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Constantin Nóica - As Seis Doenças do Espírito Humano

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BIBLIOTECA DE FILOSOFIA DO INSTITUTO BRASILEIRO DE HUMANIDADES

Constantin NÓICA

As Seis Doenças

do Espírito Humano

Tradução

FERNANDO KLABIN E ELENA SBURLEA INTRODUÇÃO E REVISÃO TÉCNICA

OLAVO DE CARVALHO

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Fernando Klabin e Elena Sburlea ... 1

Introdução e revisão técnica ... 1

Olavo de Carvalho ... 1

INTRODUÇÃO ... 5

I. O QUADRO DAS SEIS DOENÇAS ... 7

[DOENÇAS PROVENIENTES DA CARÊNCIA] ... 7

[1. Carência do individual] ... 7

[2. Carência do geral]... 8

[3. Carência de determinações] ... 8

[DOENÇAS PROVENIENTES DA RECUSA] ... 8

1. Dom Juan e a recusa do geral ... 9

2. Tolstói e a recusa do individual ... 9

3. Godot e a recusa das determinações ... 10

AS SEIS DOENÇAS ... 10 II. CATOLITE ... 12 III. TODETITE ... 17 IV. HORETITE ... 22 V. AHORETIA ... 26 VI. ATODETIA ... 32 VII. ACATOLIA ... 38 VIII. O EQUILÍBRIO DO TEMPO E O ESPÍRITO ROMENO 42

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AS SEIS DOENÇA

S DO ESPÍRITO

Causa imediata RECUSA C

A R Ê N C I A Necessidade não atendida 

DOENÇA EXEMPLO DOENÇA EXEMPLO

Generalidade 1. Acatolia D. Juan 4. Catolite

Individualidade 2. Atodecia Tolstoi 5. Todetite

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INTRODUÇÃO

Olavo de Carvalho

“No desdeñéis la palabra, poeta. El mundo es ruidoso

y mudo: sólo Dios habla.”

ANTONIO MACHADO

á um humorismo sutil, meditativo e extravagante, na idéia de nomear os mais sublimes padecimentos do espírito com neologismos técnicos, de composição grega, que parecem diretamente extraídos de um tratado de patologia clínica. Pois é exatamente isso o que espera o leitor nas páginas que se seguem. Constantin Noïca, o mais célebre dos filósofos romenos, empreende aqui uma patologia do espírito, não no sentido prático e clínico com que enfrentou matéria análoga o eminente psiquiatra Viktor Frankl, mas num sentido analítico e descritivo que subentende uma anatomia – uma esquemática estrutural – do espírito humano, isto é, uma antropologia filosófica, e se prolonga, quase que naturalmente, numa anatomia e patologia geral do ser: vale dizer, numa metafísica geral. É muita coisa para um livro tão breve, dirão alguns. Mais estranho ainda é que todo esse mundo de intuições fundamentais possa caber na simplicidade esquemática da metáfora médica que resume a sua fórmula: três necessidades espirituais básicas, duas orientações possíveis no modo de atendê-las ou desatendê-las, seis moléstias essenciais possíveis, resultando dessa multiplicação e combinando-se em dosagens infinitamente variadas – como as seis

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linhas de um hexagrama do I Ching – para produzir toda a trama da nossa desgraça e da nossa redenção.

Tudo isso é, de fato, muito extravagante. Mais que extravagante: é romeno. O leitor talvez não saiba o que é um romeno. É um descendente de um antigo povo de camponeses orgulhosos e aristocráticos, fortemente apegados à sua liberdade e à sua fé religiosa e constantemente obrigados a suportar o jugo de invasores estrangeiros -- romanos, turcos, russos, alemães – que forçavam para lhes impor uma fé estranha e línguas estranhas. Sua língua traz as marcas das progressivas misturas. É uma estrutura latina preenchida de sons eslavos, árabes, turcos e germânicos. Sob o tacão do invasor sempre superior em número e em armas, esse povo aprendeu a astúcia. É proverbial a habilidade romena no comércio, na publicidade, no jornalismo – em tudo o que o homem pode fazer sem outra arma que não a palavra. Mas, enquanto desenvolvia as artes da adaptação a um mundo hostil, ele forçava, por dentro, para conservar sua identidade, sua religião, seu estilo de viver. A variedade alucinante das situações que atravessou não se reflete em nada, por exemplo, na sua arquitetura, de evolução notavelmente con-tínua ao longo dos séculos, com os mesmos adornos mitológicos e cristãos das cabanas de pastores do século X a repetir-se nos palacetes da era burguesa, sob uma casca de estilo francês fingidamente copiado para agradar o visitante. No século XX, esse povo, como todos os demais do Leste Europeu, contaminou-se a fundo nos dois maiores pecados da nossa época: o nazismo e o comunismo. Contaminou-se à força, levado por vizinhos poderosos, que o arrebataram na voragem dos grandes delírios. Mas, mesmo no meio desse turbilhão sangrento, ele buscava, quase extenuado, continuar fiel a si mesmo, impor às idéias estrangei-ras, mediante os mais excêntricos arranjos e improvisos, a marca da vontade nacional. Tentou cristianizar o fascismo, tentou nacionalizar o comunismo. Nas duas ocasiões, foi derrotado. É o que sempre acontece a quem se vê forçado a negociar com o mais forte. Quatro ditaduras

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num século, duas guerras, inumeráveis revoluções e golpes de Estado: a história romena, um quebra-cabeças que leva o estudioso estrangeiro ao desespero, reflete os movimentos alucinados de um povo que se debate como um peixe fisgado para escapar de um anzol, sabendo que outro anzol o espera mais adiante. O romance romeno mais famoso no exte-rior ainda é A Vigésima-Quinta Hora, de C. Virgil Gheorgiu: a odisséia de um homem simples perdido no vendaval do mundo, obrigado a vestir todos os uniformes, a jurar falso a todas as bandeiras, lutando para preservar um fundo de sinceridade na dobra mais oculta da consciência. Os romenos perderam tudo. Não poderiam apelar à consolação grandiloqüente dos franceses: Tout est perdu, sauf

l’honneur. Eles não vêem, de fato, honra alguma nos feitos bárbaros

da Guarda de Ferro, na corrupção sangrenta dos vinte e cinco anos da ditadura Ceaucescu. Eles têm uma memória terrível, conservam uma recordação deprimentemente exata de cada uma das vergonhas, de cada uma das farsas cruéis que o obrigaram a encenar. Eles perderam tudo, menos essa exatidão que se chama, precisamente, sinceridade

consigo próprios, a coragem de dizer a si mesmos verdades terríveis

que outros povos, em situação idêntica, ocultariam em proveito da boa auto-imagem nacional. Mas ser sincero consigo é o mais precioso dos bens. Quien habla sólo espera hablar a Dios un día. Eles perderam território, independência, riquezas e incontáveis vidas humanas, tudo enfim, menos a única coisa necessária – a primeira que tantos outros trocaram por um prato de lentilhas. Este é o segredo de duas características tão marcantes, que não se esperaria encontrar num povo tão sofrido e tão realista: um sereno bom-humor e um fundo de altivez que não tem nada a ver com orgulho nacional, pois emana de uma luz que não é deste mundo. É a altivez humilde do pecador que, sabendo-se redimido por uma força mais alta, não teme o olhar da malícia humana que busque acusá-lo daquilo que Deus já lhe perdoou.

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Ora, não há neste mundo coisa que pareça mais enigmática do que a simplicidade. E os romenos, que são o que são e sabem o que são, enxergam com resignado humorismo o papel de esquisitões que se reserva àqueles que não são compreendidos justamente porque falam as coisas como elas são. Não há povo talvez no universo que tenha mais que ele o senso da incongruência entre o exterior e o interior do homem, da impossibilidade de expressar a realidade nua e crua sem que ela acabe parecendo uma fantasia alucinada. O dadaísmo, não convém esquecer, é invenção romena. Também o é o teatro do absurdo. Não há coisa que um romeno considere mais divertida do que não ser compreendido quando está dizendo uma coisa perfeitamente óbvia e verdadeira.

