recuperar, deixarei a Mafalda com o

senhor.” De repente, Carla, minha secretária de muitos

anos, me bipou e falou com certo espanto: “Doutor, eu

encaminho a Mafalda para sua sala?”

Confesso que perdi alguns segundos tentando

deci-frar aquela pergunta. “Como?”, respondi meio

assusta-do. “A dona Nanci deixou a Mafalda aqui e queria saber

se posso encaminhá-la para sua sala.” Eu disse que sim.

Meu coração bateu mais forte. Não é que Nanci havia

cumprido a sua promessa...

Andei apressado até minha pequena sala na

entra-da entra-da UTI, no quinto anentra-dar do hospital. Lá estava

você, Mafalda, sentada em uma de minhas

poltro-nas, com o mesmo sorriso, com a mesma cruzada de

pernas. Não resisti em tocá-la. Abracei-a forte como

uma criança. Sem pudor, percorri seu corpo, segurei

suas mãos, pernas. Até nos carnudos lábios fiz

ques-tão de mexer. Afinal, havia meses essa vontade não

me saia da cabeça. Mafalda uma boneca de pano tão

perfeita que parecia gente, agora ali na minha sala.

Mafalda era só minha, presente de Nanci, uma artista

plástica talentosa e bem humorada, que confeccionou

a boneca para dar alegria e a sensação de companhia

ao marido internado.

Durante aqueles sete meses Mafalda foi uma

atra-ção à parte na UTI: médicos e funcionários de outros

andares não resistiam em visitá-la. Parentes de

pacien-tes faziam questão de passar pelo leito de Carlos para

dar uma olhada naquela figura caricata. Carlos nunca

ficou sozinho e fez muitos amigos por conta da boneca

de pano.

Mafalda permaneceu durante muitos anos em

minha sala na UTI. Foi visitada por curiosos e ajudou

a quebrar o clima tenso do setor. Mas sua principal

função sempre foi ouvir os pensamentos desse médico

que vive no limiar da vida e da morte. E que encontra

em uma obra de arte, feita de pano e de carinho, uma

companheira que está sempre a sorrir e disposta

escu-tar com paciência.

Elias Knobel,

Cardiologista, São Paulo/SP

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2º lugar

Um Dia no Hospital

Aquela quinta-feira, Benedito imaginava, começara normal

e seguiria seu curso rotineiro. Acordara por volta das cinco horas, saíra para o terreiro para dar comida aos porcos, o cachorro a acompanhá-lo. Morando em uma cidade próxima à metrópole, tinha que sair cedo para poder chegar em tempo ao hospital onde trabalhava, no Centro de Terapia Intensiva, o CTI, como auxi-liar de enfermagem. Pegava o ônibus pouco antes das seis horas e iniciava seu plantão, em dias alternados, às sete horas.

Gostava da viagem de ônibus, quando este não se encontrava muito cheio. Indo à janela, ficava a olhar a bela montanha que se destacava à direita da estrada, verdadeira muralha a ocultar a megalópole imensa que se estendia sobre colinas do outro lado.

Aquela não tinha sido uma semana fácil. Um dos filhos acometido por virose respiratória, a mulher desentendendo-se com a menina, ainda adolescente, enrabichada por um rapazote nada confiável.

Mas Benedito era um neguinho sabido e nada disto tirava seu humor. Falastrão, em todo lugar, mesmo no CTI – entre cole-gas e médicos – nunca perdia chance para uma brincadeira. E todos gostavam de provocá-lo.

Agora mesmo, apreciando a manhã que se instalava radiosa sobre a vertente, não deixou de sorrir ao se lembrar de episódios ocorridos recentemente. Um foi quando, no trabalho, ao aproxi-mar-se de um dos leitos do CTI, notou que o paciente que ali esta-va encontraesta-va-se imóvel e, ao que lhe pareceu, sem respirar. Não quis perder tempo em detalhes. Fez logo o diagnóstico de parada cardíaca e desfechou um murro no peito do desfalecido, mano-bra que considerou adequada para reanimar um coração recém-parado. Mas que engano! O paciente apenas dormia. Acordado desta forma, assentou-se assustado na cama e foi logo gritando:

- Vai esmurrar sua mãe, seu filho d`uma égua!

