D E M O C R A C I A V I V A
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AMAZÔNIA
E S P E C I A L
A M A Z Ô N I A
Museu vivo
em plena
floresta
Ennio Candotti
1Coordenador do projeto Museu da Amazônia (Musa) e professor da Universidade do Estado do Amazonas
Museu é um lugar onde são guardadas e expostas, para visitação pública, peças e
objetos de significado especial: a espada de um herói da nossa história, o esqueleto de
um dinossauro que viveu milhões de anos atrás, uma ferramenta, um vaso de barro
muito antigo feito por um artesão indígena para transportar água há 800 ou mil anos.
É um lugar onde se estudam animais e plantas, e os(as) cientistas que lá
traba-lham procuram estabelecer semelhanças e diferenças entre eles e elas, entender como
se comunicam e reproduzem, quais são seus hábitos alimentares, onde e como vivem,
qual a “língua” que eles falam.
É lá que estudantes e visitantes podem realizar experimentos, encontrar
explica-ções, objetos, máquinas e instrumentos que são estudados em sala de aula e retratados em
livros. Em geral, os objetos apresentados, os animais e as plantas expostos para visitação
pública têm longa história, mas estão imóveis e parados, representam, lembram objetos
1 Texto baseado em roteirode aula proferida por Ennio Candotti (Universidade do Estado do Amazonas/UEA) em 1º de outubro de 2008, gravada nos estúdios da Secretaria de Estado de Educação do Amazonas, para ser divulgada na Semana da Ciência de 2008.
JOSIV
AN DE JESUS LA
URINDO
com vida, mas eles mesmos não estão vivos. Apenas nos aquários é possível mostrar peixes vivos, em movimento. Os aquários também podem fazer parte das instalações dos museus.
Integração
Os saberes tradicionais das culturas dos povos indígenas e ribeirinhos são saberes vivos. Novos conhecimentos e modos de viver na floresta são imaginados por eles a cada dia. No Museu da Amazônia (Musa), pretendemos divulgar esses modos de viver e conversar com os bi-chos e as plantas.
Os conhecimentos ensinados nas escolas e universidades “viverão juntos” aos saberes tradicionais. Cada um nos ensinará a observar o mundo de um particular ponto de vista. Pense, por exemplo, no aquário e nas múltiplas manei-ras de olhar a vida na água, dentro e fora dela. Não só olhar, mas contar para os(as) outros(as) o que você viu. Imaginar coisas e descrever o que você imaginou. Pense nas diferentes ma-neiras de como se expressarão nos ambientes
do aquário os conhecimentos acadêmicos e os tradicionais, e isso não se restringe às lendas e aos mitos, mas também ao manejo, à classifi-cação das espécies, à descrição da sua função nos lagos e igarapés, na floresta etc.
A idéia é instalar o Musa nas proximi-dades da reserva Ducke, em Manaus. Lá, está o nosso principal acervo de conhecimentos, sistematizado, catalogado, estudado há mais de 40 anos. Vamos observar e registrar os fatos da natureza com nossos olhos, ouvidos, nariz, mas também com câmeras, amplificadores dos sentidos, que, sem interferir nos ecossistemas, nos permitam monitorar e acompanhar o espe-táculo da vida na floresta.
Imagine, por exemplo, acompanhar e gravar com uma câmara o que acontece no ninho de um gavião. Poderíamos transmitir tais imagens pela Internet para as televisões de todo o mundo e usá-las para ilustrar uma bela aula de Biologia.
Precisamos motivar e apaixonar 100 mil jovens para as ciências naturais e sociais. Precisamos de 100 mil biólogos(as), físicos(as), ecólogos(as), químicos(as), geó-logos(as), engenheiros(as), antro-pólogos(as), arqueólogos(as), lin-güistas. A Amazônia é muito grande e ainda pouquíssimo conhecida. Há trabalho para mais de 100 mil naturalistas.
Desconhecemos, em grande parte, os minerais que se encon-tram logo abaixo de nossos pés, no subsolo, as plantas e os insetos que aqui vivem na superfície, os pássa-ros que voam pelos ares.
Pelas dimensões da missão do Musa, de seus objetivos e dos de-safios que encontraremos para cons-truí-lo, precisaremos da colaboração de muitos parceiros. Os primeiros deles são os museus que já existem na região, como o Museu Goeldi, no Pará; o Inpa, no Amazonas; o Insti-tuto Mamirauá; as universidades e os institutos de pesquisa dos esta-dos amazônicos; os museus e as uni-versidades dos países vizinhos.
Comunidades em ação
Na região próxima ao Musa, quere-mos instalar uma Oficina de Ciência, Cultura e Arte (Occa), com o objetivo de ajudar a escola a divulgar ciência
2 O projeto de organização e estruturação do Musa está sendo elaborado por um grupo de trabalho interdisciplinar coordenado por Ennio Candotti (UEA), Marcilio Freitas (SECT) e Rita Mesquita (Inpa).
