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Efeitos sensíveis na percepção das veridicções: Uma leitura tensiva das modalidades veridictórias a partir da análise semiótica da HQ Watchmen

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Universidade Federal Fluminense

Instituto de Letras

Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem

Vinícius César Lisboa Soares

Efeitos sensíveis na percepção das veridicções

Uma leitura tensiva das modalidades veridictórias a partir da análise semiótica da

HQ

​Watchmen

Orientação: Professora Doutora Renata Ciampone Mancini

Niterói

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Universidade Federal Fluminense

Instituto de Letras

Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem

Vinícius César Lisboa Soares

Efeitos sensíveis na percepção das veridicções

Uma leitura tensiva das modalidades veridictórias a partir da análise semiótica da

HQ

​Watchmen

Dissertação apresentada à banca examinadora do Mestrado em Estudos de Linguagem como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre. Área de concentração: Teorias do Texto, do Discurso e da Interação.

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Efeitos sensíveis na percepção das veridicções

Uma leitura tensiva das modalidades veridictórias a partir da análise semiótica da

HQ

​Watchmen

Vinícius César Lisboa Soares

Dissertação apresentada à banca examinadora do Mestrado em Estudos de Linguagem como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre. Área de concentração: Teorias do Texto, do Discurso e da Interação. BANCA EXAMINADORA

Prof.ª Dr.ª Renata Ciampone Mancini (Orientadora - UFF) Prof.ª Dr.ª Lucia Teixeira de Siqueira e Oliveira (UFF)

Prof.ª Dr.ª Regina de Souza Gomes (UFRJ)

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Resumo

A discussão de uma atualização das ​modalidades veridictórias se desenvolve neste trabalho com uma releitura orientada pela dimensão sensível de Claude Zilberberg (2011) e seu entendimento de que nenhum termo é simples e todos guardam diferentes graus de complexidade. Desmembrados em seus variantes tônicos ou átonos, ​parecendo

muito ou ​sendo pouco​, por

exemplo, esses funtivos permitem o redesenho de verdades e falsidades mais ou menos confirmativas, e mentiras e segredos surpreendentes de diferentes formas. Com a análise da HQ

Watchmen

​ , destrinchada em suas articulações que rejeitam o maniqueísmo histórico da Guerra

Fria e também as posições cristalizadas de herói e vilão, esta dissertação argumenta que a dimensão sensível, o ​acontecimento e o acréscimo de ​mais ou de ​menos previsto na semiótica tensiva permitem que o analista problematize o impacto que cada julgamento tensivo produz para o sujeito. Tal elaboração sugere que ele ora chega à confirmação de seus valores pela veridicção, e ora se pega aturdido de diferentes formas pelas surpresas que nascem da quebra de todo um gradiente possível de expectativas, que podem ser projetadas pelo enunciador com maior ou menor empenho.

Palavras-chave: Modalidades Veridictórias; Semiótica Tensiva; ​Watchmen

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Abstract

This work presents a new proposal about the ​veredictory modalities based on the sensible dimension brought to the semiotics theory by Claude Zilberberg (2011). As a starting point, it assumes that no term is simple and all of them have different degrees of complexity. Expanded in their tonic or weak variants - ​resembling a lot or ​being a little - these functives allow the redesign of modalities more or less confirmatory or more or less surprising. The sensible dimension that comprises the outburst of a ​happening and the addition of ​plus and ​minus in the tensive model grants a discussion about each veredictory trial’s impact to the subject. This updated approach to the theory proves to be productive in the semiotic analysis of​Watchmen

​ , a

text that avoids manichaeism and classical roles like heroes and villains. It also conducts to the understanding that subjects can either have their values reassured by verediction with different emphasis or their surprises can range from astonishment to just unexpected when immanence does not match manifestation.

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Sumário

1. Introdução ……… 9

1.1 – Uma HQ contra os maniqueísmos ……… 9

1.2 – Em busca das gradações ……… 10

1.3 – A caracterização do herói ……… 13

1.4 – Do herói ao super-herói.………. 18

2. Descrição do objeto ………... 26

3. Percurso gerativo em ​Watchmen: uma primeira análise ……….. 31

3.1 Documentação e ilustração ………. 41

3.1.1 - Capítulos I, II e III - A autobiografia dos vigilantes ……….. 46

3.1.2 - Capítulo IV - Argumento de autoridade ……….. 51

3.1.3 - Capítulo VI - Preto no branco ……….. 54

3.1.4 - Capítulo XI - A construção do supervilão ……… 58

3.1.5 - Cenas e estratégias ……….. 63

4. Reflexões tensivas sobre a veridicção ………. 66

4.1 Modalidades Veridictórias ……….. 66

4.2 - A Tensividade e o Sensível ……….70

4.3 - Possíveis intervalos entre as veridicções ………. 77

4.4 - Parecia tanto que não podia ser ……….91

5. As teias narrativas e a veridicção de cada sujeito ……… 94

5.1 Sujeito: Rorschach ……….95

5.1.2 - Modalidades Veridictórias: ………. 101

5.1.2.1 - Coruja, Dr. Manhattan e Espectral ……….101

5.1.2.2 - Ozymandias ……….……….. 103 5.2 Sujeito: Dr. Manhattan ……… 105 5.2.1 - Modalidades Veridictórias: ………109 5.2.1.1 - Rorscharch .………. 109 5.2.1.2 - Ozymandias………. 110 5.2.1.3 - Espectral e Coruja ……… 112

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5.3 Sujeito: Ozymandias ……… 114 5.3.1 - Modalidades Veridictórias ………. 118 5.3.1.1 - Coruja e Espectral ……….... 118 5.3.1.2 - Dr. Manhattan ……….. 119 5.3.1.3 - Rorschach ……….. 120 5.4 Sujeito: Coruja ………..121 5.4.1 - Modalidades Veridictórias ……….. 122 5.4.1.1 - Rorschach……….. 122 5.4.1.2 - Espectral e Dr. Manhattan ……….. 123 5.4.1.3 - Ozymandias ……….. 123 5.5 Sujeito: Espectral ………. 125 5.5.1 - Modalidades Veridictórias ………. 127 5.5.1.1 - Ozymandias ……….. 127 5.5.1.2 - Coruja e Dr. Manhattan………... 128 5.5.1.3 - Rorscharch………. 128 6. Conclusão ……….………... 130 7. Referências Bibliográficas ……….…………... 136

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Agradecimentos

À minha mãe, Leila, e ao meu pai, Alcino, pelo caminho aberto e o incentivo para trilhar uma jornada de crescimento e dedicação sem perder a fraternidade. A eles, o mais grato amor por

terem feito possível esta caminhada. Só eles conhecem as dificuldades superadas para isso. À minha irmã, Thaís, pela companhia sempre encorajadora, amor e carinho nas horas difíceis.

Que seus sonhos a levem ainda mais longe.

Ao meu amor, Juan, por aprender a conjugar o ser e o parecer em piadas que não parecem nem são engraçadas, mas que são uma graça. Seu amor faz esse percurso mais leve e esse mundo

menos feio.

À educação pública e crítica, que me trouxe até aqui com as virtudes de professoras e professores exemplares e apaixonantes. Que cresça e seja livre para provocar transformações.

À amizade de Alexandra, Lucas, Luiza, Marcos, Mariana, Paula, Paulo e Raiane, companheiros que fizeram dessa travessia uma ceia divertida e inesquecível.

À minha orientadora, Renata Mancini, pela confiança e estímulo à originalidade e autonomia na pesquisa acadêmica.

Às professoras Sílvia Sousa e Lucia Teixeira, que deixaram ensinamentos importantes e presentes aqui neste trabalho.

E aos professores Fábio Cerdera e Regina de Souza Gomes, por aceitarem contribuir com questionamentos e lições para enriquecê-lo.