Para Benedito sobrou a alternativa de pedir desculpas. Mas o “agredido” exigiu que ele em momento algum sequer se aproxi-masse de seu leito. E quando o via, mesmo a distância, fuzilava-o com olhos de quem o queria mandar para os quintos do inferno.

Outro episódio acontecera no mês anterior. Sempre pronto para ajudar, lá estava o Benedito a postos para auxiliar o inten-sivista numa cardioversão que visava trazer de volta ao normal a arritmia cardíaca do paciente do leito 12. Tudo preparado para o choque, de pás nas mãos, o médico contou:

- Três, dois, um, zero.

E tome uma descarga elétrica caprichada. Pobre do auxi-liar que, por descuido, se mantivera encostado à cama metáli-ca. Tomou um choque que o colou à parede logo às suas costas. Magro, de pele negra, desceu parede abaixo pálido e totalmente aparvalhado, até estender-se no chão.

Todos se apressaram a socorrê-lo. Um auscultava-o, outro ia buscar copo de água fria, outro tentava sentir-lhe o pulso.

- Bené, Bené, tudo bem com você, meu filho? – gritava o plantonista, esquecido do paciente.

Uma vez vendo-o recuperado, poucos minutos depois andando lépido de um lado para outro, logo vieram as chacotas:

- E aí, Bené, mais energizado agora?

- Benedito, será que aquele desfibrilador estava desregulado? Eta choque bravo, hein! Ainda outro gaiato:

- Pois é, Bené, os médicos andam preocupados com você. Dizem que choque igual ao que recebeu é tiro e queda. O caboclo vira boiola no ato.

Mas o que não lhe faltava era jogo de cintura e a toda gozação respondia na mesma moeda.

Chegando ao hospital para iniciar o plantão, Benedito notou que algo de inusitado pairava no ar. Movimento diferente, clima

de inquietude... Quis logo saber do que se tratava. O enfermei-ro da noite contou-lhe que estava havendo um desentendimen-to entre a administração do hospital e família de paciente que se internara no CTI dias atrás, cigana de seus mais de 70 anos. Tratava-se de caso complicado, insuficiência cardíaca grave, sem perspectiva de melhoras.

Reinava no ambiente um desassossego ocasionado pelo grupo de ciganos que trouxera a doente. Não é que eles acampa-ram bem junto à portaria? Aquele era um hospital de destaque, localizado em área nobre, atendendo a clientela seleta e de posses. Era um transtorno ver aquele pessoal ali, dia após dia, duas barracas armadas, à espera do desenrolar dos fatos. Pediam comida na cozinha, quando não a faziam eles mesmos em seus fogareiros, usavam os banheiros da recepção e ali passavam as noites, sempre falando alto e sobre coisas que não se ajustavam ao ambiente de uma casa de saúde.

Em nada adiantou que lhes viessem pedir para que não permanecessem ali.

- Só saímos juntos com Aurora – afirmavam categoricamente. Chamar a polícia? Isto podia ser pior. Depois viria imprensa, televisão, pondo em destaque a instituição de maneira certamen-te inconveniencertamen-te.

Benedito, antes mesmo de assumir seu plantão, procurou inteirar-se dos fatos. Foi de um lado para outro, conversando ora com a recepcionista, ora com algum residente de medicina e até mesmo com algum cliente que aguardava para ser atendi-do. Logo ficou sabendo que a principal causa da celeuma é que, uma vez transcorrido o óbito da cigana, fora apresentada a conta aos seus companheiros. O que parecia ser líder do grupo, e neto dela, analisou item por item e, aparentando perplexidade, foi logo questionando:

- Isto é um absurdo! Caro demais, não dá pra pagar de jeito algum.

