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O lugar do 'Eu' nos projetos de vida em acolhimento institucional: para uma escuta ativa das crianças e jovens

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE DE TRÁS-OS-MONTES E ALTO DOURO

O LUGAR DO ‘EU’ NOS PROJETOS DE VIDA EM

ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL:

PARA UMA ESCUTA ATIVA DAS CRIANÇAS E JOVENS.

Dissertação de Mestrado em Serviço Social

Carlos Manuel Bento Santos

Orientador: Professor Doutor José Luís de Almeida

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UNIVERSIDADE DE TRÁS-OS-MONTES E ALTO DOURO

O LUGAR DO EU NOS PROJETOS DE VIDA EM

ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL:

PARA UMA ESCUTA ATIVA DAS CRIANÇAS E JOVENS.

Dissertação de Mestrado em Serviço Social

Carlos Manuel Bento Santos

Orientador: Professor Doutor José Luís de Almeida

Dissertação apresentada à Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro para a obtenção do grau de Mestre em Serviço Social – Especialização em Intervenção em Contexto de Risco, Departamento de Economia, Sociologia e Gestão.

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A todos as crianças e jovens que estão em acolhimento institucional e não deixam morrer os seus sonhos. Às suas famílias que fazem o melhor que aprenderam com os seus próprios pais. Aos técnicos e educadores das instituições que se tornaram na ‘família’ destas crianças e jovens e se DÃO para além das suas forças.

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Agradecimentos

A concretização deste passo representou, por um lado, a possibilidade de aumentar os meus conhecimentos na área da infância e juventude em situação de Acolhimento Institucional, e, por outro, uma tentativa, embora pequena e humilde, de contribuir para que estas crianças e jovens possam ser acompanhadas o melhor possível nas Instituições, para que consigam materializar os seus sonhos, que ainda mantêm.

Agradeço às jovens que participaram nesta investigação, agradeço a todas as crianças e jovens que me ensinaram a fazer o melhor que podia e sabia por elas. Portanto, às meninas da Casa da Criança, aos rapazes do Lar Juvenil Dom João Bosco e aos meninos da Associação Via Nova, porque sem eles esta Dissertação não existiria.

Agradeço ao meu orientador, Professor Doutor José Luís de Almeida, por me ter feito acreditar que era possível, pela partilha de conhecimentos e experiências e pela disponibilidade. Pela certeza e pela confiança nas minhas capacidades e no meu trabalho. Agradeço à Professora Doutora Sarita Amaro, pelo apoio e pelo otimismo contagiante.

À Casa do Gaiato, aos Padres da Obra da Rua, sem os quais nada seria o mesmo. Ao nosso querido Padre Carlos Galamba, infelizmente já falecido, mas cuja vida dedicada aos mais pobres continua presente nos corações de muitos de nós.

Aos meus colegas de entrega diária, pela partilha de experiências, pela dedicação muitas vezes silenciosa, que ninguém vê. Sabemos que as vitórias são milimétricas, quase invisíveis, mas o seu valor é enorme.

Aos que me são mais próximos e que tenho todo o orgulho em chamar ‘Família’. Mesmo o tempo roubado contribuiu certamente para o crescimento de todos, porque nada se perde. Bem ajam pela aceitação!

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vii RESUMO:

Esta Dissertação tem como foco principal entender o grau de participação das crianças e jovens que se encontram acolhidas em Lar de Infância e Juventude, no que diz respeito às decisões sobre a sua própria vida. Estas crianças/jovens, tal como qualquer outra, são influenciadas pelas vicissitudes inerentes à Infância contemporânea, e provêm de famílias também elas inseridas na designada ‘sociedade de risco’, estando imersas nas ambiguidades de uma sociedade globalizada e caraterizada pelo risco e pela incerteza. Além disso, tais crianças/jovens foram retiradas das suas famílias de origem e passaram a viver num ambiente institucional estranho. É perante este contexto certamente traumático que os técnicos sociais da Instituição têm que delinear o seu ‘Projeto de Vida’ e o respetivo ‘Plano Socioeducativo Individual’. Assim, pretendemos clarificar se elas são realmente escutadas, ou seja, se o ‘Eu’ é colocado no centro do processo. Sabemos que é plausível serem ouvidas mas não escutadas, o que nos remete para a necessidade da participação deste público naquilo que é a sua própria vida. Este é um tema que, embora também seja assunto de interesse para outras áreas de estudo, no caso do Serviço Social a pertinência coloca-se na possibilidade de melhorar os processos de intervenção junto destas crianças/jovens que se encontram em Instituição.