Só a um romeno, portanto, ocorreria a idéia de expor a mais alta metafísica na forma literária de uma paródia da medicina. Esse povo tem o gênio da ambigüidade aparente a encobrir uma sinceridade profunda, que os brasileiros também têm, mas que nele se mescla a um toque de gravidade tragicômica que nos falta quase por completo1.

Quem leu Ionesco ou Cioran sabe que em certos trechos de suas obras é

rigorosamente impossível discernir se falam a sério ou brincando.

E é nessa faixa de indecisão e perplexidade que eles colocam o melhor, o mais profundo e o mais autêntico de uma visão romena do mundo.

Malgrado a comicidade quase alucinógena de algumas de suas expressões, seria inexato dizer que essa visão é irônica. A ironia pressupõe uma frieza, um distanciamento cerebrino, que pode ser, conforme a índole do escritor, natural ou defensiva. Mas nenhum dos

1

Quase, digo, porque o encontramos abundantemente em Machado de Assis. Mas muito falta para que a sutileza a um tempo amarga e resignada do maior dos nossos escritores se integre na consciência comum, mesmo das classes letradas, e nos nossos usos e costumes literários. [N.E.]

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grandes escritores romenos dá o menor sinal de ser indiferente aos sofrimentos humanos ou de pretender defender-se deles mediante um artifício intelectual, seja o da ironia, seja qualquer outro. Ao contrário, eles não apenas assumem o sofrimento e o absurdo da vida com plena consciência da fatuidade desses artifícios, como também procuram expressá-lo da maneira mais franca, direta e literal. É precisamente desta franqueza que brota, quase paradoxalmente, o efeito cômico, quando o sofrimento descrito, chegando aos últimos limites da opressão e do nonsense, ultrapassa o dom das lágrimas e se converte em riso. Mas seria igualmente inexato dizer que é um riso sinistro, diabólico. Pois a gargalhada de Satanás é a última palavra após a sentença terrível que condena o homem à perda do dom da fala. Asura, “demônio” em língua sânscrita, quer dizer: “criatura desprovida do dom da fala”. É natural, pois, que o Adversário aspire, acima de tudo, a desprover sua vítima daquela capacidade de dar nome às coisas, que a fez com justo orgulho e exata modéstia definir-se a si mesma como

zoon logistikon, o bicho que fala. Entre os condenados, com efeito,

não ouve Dante conversações em língua de gente, mas tão somente

orribile favelle, gritos e gemidos animalescos que expressam sem

nomear, que quanto mais ressoam menos dizem, impotentes para, objetivando a dor, transfigurá-la em consciência, prenúncio da liberdade. Mas, nos livros romenos, o homem recusa a mordaça diabólica: ele continua falando e falando, muito além do ponto em que o eterno Adversário poderia julgar ter-lhe imposto, mediante sofrimentos e absurdidades indizíveis, a impossibilidade de dizer. E o que é que eles dizem? À primeira audição, é uma conversa estranha, um arrazoado fantástico de incongruências e extravagâncias. Ouvindo com mais atenção, notamos que esse jogo de enxadristas doidos tem um método, um propósito, visa com maquiavélica premeditação a um alvo preciso e determinado: o que eles buscam expressar – e não raro o conseguem  é justamente a idéia, a estrutura interna, a equação lógica do absurdo, o

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qual, sem deixar de ser absurdo, jaz assim derrotado aos pés da inteligência humana tão logo formulado em todo o grotesco do seu conteúdo eidético impossível. Forse tu non pensavi ch’io loico

fossi!, exclama o demônio ao perplexo visitante florentino: “Não

imaginavas que eu também fosse lógico!” Mas os romenos, estes sim, o imaginavam, e entregaram-se com apaixonado afã à mais improvável das tarefas: decifrar a lógica demoníaca, sistematizar em silogismos a fórmula do jogo sujo universal, que, uma vez exposto à luz do dia, jaz morto e se transfigura num monumentum aere perennius ao dom divino da linguagem humana. Eis por que os livros de Cioran, de Ionesco e este que se vai ler agora, têm esta paradoxal e incon-fundivelmente romena propriedade de, justamente quando mais nos oprimem com a visão do intolerável, nos libertar de súbito, nos infundir uma luminosidade calma e soberana e nos elevar às portas de um reino angélico de contemplação e sabedoria. Eles celebram a vitória da linguagem sobre o mutismo ruidoso do mundo satânico. O jogo de excêntricos amalucados revela assim sua verdadeira natureza, a missão secreta desses anjos disfarçados em palhaços: é o divinum opus da cura pela palavra.

Se a metafísica de Noïca aparece portanto em trajes de medicina, sabendo da comicidade da situação, é porque por dentro está consciente de uma comicidade mais profunda ainda: o disfarce é a realidade, a metafísica de Noïca é medicina no seu mais alto e autêntico sentido. A coisa mais inacreditável do mundo é que as coisas sejam

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AS SEIS DOENÇAS

DO ESPÍRITO HUMANO

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I. O QUADRO DAS SEIS DOENÇAS

o lado das doenças somáticas, que conhecemos há séculos, e das doenças psíquicas, identificadas mais recentemente, deve existir outras, de ordem superior, às quais chamaremos doenças do espírito. Nenhuma neurose poderia explicar o desespero do Eclesiastes, o sentimento do nosso exílio na terra ou da nossa alienação, o tédio metafísico, a consciência do vazio e do absurdo, a hipertrofia do eu ou a revolta sem objetivo; nenhuma psicose poderia explicar o “furor” econômico ou político, a arte abstrata, o “demonismo” técnico, ou talvez aquele formalismo extremo que hoje em dia, em todos os domínios da cultura, consagra o primado da exatidão sobre a verdade.

Incontestavelmente, de algumas dessas tendências, se não de todas, nasceram e continuam a nascer grandes obras: nem por isso deixam de ser grandes desregramentos do espírito. No entanto, diversamente das doenças somáticas, que são acidentais (a morte mesma, dizem, é um acidente na ordem dos seres vivos), e das doenças psíquicas, que de certo modo são contingentes e necessárias ao mesmo tempo, as doenças do espírito parecem revestir-se de uma natureza

constitucional.

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[DOENÇAS PROVENIENTES DA CARÊNCIA] Desejaríamos, nas páginas que se seguem, mostrar que essas doenças do espírito são, na realidade, doenças do ser, doenças ônticas  e que é isto mesmo que as torna, à diferença das outras doenças citadas, doenças verdadeiramente constitutivas do homem: pois se o corpo e a alma também participam do ser, só o espírito pode, em contrapartida, refleti-lo plenamente e dar conta de sua força ou de sua precariedade. E o ser também pode, ele mesmo,

cair doente; se então ele é afetado nas coisas viventes ou

inanimadas, estas permanecem secretamente bloqueadas por uma dessas doenças, que no entanto se dissimulam por trás da aparente estabilidade das coisas; mas se é atingido no homem, este último, graças à sua instabilidade superior, revela sua doença à plena luz do dia.

Por outro lado, o ser pode ainda revelar-se falso. Suponhamos que um cientista descubra o meio de prolongar indefinidamente a vida e que ele ponha sua descoberta a serviço da humanidade: após render-lhe homenagem, de-veríamos levá-lo a julgamento. Seu crime seria o de ter

fal-sificado um valor, isto é, o ser. Com efeito, assim como o

dinheiro é tentação para os moedeiros falsos, outros valores

 o verdadeiro, o belo e, acima de tudo, o bem  podem, eles também, ser uma tentação para os falsários. (Neste sentido, aliás, toda uma parte da técnica poderia, hoje, ser acusada de falsificar, mediante bens inúteis, a idéia mesma do Bem.) Na medida em que o ser é um valor  senão “o” valor  no seio do real, ele pode portanto ser falsificado.

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Tal como um moedeiro falso a forjar sua moeda falsa, nosso cientista nos teria proposto o falso ser.