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1. Introdução

1.1 Uma HQ contra os maniqueísmos

Havia a suspeita cada vez maior (pelo menos da minha parte) de que havíamos mordido mais do que conseguiríamos mastigar, de que poderíamos não conseguir amarrar todos esses fios soltos de narrativas e de significado que pareciam brotar para todo lugar que olhássemos, que poderíamos, no fim das contas, ficar com uma enorme tigela, emaranhada e bagunçada, de espaguete semiótico. (MOORE, 2011. p.419)

Esse espaguete de massa consistente, fios emaranhados e gosto amargo no fim do jantar fez de ​Watchmen um dos mais bem sucedidos produtos da indústria americana de quadrinhos. Única representante das HQs na lista da revista Time de melhores publicações em língua inglesa entre 1923 e 2005, e única HQ condecorada com o Hugo Awards de literatura, a série de Alan Moore, com ilustrações de Dave Gibbons, foi publicada pela DC Comics em doze edições mensais, entre 1 de setembro de 1986 e 12 de agosto de 1987. ​Watchmen nunca saiu do catálogo da editora e foi adaptada para o cinema em 2009.

Em um mundo ainda polarizado na reta final da Guerra Fria, a história se passa em 1985, em uma conjuntura dominada pelo medo de um confronto nuclear entre as duas superpotências. Os Estados Unidos de ​Watchmen são um país sombrio, pervertido e paranóico. Sua decadência moral chega à deterioração da democracia, com reeleições sucessivas de Nixon, sempre sob a ameaça de que “era ele ou os comunas”. Nesse tempo de azul ou vermelho e de maniqueísmos ideológicos, uma diferença possibilitou que tudo mudasse em relação à história real: a existência dos vigilantes.

Sem bom-mocismos ou idealizações, os personagens de ​Watchmen são humanos - e não são seus melhores espécimes. Com suas preferências e psicoses, se envolveram e se frustraram nesse mundo que tentaram salvar, e sua intervenção mudou algumas coisas: os americanos venceram no Vietnã, a tecnologia saltou rápido demais, e o escândalo de ​Watergate não estourou, mantendo Nixon no poder. Eles deram golpes militares na América do Sul, agravaram a violência urbana em Nova York e foram responsáveis até pelo assassinato de Kennedy. A participação deles foi de tal forma decisiva, ou opressiva, que, em uma tentativa de pará-los, é aprovada no Congresso uma lei que proíbe os mascarados, depois de protestos em massa e até

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uma greve policial. Ecoava pela sociedade americana, na obra de Alan Moore, a pergunta: “ ​Who

watches the Watchmen

​ ?”. Quem vigia os Vigilantes?

Se não bastasse essa construção figurativa imoral dos mascarados que costumam virar brinquedos e fantasias infantis,​Watchmen

guarda para o desfecho seus valores mais ​impactantes,

com uma virada impossível: “os mocinhos” perdem, “o vilão” salva o mundo, Nova York é destruída, e os heróis se calam perante um dos maiores genocídios da história. Posições tão improváveis e tão cheias de coerência podem ser explicadas pelas modalidades veridictórias

1,

tanto no nível dos actantes, justificando suas decisões e angústias, quanto no nível da enunciação, no que essas construções significam no fazer persuasivo do enunciador sobre o enunciatário. Com um objeto tão provocativo ao maniqueísmo e, por isso mesmo, tão pouco binário, e diante das atualizações que a semiótica vem incorporando com a dimensão sensível e sua regência sobre o inteligível, este trabalho propõe não apenas uma análise, mas uma reflexão sobre um caminho para explorar os intervalos entre o ​ser e o ​parecer

​ , e os julgamentos

veridictórios múltiplos que nascem dessa problematização.

O entendimento da ​abordagem tensiva de que nenhum termo é simples e de que todos guardam diferentes graus de complexidade traz para uma análise de ​Watchmen

a capacidade

metodológica de explorar as nuances desses seres sombrios e de ideais nobres, ou iluminados e de ideais obscuros. Para as modalidades veridictórias, abrem-se possibilidades para a apreensão de sentidos que questionam: todas as mentiras são iguais? Todas as verdades se confirmam com a mesma exatidão? Todos os segredos surpreendem com similar espanto? Todas as falsidades se permitem igualmente resignadas?

1.2 – Em busca das gradações

A noção de intervalo continua, a nosso ver, subestimada. Guardadas as devidas proporções, se o ponto de vista tensivo se revelar consistente, a noção de intervalo poderia vir a ser a sua ‘bandeira’, assim como o termo diferença resume o projeto saussuriano, dependência, o projeto hjelmsleviano, e oposição, o projeto greimasiano”. (ZILBERBERG, 2011, p. 267).

A formulação tensiva que levou a complexidade a todos os termos coube em ​Watchmen como as máscaras ou uniformes justos dos super-heróis. Com sombrio brilhantismo, Alan Moore

(11)

criou nessa série de histórias em quadrinhos um mundo traumatizado pela atuação de mascarados combatentes do crime. Eles prendiam os criminosos, mas seus métodos, suas histórias e seus objetivos provocaram o temor e a rejeição manifestadas no questionamento: “Quem vigia os vigilantes?”. Os heróis de ​Watchmen

​ estão em um contínuo, uma complexidade entre os

contrários herói e vilão, em que mudam os graus em que um ou o outro valor aparece, mas não se extingue um ou o outro lado.

O momento em que essa complexidade atinge seu grau máximo é o desfecho da história. Para um leitor maniqueísta, o inconcebível ocorre: o vilão salva o mundo, o herói rejeita a paz e os mocinhos aprovam o genocídio. A proposta da semiótica do intervalo, no entanto, nos convida a abandonar a polarização simples e a adotar a gradação complexa. Por que os heróis tomam decisões tão inimagináveis para o verbete herói dos dicionários, mas tão lógicas e coerentes no universo construído em ​Watchmen

​ ? A resposta está no julgamento veridictório, na conclusão de

cada personagem sobre o que é seu objetivo e quem são seus inimigos e aliados. O que é mentira e o que é verdade? O que é segredo e o que é falso?

Lançar mão das modalidades veridictórias para analisar um objeto com tamanha nebulosidade, tendo como subsídio uma semiótica do intervalo e dos termos complexos, acendeu o caminho para fincar a bandeira proposta por Zilberberg em mais um campo da teoria. Talvez tenha sido essa dificuldade inicial, essa aparente ambiguidade trabalhosa de destrinchar, que tenha apontado ​Watchmen como um objeto tão intrigante, e, em consequência disso, tão produtivo para teorizar. Aplicar os conceitos em oposições claras e canônicas como os exemplos dos manuais é sempre didático e proveitoso para reforçá-los, mas investir naqueles que insistem em desafiar a coerência da teoria é uma provocação para refletir sobre ela própria.

Como objetivo mais geral, este trabalho busca explorar as relações entre os personagens de Watchmen

​ , e o modo como elas se constróem em um texto-enunciado que projeta um fazer

persuasivo fortemente dependente das figurativizações (e consequentes tematizações adjacentes) de heróis e vilões que não respeitam representações mais consagradas desses papéis, característica que marca a importância histórica da série no universo das histórias em quadrinhos. Para essa análise, serão utilizadas as modalidades veridictórias, que permitirão explorar o julgamento feito pelos personagens no desfecho da história, em que os papéis actanciais são

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embaralhados por um ​acontecimento

​ (Zilberberg, 2011)​, nos termos tensivos. As decisões

tomadas por eles a partir desse inesperado que irrompe indicam quais objetos-valor na verdade perseguiam ao longo da narrativa, apesar das performances que executam em busca deles. Para salvar o mundo, recorre-se ao assassinato; para poupar vidas, à omissão; e para punir o crime, à tortura e à rejeição da paz mundial.

O recobrimento figurativo desses objetos e performances envolve os personagens em temas sempre convidativos ao maniqueísmo, mas figurativizados de maneira a perturbá-lo. Essa construção discursiva projetada, quando analisada pelo viés das estratégias da enunciação, pressuposta ao texto, questiona o próprio maniqueísmo do mundo em que está inserida. Os Estados Unidos de ​Watchmen

​ de forma alguma são construídos como um país valoroso e

louvável perante a União Soviética, que também não ocupa essa posição. Geralmente vestidos com cores e símbolos nacionalistas, os super-heróis são distorcidos em ​Watchmen

​ como uma

construção discursiva que abandona a polaridade do bem contra o mal, apontando o mal que há no bem e o bem que há no mal.