E S P E C I A L | A M A Z Ô N I A
Por dentro do Musa
O Museu da Amazônia (Musa) é um mu-seu na floresta. Visitantes e alunos(as) são convidados(as) a percorrer trilhas e passarelas que atravessam a mata. Ao lon-go do percurso, de tempos em tempos, os(as) visitantes encontram casas, “esta-ções”, em que vídeos, gravações e equi-pamentos amplificadores ajudam a re-ver e pensar no que se viu ao longo da caminhada e a decifrar os segredos que a natureza esconde.
No Musa, as “peças” do museu, os objetos a serem expostos, estão vivos na natureza: nas águas e árvores. Os insetos e os pássaros são nossos vizinhos. E, com o que é vivo, pode-se conversar, basta decifrar a língua em que eles – os bichos e plantas – se expressam, se comunicam. Isso não é fácil, mas não é impossível.
O conceito tradicional de museu está invertido. A floresta não está no museu. É o museu que vai à floresta. Queremos levar visitantes e estudantes para dentro da floresta e oferecer-lhes as lentes, as explicações e os amplificadores neces-sários para tornar mais aguda a percep-ção de seus sentidos e mais divertida a “conversa” com os bichos.
O Musa2 é uma iniciativa da Secre-taria de Ciência e Tecnologia (Sect) e da
Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Conta com apoio do Instituto Na-cional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) do Ministério da Ciência e da Tecnologia (MCT), da Fundação de Amparo à Pes-quisa do Estado do Amazonas (Fapeam), da Secretaria do Estado de Educação do Amazonas (Seduc) e da Secretaria de Pla-nejamento e Desenvolvimento do Estado do Amazonas (Seplan-AM).
Queremos, também, criar um aquário com peixes dos rios Negro, Madeira e Solimões. Um aquário que ofereça a pos-sibilidade de ver e também ouvir botos conversando, peixes-boi, peixes-elétricos “protestando”. Sapos e jacarés entrando e saindo da água.
Queremos mostrar ao público visi-tante como os bichos nos vêem, e enten-der como eles vêem e sentem a floresta. Isso, certamente, estabelecerá um laço de afetividade humana entre humanos e não-humanos.
Tentaremos repetir o que, há séculos, os povos da floresta fazem com grande sucesso. Se eles conseguiram viver na flo-resta, retirar dela seu sustento sem des-truí-la, se alimentar e viver junto aos bi-chos e às plantas, temos de aprender com eles quais são os segredos dessa arte.
com cultura e arte. Muitas vezes, essa é uma tarefa difícil de se realizar na escola por falta de estrutura, laboratórios, instrumentos e con-dições para realizar experimentos e observa-ções dos fatos da natureza, do mundo bioló-gico e físico, das estrelas do céu e da vida do microcosmo. Oficinas como essa, associadas ao Musa, deveriam ser instaladas em todos os municípios, com diferentes características e vocações, de acordo com os interesses de cada comunidade.
Arqueologia e antropologia poderiam ser os principais interesses de uma comuni-dade; pesca e vida na água, astronomia e geo-logia em outra, ou ainda todas juntas. Temos certeza de que ampliando as oportunidades de educação, bem aproveitando todos os talen-tos de jovens e adolescentes, poderemos cons-truir um futuro alegre e criativo para o povo da nossa terra.
Precisamos, para tanto, dar valor ao saber prático, tão caro aos povos da floresta, que deve caminhar lado a lado com o saber abstrato, conceitual. Entrar e sair da floresta requer um apurado e educado olfato, olhar perspicaz, boa memória e ouvido atento.
São habilidades que, hoje, não encontram mestres nas escolas. Seria muito importante dar a essas habilidades, a esses conhecimen-tos práticos, a devida atenção em nossa edu-cação. Aqui ou em qualquer parte. Fala-se muito, hoje em dia, em inovação, mas a curio-sidade que alimenta a criatividade e a inova-ção não encontra nos bancos escolares a de-vida atenção. A educação esquece que a imaginação e a inovação são filhas diletas dos cinco sentidos.
Nosso objetivo principal, o mote do Musa, é “educar para a diversidade” e, na diver-sidade, “viver juntos”. Diversidade de culturas, histórias e ambientes em que vivemos, dos com-portamentos humanos e não-humanos. “Viver juntos” nas comunidades, nas florestas e nas águas. Um “viver juntos” que é também dos diferentes saberes.
Precisamos trabalhar muito para que a natureza e a cultura, a língua de cada um de nós, dos bichos e das plantas que nos cer-cam sejam entendidas, não apenas conserva-das, mas também praticaconserva-das, e sirvam, assim, para nos aproximar mais e mais, solidários, nesta terra.