Mas é altamente improvável suspeitarmos da falsidade do ser  como da de uma moeda , e nosso falsário teria todas as chances de permanecer impune. Ao contrário, apressar-nos-íamos em tirar proveito dessa contrafação, na esperança de dar enfim sentido e plenitude ôntica à nossa existência, a qual, dentro de seus limites humanos, não realiza senão imperfeitamente o seu ser. Em outros termos: mediante essa contrafação  que não deixa de nos recordar a existência da ameba, cuja duração de vida ultrapassa a de todas as existências terrestres , desejaríamos compensar todo a nossa carência de ser.

Mas pode ser também que essa dilatação da nossa vida no tempo nos permita enfim, pela primeira vez, tomar consciência de nossa carência de ser. Não temos (como o diz tão bem E. Ionesco em Le roi se meurt) o direito de pedir o prolongamento de uma existência tão irremediavelmente afetada de anemia crônica, talvez de verdadeira hemofilia espiritual; não nos é lícito receber o dom desse pro-longamento. Em contrapartida, quando tivéssemos com-preendido que a eternidade não é condição suficiente para realizar o ser  e será ela aliás condição necessária? , poderíamos enfim nos perguntar se é mesmo na consciência de sua natureza “perecível” (tão incriminada) que se deve buscar a causa que faz do homem esse “animal doente” por excelência que nele já se reconheceu. Veríamos então, para além de sua doença “crônica”  se é que chega a ser uma doença o fato de ter sua quota medida no tempo , perfilarem-se as verdadeiras doenças do homem, ser nascido no tempo e que não encontra sua medida no tempo.

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[1.CARÊNCIA DO INDIVIDUAL]

Embora esteja bem claro que o prolongamento indefinido da vida não foi senão um exemplo extremo, destinado a pôr em evidência as carências do ser no homem, escolheremos agora um outro, menos estranho, que poderá nos concernir a todos, no futuro. Algumas doenças ônticas, que no homem se traduzem por doenças do espírito, se manifestarão bem mais claramente assim que o homem tiver permanecido por um tempo suficientemente longo em estações espaciais, como já se previu que o fará. Faltará a esse novo homem algo que nos aparece logo de entrada como um elemento essencial na realização do nosso ser: a

individualidade. Esse homem irá, como todos, respirar, mas o

ar que ele irá respirar será condicionado e “geral”, não este determinado ar da sua terra, cujo odor ele tão bem sabia reconhecer; ele se alimentará, por certo, mas, aí também, de substâncias gerais; ele se esforçará, como sempre, na via do conhecimento, mas se interessará antes pelas essências do que pelas realidades particulares; e se alguma planta ainda o puder deslumbrar, ela terá certamente brotado numa estufa. Em parte alguma do cosmos ele reencontrará aquela realidade individual, o sabor particular de “esta coisa aqui”, o

tode-ti do filósofo grego, cuja ausência nos faz sofrer bem

mais do que a imperfeição. Nem ele nem as coisas que o rodeiam terão mais realidade particular. Por isto ele deverá, de tempos em tempos, voltar à Terra para curar sua todetite.

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[2.CARÊNCIA DO GERAL]

Mas doentes afetados de todetite já podem ser encontrados, e aliás sempre se encontraram, entre as grandes naturezas teoréticas: os heróis de Dostoiévski, em Os

Demônios, por exemplo — ou certos heróis de Thomas Mann

—, dos quais a sociedade real fornece generosamente os modelos. Mesmo Platão sofria disso, de tempos em tempos, em sua obstinação — que se pervertia em obsessão – de querer plantar o cenário de sua sociedade ideal naquela pobre cidade de Siracusa. Pode ser, no entanto, que, à medida que a visão teórica e a programação venham a impor seu primado num futuro próximo, a todetite (a necessidade de encontrar o individual autêntico) se dissemine cada vez mais no nosso mundo. No momento, ainda é mais freqüente a doença que de certo modo lhe é oposta; doença na qual o sofrimento não vem da carência do individual, mas, ao contrário, da do geral. Se apelarmos de novo à língua grega, o “geral”, kathalou, lhe dará seu nome: catolite.

Num certo sentido, a catolite é mesmo a doença espiritual típica do ser humano, tão atormentado pela obsessão de se elevar a uma forma de universalidade. Quando, por um gesto elementar de lucidez, o homem desperta da hipnose dos sentidos comuns que ordinariamente o manobram — no interesse, aliás, da espécie e da sociedade —, ele busca por todos os meios curar, de sua amargura de ser, uma simples existência individual sem qualquer significação de ordem geral. Então ele busca, mediante a maior parte de seus engajamentos deliberados, apoderar-se dos sentidos gerais. Com muita

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freqüência ele cai na armadilha dos sentidos prontos (como as “ideologias” do seu tempo) que não são senão falsos remédios, impotentes para curar seu mal em profundidade. Por isto, desde que o homem  mesmo o mais medíocre  prolongue seu gesto de lucidez por tempo suficientemente longo para perceber a futilidade do geral ao qual se devotou, sua catolite retoma toda a sua virulência.

A literatura  traduza-se: a vida  é, ainda desta vez, rica em exemplos. Em seu Journal de Salavin, Georges Duhamel descreve a confusão de um homem comum, in-capaz de encontrar, em sua mediocridade, recursos sufici-entes para elevar-se a um sentido geral, e que decide então se tornar  simplesmente  um santo. A catolite, latente em cada um de nós, é aqui deliberadamente ativada e apresenta, no coração mesmo do desastre que ela acarreta, uma evolução excepcionalmente rigorosa e serena: pro-gressivamente, o herói se afasta da sociedade, da família, da vida cotidiana, enfim da vida tout court, sob a plácida alucinação daquela ordem geral que essas realidades não poderiam conter. A mesma doença, em contrapartida, as-sume uma forma histérica em César Birotteau, o herói bal-zaquiano que ela precipita nas convulsões patéticas da sua confrontação ilusória  na sua escala de homem comum  com Napoleão. (É por essa confrontação com um destino que lhe parece da mais alta generalidade que o herói espera, na realidade, chegar por sua vez a um nível de afirmação mais geral.) Temos aí como que dois extremos patológicos da catolite, mas que parecem enquadrar toda uma gradação de formas, variadas e nuançadas, dessa doença que nos espreita a todos, seres desprovidos do geral.

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[3.CARÊNCIA DE DETERMINAÇÕES]

E, ao lado da catolite e da todetite, vem ainda nos ator-mentar uma terceira doença, também ela proveniente das profundezas do nosso ser espiritual. A ausência de um sen-tido geral adequado, na catolite, e a de uma realidade indi-vidual, na todetite, não podem, por si, dar conta de todas as crises espirituais do homem. Além de um geral e de um individual, o ser tem também, para se realizar, necessidade de determinações adequadas, isto é, de manifestações que possam se harmonizar tanto com sua realidade individual como com o sentido geral a que tende. E, já que a doença é provocada pela impossibilidade de obter tais determinações, poder-se-ia denominá-la horetite, tendo em mente o grego

horos, que significa “termo”, “determinação”. Esta doença

exprimiria então os tormentos e a exasperação do homem por não poder agir de acordo com seu próprio pensamento e suas convicções. O caso mais extraordinário de horetite, na cultura européia, é Dom Quixote. Toda a busca patética do herói espanhol, que com tanta pertinência escolheu a função de “cavaleiro errante”, é uma busca de determinações; estas lhe serão recusadas, primeiro, em sua verdade, quando ele as inventa por si mesmo na primeira parte da narrativa (não são senão moinhos de vento e rebanhos de carneiros); depois, em sua realidade, na segunda parte, onde tudo é fingimento e fabulação maliciosa de outrém.

Mas, como a catolite, a horetite pode, ela também, revestir formas menos violentas e manifestar-se por uma

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se-rena  e inútil  espera das determinações adequadas. É semelhante existência que nos pinta um autor contempo-râneo, Dino Buzzati, no seu romance O Deserto dos Tártaros: seu herói vai se deixar, ao longo dos anos, literalmente cair doente de horetite, instalando-se como oficial na espera passiva de um incerto combate, em algum lugar num posto de fronteira, contra um inimigo desconhecido. Por fim, seu único verdadeiro inimigo será a morte, essa última de-terminação que se apodera da vida dos homens, desprovida, como tão freqüentemente acontece, de determinações significativas. E aqui também, entre esses dois extremos patológicos do mal, podem-se escalonar todas as formas da

horetite, a terceira doença espiritual do homem.