Em vão o tesoureiro tentou demonstrar a pertinência dos valores apresentados.

Ao final o cigano disse que iria se reunir com os colegas para ver como deveria agir. O diretor clínico foi logo aparteando inti-midador:

- Muito bem. Vai lá e conversa, mas estou avisando: só libera-mos o corpo quando a conta estiver paga.

Benedito, a quem coubera os cuidados finais com a falecida, terminada a tarefa acorreu à portaria e, a pedido do mesmo dire-tor, informou que a paciente estava pronta, à espera da família que, após saldar as despesas, poderia dar destino digno ao seu ente querido.

Restou a Benedito levar ao administrador a decisão do bando: - Doutor, mandaram dizer que podem ficar com o corpo da velha, que ela morta não vale o que estão cobrando.

Houve uma rebordosa no hospital, mas ao final, lá se foram os ciganos com a defunta. E sem pagar um níquel sequer pelo tratamento efetuado, uma vez que a diretoria teve que levar em consideração o risco de aumentar o prejuízo tendo que proceder ao sepultamento.

Voltando à noite para casa, no escurinho do ônibus, Benedi-to matutava consigo mesmo que aquele fora um dia nada usual. E se perguntava olhando para além da estrada que descia para o vale:

- Tivesse a cigana sobrevivido, até quanto pagariam por ela? Antonio Ângelo de Oliveira,

Cardiologista, Belo Horizonte/MG

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3º lugar

Terra da Gente

Era um passarinheiro o Artemísio.

Tinha precisão de andar, não por desgostar dos sítios de passagem, mas era como se estivesse fugindo da mesmi-ce. Passou pela escola como pombo migrante ou peixe na desova; mudança de série em série, cada mês numa classe, até nos grupos de meninos se enturmava hoje, desturmava amanhã, ninguém nunca se acertezava de garantir onde ele estava.

Talqualmente um cão vadio ou desadonado, Artemí-sio, depois de crescido e feito homem, errava mundo afora partindo de cada porto quase antes mesmo de atracação ou fundeamento. Viramundo solitário, engolindo com os pés léguas e sesmarias, bebendo paisagens com sofreguidão, sede maldita de paragens novas que água nenhuma saciava a contento. Mas o afadigamento de tanta perambulança já lhe castigava o corpo e vincava o rosto. Sentia falta de sítio agradável, cantoria de galos inaugurando as madrugadas, mulher jeitosa acarinhando suas intimidades, gurizada cirandando em volta da sua rede; bem lá no dentrinho dele, carecia de um afamiliamento. Enquanto isso não acontecia, continuava de pago em pago, de porta em porta, de vila em vila, a cada “ô-de-casa” na chegada, um lugar nenhum pela frente no “até-mais-ver”.

Antes, na precisão de vir, a vontade de sair, mas o medo do vexame de voltar olhando o chão batido molha-do molha-do suor perdimolha-do. É o barbante molha-do imbigo amarramolha-do na terra-mãe. É aquele vai-não-vai enchendo de assuntação as madrugadas sem sono, o peito espremido de um sofrer queimante, mas benfazejo, olhar espichado de bussica tris-te na cheirança do dono.

No passo-a-passo da estrada, matulotagem pendurada na ilharga, o chão descorrendo pra trás no solado dos pés, o barulho do vento nas orelhas é como pio de coruja triste, choro lamentoso de deserdado da vida e do seu chão.

Confranquezamente falando, até que mandado embo-ra, não foi, não; vai porque quer, porque é da sua sina de fugitivo dos próprios sonhos, do seu destino dessa olha-ção pros lados, não dá mais de ficar nessa mesma mesmice de sem-futurança, terra cansada de não dar mais melhoria feito chuva na pedra ou santo-de-casa; é hora de ir-se indo atrás de pasto novo. Foi sempre assim na sua vida, desde a mais antiga rememorança.