Esse trabalho, portanto, necessariamente, vai discutir uma atualização das ​modalidades

veridictórias

​ , para que possam ser reforçadas em sua capacidade de explorar os sentidos que

parecem e ​são se considerados os intervalos entre esses pólos e seus contraditórios. Essa elaboração pretende estabelecer um contínuo entre os superlativos de cada funtivo dessas modalidades ​(parecer/não parecer/ser/ não ser)

​ , o que permitirá entender que os cruzamentos

possíveis entre os pontos nesse contínuo com os pontos no contínuo correlato constroem efeitos de sentido diferentes.

Ao propor que a diferença entre ​verdade

, ​mentira, ​falsidade e ​segredo 2 (GREIMAS;

COURTÉS, 2008) localiza-se em um intervalo tensivo, em que as combinações produzem impactos diferentes, primeiro em relação aos operadores implicação x concessão, depois entre os resultados diferentes de um mesmo operador, com concessões superlativas (acontecimentos) ou surpresas, com implicações perfeitas ou complacentes, pretende-se explorar como funciona a complexa relação entre os personagens no fim da trama.

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A análise busca definir as modalidades veridictórias relativas ao desfecho da trama e seu lugar nos contínuos propostos, permitindo, então, uma consideração sobre os operadores implicação x concessão para cada personagem. Para tal objetivo, é preciso estabelecer os parâmetros que constituem diferentes variações de ​parecer

x ​não parecer e ser x ​não ser na

construção temático-figurativa dos personagens no nível discursivo e nos programas do nível narrativo, além de considerar algumas das categorias do plano da expressão na manifestação desses arranjos de conteúdo. Por fim, com a análise tensiva, serão discutidas as estratégias escolhidas pelo enunciador de​Watchmen

​ para romper com as histórias clássicas de super-heróis,

fator que tornou a série um texto consagrado mundialmente.

1.3 – A caracterização do herói

Qualquer discussão sobre o conceito de herói teria flagrante falta de credibilidade se não começasse ou ao menos passasse pela civilização histórica que ficou marcada no imaginário coletivo pelo modo como registrou seus heróis e deuses. Considerado o primeiro livro da literatura ocidental, a​Ilíada

​ , de Homero, conta a história da Guerra de Tróia e do embate entre os

heróis Aquiles e Heitor, contendo ainda figuras eternizadas como a bela Helena, o príncipe Páris e o rei Agamenon. A volta de Odisseu para Ítaca, após a Guerra de Tróia, tornou-se outro cânone literário, a ​Odisséia

​ , em que Homero narra mais uma série de desafios heróicos, tanto por sua

dificuldade prática quanto por sua exigência moral.

Aristóteles (2014), ao falar da natureza e das espécies da poesia, ainda nas primeiras páginas de “A Poesia Clássica”, distingue o poema trágico e a epopéia da comédia, pela forma como esses gêneros decidem imitar o homem. Enquanto os primeiros imitavam pessoas superiores, o terceiro retratava “as inferiores”. Os personagens de Homero, destaca o pensador grego, eram superiores, e as marcas que atribuem essa superioridade são as virtudes, enquanto, no caso da comédia, a inferioridade é determinada pelos vícios de caráter. “A poesia diversificou-se conforme o gênio dos autores; uns, mais graves, representavam as ações nobres e de pessoas nobres; outros, mais vulgares, as do vulgo” (p. ​22​). A poesia épica e a tragédia, onde se incluem a Íliada e a Odisséia, portanto, são o lugar da imitação de seres superiores.

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Ao fazer uma leitura desse trecho, Northrop Frye (2006) observa que essas distinções não receberam a devida atenção da crítica literária porque Aristóteles tem uma visão que parece “estreitamente moralista”. O autor canadense, no entanto, ressalva que o grego usou palavras para bom e mau, superior e inferior, que podem ser entendidas como​pesado

e​leve, o que o leva

a deslocar a interpretação de modo a ressaltar do lado pesado as capacidades sobressaltadas do herói e do lado leve suas fraquezas humanas. “As ficções, portanto, podem ser classificadas não moralmente, mas pelo poder de ação do herói, que pode ser maior do que o nosso, menor do que o nosso ou aproximadamente o mesmo” (p.​145​).

Frye formula então uma gradação de cinco estágios em que o herói é, em uma ponta, um deus superior em espécie aos outros homens e ao seu ambiente, protagonista de um mito, e, em outra, “inferior em força e inteligência a nós mesmos” (p.146), pertencendo ao modo irônico. No segundo grau desse quadro, o autor localiza o herói lendário, cujas ações são maravilhosas sem que ele deixe de ser um ser humano. A superioridade deixa de ter um caráter divino e o herói encontra-se aqui no estágio do conto popular e do folclore. Mais abaixo, deixando de ser superior ao ambiente que o cerca, está o herói do modo mimético elevado, superior aos outros homens, mas sujeito à crítica social e à ordem natural. Esse terceiro herói é, na visão de Frye, o mais presente nas epopéias e tragédias, tendo autoridade, paixões e faculdades de expressão bem maiores do que as nossas. Já o herói do modo mimético baixo, ainda acima do irônico, é o da comédia e da ficção realista, aquele que pode ser considerado “um de nós”, por não ser superior nem aos outros homens nem ao ambiente que o cerca.

Apesar de notar esse deslocamento do herói clássico na leitura atualizada de Frye, Menegusso (2012) observa que a moral não era a única forma de destacar o herói da multidão de humanos comuns na epopeia grega. Mesmo Aquiles e Odisseo, heróis da Ilíada e da Odisseia, se sobressaíam não apenas por suas virtudes, mas pela excelência, vigor e destreza nos campos de batalhas e jornadas.

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Com estas especificidades, cheguei à definição clássica de herói, proveniente dos mitos e registrada nas grandes epopeias, como a Ilíada e a Odisséia: indivíduo destacado da média das outras pessoas por apresentar uma dimensão semidivina e ser dotado de virtudes heróicas como coragem, força, astúcia, caráter e sabedoria; guerreiro que tem a missão de proteger o seu povo e garantir a ordem da nação, e buscar através de suas conquistas, o reconhecimento que o levará à glória e o diferenciará dos demais mortais (Menegusso, 2012, p.16)

Outro ponto de vista sobre o herói, trazido por Joseph Campbell (1997) em seus estudos sobre as mais variadas mitologias do mundo, considera o herói do ponto de vista de sua jornada, chamada de monomito em uma tentativa de encontrar um esquema comum que descrevesse as mais variadas histórias e culturas com uma única estrutura: “A aventura do herói costuma seguir o padrão da unidade [...]: um afastamento do mundo, uma penetração em alguma fonte de poder e um retorno que enriquece a vida” ( ​p​.40). O caminho do herói, para Campbell é um percurso de autoconhecimento e renascimento. “Parece que a perigosa jornada não foi um trabalho de obtenção, mas de reobtenção, não de descoberta, mas de redescoberta. Os poderes divinos, procurados e perigosamente obtidos, [...] sempre estiveram presentes no coração do herói” (​p​.42).

Christopher Vogler (2006), que usou o monomito de Campbell para propôr um guia de roteiro para as mais variadas formas de contar histórias, toma emprestado da psicanálise o termo arquétipo emprestado e afirma que o herói cumpre uma função psicológica nas histórias. “O arquétipo do herói representa a busca de identidade e totalidade do ego. No processo de nos tornarmos seres humanos completos e integrados, somos todos heróis, enfrentando guardiões e monstros internos, e contando com a ajuda de aliados”. Com as palavras do próprio Jung, apud Feijó (​1984​), entende-se melhor o papel do arquétipo do herói.

