TATIANA PEREIRA CARVALHAL
Avaliação de Política e Planejamento da Linguagem: um estudo sobre os efeitos de um projeto de integração regional
Niterói 2016
Avaliação de Política e Planejamento da Linguagem: um estudo sobre os efeitos de um projeto de integração regional
Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos de Linguagem, da Universidade Federal Fluminense (UFF), para a obtenção do título de Doutora em Estudos de Linguagem.
Orientadora: Professora Doutora Mônica Maria Guimarães Savedra. Niterói 2016
C331 Carvalhal, Tatiana Pereira.
Avaliação de política e planejamento da linguagem : um estudo sobre os efeitos de um projeto de integração regional / Tatiana Pereira Carvalhal. – 2016.
150 f. : il.
Orientadora: Mônica Maria Guimarães Savedra.
Tese (Doutorado em Estudos de Linguagem) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2016.
Bibliografia: f. 117-122.
1. Política linguística. 2. Planejamento linguístico. 3. Sociolinguística. 4. Ideologia. 5. Linguística. 6. Avaliação. I. Savedra, Mônica Maria Guimarães. II. Universidade Federal
Fluminense, Instituto de Letras. III. Título.
AGRADECIMENTOS
A meus pais, que sempre me apoiaram em todos os meus projetos;;
À Professora Mônica Maria Guimarães Savedra, quem acolheu e alimentou meu interesse de pesquisa, e, ao longo dos quatro anos, orientou esta investigação;;
À Professora e amiga Ana Catarina Moraes Ramos Nobre de Mello, quem, desde a graduação, me indica novos caminhos e desafios;;
Aos Professores do Programa Interdisciplinar de Linguística Aplicada da UFRJ, Professora Branca Falabella Fabrício e Professor Luiz Paulo da Moita Lopes, e aos Professores do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da UFF, Professora Telma Cristina Pereira e Professor Xoán Carlos Lagares, com os quais aprendi a pesquisar e a problematizar, em sua complexidade, questões contemporâneas, em particular aquelas em que a linguagem exerce um papel central;;
Às Professoras Maria Eta Vieira e Jorgelina Tallei, pelo companheirismo diário na construção da Unila que queremos;;
A Peterson e Tamara, que, com tanto carinho, cuidaram da Chiara enquanto eu escrevia este trabalho;;
Às amizades construídas em Foz do Iguaçu, que me deram ar para seguir refletindo e escrevendo.
(...)
Ojalá podamos tener el coraje de estar solos y la valentía de arriesgarnos a estar juntos, porque de nada sirve un diente fuera de la boca, ni un dedo fuera de la mano.
Ojalá podamos ser desobedientes cada vez que recibimos órdenes que humillan nuestra conciencia o violan nuestro sentido común.
Ojalá podamos merecer que nos llamen locos, como han sido llamadas locas las Madres de Plaza de Mayo, por cometer la locura de negarnos a olvidar en los tiempos de la amnesia obligatoria.
Ojalá podamos ser tan porfiados para seguir creyendo, contra toda evidencia, que la condición humana vale la pena, porque hemos sido mal hechos, pero no estamos terminados.
Ojalá podamos ser capaces de seguir caminando los caminos del viento, a pesar de las caídas y las traiciones y las derrotas, porque la historia continúa, más allá de nosotros, y cuando ella dice adiós, está diciendo: hasta luego.
Ojalá podamos mantener viva la certeza de que es posible ser compatriota y contemporáneo de todo aquel que viva animado por la voluntad de justicia y la voluntad de belleza, nazca donde nazca y viva cuando viva, porque no tienen fronteras los mapas del alma ni del tiempo.
(Galeano, Eduardo. Palabras de agradecimiento al recibir el Premio Stig Dagerman, 2010)
RESUMO
CARVALHAL, Tatiana Pereira. Avaliação de Política e Planejamento da Linguagem: um
estudo sobre os efeitos de um projeto de integração regional. 2016. 150f. Tese
(Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, Universidade Federal Fluminense, Niterói.
Esta investigação visa a avaliar a política e planejamento da linguagem de uma universidade federal brasileira pautada em um projeto de integração latino-americana de educação bilíngue em português e espanhol. Particularmente, foram avaliados os efeitos desse projeto sobre o perfil sociolinguístico e ideologias linguísticas dos estudantes. Situado no campo interdisciplinar de pesquisas de Política e Planejamento da Linguagem (PPL), e com foco no eixo avaliação, o presente estudo integrou análises de natureza quantitativa e qualitativa e propôs um enquadre analítico baseado em três dimensões, conjuntural, social e individual, de modo a construir uma compreensão ampla dos efeitos e dos fatores que os geraram. A partir desse procedimento analítico-metodológico, identificou-se que atuam, na política e planejamento da linguagem institucionais, além da proposta de educação bilíngue e do ensino obrigatório de espanhol e português, fatores como a localização na fronteira trinacional formada por Argentina, Brasil e Paraguai e a composição discente e docente da Universidade. A avaliação realizada mostrou que a (inter)ação desses fatores com diferentes orientações ideológicas de política da linguagem gerou múltiplos efeitos na comunidade estudantil, relacionados a processos de mudança e manutenção nos usos e conhecimento das línguas, bem como nas ideologias linguísticas. Quanto aos usos, avaliou-se que tais fatores contribuíram tanto para o contato, integração e usos bilíngues quanto para o conflito, exclusão e transferência de relações assimétricas da região para a universidade. Ademais, contribuíram também para um avanço desigual no aumento do conhecimento e usos do espanhol e do português nos ambientes familiar e educacional, bem como para a perda de outras línguas nesses ambientes, especialmente das originárias. Com relação aos efeitos nas ideologias linguísticas, foi avaliado que a política e planejamento da linguagem da instituição, ao se pautarem na educação bilíngue em espanhol e português e atribuírem a estas a função de línguas de ensino e de produção de conhecimento científico, promoveram o fortalecimento das duas línguas majoritárias, entretanto, no que tange a demais línguas, em especial as originárias, novamente favoreceram a redução do seu status. Por fim, discutiu-se a divergência entre a política e planejamento de integração, de identidade e da linguagem, e se concluiu que o alinhamento dessas diversas políticas e planejamentos seria um possível caminho para o avanço da instituição em direção aos seus objetivos.