Acreditamos ter podido identificar, nas páginas precedentes, três doenças espirituais, que refletem, no homem, as carências possíveis dos termos do ser: geral, individual, determinações. Tal como numa outra medicina

 e não sem sorrir , foi-nos preciso dar-lhes nomes. Mas como não lhes dar nomes, se elas se manifestam tão claramente no homem e, mui certamente  enquanto “situações” do ser , também nas coisas?

[DOENÇAS PROVENIENTES DA RECUSA]

Todavia, a lista das doenças de ordem superior não está ainda encerrada. Três outros grandes desregramentos se nos apresentam, segundo nos parece, provenientes já não da carência, mas da recusa, no homem  sinônimo de inaptidão, nas coisas , de um dos três termos do ser. E, já que as três primeiras doenças receberam nomes, não iremos privar deles estas três recém-chegadas no repertório patológico do ser e

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do espírito. Tendo em conta o seu aspecto privativo, vamos chamá-las: acatolia, atodecia e aorecia. Comparadas às primeiras, elas parecerão, à primeira vista, um pouco mais estranhas: por isto, vamos deixá-las à vontade para que se apresentem por si mesmas, através de suas manifestações no homem. E como a cultura é o espelho ampliador da nossa vida espiritual, escolheremos, também desta vez, ilustrá-las por meio de três criações literárias.

1.DOM JUAN E A RECUSA DO GERAL

Tomemos o caso de Dom Juan: não há talvez um melhor para ilustrar a acatolia. Com Dom Juan, estamos ante um destino-limite, ante um ser que rejeita categoricamente o geral, até que este se apresente a ele como uma simples estátua de pedra. Em tal destino parece-nos poder ler, num livro aberto, os sintomas dessa primeira doença do espírito.

Dom Juan encarna plenamente o primeiro termo do ser, o individual, pois ele é uma “individualidade” no sentido forte do termo, isto é, um ser humano que conseguiu se destacar da inércia das generalidades comuns. E, não o es-queçamos, os homens, como as coisas, não são na maioria senão realidades particulares  e não individuais : simples casos particulares da espécie e da sociedade.

Dom Juan soube, portanto, libertar-se da inércia de uma ordem estabelecida e forjar seu próprio destino. Ele pretende não mais deixar-se comandar pelas verdades (pelos preconceitos) da sociedade e da religião. Ele é libertino e libertário, ele age como bem lhe parece. É neste sentido que ele adquiriu já sua individualidade, o que não quer dizer sua

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deveria agora abrir-se a uma ordem diferente e que lhe fosse própria. Mas Dom Juan não se abre deliberadamente a nada. Ele permanece um “individual” absoluto, o homem do diabo, como no-lo diz Sganarello na versão de Molière, isto é, aquele que está condenado à recusa do geral.

Destacado e como que suspenso acima dos fluxos da existência comum, o individual absoluto não se deixa, no entanto, flutuar ao acaso; é ele mesmo quem se dá doravante suas próprias determinações, é ele só quem tem a iniciativa dos acontecimentos que vão modelar seu destino. Um libertino como Dom Juan, em conseqüência, coloca igualmente em jogo o segundo termo do ser, pois o libertino é aquele que se dá a si mesmo determinações livres.

Mesmo se o Dom Juan de Molière não se atém, na verdade, à conta das “mille e trè” determinações  as mil e três conquistas amorosas , ele todavia coloca em jogo uma infinitude potencial delas e faz, diante de Sganarello, uma sutil exposição da teoria da necessária infidelidade a todo amor terrestre. É verdade que, bem antes de Molière, um outro já tinha feito essa teoria: Platão. Só que, enquanto no filósofo a infidelidade a uma só ou a uma multidão de encarnações do belo era uma ascensão à Idéia do Belo, isto é, a um geral que conteria todas as determinações doravante ultrapassadas, em Dom Juan a infidelidade permanece cega e fechada a toda ultrapassagem. O herói quer simplesmente “fazer justiça” à beleza particular de cada uma das mulheres que encontra; ele não sabe fazer justiça à beleza tout court, isto é, ao geral. Ele ama a conquista amorosa em si mesma, pelo só prazer dos “pequenos progressos” que a cada dia ele faz no empenho de “forçar as resistências”, e isto lhe basta para se julgar à altura dos grandes conquistadores. Ele sente

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orgulho em subjugar, à sua maneira, a Terra inteira... e deixa escapar a frase que trai seu desequilíbrio: ele desejaria, como Alexandre, que houvesse outros mundos, – é o que diz –para poder lá estender suas conquistas até o infinito.

Estando, portanto, de posse dos dois primeiros termos do ser, Dom Juan recusa o terceiro: o geral. Só que, da sua recusa, eis que surge o “mau infinito” de que fala Hegel: o infinito do “de novo e de novo”. É ele que vai aniquilar o herói, pois é ele que aniquila tudo o que é simples repetição de si e retorno do mesmo. No fundo, não há nenhuma necessidade da condenação moral nem do castigo celeste que evocam Sganarello, Dom Luís e Elvira. A queda no mau infinito das determinações é, em si, punição suficiente.

Mas se essa desventura do ser  cair no mau infinito

 é a sorte tanto dos humanos quanto do resto dos viventes, o que, em contrapartida, está reservado somente ao homem no destino de Dom Juan é seu sentimento de

culpabilidade; não tanto a culpabilidade de contravir às leis

terrestres ou celestes, isto é, a um geral determinado, quanto a de ter recusado o geral enquanto tal.

É interessante notar que, diversamente de seus precursores espanhóis ou italianos, que acentuam o castigo divino, Molière parece propor-nos ele mesmo essa outra interpretação: com efeito, logo de início  desde a entrada do herói em cena , a peça concentra-se em torno da confrontação com o geral inerte que é o “Convidado de pedra”. Dom Juan vive seus últimos dias: o mecanismo das determinações já começou a se desarranjar, por falta de um sentido geral. O herói não parece mais regozijar-se com seus “pequenos progressos”  dos quais no entanto continua a

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se gabar ; ele não exerce mais sua arte sutil sobre vítimas de eleição, e já não usa senão da sedução rasa do pedido de casamento. Com meios mais sutis, Dom Juan teria talvez continuado a fascinar um criado como Sganarello; por sua desordem, que nenhum refinamento, talvez nenhum gozo

 mesmo frusto  vêm compensar, ele já não consegue senão exasperá-lo. A desordem engendrada por Dom Juan reflete-se aliás fielmente na desordem do discurso de Sganarello, que, agora, quer desesperadamente reconduzir seu patrão ao bom caminho.

É aqui, no meio da peça  em campo aberto, ou, em suma, não importa onde , que surge a estátua do Comandante, o pai de Elvira, que Dom Juan havia matado, tanto é verdade que a generalidade inerte pode aparecer em qualquer lugar. À desordem vem assim opor-se a ordem mais baixa, a ordem do inanimado. Ela, ao menos, deveria acalmar a fúria das manifestações donjuanescas desprovidas de sentido. Os apelos ao arrependimento, renovados por todos os outros personagens  Dom Luís, Elvira, o irmão dela quando Dom Juan lhe salva por acaso a vida , parecem ser outras tantas advertências enviadas pela estátua. Quanto a Sganarello, não sente ele mesmo a evidente advertência do geral, ao perguntar a seu patrão: “Não vos rendeis à surpreendente maravilha dessa estátua movente e falante”? Mas Dom Juan responde: “Há realmente alguma coisa aí dentro que eu não compreendo; mas, o que quer que seja, não é capaz nem de convencer meu espírito, nem de abalar minha alma.” Que o nada possa falar em nome da ordem, quando não se soube encontrar uma melhor, eis, na verdade, o que Dom Juan não soube compreender.