O mito universal do herói refere-se sempre a um homem ou a um homem-deus todo-poderoso e possante que vence o mal, apresentado na forma de dragões, serpentes, monstros, demônios, etc., e que sempre livra o povo da destruição e da morte. A narração ou recitação ritual da cerimônia e dos textos sagrados e o culto da figura do herói, compreendendo danças, música, hinos, orações e sacrifícios, prendem a audiência num clima de emoções, exaltando o indivíduo

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Mais familiar à semiótica, Vladimir Propp (2006) menciona três vezes o termo herói entre os personagens previstos em suas narrativas: o herói-buscador, o herói-vítima e o falso-herói. O primeiro herói sai em busca de uma aventura e, em seu percurso, encontra o doador, que lhe impõe uma prova para que possa obter um objeto mágico. Já o segundo herói é colocado à prova pelo doador sem ter buscado esse percurso. Quando o herói passa por todos os desafios previstos no conto mágico, ele chega ao fim na etapa em que é reconhecido por sua vitória. Nesse momento, o falso-herói é desmascarado, pois não havia conseguido realizar a tarefa imposta, e, por isso, é castigado.

A esfera de ação do herói compreende: A partida para realizar a procura, a reação perante as exigências do doador, o casamento. A primeira função caracteriza o herói-buscador e o herói-vítima preenche as demais. A esfera de ação do falso-herói., compreendendo também a partida para realizar a procura, a reação perante as exigências do doador, sempre negativa, e, como função específica, as pretensões enganosas. (Propp, 2006, p.78)

A partir da reflexão desses autores, é possível enumerar duas características que constituem um herói: ele é superior a um humano normal por seu poder de ação, e ele necessita de um percurso de transformação, de uma vitória sobre um desafio, para chegar ao ápice de seu heroísmo. Enquanto Campbell e Propp se concentram na segunda parte da afirmação, atribuindo ao percurso a formação do herói, Aristóteles e Frye destacam a natureza que distingue o herói do não-herói, seu poder de ação. Uma abordagem que considera essas duas formulações pode chegar à seguinte elaboração: o herói, provido de um poder superior de ação, se engaja em um percurso de renascimento em que, como diz Campbell, redescobre o poder nele investido.

No percurso gerativo do sentido, o poder de ação é determinado primeiro pela manipulação do destinador sobre o sujeito, e, depois, pela competência adquirida para realizar a performance. Essa evolução dos programas narrativos, em que o sujeito adquire um querer/dever-fazer e depois um saber/poder-fazer, necessita também da etapa do crer.

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creia dever, creia saber e creia poder; em suma, que creia em sua competência e,

de modo mais geral, creia no sistema de valores em cujo seio sua ação vai se

inscrever (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001, p. 254 apud CALBUCCI,

2005, p.71)

A superioridade a que Aristóteles se refere como virtude e que Frye lapida como poder de ação, começa, então, em uma crença em sua condição de herói e no sistema de valores que autoriza sua ação. O herói crê ser herói como uma condição para que possa ser manipulado por seu destinador. Leia-se herói aqui não com as implicações virtuosas de Aristóteles, mas com as considerações mais práticas de Frye. Impulsiona sua história a existência de um destinador transcendente, que lhe garante a crença em sua capacidade de ação, ou, pelas definições adotadas por este trabalho, sua própria condição de herói.

O destinador transcendente paira sobre todas as operações executadas e as paixões vividas pelo sujeito ao longo de sua trajetória. Ele acolhe as interrupções como elementos indispensáveis à continuidade. É por seu intermédio, pela força transitiva de sua atuação, que as narrativas não param. (TATIT, 2010, p. 20)

Greimas e Courtês (2008) afirmam que o universo transcendente do destinador se opõe ao universo imanente do destinatário. É do primeiro que saem as doações “inesgotáveis” que concedem o objeto-valor ao destinatário de forma compartilhada, fazendo com que ambos se alinhem na mesma direção implicativa. O senso de heroísmo e o herói são inseparáveis e o primeiro alimenta o percurso do segundo, dando a ele continuidade a cada interrupção.

Uma subclasse bastante considerável de discursos narrativos coloca o sujeito como destinatário de um destinador transcendente, o qual institui como sujeito, com auxílio da comunicação participativa (que permite comunicar objetos-valor sob formas de doações, sem com isso deles se privar, da mesma forma como a rainha da Inglaterra, por exemplo, conserva seu poder absoluto mesmo delegando-o quase inteiramente ao Parlamento). (P. 256)

O destinador do herói, seu senso de heroísmo, antecede o ato heróico e mobiliza o herói a: 1) crer ser herói (superior, especial, capaz); 2) dever-fazer algo virtuoso; 3) poder-fazer algo virtuoso; 4) fazer algo virtuoso; 5) ser recompensado por algo virtuoso.

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1.4 Do herói ao super-herói

Além do papel arquetípico mencionado na citação de Jung, Feijó (1984) aponta a função do herói em uma sociedade dividida em classes: “o herói, ultrapassando o mito, atingiu uma nova dimensão: o herói histórico” (P.21). Esse papel histórico é guiado ideologicamente pela classe dominante, que exerce seu poder pelo controle da economia, da política e também do imaginário. “O herói torna-se figura real, palpável da história”. A representação mítica de Alexandre, O Grande, e dos imperadores romanos, na Idade Antiga, assim como os santos católicos na Idade Média, são apontados como exemplos dessa materialidade do herói na história, refletindo a hegemonia de uma forma de pensamento.

Com a chegada da Idade Moderna e o estabelecimento dos Estados nacionais e do absolutismo, a figura do herói passa a ser vinculada à do monarca, o que aparece na obra de Maquiavel, segundo Feijó (1984). “Embora estabelecendo que os fins justificam os meios, Maquiavel é o defensor de um monarca, de um rei, de um príncipe que tenha “virtudes”: justo, sábio e soberano. Um herói, enfim” (p.28). O espanhol Baltazar Gracian, em O Herói

, busca

somar a visão heróica de Maquiavel sobre o príncipe à moral católica, defendendo que o monarca deve conquistar, além da admiração por seus feitos, o reconhecimento de seu caráter cristão. À margem desse processo vinculado às classes dominantes, heróis populares como Robin Hood surgiram nas camadas desfavorecidas. “Durante toda a Idade Média, em seu período de transição para o capitalismo, bandoleiros mantinham vínculos com setores populares, advindo daí sua fama. Bandidos para as classes dominantes. Heróis para as classes dominadas” (P.31).

Poucos autores deixam tão claro o uso da figura social do herói para o controle social quanto Thomas Carlyle, na Inglaterra do século XIX. Defensor de uma​heroarquia

​ , que seria um

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os valores sociais. “O verdadeiro herói é filho da ordem; sua missão é garanti-la; e seu culto é a garantia das tradições, dos credos e das sociedades instituídas” (Feijó, 1984, p.34).

Disputada politicamente no campo da história, a figura do herói na literatura não se manteve imutável com o passar dos séculos. Mesmo na Grécia antiga, um modelo diferente de herói pode ser destacado em contraposição ao herói épico, o trágico. Enquanto o herói épico, do mito, cumpre seu destino heróico, o herói trágico luta contra este, que lhe cai mais como uma maldição, como no clássico Édipo Rei.

O herói trágico é derrotado diante da força do destino, mas o que o humaniza, o que dá a ele uma paixão terrestre, é exatamente a sua luta contra isso. O herói trágico não se conforma com o seu destino. Esta é a sua essência. Diferentemente do herói épico, ele está mais próximo do herói moderno da poesia e do romance, que têm sua entrada em cena apenas no declínio da Idade Média. (FEIJÓ, 1984, p.61-62).

Moldado por clássicos como ​A Divina Comédia, Don Quixote

e Ivanhoe, esse herói

moderno que Feijó (​1984) identifica se inicia com os grandes romances europeus e ganha em Lukács uma definição mais precisa. Categórico, o autor defende que o herói da epopeia, como os grandes heróis de Homero, não são, a rigor, indivíduos, pois existem em um mundo homogêneo onde, apesar de haver heróis e vilões, justos e criminosos, os grandes heróis se sobressaem “apenas um palmo” sobre os demais, “uma multidão de pares”.

Desde sempre considerou-se traço essencial da epopeia que seu objeto não é um destino pessoal, mas o de uma comunidade. E, com razão, pois a perfeição e completude do sistema de valores que determina o cosmos épico cria um todo demasiado orgânico para que uma de suas partes possa tornar-se tão isolada em si mesma, tão fortemente voltada a si mesma, a ponto de descobrir-se como interioridade, a ponto de tornar-se individualidade (Lukács, 2000, p.67)

A transição entre esse herói e o herói que se configura como um indivíduo começa com Dante, na ​Divina Comédia

​ . “Ele possui ainda a completude e a ausência de distância perfeitas e

imanentes da verdadeira epopeia, mas seus personagens já são indivíduos que resistem consciente e energicamente a uma realidade que a eles se fecha” (Ibidem, p.69).