Palavras-chave: Política e Planejamento da Linguagem. Ideologia linguística. Avaliação.
RESUMEN
CARVALHAL, Tatiana Pereira. Evaluación de Política y Planificación del Lenguaje: un
estudio sobre los efectos de un proyecto de integración regional. 2016. 150p.Tesis
(Doctorado) – Programa de Postgrado en Estudios del Lenguaje, Universidad Federal Fluminense, Niterói.
Esta investigación procura evaluar la política y la planificación del lenguaje de una universidad federal brasileña pautada en un proyecto de integración latinoamericana de educación bilingüe en portugués y español. Particularmente, fueron evaluados los efectos de ese proyecto sobre el perfil sociolingüístico e ideologías lingüísticas de los estudiantes. Situado en el campo interdisciplinar de investigaciones sobre Política y Planificación del Lenguaje (PPL), y con foco en el eje evaluación, el presente estudio integró análisis de naturaleza cualitativa y cuantitativa y propuso un encuadramiento analítico basado en tres dimensiones, coyuntural, social e individual, de modo de construir una comprensión amplia de los efectos y de los factores que los generan. A partir de este procedimiento analítico-metodológico, se identificó que actúan, en la política y la planificación del lenguaje institucional, además de la propuesta de educación bilingüe y de la enseñanza obligatoria de español y portugués, factores como la localización en la frontera trinacional formada por Argentina, Brasil e Paraguay y la composición dicente y docente de la universidad. La evaluación realizada mostró que la (inter)acción de estos factores, con diferentes orientaciones ideológicas de políticas del lenguaje, generó múltiples efectos en la comunidad estudiantil, relacionados a procesos de cambios y manutención en los usos y conocimiento de las lenguas, bien como en las ideologías lingüísticas. En cuanto a los usos, se evaluó que tales factores contribuyeron tanto para el contacto, integración y bilingüismo, como para el conflicto, exclusión y transferencia de relaciones asimétricas de la región para la universidad. Además, contribuyeron también para un avance desigual en el conocimiento y usos del español y del portugués en los ambientes familiar y educacional, bien como para la pérdida de otras lenguas en esos ambientes, especialmente de las originarias. En relación a los efectos en las ideologías lingüísticas, fue evaluado que la política y planificación del lenguaje de la institución al pautarse en la educación bilingüe en español y portugués, atribuyeron a estas la función de lenguas de enseñanza y de producción del conocimiento científico y promovieron el fortalecimiento de dos lenguas mayoritarias, mientras que en el concierne a las demás lenguas, especialmente las originarias, nuevamente favorecieron la reducción de su status. Finalmente, se discutió la divergencia entre la política y la planificación de integración, de identidad y del lenguaje, y se concluyó que el alineamiento de esas diversas políticas y planificación sería un posible camino para el avance de la institución en dirección a sus objetivos.
Palabras clave: Política y Planificación del Lenguage. Ideología lingüística. Evaluación.
ABSTRACT
CARVALHAL, Tatiana Pereira. Evaluation of Language Policy and Planning: a study of
the effects of a regional integration project. 2016. 150p. PhD Thesis – Postgraduate
Program in Language Studies, Federal Fluminense University, Niterói.
This investigation aims to evaluate the language policy and planning featured in a Brazilian federal university based on a Latin American integration project with bilingual education in Portuguese and Spanish. The effects on this project over the sociolinguistic profile of students and their linguistic ideologies were thoroughly analyzed. Lying in the interdisciplinary field of Language Policy and Planning (LPP), with a focus on evaluation, this study integrated quantitative and qualitative analyses, and proposed an analytical framework in three dimensions, conjunctural, social and individual, in order to build a wide comprehension of the effects and the factors from which they were generated. According to this analytical and methodological procedure, it was verified that, besides the bilingual education proposal and the compulsory teaching of Spanish and Portuguese, factors such as the location in the trinational region of Argentina, Brazil and Paraguay and how the student body and faculty are constituted also have an impact on the institutional language policy and planning. The evaluation revealed that the interaction of these factors, along with different ideological orientations of language policies, generated several effects amongst students, in processes of changing or maintaining the use and kwnoledge of languages, as well as the linguistic ideologies. As far as use is concerned, it was demonstrated that these factors contributed not only to the contact, integration and bilingual uses of languages, but also to conflicts, exclusion and the transfer of asymmetric relationships from the region to the university. Moreover, there was an uneven progress in the grown of knowledge and in the use of Spanish and Portuguese at the family and educational environments, along with the loss of other languages at these environments, mainly their native ones. Regarding the effects in the linguistic ideologies, it was verified that language policy and planning in the institution, by relying on bilingual education in Spanish and Portuguese, and their role as languages of instruction and production of scientific work, strengthened both major languages. Nevertheless, the other languages, particularly the native ones, were once again excluded or had their status diminished. Finally, a thorough discussion concerning the divergence between policies of integration, identity and language took place, and it was concluded that the alignment of these several policies and plans would enable the institution to move forward towards its objectives.
Keywords: Language Policy and Planning. Language ideology. Evaluation.