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No entanto, a desordem absoluta não aparece no próprio Dom Juan, pois o herói sabe se dominar e bravatear: ela aparece, em contrapartida, no último ato, na cena II, no espírito de Sganarello, cujo pensamento agora se perde num delírio argumentativo: “O homem está neste mundo como o pássaro no galho; o galho está ligado à árvore; quem fica ligado à árvore segue bons preceitos” e assim continua, loucamente, até a conclusão, que é no entanto justa, ainda que sem relação com o raciocínio: “Em conseqüencia, sereis danado por todos os diabos”. É neste momento preciso que faz sua aparição final o Comandante  o sentido geral exterior; ele está lá para trazer o não-ser a um mundo que se recusou tão obstinadamente a se abrir ao ser. Ele assume de início a forma de um espectro de mulher velada, símbolo anunciador da morte: “Dom Juan já não tem mais que um momento”, diz a aparição. Em seguida, o espectro muda de aparência, como para se aproximar da imagem da inércia última: ele é o Tempo vazio com sua foice, e não diz mais nada. Surge enfim o Convidado de pedra, a estátua mesma do Comandante, que toma o herói pela mão. Ao contato da pedra, Dom Juan sente enfim o fogo devastador que o aniquilará.

Nas versões anteriores, espanholas ou italianas, a peça era intitulada O Convidado de Pedra. É certo que, de um ponto de vista artístico, a versão de Molière lhes é superior; mas esse não é talvez o caso do título; pois o “Convidado” encerra, com efeito, o admirável pensamento do geral que o homem se empenha por vezes em enfrentar e que ele não tolera senão como simples conviva, quando seu verdadeiro lugar seria o do dono da casa.

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A acatolia é a doença do escravo humano que ignora todos os seus mestres, inclusive seu mestre interior.

2.TOLSTÓI E A RECUSA DO INDIVIDUAL

Comparada à acatolia, que, com suas recusas provocadoras, exacerba a individualidade, a atodecia manifesta-se com menos violência, pois põe à frente o geral, cujas resistências são mais discretas. Doravante, será em nome do geral, isto é, em nome de uma entidade ou de uma lei, que virá a recusa; estranha ao desafio  que em Dom Juan se confundia com a revolta , a recusa atodécica toma ora a forma da compaixão para com o mundo inteiro, ora a da indiferença para com tudo o que é humano e individual. Se nos é permitido ver na acatolia o mal característico do nosso mundo europeu, onde primam as individualidades, a atodecia será, por sua vez, característica do mundo asiático. Em todo caso, o autor que se encarregou de descrevê-la, talvez de viver em si mesmo a recusa do individual, tinha algo de ambos: trata-se de Tolstói.

O comum dos mortais, diz Tolstói, ignora que todo ato e toda manifestação dependem de leis que desprezam as individualidades, ainda que da estatura de um Napoleão. Na

acatolia, era o retorno do geral aviltado que arrastava o

indivíduo à perdição; na atodecia é o individual que é desprezado e é a ele que cabe, na sua terrível vingança, a tarefa de desprover o homem atodécico de seu lugar, de sua identidade e de seus fundamentos. Mas nem a atodecia nem a

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que as refletem. Tanto Dom Juan quanto Guerra e Paz, o romance de Tolstoi que ilustra tão bem, a nosso ver, esta segunda doença, parecem, ao contrário, ter obtido do mal do homem um acréscimo de sua tensão interna, e  semelhantes nisto a todas as criações artísticas  se expandem ao contato das paixões e dos desregramentos humanos. Tolstoi, ele próprio e só ele próprio pessoalmente, sofreu do seu mal, pois a atodecia o impediu de realizar sua vida e seu ideal. Sua obra, em contrapartida, teoriza a atodecia, e isto a despeito de que, enquanto obra, venha necessariamente a desmenti-la.

A recusa do individual domina todo o romance, e isto desde a primeira cena, a recepção nos salões de Anna Pavlovna Scherer. Todos os personagens que aí fazem sua entrada  com a exceção de Pedro Bezukhov, cuja autenticidade é indispensável ao autor, como eixo central da narrativa  trazem no seu ser a marca de uma sociedade bem estabelecida em suas modalidades gerais e que não pretende mais fazer concessões às autenticidades individuais de uns e outros. Tolstoi, o artista, se proíbe, certamente, de reduzir sistematicamente seus personagens a simples “figuras típicas”: em contrapartida, o atodécico nele saberá colocá-los em situações típicas, ou  quando ameaçam escapar, em sua verdade vivente, ao controle do geral e transformar-se em sedutoras individualidades , reduzi-los ao silêncio. Os grandes e os humildes sofrem com isso, lado a lado: Napoleão e o tzar russo, pelos primeiros, Platão Karataev, o “tipo” do camponês russo, pelos segundos. Entre esses dois extremos, todos os personagens deixam ouvir o ronco surdo de suas pulsações de vida e de autenticidade reprimidas; mas,

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a cada vez, o discurso de um sentido geral procura  e consegue, com muita freqüência  deter sua eclosão2.

Para esse efeito, uma das funções-chave dos herói, e em geral de todos os personagens lúcidos, é a de ressentir a vaidade dos seres, a deles próprios como a dos outros. Em Austerlitz, Andrei Bolkonski, gravemente ferido no campo de batalha, percebe Napoleão a contemplar o teatro da sua vitória e se diz que o Imperador não é senão um nada em face da imensidão do céu. No dia seguinte, quando é transportado entre os feridos de uma certa patente, e revê o Imperador, tem de novo a mesma revelação da “vaidade das grandezas”. A vaga, ou antes, o refluxo do geral varre assim, impiedosamente, tudo aquilo que ao longo das páginas tentara obter um contorno individual. E como se, apesar de tudo, a obra arriscasse ainda desmentir a atodecia do autor, Tolstói, num apêndice, se dá uma vez mais o trabalho de afirmar a vaidade do individual.

O que é que verdadeiramente é?, pergunta-se ele. Qual é realmente o ser da história, ou, em termos mais claros, qual é a força que faz com que na história – e, em conseqüência, na narração histórica – as coisas tenham um sentido e uma consistência, tal é a questão essencial que coloca, sem nenhuma ambigüidade, o “Posfácio” do romance. Com muita freqüência, a nosso ver, as ambições

2

Nota-se hoje em dia a mesma coisa nos personagens de Soljenítsin, em O Pavilhão dos Cancerosos, por exemplo. No instante mesmo em que parecem ao ponto de se abrir à autenticidade e à vida, o autor, sob a pressão de suas intenções demonstrativas de ordem geral, os impede de fazê-lo. Como Tolstoi, Soljenítsin parece-nos sofrer de atodecia. [N.A.]

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teóricas de Tolstói foram encaradas com aquela espécie de indulgência que só uma fraqueza da obra poderia merecer, e o foram mesmo quando se reconhecia que o visionário e enfim o profeta que ele se tornou tinham sido, nele, solidários do artista. É no entanto difícil não ver em todas essas digressões teóricas a probidade profunda do autor; e é ainda mais difícil, na perspectiva da atodecia, a qual, enquanto doença constitucional do homem, aparece de maneira tão flagrante na sua visão de profeta, não sentir que sua teoria tem algo de tão perturbador quanto sua obra mesma.

Não vamos insistir no fato de que, por definição, a arte põe em jogo o individual; de que ela talvez represente, no fundo, a conversão das determinações do individual no sentido do geral; nem de que sua virtude é de arrarcar às coisas à sua “catá-strofe” e de salvá-las, por uma espécie de “aná-strofe”, da queda e do aniquilamento: é natural, aí, que Tolstói não tenha podido se impedir de salvá-las, a despeito de seus discursos sobre a vaidade delas. Em contrapartida, faremos observar que sua lucidez teórica pôde ser, às vezes, tão surpreendente e tão sedutora quanto sua inspiração artística, mesmo se, por outros aspectos, parece ir de encontro a esta última.