Para atingir tal objetivo, foi utilizado o Método Biográfico nesta pesquisa, por entendermos ser aquele que melhor pode captar as subjetividades, as singularidades e as construções de sentido de cada indivíduo. Com este propósito, foram utilizadas Entrevistas semidirectas, ‘Roteiros de Vida’ e a análise documental. Para interpretar os resultados desta investigação, foi tido em conta o Modelo Ecossistémico e a Teoria da Vinculação, por entendermos que apresentam fatores explicativos determinantes. Também procurámos compreender esses resultados com o que designámos de ‘Tese da Identificação e Desidentificação’, numa tentativa de dar voz às implicadas.

Atendendo aos resultados e ao respetivo quadro explicativo, apresentámos alguns contributos para a intervenção junto das crianças e jovens que se encontram em contexto institucional, com o objetivo de colocar o ‘Eu’ no centro do processo e de melhorar a escuta ativa, trazendo também para o centro da intervenção o acompanhamento às famílias de origem.

Palavras-chave: escuta ativa, intervenção, Modelo Ecossistémico, Vinculação, Projeto de Vida, institucionalização.

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viii ABSTRACT:

This dissertation has as its main focus to understand the degree of participation of children and young people who are living in Home to Children and Youth, with regard to decisions about her own life. These children/youth, like any other, are influenced by the vicissitudes inherent in the contemporary Childhood and come from families too they inserted in designated ‘risk society’, being immersed in the ambiguities of a globalized society and characterized by risk and by uncertainty. In addition, such children/young people were removed from their families of origin and lived in a strange institutional environment. It is in this context certainly traumatic that the social technicians of the institution have to delineate his 'Life Project' and the respective ‘Individual Social and Educational Plan'. So, we want to clarify if they are really heard, i.e., if the 'I' is placed in the center of the process. We know that it is plausible to be heard but not listened to, which brings us to the need of participation of this public in what is his own life. This is a subject which, although it is also subject of interest to other fields of study, in the case of the Social Work the relevance arises in the possibility of improving the intervention processes along these children/young people who find themselves in an Institution.

To achieve this goal, we used the Biographical Method in this research, by understanding being the one who can best capture the subjectivities, the singularities and the construction of meaning of each individual. With this purpose, indirect Interviews were used, ‘Life Scripts’ and documentary analysis. To interpret the results of this investigation, has been taken into account the Ecosystem Model and Binding Theory, by understanding that present explanatory factors determinants. We also understand these results with what we term ‘Thesis of Identifying and Misidentifying’, in an attempt to give voice to those involved.

In the light of the results and the respective explanatory framework, we have made some contributions to the intervention with children and young people who are in institutional context, with the aim of putting the ‘I’ in the centre of the process and to improve active listening, bringing also to the centre of the intervention the follow-up for the origin families.

Key Words: active listening, intervention, Ecosystem Model, Binding, Life Project, institutionalization.

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| ÍNDICE

Lista de Quadros e Figuras ... xiii

Índice de Siglas ... xiii

Índice de Anexos ... xv

INTRODUÇÃO ... 1

CAP. 1 - Contextualização da Infância e do Acolhimento Institucional 1.1. Situação social da Infância contemporânea ... 7

1.2. A Criança inserida na designada ‘Sociedade de Risco’ ... 11

1.3. A Criança/Jovem em Acolhimento Institucional ... 17

1.4. A singularidade do ‘Eu’ e a escuta ativa ... 21

CAP. 2 – Quadro de compreensão da criança e do jovem em Acolhimento Institucional 2.1. O Modelo Ecossistémico: 2.1.1 - Conceitos ... 25 2.1.2 – Método ... 27 2.1.3 – Princípios ... 29 2.2. A Teoria da Vinculação: 2.2.1 – Conceitos ... 33 2.2.2 – Método ... 35 2.2.3 – Princípios ... 36

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CAP. 3 - Quadro Metodológico e análise dos resultados 3.1. Método Biográfico:

3.1.1 – Elementos históricos ... 41

3.1.2 – Correntes da abordagem biográfica ... 42

3.1.3 – Fundamentos epistemológicos ... 45

3.1.4 – Elementos metodológicos ... 46

3.2. Contexto de investigação – a ‘Casa da Criança’ ... 49

3.3. Opções metodológicas: 3.3.1 - Etapas metodológicas ... 51

3.3.2 – Instrumentos utilizados: I – Entrevista ... 54

II – ‘Roteiro de Vida’ ... 57

III – Consulta documental ... 57

3.3.3 – Texto final ... 57

CAP. 4 – A elaboração dos Projetos de Vida com as crianças e jovens em Acolhimento Institucional 4.1. Histórias de Vida: I – Entrevistada TM01 ... 62 II – Entrevistada TM02 ... 66 III – Entrevistada TM03 ... 68 IV – Entrevistada TM04 ... 71 V – Entrevistada TM05 ... 75 VI – Entrevistada TM06 ... 78 VII – Entrevistada TM07 ... 82