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1- Nacionalidade dos estudantes ingressantes ... 65
Gráfico 2- Nacionalidade dos estudantes formandos ... 65
Gráfico 3- Sexo dos estudantes ingressantes ... 65
Gráfico 4- Sexo dos estudantes formandos ... 66
Gráfico 5- Idade dos estudantes ingressantes ... 66
Gráfico 6- Idade dos estudantes formados ... 67
Gráfico 7- Usos das línguas no ambiente residencial ... 73
Gráfico 8- Usos das línguas no ambiente residencial-estudantil ... 74
Gráfico 9- Usos das línguas no ambiente educacional: ensino básico ... 76
Gráfico 10- Expectativas de uso das línguas no ambiente educacional: ensino superior... 77
Gráfico 11- Usos das línguas no ambiente educacional: ensino superior …….…… 80
Gráfico 12- Uso da LA falada no ensino, na pesquisa e na extensão ... 82
Gráfico 13- Uso da LA escrita no ensino, na pesquisa e na extensão ... 83
Gráfico 14- Nível de compreensão da LA dos estudantes ingressantes no ambiente residencial ... 84
Gráfico 15- Nível de compreensão da LA dos estudantes formandos no ambiente residencial ... 84
Gráfico 16- Nível de produção da LA dos estudantes ingressantes no ambiente residencial ... 85
Gráfico 17- Nível de produção da LA dos estudantes formandos no ambiente residencial ... 85
Gráfico 18- Nível de compreensão da LA dos estudantes ingressantes no ambiente educacional ... 86
Gráfico 19- Nível de compreensão da LA dos estudantes formandos no ambiente educacional ... 86
Gráfico 20- Nível de produção da LA dos estudantes ingressantes no ambiente educacional ... 87
Gráfico 21- Nível de produção da LA dos estudantes formandos no ambiente educacional ... 87
Gráfico 22- Posicionamentos dos estudantes ingressantes frente à L1 e à LA ... 88
Gráfico 23- Posicionamentos dos estudantes formandos frente à L1 e à LA ... 89
Gráfico 24- Ideologias linguísticas dos estudantes ingressantes ... 90
Gráfico 26- Ideologias dos estudantes ingressantes acerca da educação bilíngue .. 92 Gráfico 27- Ideologias dos estudantes formandos acerca da educação bilíngue .... 92 Gráfico 28- Línguas de interesse dos estudantes ingressantes ... 93 Gráfico 29- Línguas de interesse dos estudantes formandos ... 94
LISTA DE TABELAS
Tabela 1- Relação entre expectativas e usos das línguas no ambiente
educacional: ensino superior ……….… 81 Tabela 2- Relação entre posicionamentos frente à L1 ... 89 Tabela 3- Relação entre posicionamentos frente à LA ... 89
LISTA DE ESQUEMAS
Esquema 1- Segundo modelo de planejamento linguístico proposto por
Haugen (1983) ... 23 Esquema 2- Orientações ideológicas nas políticas culturais e da linguagem
propostas por Hamel (1999, 2013) ... 27 Esquema 3- Do balanço à avaliação: elementos de informação do discurso
avaliativo, de Jean-Michel (2010) ... 38 Esquema 3 - Enquadre analítico ... 68
LISTA DE SIGLAS
ACD Análise Crítica do Discurso L1 Língua Primeira
LA Língua Adicional
Mercosul Mercado Comum do Sul
PPL Política e Planejamento da Linguagem
Unila Universidade Federal da Integração Latino-Americana
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO... 15
2 PERSPECTIVAS TEÓRICAS EM POLÍTICA E PLANEJAMENTO DA LINGUAGEM ... 19
2.1 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS ACERCA DE LÍNGUA E LINGUAGEM ... 19
2.1.1 Língua e linguagem sob perspectivas estruturalistas ... 19
2.1.2 Língua e linguagem sob perspectivas pós-estruturalistas ... 20
2.2 O CAMPO DE ESTUDOS DE PPL ... 21
2.2.1 Enquadres, modelos e objetivos iniciais de PPL ... 22
2.2.2 Desenvolvimento do campo de PPL ... 24
2.3 CONVERGÊNCIAS EM PPL: LINGUAGEM, IDENTIDADE E POLÍTICA ... 30
2.3.1 A centralidade da linguagem e da cultura em PPL ... 31
2.3.2 A política em PPL ... 34
2.3.3 Síntese para um marco conceitual de PPL ... 36
2.4 AVALIAÇÃO DE PPL ... 37
2.4.1 Planos avaliativos ... 37
2.4.2 Ideologia linguística ... 39
3 POLÍTICA DA LINGUAGEM E INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA ... 42
3.1 POLÍTICAS E PLANEJAMENTOS DA LINGUAGEM NO MERCOSUL ... 42
3.1.1 A oficialização das línguas no Mercosul ... 43
3.1.2 As políticas da linguagem do Setor Educacional do Mercosul ... 45
3.1.3 Políticas da linguagem para as regiões fronteiriças ... 51
3.2 A UNILA E A POLÍTICA E PLANEJAMENTO DA LINGUAGEM PARA INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA ... 53
3.2.1 O cenário geopolítico de criação da Unila ... 54
3.2.2 A política e planejamento da linguagem da Unila ... 56
3.2.3 Avaliações a priori acerca da política da linguagem da Unila ... 58
4 PROCEDIMENTOS ANALÍTICO-METODOLÓGICOS ... 61
4.1 GERAÇÃO DE DADOS ... 61
4.1.1 Leitura documental ... 61
4.1.2 Questionários sociolinguísticos ... 62
4.2 PERFIL DA AMOSTRA ... 64
5 ANÁLISE DAS MUDANÇAS NOS USOS, CONHECIMENTOS E
IDEOLOGIAS DAS LÍNGUAS ... 69
5.1 ESFERA CONJUNTURAL... 69
5.1.1 A Unila e o contexto geolinguístico ... 69
5.1.2 A comunidade acadêmica ... 71
5.1.3 As práticas de usos das línguas ... 72
5.1.3.1 No ambiente residencial ... 72
5.1.3.2 No ambiente residencial-estudantil ... 74
5.1.3.3 No ambiente educacional: ensino básico ... 75
5.1.3.4 No ambiente educacional: ensino superior ... 80
5.2 ESFERA INDIVIDUAL ... 83
5.2.1 Compreensão da língua adicional no ambiente residencial ... 84
5.2.2 Produção da língua adicional no ambiente residencial ... 85
5.2.3 Compreensão da língua adicional no ambiente educacional ... 86
5.2.4 Produção da língua adicional no ambiente educacional ... 87
5.3 ESFERA SOCIAL ... 88
5.3.1 Posicionamentos frente à L1 e à LA ... 88
5.3.2 Ideologias com relação à educação bilíngue ... 91
5.3.3 Ideologias com relação a outras línguas ... 93
6 AVALIAÇÃO DA POLÍTICA E PLANEJAMENTO DA LINGUAGEM INSTITUCIONAIS ... 95
6.1 A (INTER)AÇÃO DE FATORES INTERNOS E EXTERNOS COM A POLÍTICA E PLANEJAMENTO DA LINGUAGEM ... 95