“Apreender diretamente a vida – escreve Tolstói no ‘Posfácio’ –, ainda que fosse a de um só povo, a fim de descrevê-la, eis algo impossível.” Ninguém poderia, com efeito, encontrar todas as determinações dessa imensa realidade individual que é um povo, como ninguém poderia dizer qual é a força que põe os povos em marcha. Com efeito, qual é a força, qual a lei, qual a razão interna que cria a história? Não se pode mais, doravante, invocar a vontade divina, dizem; a vontade das massas também não, pois não

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encontra jamais sua expressão justa. Quanto à obra dos heróis e das grandes personalidades que os novos historiadores põem à frente, em lugar da vontade divina, não poderia ser o caso uma vez que se viu neles o humano, demasiado humano, tal como ele, Tolstói, fez com o o tzar Alexandre ou com Napoleão. Sob o impulso de sua alma aberta à humanidade inteira, Tolstói vê a história como um produto de todos.

Cada homem é, à sua maneira, um agente da liberdade, liberdade forjada conforme aquilo que lhe sugere sua própria consciência. Mas, ao mesmo tempo, cada homem sente que sua vontade é entravada por leis – e a razão as descobre no seio mesmo da história: as leis estatísticas, ou as do determinismo político-econômico, por exemplo. No fundo, diz-nos Tolstói, acontece com a história o que se dá com todas as outras ciências: lá como cá, certas forças se manifestam sob a forma de leis. A força da humanidade é a liberdade; as da natureza, a força de gravitação, a inércia, a eletricidade ou a vitalidade. Mas quê sabemos, de exato, sobre todas essas forças? Exatamente tão pouco quanto sabemos da essência da liberdade. Sabemos, em contrapartida, uma coisa: se houvesse um só corpo que pudesse se mover a despeito das leis mecânicas, toda a ciência da natureza se tornaria, no mesmo instante, vã. Tal é também o caso da liberdade: ela encontra necessariamente,

em suas fronteiras, a necessidade.

Censurou-se em Tolstói o afundar no fatalismo. Poder-se-ia dizer, ao contrário, que ele condece demasiada importância às massas e a cada um em particular, e que isto o leva ao “infinitesimal” da liberdade – segundo suas próprias palavras –, obrigando-o, no fim das contas, a

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sacrificar a personalidade humana. Não se poderá fazer verdadeiramente história, diz ele, enquanto se buscar a causa dos acontecimentos na “livre” vontade dos grandes homens, pois assim se deve, obrigatoriamente, chegar à liberdade infinitesimal de cada indivíduo, que permanece todavia inacessível.

Mas com a história dá-se o mesmo que com a ciência: sem conhecer a essência da gravitação pode-se compreender as suas leis, e sem saber qual a necessidade histórica última, reconhecemos suas leis, integrando nela os elementos infinitesimais, eles também desconhecidos. “A marcha dos acontecimentos no mundo depende da coincidência de todas as vontades”, eis o comentário do romancista ante o inexplicável na história, que culminava, na época, com a batalha de Borodino.

Refletindo bem, Tolstói exprime essa verdade admirável, incessantemente confirmada depois pela ciência: a relação de duas séries de desconhecidos pode ser algo de conhecido. Não sabemos o que é a liberdade, nem o que é a necessidade, mas conhecemos no entanto sua relação. O individual dá a si mesmo determinações diversas, que não podemos conhecer na sua totalidade e, menos ainda, prever; o geral coloca, ele também, sua infinidade de determinações possíveis e, desta vez, organizadas; igualmente desconhecidas. Mas o ser – o ser histórico, no caso – nasce, no entanto, dessa relação entre determinações que, fora da sua conversão a um sentido geral, não são senão nada e esse mesmo sentido geral, do qual jamais saberemos se é outra coisa senão nada. Tal como no cálculo infinitesimal, dois nadas engendram algo de determinado.

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Pode-se, então, encontrar o individual verdadeiro? Tolstói quis nos dissuadir disso – ao menos em Guerra e Paz –, e sua grandeza é precisamente a de ter tentado o impossível: completar sua visão artística a despeito da precariedade do ser histórico que ele havia posto em jogo.

Na verdade, para além dos destinos individuais, aos quais Tolstói, enquanto artista, devia não obstante dar um contorno, para além mesmo do sucesso, desta vez consentido, de um personagem, Pedro Bezukhov, a obra vive da extraordinária enfatização de uma outra realidade individual: a época. Esta, nenhuma das leis da história na escala humana pode esmagar, nem reduzir ao papel de elemento infinitesimal. Em contrapartida, o fracasso, que Tolstói encontra na pintura daquele que deveria ter sido – malgrado sua aparição episódica – o personagem-chave do romance, o camponês Platão Karataev, é, este sim, profundamente revelador da atodecia do escritor. O autor não podia pintá-lo de maneira viva, mas somente como um estereótipo – o “camponês russo” – que ele esmaga sob o peso das vãs declamações generalizantes. E é ainda a recusa do individual que acaba sendo denunciada por essa outra

obra-chave que deveria ter sido a própria vida de Tolstói, com

seu profetismo, e que terminou por desencaminhá-lo, tanto no mundo histórico quanto no mundo íntimo, até o paroxismo da sua “fuga” de casa, isto é, da mais elementar ordem humana. Se a atodecia não fosse, precisamente, a doença típica dos profetas de toda sorte, teríamos podido dizer, dele, que fôra, como Fausto, “der Unbehauste”3.

3

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3.GODOT E A RECUSA DAS DETERMINAÇÕES

Após a recusa do geral e do individual, chega a vez das determinações, com a ahorecia, doença evidente do nosso mundo “decadente” (pensamos, por exemplo, na ahorecia dos

hippies), embora seja constitutiva do homem e em

conseqüência, de certo modo, eterna.

Não é de maneira alguma absurdo – ao menos no que diz respeito às conseqüências práticas do gesto – negar, com Dom Juan, a divindade, as leis ou a existência de um sentido geral. Não o é, igualmente, dizer com Tolstói que o indivíduo, como tal, não existe na história, que ele está sempre imerso em algo de mais vasto, que ele é, talvez, evanescente. Não será, em contrapartida, absurdo sustentar que as manifestações do indivíduo, suas mensagens, em particular, quando se trata do homem, e em geral todas as

determinações das situações e dos seres não são nada, não

significam nada, ou, no máximo, são intercambiáveis? “Nada a fazer” são as primeiras palavras da peça de Samuel Beckett,

Esperando Godot.

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II. CATOLITE

Chamei então catolite – de katholou, que significa “em geral”, mas que mesmo em grego se usa como substantivo – às anomalias produzidas pela carência do geral, tanto nas coisas como nos homens. Na verdade, a nada faltam sentidos gerais e, assim como qualquer realidade do presente, viva ou morta, tem atrás de si alguns bilhões de anos, ela é também encruzilhada de inumeráveis sentidos gerais. Mas o que pode faltar ou ser incerto é o seu geral – uma situação que o homem às vezes sente de maneira aguda. É como se lhe fosse necessário um outro geral, um só, à sua medida individual, a despeito de já ter todos os outros. E ainda mais: é como se esse geral não se encontrasse num lugar, num depósito de gerais prontos, do qual se pudesse invocar o geral adequado, mas como se lhe fosse preciso a cada vez adquirir uma nova face, simultânea às manifestações do individual.

Mediante a investidura do geral, o homem quer ser. Quer ser para os outros, para si, no absoluto, na história, quer ser no sentido em que são uma estátua, uma fama, uma justeza, uma verdade, um criador, um destruidor – apenas ser. O tormento do homem é, de maneira discreta ou exasperada, o do real, que também aspira a ser, pelo menos no sentido elementar de persistir. Que boa criatura! Ens et Bonum convertuntur, diziam os medievais. E enquanto a placidez corrente das coisas, em comparação com o ser humano, está ligada ao fato de que não podem ter por si mesmas um “outro” geral, o sofrimento do homem reside em que ele

pode ter um outro mas na verdade não o obtém. Ele se reposiciona o tempo todo ao longo de

sua vida, assim como as coisas só se reposicionam ao longo da vasta evolução; mas nem sempre ele é. A este desequilíbrio, em busca de algo de ordem geral, dá-se o nome de catolite.