Se achar porteira aberta e no grito de “ô-de-casa” ouvir achego bom de se-dessarreie-esteja-a-gosto, aquele cheiri-nho molhado de terra fresca, toda gente se espiando nos olhos e se rindo de pertinho, curió curiando na gaiola, céu molhado de azul, vira-lata estabanando a cola no nariz da gente, cada qual se arredando mesureiro e arrelia de piaza-da na chamança de titio, então a gente se desculpa de estar chegando tão fora de hora, pede licença pra arriar os trens no pasto e dividir a fumaça de um pito de rolo.

Até que um dia deu de cara com um braço de mar muito longo no comprido e pouco ancho no atravessado, um pé de terra no lado de cá, outro mesmo no de lá, parecendo uma ilha. Dava de ver, nas estradinhas que serpenteavam a maresia, pessoas calmolentas no indo-e-vindo do nada por fazer, semoventes arrastando as rodas cantantes das

carroças, um casario meio esvaziado de moradias peque-nas e colorentas, lá no fundo o paredão verde e folhajudo de um morro.

A princípio, Artemísio pensou em atravessar vade-ando as águas que lhe pareceram rasas, mas logo viu que não dava. Conseguiu arreglo num pescador mesureiro que mostrou ser de boa armadura os moradores do luga-rejo, enfiou trens e tralhas no barco e desembarcou na ilha. Ao botar pé na praia, já sabia que o nome dali era Nossa Senhora do Desterro.

Como acontecia sempre que chegava em pasto novo, tratou de procurar por um pouco d´água de moringa bem fresquinha e de algum passante, melhormente, alguém da terra que lhe informasse de gente carente de fazedor de servicinho em troca de pousadia. Olhou em derredor e viu uma casinha que lhe pareceu de bom aconchego. Tinha uns 200 passos de largura por outros 500 de fundura, indo acabar bem lá na beiradinha do mar… Cercada de peda-ços de bambu, era uma três-águas feita de madeira corri-da protegicorri-da por tapa-juntas, tocorri-da pintacorri-da de amarelinho canário, vistas cor de cenoura crua descascada. Na beira do mar deu de ver duas canoas ladeando os varais das cercas, umas redes de pescador, mais de ladinho um cercado com dois porcões e um punhado de bacorinhos, ciscando em todo o terreiro uns pares de galinhas e pintinhos correndo atrás, algumas plantações e pés de fruta, na porta, derre-ado, puxando pito de palha, barbicha rala já esbranqui-centa nas beiradas, sandálias descambadas pelo gastume, naquele abandono de sem-o-que-fazer, só devia de ser o dono da casa.

Botou delicadeza quando pediu pra conversar.

O morante se deu conta do forasteiro, logo viu que era gente que vinha de longe, mandou que ele se achegasse, se acocaram pra prosear mais à vontade e quando se abri-ram no primeiro sorriso, até parecia que já eabri-ram de velha conhecença.

Artemísio mais sentiu que achou: estava em casa. Terra da gente é assim, uma chegança medrosa com tímido olhar em volta, um receio de inaceitação pelo gentio hostil nos olhos desconfiados, depois um que-licença de ir olhando em derredor e ir gostando do jeitão de ser e de se-haver, num quase-de-repente que nem se dá de aperceber como começou, a gente está em casa.

Terra da gente é assim. É sentir que nos finalmentes das andanças sem rumo, a gente achou chamego amigo, abra-çamento franco, não-se-avexe-cumpadre-a-casa-é-sua, vá chupando essas bagas e tome assento, aqui é chão de calma-ria e de bemquerença, não tem ninguém na tocaia, a noite vai ser bem dormida, sem pesadelos nem ardição das ruin-dades dos caminhos.