6.1.1 Aspectos econômicos e sócio-históricos da região fronteiriça ... 96
6.1.2 A proposta de educação bilíngue e o ensino das línguas ... 99
6.1.3 A composição da comunidade acadêmica ... 100
6.2 A (INTER)AÇÃO DAS ORIENTAÇÕES IDEOLÓGICAS COM A POLÍTICA E PLANEJAMENTO DA LINGUAGEM ... 102
6.2.1 Orientação ideológica de exclusão ... 103
6.2.2 Orientação ideológica de inclusão e subordinação ... 104
6.2.3 Orientação ideológica de inclusão e interculturalidade ... 105
6.3 A (INTER)AÇÃO DAS POLÍTICAS DE INTEGRAÇÃO E DE IDENTIDADE COM A POLÍTICA E PLANEJAMENTO DA LINGUAGEM ... 106
6.3.1 Políticas de integração e de identidade ... 107
6.3.2 Integração e ideologias linguísticas ... 110
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 112
REFERÊNCIAS ... 117
ANEXOS ... 123
ANEXO A – Questionário aplicado aos estudantes ingressantes ... 123
ANEXO B – Questionário aplicado aos estudantes formandos ... 127
ANEXO C – Respostas dos estudantes ingressantes ... 131
ANEXO D – Respostas dos estudantes formandos ... 140
1 INTRODUÇÃO
A presente investigação, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal Fluminense (UFF), especificamente na linha História, política e contato linguístico, tem como tema a avaliação dos efeitos da política e planejamento da linguagem de um projeto de educação superior bilíngue. É importante destacar que, apesar de esta investigação se apresentar como uma pesquisa sociolinguística, considera-se Política e Planejamento da Linguagem como um campo de pesquisa interdisciplinar, constituído necessariamente na interseção das ciências sociais e das humanidades. As discussões e análises não perpassam, destarte, apenas a Sociolinguística e a Análise Crítica do Discurso, mas também as diversas áreas das ciências humanas, sociais, econômicas e política, entendendo que estas intervêm, conjunta e significativamente, nos usos da linguagem.
Devido à complexidade das questões que envolvem, ao mesmo tempo, linguagem, identidade, sociedade e política e à configuração tardia desse campo de pesquisas, ainda não é possível fazer referência a uma teoria de Política e Planejamento da Linguagem (PPL), todavia, tal como proposto em diversos trabalhos introdutórios (Cf. Hamel, 1999;; Calvet, [1996]2007;; Ricento, 2006), um caminho para sua compreensão consiste na retomada e na reflexão crítica dos domínios de diferentes estudos realizados nesse campo de pesquisa.
De modo geral, reconhece-se que os primeiros estudos, realizados nas décadas de 1950 e 1960, centraram-se na descrição de línguas autóctones, elaboração de gramáticas e de dicionários, bem como na elaboração de políticas da linguagem direcionadas à unificação nacional. Se, por um lado, visualizam-se, nesses estudos, políticas e planejamentos da linguagem voltados a línguas com menor status, por outro lado, visualizam-se políticas e planejamentos que favoreceram a manutenção do status das línguas coloniais. Baseados em uma ideologia de monolinguismo e de escolha linguística como escolha racional, em que todas as opções estariam ou poderiam estar igualmente disponíveis para todos (Cf. Ricento, 2006), estes estudos contribuíram para que às antigas línguas coloniais da África, América do Sul e Ásia fossem atribuídas funções em domínios formais e especializados, enquanto às línguas autóctones fossem atribuídas funções em outros domínios, com menor status, favorecendo, em consequência, o prestígio e o desenvolvimento das antigas línguas coloniais, em detrimento das locais.
Nesses primeiros estudos, que constituíram o campo de pesquisa a partir do eixo de planejamento, foram propostos diversos modelos para agir sobre determinados cenários multilíngues em que se visualizavam “problemas linguísticos”. Nessa perspectiva, os modelos elaborados contemplavam, inicialmente, a escolha de uma língua, culminando com sua cultura e com seu desenvolvimento (Cf. Haugen, 1966, 1983;; Neustupny, 1974). Destaca-se,
desde já, a possibilidade assumida de se poder intervir sobre a linguagem, embora não se pretenda com isso simplificar a complexidade das questões envolvidas (Cf. Capítulo 2). No que tange ao status das línguas, diversas designações e atributos foram elaborados para classificar as línguas, tais como: majoritária, minoritária e de status especial;; vernácula, padrão, clássica, artificial, dialeto, pidgin, crioula;; gregária, oficial, veicular, de ensino, religião, internacional e língua objeto de ensino etc. (Cf. Ferguson, 1959;; Stewart, 1962, 1968), o que contribuiu, certamente, para o reconhecimento das situações desiguais em se relacionam as línguas (e seus falantes). Nesse entendimento, destaca-se a perspectiva de conflito nas situações multilíngues de contato (Cf. Ninyoles, 1975).
Com a reorientação das pesquisas no campo de Política e Planejamento da Linguagem, a partir da década de 1970, em decorrência do desenvolvimento das teorias críticas e pós-modernas, bem como de uma nova teoria da língua, em que se passa de língua à linguagem e à sua compreensão como discurso, isto é, como produto dinâmico constituído da inter-relação de múltiplos fatores, sociais, políticos, econômicos, culturais etc., e constituinte do mundo social, ganham ênfase orientações voltadas ao pluriculturalismo e plurilinguismo, à luta contra as desigualdades linguísticas e culturais, ao reconhecimento e promoção de diversas outras línguas, e não mais apenas das hegemônicas. Com base nessas novas orientações ideológicas, os estudos em Política e Planejamento da Linguagem passam a considerar os cenários multilíngues como espaços constituídos por relações assimétricas de poder entre grupos, sejam eles indivíduos, estados ou instituições supranacionais, e a elaborar propostas de intervenção contra a discriminação e exclusão de culturas, línguas e de seus falantes.