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Em ​Dom Quixote

​ , esse perfil se consolida, e o herói ganha o adjetivo que, para Lukács,

lhe confere a individualidade, tornando-se o herói​problemático

​ . Como o fidalgo Dom Quixote

de la Mancha, o herói moderno não realiza façanhas, mas deseja realizá-las e não consegue. Na perspectiva de Lukács, quando o indivíduo não é problemático, seus objetivos lhe são dados com evidência imediata, sem a necessidade de descobertas, e a construção do mundo pode lhe reservar somente obstáculos e dificuldades previsíveis e, de certa forma, inofensivos para a realização de seus objetivos, já que “o perigo real só surge quando o mundo exterior não se liga mais a ideias, quando estas se transformam em fatos psicológicos subjetivos, em ideais, no homem” (Lukács, 2000, p.79). Os obstáculos físicos e previsíveis do mundo exterior, nesse caso, cedem protagonismo aos conflitos internos, dúvidas e descobertas do herói sobre si mesmo.

Essa característica dos heróis modernos se acentuou até a chegada do século XX, mas, com o surgimento das histórias em quadrinhos de super-heróis, o que se viu foi um resgate do herói virtuoso das epopeias, ao menos em um momento inicial, para que depois houvesse uma problematização que culminaria em histórias como ​Watchmen

​ .

A popularização das HQs nos Estados Unidos, terra que exportou os super-heróis para o mundo, teve início no final do Século XIX, com a publicação das tirinhas (O garoto amarelo). Assim como algumas narrativas europeias, essas histórias contavam com imagens e textos em espaços separados mas, em um determinado momento, passaram a ter falas em balões dentro das ilustrações. As características que constituem os quadrinhos, no entanto, podem ser encontradas em momentos anteriores da história. Anselmo (1975), inclui a Coluna de Trajano, levada do Egito pelo Império Romano como “uma verdadeira história em quadrinhos em espiral”, e aponta também a sequencialidade da Tapeçaria Bayeux, feita na Inglaterra. “Ao longo de seus 70 metros de sequência sucessiva, um relato da epopeia dos cavaleiros normandos” (p.41).

Os balões que hoje caracterizam boa parte das HQ têm seus antecessores mais remotos num pedaço de madeira gravada em 1370, a Tábua Protat, na qual um centurião romano, diante do Calvário, levanta um dedo em direção à cruz e declara “verre filius dei erat iste (Sim, na verdade este homem era filho de

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transmitir. Veem os estudiosos nesse filactério um precursor dos balões das HQ. (Ibidem, p.41)

Antes de ganharem fama nos Estados Unidos no final do Século XIX, as histórias em quadrinhos floresceram na Europa. As Estampas de Epinal, do início do século, são consideradas por Anselmo como introdutoras do gênero na França. Ilustrações sequenciais sem legenda de Topfeer e Busch, na Alemanha, também fizeram sucesso ao contar a história dos meninos travessos Max und Moritz, traduzidos no Brasil por Olavo Bilac como Juca e Chico. Na Inglaterra, o sucesso do herói Ally Sloper, de F. Thomas, já trazia imagens com legenda em 1884, mas foi nos Estados Unidos que o “balão” surge pela primeira vez.

Da revista Truth, primeira a publicar o Yellow Kid, para várias outras publicações jornalísticas, as histórias em quadrinhos se popularizaram e os empresários da imprensa Joseph Pulitzer e William Randolph Hearst organizaram os Syndicates, que tinham a atribuição de distribuir o conteúdo entre seus jornais e pagar um percentual das vendas aos artistas responsáveis pelo conteúdo, o que estimulou a produção e a formação de uma indústria dos quadrinhos. “Nos Estados Unidos, os jornais forneceram as condições para o florescimento das HQ, quer através dos Daily Strips (tiras cômicas diárias ou tiras diárias de quadrinhos) ou dos Sunday Comics (suplementos dominicais de quadrinhos). [...] E, observe-se, tratava-se de jornal diário para adultos” (Anselmo, 1975 p.46).

Vários gêneros surgiram até os anos 20, década em que as histórias também começaram a ser seriais, com continuidade nos números seguintes. Nasciam grandes sucessos nessa época como Tarzan, de Harold Foster, e Buck Rogers, de Phil Nowlan e Dick Calkins. Tinha início com eles a Era de Ouro dos quadrinhos, na qual outros sucessos como Flash Gordon e O Fantasma anteciparam algumas das características que os super-heróis trariam anos depois.

O Fantasma, de Lee Falk e Ray Moore, de 1936, já tratava de um combatente do crime mascarado, com roupa colante e um senso de justiça que protegia os oprimidos lutando contra a pirataria no Golfo de Bengala. Apesar de forte e ágil, ele ainda não tinha super-poderes, assim

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como Flash Gordon (1934), de Alex Raymond, que enfrentava a tirania do Imperador Ming no Planeta Mongo.

O ser humano ficou para trás quando, em 1938, a revista Action Comics publicou o primeiro número do Super-Homem, o extraterrestre superpoderoso que se disfarçava como o tímido jornalista Clark Kent, escondendo suas roupas colantes e músculos de aço que surgiam sempre que o perigo se aproximava de Metrópolis. Com o Super-Homem, voltam as características dos semi-deuses, elevados, inalcançáveis, ainda que não deixem totalmente de ser humanos comprometidos com a virtude. Alves (2002) enumera que características são essas que tornam o Super-Homem e muitos dos heróis que vieram depois dele nos quadrinhos diferenciados dos anteriores.

a) A ocultação da identidade, que já aparecia no Fantasma, é uma das principais marcas do super-herói, que se engaja voluntariamente no combate ao crime, mas de forma secreta, preservando a sua identidade e as pessoas que ama. Antes do Fantasma e do Super-Homem, cuja identidade secreta se dá pelo todo da vestimenta e não pela máscara, esconder o rosto era uma ação associada ao banditismo.

b) O super-poder é uma marca inaugurada pelo Super-Homem, capaz de voar, ver com visão de raio-x, ouvir a grandes distâncias, lançar raios dos olhos e usar força sobre-humana. Outros super-heróis que vieram depois, como o Batman, o Arqueiro Verde e o Homem de Ferro, não são dotados de poderes tão extraordinários, mas suas capacidades intelectuais e físicas são superiores às de um humano comum.

c) Como o herói de Aristóteles, o super-herói em geral possui grande integridade moral, que o impede de usar seus poderes acima da média para atitudes indignas, como roubar, assediar ou matar.

d) O super-herói costuma vestir uniforme quando combate o crime, que em geral é uma roupa colorida e colante, que exalta seu porte físico e dá liberdade de movimentação. No caso

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das super-heroínas, a ênfase da roupa muda para destacar suas formas curvilíneas e sensualidade, em uma figurativização mais sexualizada.

e) Uma das mais marcantes características do super-herói é seu nome de guerra, o codinome, que, somado ao uniforme e à identidade oculta, cria uma espécie de personagem que é incorporado pelo combatente do crime.

Essas características atingem seu grau máximo em super-heróis como o Super-Homem e o Capitão América, mas começam a ser relativizadas com o passar dos anos. Stan Lee e Jacky Kirby ao lançarem heróis como o Quarteto Fantástico e o Homem-Aranha, começam a inserir no super-herói o que poderíamos arriscar chamar de um início da problemática de Lukács, com problemas de ordem psicológica e social, como ser um adolescente tímido, franzino e adotado pelos tios (Homem-Aranha), ou um gigante grotesco de pedra que tem problemas com sua aparência (O Coisa). A integridade também deixa de ser apenas uma virtude e se torna um desafio para heróis como o Hulk, que perde o controle de sua vontade ao se encher de ódio. Mesmo o Capitão América, ao voltar na década de 70, tem suas dúvidas e passa a questionar seu lugar no mundo, questão que surge para o próprio Super-Homem quando esse perfil mais psicológico de super-herói ganha força.