A maneira de existir em desequilíbrio surge justamente da inconsistência das maneiras de se manifestar, nas coisas e nos homens. Há no mundo processos em liberdade: todos os tipos de ondas do espectro eletromagnético correm por todas as partes; fatos da vida e atos humanos pulsam, sem se finalizar em nada. São manifestações cegas. Não seriam “cegas” por não lhes percebermos as leis e a consistência? Mas são cegas em si mesmas, assim como acontecem as coisas no movimento browniano das partículas de matéria de um líqüido. Um exemplo espantoso deste primeiro modo de existir em precariedade, nascido das manifestações cegas, é oferecido pela biologia. Dentro dela fez-se distinção, como parece, entre protenóides e proteínas. As primeiras possuem muitos dos elementos de que se constituem as segundas, fora que suas letras, do código genético, são casuais. Elas representam, assim, um modo de existir perfeitamente garantido, mas que não pôde chegar a uma plenitude das sortes de existir. Só as proteínas, em que há ordem das letras, conseguem

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dar vida, conseguem conduzir ao ser da vida. As protenóides têm letras, têm até mesmo “palavras”, mas que não constituem uma linguagem, isto é, algo de ordem geral.

Protenóides existem por toda a parte. A realidade tem de estar plena de substâncias ou de processos que possuam os elementos da ordem, mas que não tenham obtido ordem, ou seja, que tenham permanecido caóticos. Portanto, houve, talvez, muitos modos de o homem se comunicar e mesmo falar que não formaram uma gramática, não se fixaram num sistema de regras gerais, e como tais não se constituíram numa língua. Mas não seriam também assim os homens? Também eles não reeditam, em seu plano, uma aproximação ontológica?

Poder-se-ia dizer que Napoleão foi uma simples protenóide da história: deu manifestações, ou suscitou todo tipo de manifestações, mas a ordem não estava nelas. A ordem - significado de natureza geral dos atos, sua justificação histórica - haveria de ser provada pelo Memorial de Santa Helena. Só que era tarde demais, e a protenóide Napoleão não mais podia tornar-se uma proteína. No muito, foi aproveitada por outras proteínas, estas verdadeiras, da história. Mas assim como as protenóides representam também elas um modo de existir da vida, as manifestações cegas do seio do real são, por sua vez, um simples modo de existir. Elas não permanecem suspensas no vazio. São mantidas juntas por algo individual, ao qual dão a expressão, por exemplo, de um destino humano (Napoleão), de uma determinada matéria, ou de uma determinada situação. Tais realidades individuais se desprenderam da inércia geral e dão a si mesmas determinações específicas, sem obter, contudo, “o código” do ser. São um maço de manifestações presas por um pólo, o individual, sem que haja um segundo pólo, o geral, através do qual se pudesse obter o pleno equilíbrio do ser.

O que a catolite elucidava desde o início era o fato de que, pelo menos no caso do homem, não é qualquer geral ligado ao individual que conduz ao equilíbrio. “Por que você não se contenta com o que tem? Você não vê que está em ordem?” dizem os outros para um homem e sua alma toda poderia dizê-lo ao próprio homem. Ele não está em ordem. O geral apresenta no homem esta condição especial, de ser específico; de até mesmo parecer ser individual, próprio, de qualquer modo. É necessário sair da condição individual e confirmá-la ao mesmo tempo. É necessário encontrar o geral certo. A tensão da catolite nasce daqui, da necessidade do geral certo. Mas é também daqui que nasce o risco de não saber da falta do geral, tendo em vista que ele ainda é não-identificado.

Surgida da carência do geral, a catolite é a única doença espiritual em que justamente o geral pode ser ignorado. Todas as outras vão surgir graças à sua presença ou, como no caso da acatolia, através de sua recusa consciente. Aqui, no caso da catolite, pode não existir consciência dele, e então surgem manifestações de um tipo das doenças, enquanto que a consciência do geral, ou de sua carência, vai produzir, sempre no caso da catolite,

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manifestações de outro tipo. Há portanto dois tipos de catolite. Em Salavin e César Birotteau encontrávamos manifestações da doença que se deviam à consciência do geral, carecendo dela; em Bonaparte, poder-se-ia dizer, encontramos o caso contrário, em que, a doença catolite aparece sem a consciência de que falta o significado geral. Com ele podemos, portanto, iniciar a descrição do primeiro aspecto clínico da catolite.

1) Este homem, em que a própria pessoa era completamente hipertrofiada, não negava os gerais, como Don Juan. Nem parecia sentir a falta deles, atribuindo-os todos, misturados, a si mesmo: sentidos revolucionários, destino histórico da França, a idéia européia, até mesmo a Igreja. Mas justamente por atribuí-los a si, ou seja, subordinando-os à sua pessoa, ele provava que não tinha verdadeiramente consciência deles, não demonstrando nenhuma forma de submissão a algo além deles. Abandonou rapidamente a idéia revolucionária; não pôde oferecer à França nada além de uma boa administração (incluindo uma vã soberba); e a idéia européia ele a comprometeu, não importa quantas conseqüências tenha tido, por isso, a sua aventura histórica. As únicas determinações efetivas que se lhe puderam atribuir foram as campanhas militares - simples desempenhos. A carência do geral, no seu caso, conduziu à síndrome da catolite típica de todos os grandes líderes: a necessidade cega de ação. E, de fato, sob esta forma a catolite é a doença dos tiranos, cujas manifestações, na falta dos sentidos, se exacerbam. Atormentado por ações, o doente de catolite pode chegar, então, até mesmo a chacoalhar a história com os seus calafrios. Sobre aqueles tomados por tais tremores, pôde-se dizer o seguinte: “pitié pour les forts”.

Mas o exemplo das maiores mutilações do espírito, como Napoleão, arrisca desfigurar, finalmente, as coisas. Privado da consciência do geral, pode sofrer de catolite também o homem comum, cujo caso anônimo revela a primeira forma da doença quiçá melhor que a exasperação dos grandes. A ignorância do geral é mesmo a lei, no caso desse homem e, quando jovem, o fato de que lhe falta geral e de que lhe falta mesmo a consciência dessa falta assume formas tão encantadoras que a gente se pergunta, num primeiro momento, se ainda se pode falar nesse caso de uma doença espiritual. Desse modo, o homem jovem começa por se abrir naturalmente a fatos e determinações, sem nada para além deles. Assim como na criança existe a simples “sede de nome”, ou seja, a necessidade de fixar as coisas denominando-as; assim como mais tarde surge e se desenvolve até à gratuidade a necessidade de entrar em contacto direto com as coisas, apalpando-as a fim de ver como são feitas e de poder manejá-las, da mesma maneira surge, como uma primeira idade do homem - de fato como sua primeira precariedade -, a idade em que o ser individual se atribui determinações e se satisfaz na riqueza delas, independente de qualquer temor ou rumor de geral.

A criança invocada por Goethe no poema Prometheus não sabe de Deus, ou seja, de nada de ordem geral, mas está contente com a vida ferindo a chicotadas os cardos do campo.

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Goethe, da mesma maneira, se atribui, nos primeiros anos da juventude, as determinações mais livres, dos espetáculos teatrais que cria sozinho e as estórias que conta aos outros inventando-as no mesmo momento, até ao primeiro encontro com aquilo que finalmente mais tarde lhe parecerá “generalidade”, sob o nome de “eterno feminino”, o encontro com Annette de Leipzig. E Agostinho - também ele exemplar de homem representativo, nos anos da juventude - prolonga até tarde, até ao confronto com o maniqueísmo, como uma primeira entrada na ordem que se lhe oferece, os anos em que o único modo de vida é a plenitude ou a variedade das determinações que a gente se atribui, sem relacionar com outra coisa.

Nos homens que não se aprofundam nunca no humano, a vida permanece nessa idade primeira, a das determinações e manifestações livres - na caça de que falava Pascal, na distração em todos os sentidos, mesmo naquela de levar a vida a sério, com a demência dos seus fatos vazios - de modo que uma vida de homem pode ser um simples desenrolamento de determinações cujos acontecimentos representem, para eles, consumo de vida. Neles, com a sua febrilidade, começa a ser nítido um início de adoentamento do espírito. Pois uma forma branda de catolite se encontra por detrás de qualquer vida desenrolada em perfeita inocência e aparente saúde. E mesmo a distração, uma grande conquista do homem sobre as necessidades cegas, pode representar na verdade uma punição sobre ele. O inferno foi descrito por alguns teólogos como uma festa que começa, continua, prolonga-se, e que não acaba mais, desvelando, dessa maneira dilatada, o seu vício oculto.