Orientado por esses novos estudos em Política e Planejamento da Linguagem, baseados numa compreensão de linguagem enquanto discurso e preocupados com o desenvolvimento de políticas equitativas em complexos cenários multilíngues, o presente estudo focaliza a avaliação dos efeitos da implementação de uma proposta de educação superior bilíngue em espanhol e português, em um contexto de integração latino-americana. Avaliação de Política e Planejamento da Linguagem, todavia, ainda é um eixo pouco desenvolvido, contando com pouca bibliografia, o que sugere a necessidade de se refletir não apenas sobre uma teoria de Política e Planejamento da Linguagem, mas também, paralelamente, sobre modelos de avaliativos que contemplem a complexidade dos aspectos envolvidos na elaboração e implementação dessas políticas. Considerando que, nas últimas décadas, uma série de propostas de política da linguagem foi implementada, justifica-se ainda mais o desenvolvimento do eixo de avaliação em Política e Planejamento da Linguagem.
Tal como mencionado, o presente estudo visa a contribuir com o avanço dos estudos nesse campo de pesquisa, tendo como objetivo geral avaliar os efeitos da política e
planejamento da linguagem de uma instituição de ensino superior com a proposta de educação bilíngue. Especificamente, o estudo tem os seguintes objetivos:
(i) Contextualizar a criação da Universidade em foco, bem como sua proposta inicial de política e planejamento da linguagem;;
(ii) Analisar o perfil sociolinguístico e as ideologias linguísticas dos estudantes formandos e ingressantes, focalizando as mudanças e manutenções;;
(iii) Avaliar a política e o planejamento da linguagem institucionais a partir dos efeitos a eles atribuídos.
Para tanto, esta investigação foi orientada pelas seguintes questões de pesquisa: a) Em que contexto é proposta a criação de uma universidade de integração latino-americana tendo como princípio a educação bilíngue? b) Que mudanças e manutenções ocorreram nos usos e conhecimento das línguas, bem como nas ideologias linguísticas dos estudantes? c) Como a política e o planejamento da linguagem institucionais influenciaram essas mudanças e manutenções?
Tais questões visam a encaminhar a presente investigação, de modo a contribuir com os estudos no campo de pesquisa de Política e Planejamento da Linguagem, especificamente no que tange ao eixo da avaliação, além de almejar, de alguma forma, contribuir na prática com o planejamento da linguagem da instituição em foco. Tais propósitos afiliam-se a perspectivas que consideram a influência da teoria na prática e vice-versa. Cabe esclarecer que a pesquisa foi realizada por uma docente da área de ensino de português como língua adicional, envolvida, portanto, diretamente com questões relacionadas ao planejamento da linguagem da instituição em foco.
Quanto à estruturação deste trabalho, após este capítulo introdutório, constam mais cinco capítulos e, por fim, as considerações finais. No Capítulo 2, a seguir, propõe-se uma revisão teórica dos estudos no campo de Política e Planejamento da Linguagem, bem como dos modelos e esquemas propostos para compreender as situações multilíngues e o desenvolvimento das políticas e planejamentos da linguagem. Discute-se também a preferência pelo termo linguagem, em detrimento de linguística e a convergência entre linguagem, identidade e política nesse campo de pesquisa.
Em seguida, no Capítulo 3, é abordada a relação entre a política de integração latino- americana e a política e planejamento da linguagem. Parte-se de uma perspectiva mais ampla, retomando e refletindo sobre a política e planejamento da linguagem desenvolvidas no âmbito do bloco regional Mercosul, a partir da leitura das atas das reuniões do GT de Políticas Linguísticas e do Comitê Assessor de Políticas Linguísticas, e, numa perspectiva mais especifica, contextualiza-se a proposta de criação de uma universidade para a
integração latino-americana, bem como sua política e planejamento da linguagem iniciais e as primeiras avaliações sobre o projeto.
No Capítulo 4, são apresentados a natureza da pesquisa e os procedimentos analítico- metodológicos empregados tanto na geração quanto na análise dos dados. Com base em um enquadre analítico elaborado para esta pesquisa, visa-se a propor um modelo para avaliação da política e planejamento da linguagem no contexto em foco, contribuindo com a reflexão sobre o eixo de avaliação no campo de pesquisa em questão.
No Capítulo 5, a partir desse enquadre analítico proposto, são apresentados e analisados os dados, tanto quantitativos como qualitativos, de modo integrado, visando, com isso, a construir uma compreensão ampla das mudanças e manutenções nos usos e conhecimento das línguas e nas ideologias linguísticas e a identificar possíveis fatores que podem ter contribuído com tais efeitos.
No Capítulo 6, propõe-se a avaliação propriamente dita dos efeitos da política e planejamento da linguagem, atribuindo às mudanças e manutenções no perfil sociolinguístico e nas ideologias linguísticas dos estudantes aspectos da política e planejamento da linguagem.
Por último, no Capítulo 7, são apresentadas as conclusões, considerações finais e perspectivas futuras.
Após estas considerações introdutórias, inicia-se a seguir a parte teórica deste trabalho.