Na década de 80, essa relativização se torna uma subversão, e ​Watchmen

é um dos

principais expoentes dessa fase. Em nome do combate ao crime, heróis como o Batman de “The Dark Knight Returns” (MILLER, 1986) se tornam violentos e dotados de uma integridade mais maquiavélica, em que os meios passam a ser mais flexíveis em nome dos fins. Como Rorschach, nasce o herói capaz de tudo para fazer a justiça que acredita ser a certa.

Valoroso e com um programa narrativo que, por muito tempo, carregou o maniqueísmo do bem contra o mal, o super-herói também foi veículo das disputas hegemônicas do tempo em que floresceu. Anselmo (1975) destaca que, na Segunda Guerra Mundial, os super-heróis foram, de certo modo, combatentes de seus países e até tomados como invasores de nações inimigas.

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Mesmo antes da entrada dos Estados Unidos na Guerra, alguns desenhistas já haviam tomado posição sobre a questão que eclodiria na Segunda Guerra Mundial. Veem-se, por exemplo, os heróis Milton Coniff lutando contra japoneses, o Agente Secreto X-9 perseguido por uma rede de espiões dirigida por um capitão alemão, outros heróis se enquadrando na RAF para combater hunos, ou, de forma mais explícita, um Joe Sopapo lançando um veemente apelo para que os EUA interviessem na guerra e abandonassem sua posição de neutralidade. (Anselmo, 1975, p.56)

A entrada dos Estados Unidos na Guerra fez com que super-heróis como Super-Homem e o Tarzan tomassem parte na guerra, combatendo inimigos alemães e japoneses em histórias ambientadas em diversas partes do mundo. Quando, em uma de suas revistas, o Super-Homem desmantela uma muralha de submarinos no Oceano Atlântico para que as tropas aliadas chegassem à Europa, o ministro de Hitler, Joseph Goebbels, a exclamar no Reichtag: “O Super-Homem é um judeu” (Ibidem). Como consequência da politização dos super-heróis, Alemanha, Itália, União Soviética e França tomaram medidas para proibir a venda e distribuição de HQ americanas em seu território. Na França, o Partido Comunista tentou proibir todas as HQ estrangeiras.

Envolvidos em tramas políticas, incluindo a Guerra do Vietnã e o assassinato de Kennedy, os heróis de Watchmen, se é que assim podem ser chamados, esvaziam o maniqueísmo desse engajamento político e exploram o lado pragmático dos interesses por hegemonia, dinheiro e até mesmo justiça. Os poderes de Manhattan se tornam parte da corrida armamentista com a União Soviética, a atuação do Comediante denuncia a crueldade contra os civis no Vietnã, e o plano genocida de Ozymandias ressuscita o debate sobre a legitimidade das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, que fizeram milhares de vítimas em nome do fim da guerra.

Este trabalho vai explorar de que forma é construída essa subversão, mostrando como está intimamente ligada às modalizações de cada personagem e ao julgamento veridictório que encerra a história inviabilizando uma diferenciação entre herói e falso-herói, como previa Propp em seu conto maravilhoso. Essa subversão solicitou à análise encaminhamentos que o trabalho elabora ligando pontos entre as bases da teoria formulada por Greimas e a atualização sensível

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com a qual Zilberberg a expande. Um objeto de análise que se fundamenta no relativismo e avança em uma desconstrução da rigidez de papéis que beira o pessimismo exige da semiótica tanto sua capacidade de articular o pensamento por meio de polos opostos quanto sua possibilidade de desdobrar complexidades, explorando intervalos entre os efeitos de sentido. Desse modo, a veridicção que ​Watchmen

propõe será lida para além do ​ser e do ​parecer e seus

contraditórios, se forem compreendidos apenas como um quarteto, entendendo que os tipos de parecer tônicos e átonos que ​Watchmen

​ constroi não podem ser desperdiçados nem passar

despercebidos pela análise.

A dissertação se desenvolve primeiro com uma discussão sobre o que é o conceito de herói para depois mostrar como Watchmen o desconstrói. A leitura de autores de diferentes épocas e áreas do conhecimento contribui para uma reflexão sobre esse conceito e traz consigo importantes apontamentos sobre quais aspectos levar em conta na análise do objeto.

No Capítulo 2, é descrita esta HQ de sucesso e sua trama sombria. O capítulo fala também dos padrões de quadros, cores e falas nos balões de Watchmen, dando ao leitor uma ideia geral de que história é contada e como isso é feito. A partir do Capítulo 3, tem início a análise semiótica, primeiramente com o percurso gerativo de sentido e depois com a proposta elaborada para atualizar as modalidades veridictórias, discutidas no Capítulo 4. O quarto capítulo incorpora ao trabalho as referências e formulações que são a base das modalidades veridictórias e da abordagem tensiva, para depois uni-las em uma proposta de releitura.

Na quinta parte do trabalho, a análise encontra a discussão teórica sobre a veridicção, que é testada no percurso narrativo de cada um dos protagonistas de Watchmen, para compreender de que forma suas decisões são tomadas quando valores positivos como paz, mentira e genocídio são misturados em um único polo de forma indissociável. No Capítulo 6, a dissertação é concluída com um balanço das discussões teórica e analítica e com sugestões de outros encaminhamento interessantes para a atualização proposta.

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2. Descrição do objeto

Um corpo vivo e um corpo morto contêm o mesmo número de partículas. Estruturalmente, não há diferença discernível. Vida e morte são abstrações não quantificáveis. Por que deveria me importar? (MOORE, 2011. p. 27)

Ler esse questionamento no balãozinho do super-herói mais poderoso de uma história em quadrinhos pode parecer algo assustador, fora de contexto, mas certamente não impressiona o leitor da série ​Watchmen

​ . A indiferença do Doutor Manhattan pela vida humana, assim como a

truculência e a paranoia de Rorschach, a imoralidade do Comediante ou as boas intenções infernais de Ozymandias, são traços de uma isotopia que constrói um heroísmo bem distante dos escoteiros de azul que costumam defender a América.

Já na primeira página, uma descrição desse cenário nos ambienta enquanto o sangue de um homicídio é lavado da calçada; um Comediante havia morrido em Nova York:

As ruas são sarjetas dilatadas e essas sarjetas estão cheias de sangue. Quando os bueiros finalmente transbordarem, todos os ratos irão se afogar. A imundície acumulada de todo o sexo e matanças que praticaram vai espumar até as ruas e todos os políticos e rameiras olharão para cima, gritando ‘salve-nos’. E, do alto, eu vou sussurrar: ‘não’.(MOORE, 2011, p. 1).

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As palavras são do paranóico Rorschach, um herói com tendências fascistas que continua a atuar na ilegalidade depois de ser banido pela lei em um país que passou a temer pessoas como ele. Ao saber do assassinato do Comediante, um herói que trabalhava como espião para o governo, ele inicia uma investigação pautada pela hipótese de que alguém perseguiria todos os mascarados. A história começa a se desenrolar desse ponto, e ele vai atrás de seus antigos companheiros, que tocam suas vidas como podem: uns lamentando e outros comemorando a possibilidade de voltarem a ser normais. Dr. Manhattan, com sua onipotência, havia se tornado o poder dissuasivo dos EUA contra a URSS, um atalho descomunal na corrida armamentista; Espectral, sua esposa, tornara-se apenas uma companhia perdida enquanto o semideus ficava cada vez menos humano - e mais indiferente à humanidade; Coruja mantinha sua identidade secreta guardada no porão, onde voltava para viver da nostalgia do que um dia deu sentido à sua vida; e Ozymandias, após revelar publicamente sua identidade, ficou bilionário.