Existe algo bem oculto, por detrás de tudo o que fazemos, nesse nível. Nem podemos saber de uma falta, no momento dos primeiros entusiasmos, quando se vive debaixo da magia dos verbos: que flutuemos, que viajemos, que sonhemos, ou que destruamos, que construamos, que façamos um mundo nosso, que ergamos um mundo para todos, melhor. Um verbo atrás do outro traz a solicitação, oferecendo tanto espaço de ação que nenhum corretivo pode mais frear as devoções. O verbo ainda é puro, sem advérbios; ele não tem outros limites a não ser os que um outro verbo lhe traz, que surge com a mesma rigidez, relacionando-se somente com a sua ação. Algo poderia, entretanto, despertar inquietude, nesta condição singular do verbo, mas agora ainda não é momento para outra inquietude que não seja a mais distante portadora do verbo puro.

Não podemos parar para ver se a ação tem sentido e significado, visto que parece que ela nos enriquece. “Tudo o que me engrandece é verdadeiro”, dizia Goethe, em sua grande inocência. Acumulamos fatos assim como juntaríamos haveres, sob a crença oculta de que a acumulação pode significar por si só existência. Todas as formas de acumulação, terminando com a de enriquecimento dos conhecimentos, ou hoje a de acumulação de produtos técnicos desejados ou indesejados, solicitaram do homem, como se tivessem uma verdade sua no simples fato de que são obtidas, assim como talvez no passado, com os seus mitos, o homem acreditasse que as coisas existem porque ele fala delas. De certo modo, continuamos

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acreditando nisso, exatamente como o homem das culturas que têm por base os mitos. Em sua criação literária, o homem crê que existe tudo aquilo que é destino individual ou coletivo desenrolado de maneira segura e artística, num plano de realidade das culturas e do pensamento. Na sua pintura, acreditava que tudo o que pintava com maestria, até ao mais humilde rosto humano ou canto de realidade e paisagem, hoje até à estrutura mais abstrata, obtinha ou possuía carga ontológica. Em sua criação musical, acreditava e acredita que pode elevar à harmonia qualquer caos sonoro, dando-lhe assim o direito de existir. Existir, onde e como? Não sabemos bem, nem se esse enriquecimento está na medida adequada ao mundo, ao homem. Mas “sou rico em fatos e criações, logo existo”, este é o raciocínio de quem esconde a doença.

Mas seria isso aqui uma forma de adoentamento, ou talvez efetivamente uma forma de saúde do homem? Num primeiro momento, não é uma nem outra. Se a saúde espiritual do homem significa a conexão do indivíduo com um geral, nas manifestações descritas acima trata-se sempre de uma conexão, do individual com um possível. Por que não poderíamos dizer - pensamos então - que o possível é mesmo a forma de realidade do geral ou que, pelo menos, o aumenta e enriquece? Em todo caso há algo de inocente no possível (seria a inocência do devir), no primeiro momento em que ele suscita vida, e o senso geral forçosamente ainda não precisa surgir. Aqui está em jogo o direito à criação de que o homem se encarregou, ou seja, o direito “de enriquecer a natureza no seio da natureza”, direito que, segundo Schiller, pertence só ao gênio. Qualquer criação inocente parece ter nela algo de puro.

Numa primeira tentativa de criação, ainda próxima do estado de natureza, atribuem-se por exemplo determinações novas a uma certa realidade individual. Um tronco de árvore ou um bloco de pedra podem se tornar uma mesa com cadeiras, como uma “Mesa do Silêncio”,

assim como uma pedra polida pela água pode ser polida ainda mais, até formar um corpo humano, ou assim como se pode imaginar um destino individual, na criação literária, surpreendido por todo o gênero de situações e acontecimentos da vida, como os de Ulisses. Num certo nível, aparentemente mais alto, mas onde a natureza e a cultura se encontram igualmente bem como nos primeiros exemplos, Balzac deu em seus romances - até o momento em que se tornou consciente do geral sob o qual se encontravam todos eles: A Comédia Humana - um exemplo extraordinário da conexão do individual com o possível, exprimindo não só a riqueza da sociedade ou da selva social de seu tempo, mas efetivamente enriquecendo a natureza no seio da natureza, ou seja, as listas do estado civil, como se disse. E, definitivamente, se Balzac não houvesse chegado à idéia (ao geral) da Comédia Humana, teria isso então significado que os seus romances haviam sido uma simples acumulação de

  N. do T.: Escultura que compõe, juntamente com o “Portão do Beijo” e a “Coluna sem Fim”, o complexo estatuário da cidade de Târgu Jiu, executado por Constantin Brancusi (1876-1957), escultor romeno estabelecido em Paris, considerado um dos maiores escultores modernos.

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sucessos artísticos, neles escondendo um adoentamento do espírito, uma espécie de câncer da criatividade?

Pode ser que nas manifestações artísticas seja uma inverdade falar tão rápida e sumariamente sobre o adoentamento, no caso em que elas não ocupem lugar sob o signo de um sentido de ordem geral. Na realidade, um primeiro senso geral deve existir nessas manifestações, de momento em que os outros gostam delas; elas exprimem assim o pensamento e o ideal deles, erguendo-se aos sensos de uma comunidade inteira. A obra de arte se justifica por si mesma, assim como os romances de Balzac se justificavam por si mesmos, independentemente de seu significado ulterior; as obras também podem acumular o quanto for - até que uma insatisfação de sucesso, uma desorientação na maestria obtida, assim como um certo cansaço do artista e do espectador comece a se desvelar. Se não for a falta do geral, talvez seja então a falta de um outro geral. A pintura flamenga pôde dar por vezes a sensação de falar bem demais uma mesma coisa; assim como, por outro lado, a música de hoje fala maravilhosamente bem qualquer coisa, até esse taedium culturae, esse tédio por qualquer coisa. Picasso por vezes pareceu ser um fenômeno de cansaço, justamente na sua extraordinária prolificidade, assim como na cultura antiga o número limitado de assuntos, aqueles 110 temas de tragédia sobre que falava Goethe, conduzia ao impasse da criatividade simultaneamente à proliferação das criações. Uma certa exuberância criadora, junto com um primado do possível vazio, assim como com outro da maestria vazia (sobre que se falou sempre em épocas de decadência), seguida hoje pela maestria da execução e da direção, parece solidária com aquela perda de si em “ação” que traía ao espírito o estágio de adoentamento da catolite. Existe, assim, um indício de sutil miséria no momento de aparente glória de qualquer cultura artística plena.

Mas no momento em que não se pode falar de onde ou quando a arte trai uma forma de adoentamento do espírito - assim como não se pode dizer hoje de onde e de quando a técnica começou a ser uma proliferação doentia -, por outro lado, para a vida moral do indivíduo, assim como para a vida histórica das comunidades, as coisas são mais simples e o diagnóstico faz-se mais facilmente, pelo menos quando é o caso da catolite: ela surge no momento em que se sai, legalmente ou não, de debaixo da tirania de uma ordem geral e ainda não se entrou na ordem “própria”. Duas límpidas ilustrações estão à nossa disposição: o filho pródigo para a vida moral do indivíduo e a história em si para a vida das comunidades. Talvez o filho pródigo, de um lado, e a história, de outro, sejam verdadeiros paradigmas da catolite, em sua forma primeira.

“Faço o que gosto”, diz o filho pródigo, e parte para o mundo, saindo de debaixo do senso

geral da família e da sociedade para obter os sensos que deseja e que ignora como sendo

sensos gerais; pois justamente isto o exaspera, a tirania da generalidade. Agora libertou-se. Se gosta do encanto da natureza, vai se aprofundar na natureza; se quer conhecer países, vai

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