2 PERSPECTIVAS TEÓRICAS EM POLÍTICA E PLANEJAMENTO DA LINGUAGEM
A constante reconstrução de objetos de pesquisa e de metodologias gerou, nas últimas décadas, uma multiplicação de ciências da linguagem. Tal como chama atenção Narvaja de Arnoux (2008, p. 11), essa construção de novas disciplinas deve ser entendida como estabilização sempre transitória, sujeita ao dinamismo próprio do trabalho científico. Nesse sentido, compreende-se Política e Planejamento da Linguagem (PPL) como disciplina e como campo de estudos, cuja origem pode ser localizada no contexto das mudanças sociais e políticas da segunda metade do século XX. Neste primeiro capítulo, busca-se esclarecer o que se entende por política da linguagem e, consequentemente, explicitar o marco teórico em que a presente investigação se insere. Este capítulo inicia-se com uma abordagem acerca das noções de língua e linguagem, a fim de explicar teoricamente a preferência por política
da linguagem, em detrimento de política linguística. Em seguida, discute-se a relação entre
linguagem, identidade e política, situando, por conseguinte, esta pesquisa em um campo de estudos interdisciplinar das ciências humanas e sociais, e, por fim, abordam-se as perspectivas acerca de avaliação em Política e Planejamento da Linguagem, de modo a compreender as bases teórico-analíticas desta investigação.
2.1 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS ACERCA DE LÍNGUA E LINGUAGEM
A compreensão de política da linguagem e política linguística, termo este mais comumente utilizado em língua portuguesa para definir o campo de estudos, baseia-se primordialmente na visão de língua e de linguagem como construtos distintos, tendo efeitos, por consequência, na configuração do objeto e objetivos dos estudos (linguísticos e da linguagem). Entretanto, tanto o termo língua quanto o termo linguagem recobrem diversos conceitos, o que gera, já de início, a necessidade de uma compreensão teórica destes dois termos.
2.1.1 Língua e linguagem sob perspectivas estruturalistas
Língua e linguagem, termos distintos nas línguas latinas, foram objeto de diversos
estudos e sistematizações. Apesar de haver uma longa trajetória de investigações sobre língua, considera-se, comumente, que esses estudos ganharam expressão no início do século XX, com a publicação do Curso de Linguística Geral, de Ferdinand Saussure, base para o surgimento da ciência da Linguística. Nos estudos dessa época, mesmo compreendendo o caráter social da língua, delimitou-se como objeto a língua (langue) enquanto forma, sistema
abstrato de regras, princípios e restrições. Em um pensamento estruturalista, compreendeu- se que língua, formada por elementos inter-relacionados e operando a partir de um conjunto de regras, consistia em um sistema articulado, uma estrutura. Apesar da constatação do caráter social da língua, os estudos desenvolvidos nessa abordagem estabeleciam que a língua deveria ser estudada de forma imanente, isto é, em si mesma e por si mesma, afastada de todos os aspectos extralinguísticos. A linguagem, contudo, foi compreendida nesse momento como um objeto duplo, abrangendo tanto um aspecto social quanto individual, embora não tenha sido foco de muitos estudos.
Privilegiando a estrutura da língua e tendo como objetivo a sua descrição somente a partir de suas relações internas, foi gerada uma linguística moderna enquanto ciência, centrada na forma. Com isso, seja a partir dos estudos de Saussure, no âmbito da construção de uma linguística estruturalista europeia, seja a partir dos estudos de Leonard Bloomfield, no âmbito do estruturalismo estadounidense, os estudos da língua propostos visavam a descrever as relações entre seus elementos internos em um determinado momento. Pode-se dizer que os estudos nessa corrente de pensamento foram predominantes na primeira metade do século XX. Todavia, é importante destacar que os diversos estudos orientados por perspectivas estruturalistas apresentam algumas divergências. No contexto estadounidense, onde coexistiam várias línguas ameríndias, Edward Sapir (1921) atenta para a relação entre linguagem e cultura, e como a linguagem pode influenciar o pensamento, visão aprimorada vinte anos depois na tese Sapir-Whorf.
De um modo geral, pode-se dizer que os estudos baseados em perspectivas estruturalistas privilegiaram o objeto língua enquanto sistema abstrato a ser descrito isoladamente. Aspectos sociais e culturais, bem como a semântica e a pragmática, não compunham o foco de interesse de grande parte dos pesquisadores.
2.1.2 Língua e linguagem sob perspectivas pós-estruturalistas
Com o avanço dos estudos na área e com o surgimento de novas correntes de estudo, em especial, a sociolinguística, na década de 1950, o foco passa a recair sobre os usos reais da língua, enfatizando a relação entre estruturas linguísticas e aspectos sociais e culturais da produção linguística. Há, pois, uma grande virada, e o entendimento de língua enquanto estrutura autônoma dá lugar a uma compreensão de língua enquanto instituição social, sendo, nesse sentido, dependente do contexto situacional, da cultura e da história dos seus usuários. Tendo como princípios a variação e a mudança, visava-se, nessa nova corrente de estudos, compreender os principais fatores internos e, particularmente, os externos que motivam a variação e a mudança linguística, quer sejam regional, social ou de registro. Dada a natureza
desses fatores, social, cultural, psíquica, geográfica, histórica etc., configura-se um campo interdisciplinar de estudo.
Dentre as muitas abordagens acerca de língua e linguagem elaboradas ao longo da segunda metade do século XX, destaca-se aqui a socioconstrucionista, oriunda da Sociologia do conhecimento, baseada no argumento de que a realidade não é algo dado, mas sim estruturado espacial e temporalmente e compartilhado com outros (Cf. Berger e Luckman, 1966, p. 26-28). Conforme apresenta Vivien Burr ([1995]2008, p. 46), em sua introdução ao socioconstrucionismo, a linguagem está no centro do processo de construção social, ela possibilita um modo de estruturar a experiência do mundo a partir de conceitos que não existiam previamente, mas que foram construídos para isso. De acordo com Burr ([1995]2008, p. 47-48), as relações entre linguagem e pensamento e entre linguagem e ação sofreram uma grande mudança. Nessa corrente de pensamento, uma pessoa não pode pré-existir à linguagem, porque é a linguagem que a configura. Tudo é moldado pela linguagem, mas esta é igualmente moldada socialmente, o que retira sua possível condição de neutralidade. Apesar dessa relação dialógica, considera-se ainda a possibilidade de construções alternativas da linguagem, de si e do mundo social. Essa possiblidade de mudança pode ser considerada um acréscimo das teorias pós-estruturalistas à noção do signo. Nesse sentido, toma-se a noção estruturalista de signo linguístico, composto por um significante (imagem acústica) e um significado (conceito) e a relação arbitrária entre eles, e se desestabiliza essa relação, ou seja, não se fixa a relação entre o significante e o significado, tal como na teoria saussuriana. Com isso, abre-se espaço para a mudança na linguagem, nas identidades e no mundo social e, nesse sentido, entende-se que a linguagem está diretamente conectada com a ação social e, especialmente, com a mudança social. Nessa compreensão acerca de língua e de seus efeitos sociais, extremamente distante de uma visão estruturalista, e mais ampla que uma visão funcionalista, tem-se comumente utilizado o termo linguagem, ou ainda,
discurso, compreendido como construto social e como ação social.