Numa investigação impiedosa, Rorschach tortura, espanca e ameaça, mas a verdadeira crueldade está guardada para o final, e se revela quando a morte do Comediante parecia solucionada. Ozymandias, que estava por trás de tudo, tinha um plano ainda mais cruel: instaurar a paz mundial inventando um inimigo maior, uma ameaça tão terrível que mostraria sua força destruindo a cidade de Nova York. Estarrecidos, os outros heróis se aliviam por terem descoberto tal plano, mas o megalomaníaco antissujeito que queria salvar o mundo os surpreende:​“

​ Eu não

sou um vilão de seriados antigos. Acha mesmo que eu explicaria meu golpe de mestre se houvesse a mais diminuta chance de vocês afetarem seu desfecho? ​” (MOORE, 2011, p. 373), e completa com um quadro de Alexandre, o Grande, ao fundo:​“

​ Eu o coloquei em ação 35 minutos

atrás​” (

Ibidem, p.373​). Um flashback mostra que era verdade: um cataclisma destruiu Nova

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Figura 1: (MOORE; GIBBONS, 2011. p.373) - Ozymandias revela já ter destruído Nova York

A tônica da última e fúnebre revista da série é um dilema impossível de solucionar: encobertar a mentira para manter a paz que efetivamente se instaura entre as potências, ou revelar o maior genocida da história e pôr fim à conciliação impossível que custou a vida de milhões?

Rorschach não aceita e é morto por um dos companheiros. Dr. Manhatan o desintegra e decide abandonar a humanidade para “criar vida” em outro lugar. Antes de partir, ouve a culpa de Ozymandias:​“

​ No fim, eu estava certo? ​” (Ibidem, p. 407), pergunta o ateu ao único deus que

conhece. ​“

Não há fim ​”, é a resposta. Coruja e Espectral, desorientados com a decisão que são

obrigados a tomar, trocam de identidade, passam a viver juntos e buscam na felicidade conjugal o único remédio possível.

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Figura 2: (MOORE; GIBBONS, 2011. p.404) - Dr. Manhattan mata Rorschach

No recorte dessa análise, como o que mais interessa são as modalidades veridictórias produzidas pelo desenrolar do desfecho, o trabalho vai explorar principalmente os dois últimos capítulos. No Capítulo XI, é contada a história de Ozymandias enquanto Coruja e Rorscharch vão à sua instalação científica na Antártida desmascará-lo, mas descobrem que já é tarde demais. No Capítulo XII, conhecemos a dimensão da tragédia que se deu e sua consequência: o fim da

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Guerra Fria. Dr. Manhatan é convencido por Ozymandias a apoiá-lo e os outros heróis ficam sem opção.

As revistas de ​Watchmen

​ possuem uma estrutura que se repete em praticamente todos os

quadros: formas retangulares verticais dividem a página em nove partes na maioria das vezes, com filtros cromáticos, balões de diálogo e um plano, em geral, aproximado dos personagens sem criar closes, exibindo boa parte de seus corpos ou eles inteiros, sem que se perca a clareza do rosto e da expressão. Em alguns momentos, a forma desses quadros cresce em tamanhos graduais até que ocupem toda a página. Há quadros que não trazem balões de diálogo e os filtros mudam repentinamente em alguns momentos.

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As capas trazem uma ilustração em destaque e a numeração do capítulo na vertical, ao lado do relógio que marca a contagem do fim do mundo com o desastre nuclear. O título de cada capítulo vem em alguma das primeiras páginas, e sempre é a parte de uma citação que se revela mais completa depois do último quadro da revista. Ao final da narrativa contada nas páginas, mais algumas folhas são dedicadas a um conteúdo complementar que faz parte do universo da história, mas não se insere temporalmente na parte que ocupa, tendo papel figurativo que esse trabalho pretende explorar na análise.

3. Percurso gerativo em ​Watchmen

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O percurso gerativo do sentido, proposta de Greimas que iniciou a semiótica francesa no esmiuçamento das funções narrativas de Vladimir Propp, caminhou não apenas no sentido de condensá-las em um programa narrativo, mas com a missão de investigar seus níveis mais abstratos. Só com os modelos do russo foi possível conferir à semiótica, a partir do nível narrativo, uma gramática capaz de avaliar todos os textos realizados e possíveis.

Podemos dizer hoje em dia que a narrativa proppiana sempre se pautou pela parada da parada. Diante de um sentimento de falta imposto por um agressor (um ataque, uma privação, um sequestro), só resta ao sujeito, na concepção do antropólogo russo, empreender um projeto de recuperação do valor (concreto ou abstrato) subtraído e rejeitar veementemente a imagem de alguém conformado com a condição de “perdedor”.(TATIT, 2011. p.35-36)

De um traçado narrativo onde se movimentam os actantes para uma oposição fundamental que revela os valores mobilizadores e avaliadores dessa caminhada, a semiótica busca com seus níveis, nas relações e pressuposições, entender o que está envolvido na teia mais concreta, o que a realiza, não como subsídio externo, mas como constituinte.

Não se trata de apontar o plano de fundo, o contexto ou as condições de produção. O que a semiótica quer não está por trás ou veio antes, mas está, em primeiro lugar, na imanência textual. Ao focalizar suas lentes sobre o texto, essa abordagem visa a identificar as imbricações, as escolhas e as estratégias que articulam, por dentro, um enunciado projetado exatamente como ele é, intencionalmente, com sua concretude estruturada em um amálgama de abstrações, em uma cadeia de pressuposições, em todos os seus efeitos sensíveis e com toda a sua carga de valores. A investigação do texto estabelece também a transcendência, o exterior com que o texto se relaciona intertextualmente. Nessa relação do texto com os outros, com todos os realizados e possíveis, a semiótica integra a historicidade à analise.

“Em vez de impedir a transcendência, a imanência pelo contrário, deu-lhe uma base nova e mais sólida. A imanência e a transcendência juntam-se numa unidade superior baseada na imanência. A teoria linguística, por necessidade interna, é levada a reconhecer não apenas o sistema linguístico em seu esquema e seu uso, em sua totalidade assim como em seus detalhes, mas também o homem e a sociedade humana presentes na linguagem, e, através dela, atingir o domínio do saber humano em sua totalidade” (HJELMSLEV, 1961, p. 131-132)

Esse esforço de mergulhar e tatear o texto até mapear suas relações mais básicas e subterrâneas, no entanto, não perde de vista uma noção central sobre a narratividade: que ela é, sobretudo, ​“uma transformação situada entre dois estados sucessivos e diferentes”

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1989. p. 27). Mas uma transformação de que? Ou de quem? Se Propp identificou funções narrativas fundamentais, e Greimas as consolidou em papéis actancias obrigatórios, todos eles, por mais protagonistas que sejam, relacionam-se, amarram-se e existem em suas relações com o que ocupa uma posição central: o sujeito. Se a narratividade é um antes e um depois que movimenta sujeito, destinador, antissujeito e objeto-valor, pode-se afirmar que são as relações com o primeiro que se alteram​,​ e ele próprio, em sua busca pela sanção positiva.

Apontar o sujeito como um actante central na narrativa é reconhecer também a centralidade do recorte do analista. Quando decide eleger o sujeito de seu percurso, o semioticista parte dele para circunscrever seu objeto-valor e os vetores que o impulsionam em direção a ele ou no sentido contrário. Ao lutar pela liquidação de uma falta que o constitui como sujeito e, ao mesmo tempo, o impede de ser o sujeito que acredita dever ou querer ser, esse actante é o centro gravitacional em torno do qual orbitam as principais categorias do texto. Elas lhe servem como estímulo ou como obstáculo, recompensam ou punem suas ações, orientam seus desejos e habitam suas experiências sensíveis ao afetá-lo de todas essas formas.

Quando sintetizou esse caminho, o programa de base, Greimas reconheceu nele quatro etapas: a manipulação, a competência, a performance e a sanção (BARROS, 2011. p. 37), e, novamente, pode-se apontar a distinção de relações entre os actantes como características desses momentos. Na manipulação, a ação do destinador sobre o sujeito transmite a axiologia que define o objeto-valor, e aquilo que se opõe a ele; na doação de competência, o sujeito recebe desse destinador as modalizações cognitivas ou pragmáticas que o impulsionam em direção ao objeto, aumentando a tensão com o antissujeito. Tudo parte de uma modalização pressuposta, a do crer, em que o sujeito confere ao destinador o poder de manipular.