Terra da gente e assim, “visse”? Osmard Andrade Faria,

Broncoesofagologista, Florianópolis/SC

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Categoria: Contos

1º lugar

Um Convite Inesperado

Dez e quarenta e cinco da noite de uma sexta-feira tocou o

telefone. Paulo, que não esperava ninguém, percebeu de pronto que era a voz aveludada de Renato, seu filho mais velho.

Após cumprimentos e troca de amenidades, Renato convi-dou-o para um jantar. Seria especial, pois estava às vésperas de seu casamento com Cyntia. Participariam apenas sua mãe, Maria Lúcia; sua irmã, Roberta; e os pais de sua noiva. A data seria dentro de uma semana, na próxima sexta-feira, na casa onde havia vivido 18 felizes e inesquecíveis anos junto de sua esposa e filhos.

Colocado o telefone no gancho, Paulo ainda estava surpreso com aquele convite inesperado. Embora tivesse relações amisto-sas com Maria Lúcia, jamais esperaria por aquela “convocação”.

Ainda reverberava em sua mente o desejo do Renato em reunir seus entes mais queridos e, como que em estado de tran-se, seu pensamento rapidamente alçou voo a um feliz passado interrompido havia oito anos.

Paulo e Maria Lúcia namoraram apenas uma única vez antes de se conhecerem em pleno desabrochar da juventude e durante a vida universitária. Ele, estudante de administração, e ela, de engenharia. Namoraram durante cinco anos e logo após a formatura dele, casaram-se. Tinham vivido momentos mara-vilhosos que o tempo não poderia apagar.

Naquela noite, Paulo não conseguira dormir, pois as recor-dações que pululavam em sua mente tornavam-se agradáveis iguarias no seu presente insosso.

A semana passou célere e logo se viu tocando a campainha da casa onde viveu. Os poucos convivas encontravam-se aperi-tivando na sala. Entreolhavam-se e conversavam amenamente. Paulo recebeu calorosos elogios dos pais da Cyntia pelo educa-do homem que Renato se tornara, um verdadeiro filho para eles, visto que tiveram uma única descendente.

Por sua vez, Paulo percebia o quanto Renato e Cyntia se amavam pela maneira carinhosa como se tratavam. Asseme-lhavam-se a ele e Maria Lúcia de outrora.

Num ambiente acolhedor, adornado com uma agradável seleção de música popular brasileira, transferiram-se para a sala de jantar.

Quis o destino que Paulo sentasse bem em frente de Maria Lúcia. Entre troca de gentilezas e olhares tangenciados, via atra-vés daquela mulher de 46 anos, agora com cabelos mais curtos, presos ao nível da nuca, levemente tingidos, e fácies com rugas incipientes disfarçadas pelos cremes e blushes, a linda menina-moça que namorou outrora.

Entre uma música e outra que se sucedia começou a tocar “Todo o Sentimento”, interpretada por Chico Buarque:

Preciso não dormir / Até se consumar / O tempo da gente / Preciso conduzir / Um tempo de te amar / Te amando devagar e urgentemente.

O tempo realmente parecia ter parado no passado. Tudo fora desmoronado como um grande castelo de areia. A perda do Matheus – seu filho mais novo que contava com apenas cinco anos – em apenas três dias, por uma meningite meningocócica fulminante, levara-os a uma grande depressão, afastando-os de familiares, amigos e de si mesmos. Aquela amputação tinha anulado a afetividade que neles sempre superabundou.

Paulo bem se lembrava. Cerca de oito meses após a incon-solável perda do Matheus, seus amigos, querendo reanimá-lo,

convenceram-no a realizar com eles uma vigem ao Nordeste. Numa das noites, desinibido pela bebida em excesso e num estado de sem-querer-querendo, tentou testar e reativar sua masculinidade cedendo seu corpo – o corpo de Maria Lúcia – aos caprichos de mulheres fortuitas da noite. Entretanto, no dia seguinte, amargurou não apenas os dissabores da ressaca, mas uma nova melancolia – a da traição.