Entende-se que é nesse deslocamento de língua para linguagem que se baseia, em parte, a noção de política da linguagem. Devido à falta de uma teoria geral de Política e Planejamento da linguagem (PPL), por conta da complexidade das questões que envolvem a linguagem e a sociedade, tanto a disciplina quanto o campo de pesquisa são frequentemente discutidos a partir dos enquadres e modelos propostos em diversos estudos. É, pois, isto que se fará a seguir.
2.2 O CAMPO DE ESTUDOS DE PPL
Apesar da longa trajetória de existência de políticas e planejamentos da linguagem, nos mais diversos contextos e com distintos objetivos, identifica-se o início dos estudos
científicos nesse campo no final da década de 1950, juntamente com uma reaproximação entre língua e sociedade. Em paralelo, pois, ao estudo da mudança e variação linguística, surgem os primeiros estudos sobre planejamento da linguagem, especialmente no contexto de independência de novas nações e de sua reconstrução, ainda nos moldes dos Estados- nação modernos.
2.2.1 Enquadres, modelos e objetivos iniciais de PPL
Os primeiros estudos relacionados especificamente a planejamento da linguagem podem, de alguma forma, ser compreendidos enquanto planejamento linguístico. Tomado comumente como marco inicial das pesquisas, o estudo de Einar Haugen (1959) acerca da intervenção normativa do Estado da Noruega, pós-independência, na construção de uma identidade e uma língua norueguesas, analisa a intervenção no corpus de uma língua e introduz o conceito de planejamento linguagem (language planning). Em sua definição:
By language planning I understand the activity of preparing a normative orthography, grammar and dictionary for the guidance of writers and speakers in a non-homogenous speech community. In this practical application of linguistic knowledge we are proceeding beyond descriptive linguistics into an area where judgment must be exercised in the forms of choices among available linguistic forms (Haugen, 1959, p.8).
Nota-se que, nesse momento, planejamento da linguagem foi definido como algo bem especifico, centrado na codificação ortográfica, gramatical e lexical em contextos de comunidade de fala não homogênea, o que, de alguma forma, pode ser associado a uma compreensão de planejamento linguístico. Entretanto, como destaca Haugen (1959), não se tratava de uma pura descrição linguística, mas sim de escolhas de formas linguísticas. Em sua avaliação, Haugen (1959, 1972) atenta não apenas para aspectos linguísticos, mas também para fatores extralinguísticos, e constata que o governo pode criar uma atmosfera favorável para certos tipos de mudança linguística, mas há certas forças que escapam à regulação do governo. Observa-se, com isso, um direcionamento, ainda que inicial, para uma perspectiva interdisciplinar sobre o que estava em questão.
Começando pela própria noção de planejamento, é possível identificar uma explícita aproximação entre as áreas da linguagem e da economia e administração. Tal como indica Calvet ([1996]2007, p. 20-25), a proposta de planejamento linguístico baseou-se em modelos de planejamento econômico e estatal da época. A partir de uma interessante distinção entre nacional e estatal, Calvet indica que tanto Haugen como outros pesquisadores da época enfatizaram a execução de planejamentos da linguagem por parte do Estado, o qual, ao seu ver, tem o poder e os meios para pôr em prática suas políticas (esta consideração será
retomada e reavaliada na seção seguinte). Os modelos de planejamento linguístico tinham, portanto, mais do que um viés descritivo, um viés prescritivo, e foram elaborados a partir do modelo de Herbert Simon (1965), que se baseava na visão de um processo administrativo como processo de decisão. Considerando que há grandes limitações de informação, Simon argumentava que o administrador tem de se contentar com um nível satisfatório de informações e criar uma série de expectativas futuras, baseadas em relações empíricas já conhecidas e nas informações que possui. Com isso, era proposto, após a identificação de um problema, a relação de todas as estratégias de solução possíveis, avaliações de prováveis consequências e, por fim, uma decisão.
Tomando como base esse pressuposto, Haugen propõe um modelo muito similar a um processo de tomada de decisão, englobando a identificação de problemas e decisores, as alternativas, a avaliação e a aplicação. Após a reformulação de seu primeiro modelo, Haugen propõe, em 1983, o seguinte modelo de planejamento linguístico:
Forma
(planejamento da linguagem)
Função
(cultura da língua) Sociedade
(planejamento do status)
1. Escolha (processo de decisão) a) identificação do problema b) escolha de uma norma
3. Aplicação a) correção b) avaliação Língua (planejamento do corpus) 2. Codificação (padronização) a) transcrição gráfica b) sintaxe c) léxico 4. Modernização a) modernização da terminologia b) desenvolvimento estilístico
Esquema 1- Segundo modelo de planejamento linguístico proposto por Haugen (1983)
Tal modelo funcionaria de forma integrada, em que, primeiramente, no âmbito da sociedade, se escolheria uma norma, no segundo estágio, no âmbito linguístico, se padronizaria essa norma nos níveis gráfico, sintático e fonético, em seguida, retornando à sociedade, se aplicaria e avaliaria essa norma e, por último, no quarto estágio, se modernizaria tal norma. Conforme indicava Haugen (1966, p. 52), o planejamento deveria ocorrer quando houvesse problemas de línguas, isto é, quando, por alguma razão, uma situação linguística fosse considerada indesejável.