O destinador é aquele que comunica ao destinatário-sujeito (do âmbito do universo imanente) não somente os elementos de competência modal, mas também o conjunto de valores em jogo; é também aquele a quem é comunicado o resultado da performance do destinatário-sujeito, que lhe compete sancionar. (GREIMAS; COURTES, 2008. p. 132)

Em seguida, cabe ao destinador modalizar o sujeito pelo querer ou pelo dever, em uma primeira etapa, convencendo-o a perseguir determinado objeto, para, então, conferir a ele um poder ou um saber que possibilite a transformação do estado inicial de falta para uma posição em que o sujeito está apto a lutar pela liquidação dela.

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O percurso do destinador-manipulador contém duas etapas hierarquizadas: a atribuição de competência semântica e a de doação de competência modal. A atribuição de competência semântica está sempre pressuposta na doação de competência modal, pois é preciso que o destinatário-sujeito creia nos valores do destinador, ou por ele determinados, para que se deixe manipular. (BARROS, 2011, p. 28)

Na performance, se dá o clímax desse confronto, e ele pode ser cheio de avanços e retrocessos, num duelo entre a orientação e as capacidades conferidos pelo destinador e os obstáculos impostos pelo antissujeito; ao culminar na sanção, o sujeito, vitorioso ou derrotado pelo antissujeito, curva-se ao julgamento do destinador, que decide se o objeto-valor foi alcançado ou não. Mesmo os adjuvantes, que podem ou não aparecer no caminho, são vetores que reforçam o direcionamento do destinador e facilitam a resposta ao antissujeito.

A estratégia de projeção dessa narrativa evoca temas, por meio de figuras reconhecíveis no nível discursivo, no qual o analista identifica as isotopias, os traços semânticos recorrentes que compõem o cardápio de valores do texto, sejam eles temáticos ou figurativos. Também nesse nível são identificados narradores e interlocutores, na hierarquia de vozes projetadas no enunciado, e as categorias dêiticas de pessoa, espaço e tempo são explicitadas, em suas projeções enunciativas e enuncivas. A narratividade ganha um novo nível de concretude, e as relações entre os atores podem ser compreendidas de forma mais particular, pois esse revestimento é a composição que cada texto recebe para tornar-se uma realização única. Se, no nível narrativo, o sujeito busca, por exemplo, entrar em conjunção com o objeto-valor paz, intimidado pelo temor de uma calamidade, no nível discursivo já falamos em um super-herói que, alertado por seu mestre, quer salvar Nova York de um ataque alienígena.

Reconhecer o percurso do sujeito e o recobrimento discursivo que ele recebe são subsídios que facilitam a construção do primeiro nível do texto projetado, o fundamental. Nele, o enunciador articula uma oposição semântica que atribui valores positivos ou negativos às ideias projetadas. Desenha-se nele o quadrado semiótico, em que um valor S1 se opõe a um valor S2 - um deles eufórico e o outro disfórico - e o caminho proposto pelo texto é a negação de um (Não S1) como afirmação do outro (implicação), num binarismo que vem sendo atualizado pela teoria em caminhos que esse trabalho vai apresentar mais à frente. O nível fundamental revela, apontando esses polos da foria, a orientação que o enunciador escolheu para persuadir o enunciatário a entrar em conjunção com seus valores, na narrativa pressuposta ao texto, a do

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fazer persuasivo. Para a semiótica, todo texto tem o objetivo de levar um enunciatário a entrar em conjunção com os valores de um enunciador. Traçando um paralelo com o nível narrativo, o enunciador assume o papel de destinador, e age sobre o enunciatário, utilizando o texto para modalizá-lo (querer/dever e saber/poder) no fazer persuasivo, estando ambos disseminados na interface propiciada pelo texto.

A manipulação do enunciador exerce-se como um fazer persuasivo, enquanto ao enunciatário cabe o fazer interpretativo e a ação subsequente. Tanto a persuasão do enunciador quanto a interpretação do enunciatário se realizam pelo discurso. Para conhecer esses fazeres e, consequentemente, o enunciador e o enunciatário, torna-se necessário, portanto, analisar o texto em todos os níveis do percurso gerativo. (BARROS, 2011, p.62-63)

A relação entre os três níveis do percurso gerativo é tamanha que permite ao analista escolher por onde começar: no mais concreto (Discursivo), no mais abstrato (Fundamental) ou naquele que contém a transformação das relações do sujeito (Narrativo). A mudança que se dá nas quatro fases do programa narrativo, no entanto, só pode ser compreendida como estratégia textual se considerada com os recobrimentos que recebe e com a oposição fundamental que articula. A conclusão de uma narrativa, que se dá em um julgamento juntivo do sujeito, ao ser recoberta pelos atores e figuras discursivos, expõe o nível fundamental e seus pólos positivo (eufórico) e negativo (disfórico). Se um sujeito luta pelo objeto-valor paz, a conquista, e é sancionado positivamente por isso, o programa dá um grande indicativo de que a paz pode ser o pólo eufórico da oposição fundamental. Se o antissujeito é recoberto por temas como a violência e a guerra, e por figuras como a tortura de inocentes, o bombardeio a cidades e o assassinato, está aí outro indicador de que a oposição fundamental é entre paz e guerra. Exemplos maniqueístas como esse tornam essas relações mais visíveis, mas objetos como o escolhido para esta análise, que articulam essa mesma oposição paz e guerra, podem ter formulações surpreendentes como as que serão exploradas neste trabalho.

Identificar essas relações é vital para entender o fazer persuasivo do nível pressuposto: afinal, que valores são esses que o enunciador pretende propagar? Se o sujeito Super-Homem derrota o antissujeito Darkseid e entra em conjunção com a paz, concretizada como evitar uma tirania alienígena que prometia grande tecnologia, a análise hipotética pode ter como polo eufórico a liberdade, em oposição à opressão. No nível pressuposto, o fazer persuasivo

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argumenta: a liberdade sempre deve ser desejada, mesmo diante de uma ditadura que prometa avanços.

O enredo contado em​Watchmen segue um programa de base no nível narrativo que tem como objeto-valor a paz, ameaçada pelo antissujeito que em cada programa assume um recobrimento distinto. Essa estrutura se repete para todos os mascarados se cada um for tomado como sujeito de um programa narrativo, mas o objeto-valor não tem correspondência com os mesmos temas para todos os sujeitos. Enquanto para Rorschach a paz é a punição do crime, para Coruja e Espectral, ela é evitar a guerra nuclear, e, para Ozymandias, o sucesso do plano que sacrifica milhões de vidas. Para Dr. Manhattan, a paz é “a salvação do milagre improvável que é a humanidade” (MOORE, 2011, p.305), formada não por vidas, mas por combinações tão irrepetíveis de possibilidades genéticas, evolutivas e sociais, que não podem ser perdidas.

A manipulação que é exercida sobre os sujeitos, portanto, se dá por intimidação, concedendo o poder de, com a performance a ser executada, impedir que o mundo entre em colapso pela hecatombe atômica. No caso de Rorschach, o poder é o de impedir que o crime deixe de ser punido. Na manipulação por intimidação, o destinador-manipulador projeta valores negativos para o destinatário (sujeito), que é modalizado por um dever-fazer para impedi-las (poder-fazer) (BARROS, 2011, p.33).

O destinador que exerce essa manipulação sobre todos os personagens é o senso de heroísmo, a crença de que cabe a eles agir para impedir o desastre. Esse destinador também é figurativizado de diferentes maneiras para cada um deles. Para Rorschach, o senso de heroísmo está relacionado ao tema do ódio ao crime no nível discursivo. Para Coruja, ele envolve o tema da nostalgia, figurativizado, por exemplo, por sua relação com o antigo Coruja, Hollis Mason, um herói aposentado; por sua base secreta mantida mesmo após o fim das atividades e também pela saudade sempre mencionada dos tempos de combate ao crime. Já para Dr. Manhattan, esse senso é o de preservação da humanidade enquanto acidente irrepetível, por motivos racionais, e não afetivos, que são os mobilizadores no caso de Espectral. Ozymandias também crê que seu plano busca a paz, e de fato a obtém, e seu senso de heroísmo se relaciona com a isotopia da megalomania, em que se inserem sua adoração por Alexandre, o Grande, e Ramsés, e mesmo sua crença de que deveria ser ele a carregar a “culpa” por um ato tão atroz.

Referências

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