Havia entre Paulo e Maria Lúcia um pacto inquebrantável de namoro: se ao longo da vida a dois houvesse uma traição, o outro seria o primeiro a tomar conhecimento. Entretanto, não precisou de muito para que sua esposa pressentisse o infausto.

Ao fundo, a música acentuava...

Pretendo descobrir / No último momento / Um tempo que refaz o que desfez / Que recolhe todo o sentimento / E bota no corpo uma outra vez.

O jantar seguia animado pelo vinho tinto chileno de selecio-nada casta carménère, especialmente escolhida pelo seu filho.

Maria Lúcia, por sua vez, também entreolhava disfarçada-mente seu ex-amado. Parecia que seus pensamentos confluíam no mesmo sentido que o de Paulo.

Ela via naquele homem de 48 anos à sua frente, com cabe-los levemente grisalhos e penteados para trás, barba bem feita, trajando um blazer azul-marinho sobre uma camisa branca, de atitudes educadas e desarmadas, o grande amor de sua vida, com quem planejou construir uma família feliz. E as inúme-ras juinúme-ras de amor que trocaram estavam sintetizadas na música que prosseguia:

Prometo te querer / Até o amor cair / Doente, doente / Prefiro, então, partir / A tempo de poder / A gente se desven-cilhar da gente.

O dissabor de seu desenlace com Paulo, igualmente reverberava em sua mente, agora, com um contraponto, uma candente interrogação: talvez, se tivesse visto com outros olhos os agravantes da traição, teria relevado aquela atitude e atenu-ado os amargos momentos que solitariamente passou, sobre-tudo, por ter Paulo lhe pedido insistentemente perdão e ter-lhe confessado profundo arrependimento.

Entretanto, a fragilidade daquele momento lhe cegou a razão. Sua péssima autoestima agigantou-lhe um doentio orgu-lho ferido.

Ambos sabiam que embora tivessem tido vários relaciona-mentos ao longo de oito anos de separação – tentando cada qual preencher um vazio impreenchível – nenhum deles se aproxi-mara do amor pueril, do grau de intimidade e do comprometi-mento que tinham alimentado ao longo dos benfazejos anos de namoro e casamento.

Após tantos olhares voluntariamente dispersos, Chico Buarque colocou-os frente a frente, exatamente quando concluía sua canção:

Depois de te perder / Te encontro, com certe-za / Talvez num tempo da delicadecerte-za / Onde não diremos nada / Nada aconteceu / Apenas seguirei como encantado ao lado teu.

Aquela tinha sido uma noite muito especial. Um convite inesperado em todos os sentidos!

Hélio Begliomini,

Urologista, São Paulo/SP

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2º lugar

A Despedida

3º lugar

A Pensão da Comadre Cidinha

Eu acabara de chegar naquela cidade, não conhecia

ninguém. Minha esperança era o motorista de táxi que me levaria da rodoviária até o hotel no centro da cidade. Uma corrida de menos de cinco minutos, afinal se passasse disso, estaríamos em outro município, mas foi tempo suficiente para conhecer o que me aguardava.

Dizem que assim como existem anjos, existem demô-nios regionais. Os do Estado dessa cidade se caracterizam por serem fofoqueiros e futriqueiros. Agem calma e silencio-samente, alimentam-se de informações imprecisas e quan-do não as possuem, criam-nas com extrema habilidade e as negociam para obter o que mais lhes dá prazer: possuir antes que os outros, uma informação negativa sobre alguém...

Iniciei da janela, meu diálogo com o solitário motoris-ta de táxi, tenmotoris-tando ser cordial e esperando encontrar nele alguma espécie de “balcão de informações”, já que os que se encontravam no desembarque, não estavam sóbrios o sufi-ciente, nem para escutar minhas perguntas:

- Boa noite, o Sr. está livre? - Livre? Livre para quê?