A distinção entre planejamento de corpus e planejamento de status, proposta inicialmente por Heinz Kloss (1969), explicita igualmente fatores não linguísticos no processo. Enquanto planejamento de corpus (Sprachplanung) faria referência às intervenções sobre a forma da língua, isto é, elaboração de uma escrita, neologia, padronização etc., planejamento de status (Statusplanung) estaria relacionado à intervenção sobre o status social das línguas, isto é, sobre suas funções sociais.
A cultura da linguagem, proposta inicialmente por Neustupny (1974), é comumente interpretada como planejamento de corpus. Entretanto, seria um outro estágio em que se lidaria com as variedades estilísticas, seus usos em funções mais específicas. De acordo com Fishman (1974, p. 17), pesquisas orientadas para a cultura deveriam colocar em evidência que elaborar um sistema de escrita onde não há um previamente, bem como rever e substituir um sistema de escrita pré-existente são tarefas distintas numa perspectiva social.
Acerca do planejamento de status, cabe ainda destacar uma série de outros modelos, que, como analisa Calvet ([1996]2007, p. 38), trataram de equacionar as situações multilíngues. Ferguson (1959), focalizando as situações diglóssicas, em que coexistem duas variedades de uma mesma língua, sendo cada uma utilizada em uma situação determinada, propôs, a partir de critérios estabelecidos, a classificação das línguas nacionais em: (i)
categorias de línguas (majoritárias, minoritárias e de status especial);; (ii) tipos de línguas
(vernácula, padrão, clássica, pidgin, crioula);; e (iii) funções (gregária, oficial, veicular, de ensino, religião, internacional e língua objeto de ensino). Esse modelo foi posteriormente adaptado por Stewart (1962, 1968), quem propõe a consideração de atributos (padronização, autonomia, historicidade e vitalidade) e, com base em sua presença ou ausência, a classificação em tipos de línguas (padrão, clássica, artificial, vernácula, dialeto, crioula e pidgin).
Aracil (1965), por sua vez, abordando o caso catalão, e em uma revisão do conceito de diglossia, acentuou a noção de conflito, na qual haveria uma língua dominante e outra dominada, podendo caminhar para a substituição, com o desaparecimento da língua dominada, ou para a normalização, com a recuperação das funções por parte da língua dominada. O modelo analítico de Aracil consiste numa leitura de funções sociais da língua e
funções linguísticas da sociedade, em que, quando as funções linguísticas da sociedade não
convergem com as funções sociais da língua, poderá haver a substituição ou a tentativa de reequilibrá-las, normalização. Nota-se, portanto, já na década de 1960, uma atenção à forte relação entre língua e sociedade e às relações de poder.
2.2.2 Desenvolvimento do campo de PPL
A partir desses primeiros estudos, surge o conceito de política da linguagem, na década de 1970, intrinsecamente relacionado aos estudos sobre planejamento da linguagem. Joshua Fishman é certamente um dos grandes nomes nesse campo de pesquisa, especialmente no que se refere a multilinguismo, educação bilíngue, manutenção e mudança linguística. A contribuição de Fishman inicia com a publicação de Who Speaks What language
to Whom and When (1965), na qual se nota claramente um questionamento da linguagem e
da sociologia da linguagem, isto é, de uma relação de interpenetração entre linguística e sociologia, como ciência social interdisciplinar. Outras obras, tais como Yiddish in America:
socio-linguistic description and analysis (1965), Language loyalty in the United States: the maintenance and perpetuation of non-English mother tongues by American ethnic and religious groups (1966), Language problems of developing nations (1968), Readings in the sociology of language (1968), Sociolinguistics: a brief introduction (1970) e Bilingualism in the barrio (1971), são publicações que marcaram os estudos iniciais sobre multilinguismo,
educação bilíngue, minorias étnicas e linguísticas, com foco no contexto estadounidense, marcado pelo prestígio da língua inglesa e por uma política assimilacionista.
Em 1971, com a publicação de Can language be planned?, Rubin e Jernudd colocaram em foco a questão de se uma língua pode ser planejada, e, ainda, se uma língua deve ser planejada. Todavia, nesse fase inicial, compreendeu-se planejamento da linguagem como um processo de solução de problema racional, a ser desenvolvido na macroesfera do Estado. Como comenta criticamente Jernudd (1997), vinte anos depois, “(…) we recognized and accepted the realities of political process and central state power;; and we believed in the good of state action, that governments could act efficiently and satisfactorily” (1997, p. 132). Em sua avaliação sobre o desenvolvimento dos estudos naquele momento, situados especialmente no contexto de formação de novos estados pós-independência, houve uma desconsideração das microesferas, isto é, das diferentes situações sociolinguísticas, da ampla gama de interesses e de grupos populacionais, das diversas circunstâncias comunicativas e, principalmente, das diferentes condições sociopolíticas ideológicas e reais, locais e globais.
Por outro lado, em outro estudo inicial, Estructura social y política lingüística, Ninyoles (1975) indica que política linguística pode se referir, de modo muito amplo, a qualquer curso de ação deliberadamente adotado entre diversas alternativas públicas relativas à língua, a processos através dos quais se cria ou se resolve um conflito linguístico, bem como ao estudo desses processos (1975, p. 51). Salienta que o termo política linguística compreende pelo menos dois significados que em inglês são distintos: language policy, para referir-se às atitudes e planos de ação referente às línguas, e language politics, para indicar uma decisão ou uma série de decisões que implicam um ato de poder. Política linguística é, para Ninyoles (1975), uma herança do romantismo, que enraizada nos princípios do nacionalismo, instrumentou a aspiração segundo todo estado deveria ter uma língua, originando assim o espanhol, português, italiano, francês etc. Com as transformações sociais e reconhecimento de direitos, individuais e coletivos, iniciam-se as lutas pelo reconhecimento de línguas e pelos direitos linguísticos. Nesse sentido, Ninyoles (1975, p. 54) reconhece a realidade multilíngue presente em escala mundial, bem como os conflitos linguístico-culturais e considera a necessidade de políticas linguísticas em virtude do surgimento de nações independentes e da estreita (inter)dependência entre os povos.