- Desculpe, eu quis dizer se o táxi está vazio. - O Sr. tá vindo de onde?

- Venho da capital. Posso entrar no táxi? - O Sr. quer ir pra onde?

- Quero um hotel qualquer no centro da cidade. - Mas o Sr. não sabe de quem é o hotel que o Sr. quer ir? Sempre admirei pessoas que, malgrado submetidas a algum infortúnio, conseguem manter-se espirituosas e otimistas.

Há algum tempo, uma setuagenária portadora de diabe-tes, ao saber do seu médico que teria que se submeter a uma amputação da perna, que seria feita ao nível da coxa, entre-gou-lhe, na véspera da cirurgia uma carta. Não endereçada ao médico, mas sim à sua perna!

Na missiva, ela escreveu: “Minha querida perna:

Dolorosamente devo informar-te de que temos que nos separar. A nossa união, tão duradoura, carinhosa e profícua chegou ao fim.

Neste ensejo, quero agradecer-te por tudo de bom que me proporcionaste na nossa longa convivência: as saudáveis correrias quando criança, a boa aparência quando mocinha, fator decisivo para interessar alguns namorados, os “entre-laçamentos” disfarçados com as coxas dos meus pares nos bailões, as sensações gostosas que enviaste a minha cabeça, quando certas palpações aconteciam.

Na medida do possível fui tua amiga. Quando necessitas-te ser operada de varizes, confesso-necessitas-te, a minha vaidade pesou

na decisão. Sempre procurei te agasalhar, quando o rigor do inverno se fazia sentir, e te vestir com as mais provocantes meias de nylon, de malhas, de renda e de arrastão.

Peço desculpas por te ter submetido, tantas vezes, à dolo-rosas depilações e por ter sido fumante, pois o doutor me disse que o fumo foi o mais pernicioso parceiro do diabetes, no prejuízo que nos causaram. Esta minha insensatez ajudou a arruinar-te e por isto peço-te perdão.

Você vai, eu fico solitária neste mundo de Deus. Não creio que poderei estimar, como a ti, a perna mecânica que o médi-co disse que poderei usar. Certamente ela não será médi-como tu, pois com toda a certeza não terá alma e nem o calor humano que sempre me proporcionaste.

Mas, estejas certa de que esta separação não será para sempre. Dentre em breve estarei indo também para o mesmo paradeiro teu. Lá, voltaremos a ser uma só e a reviver os bons tempos que passamos aqui na Terra e então poderemos nova-mente comer doçuras.

Um beijão da Tia Bete”.

José Warmuth Teixeira,

Anestesiologista, Tubarão/SC

- Não, eu vim apenas fazer inscrição para um concurso da prefeitura.

- Mas o Sr. vai fazer concurso pra quê?

Percebendo que a conversa estava indo rápida demais para um lado completamente diferente do que eu queria, resolvi ser mais firme, sem ser indelicado e interrompi a sequência de informações que eu estava fornecendo.

- Sr. aqui fora está frio, posso entrar no táxi e continua-mos a conversar?

- O Sr. não tem bagagem?

- Só esta de mão, vou ficar só até amanhã.

- Mas será que vai dar tempo para fazer a inscrição para o concurso até amanhã?

- Talvez se conseguir pegar um táxi que me leve para dormir e levantar bem cedo amanhã...

- O Sr. é de que família lá na capital? - Como assim de que família?

- Ora, as pessoas têm família, o Sr. não tem família? - Tenho, mas isso importa para eu entrar no táxi? - É estranho alguém chegar da capital esta hora da noite, sem bagagem, dizer que vai fazer inscrição para concurso da prefeitura e ainda dizer que tem família... Onde está sua família moço?

- Ficou na capital!

Respondi e fui logo levando a mão na maçaneta do carro, que para minha surpresa e indignação estava travada e sendo

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