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VIII – Entrevistada TM08 ... 85

4.2. Análise dos resultados: 4.2.1 - Objetivos ... 89

4.2.2 – Grau de correspondência ... 90

4.2.3 – A opção pela Reintegração Familiar ... 94

4.2.4 – As Figuras Parentais ... 95

CAP. 5 – Para uma escuta ativa na intervenção do Serviço Social em contexto institucional 5.1. A opção pela família e pela figura materna: 5.1.1 – O Modelo Ecossistémico ... 101

5.1.2 – A Teoria da Vinculação ... 103

5.1.3 – A Tese da ‘Identificação e Desidentificação’: I – A ‘Dinâmica da Vitimização’ ... 105

II – Níveis explicativos da opção pela Família ... 108

III – Sinais ‘identificadores’ e ‘desidentificadores’ ... 111

5.2. Contributos para a intervenção do Serviço Social em Acolhimento Institucional ... 115

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 119

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 123

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| LISTA DE QUADROS E FIGURAS:

QUADROS:

Quadro 1 – Quadro de análise das Entrevistas e dos ‘Roteiros de Vida’ ... 54 Quadro 2 – Quadro comparativo do Grau de Correspondência entre as

Entrevistadas e a Instituição ... 91 Quadro 3 – Grau de correspondência entre a vontade manifestada pelas

Entrevistadas e o delineado pela Instituição ... 92 Quadro 4 – Sinais ‘identificadores’ e ‘desidentificadores’ ... 112

FIGURAS:

Figura 1 – Dinâmica da Vitimização ... 106

| ÍNDICE DE SIGLAS:

DOM (Plano) – Desafios, Oportunidades e Mudanças ISS – Instituto da Segurança Social

LIJ – Lar de Infância e Juventude

LPCJP – Lei 147/99, de 01 de setembro: Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo) LPI - Lei de Proteção da Infância

LTE – Lei n.º 166/99, de 14 de setembro: Lei Tutelar Educativa MPP – Medida de Promoção e Proteção

PSEI – Plano Socioeducativo Individual RSI – Rendimento Social de Inserção

SERE+ - Senbilizar, Envolver, Renovar, Esperança, Mais CATL – Centro de Atividades de Tempos Livres

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| ÍNDICE DE ANEXOS

1. ANEXO A – Guião de Entrevista 2. ANEXO B – ‘Roteiros de Vida’

3. ANEXO C – Quadro Resumo de Análise Documental 5. ANEXO D – Quadro Biográfico Geral

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| INTRODUÇÃO

Esta Dissertação tem como objetivo perceber se as crianças e jovens em situação de Acolhimento Institucional são realmente escutadas quando são definidos e implementados os seus Projetos de Vida e os respetivos Planos Sócio Educativos Individuais (PSEI). Assim, interessa-nos questionar que lugar tem ocupado a criança/jovem (o que nós designámos no título desta Dissertação por ‘Eu’) no seu próprio processo vivencial após a entrada em Lar de Infância e Juventude (LIJ). Entendemos que uma questão é o técnico social conhecer a história da criança/jovem e o seu comportamento e atitudes, e, perante esses dados, delinear o Projeto de Vida que considera, ele e a restante equipa técnica e educativa, mais adequado; mas outro assunto bem diferente é ‘escutar’ mesmo a criança ou jovem, porque mais do que aquilo que ele diz (quando é ‘ouvido’) é o que ficou por dizer ou por compreender (aquilo que muitas vezes nem ele sabe explicar), e que exige uma interpretação e uma orientação adequadas.

Assim, entendemos que esta Dissertação tem um triplo interesse: sociológico, académico ou teórico e prático. Perante os novos desideratos sociais que se traduzem em novos riscos, no aumento das incertezas e das ambiguidades, perante um mundo cada vez mais globalizado, os mais fracos são os que mais sofrem, sobretudo as crianças por serem as mais frágeis. Pela complexidade que envolve a criança, a realidade atual da infância revela a prevalência de fatores de risco agravado. Neste contexto, novos desafios são colocados na intervenção junto desta população alvo. Para além do contributo sociológico, também o contributo académico/teórico é pertinente, porquanto embora exista uma variedade muito rica de estudos acerca da participação ativa das crianças, nomeadamente no campo da Sociologia da Infância, apesar disso, não existe investigação de abrangência do tema específico desta Dissertação, ou seja, voltada para a participação efetiva das crianças e jovens que vivem em contexto institucional na elaboração dos seus próprios Projetos de Vida. Desta forma, pretende-se dar voz aos implicados na proposta de uma escuta ativa, para assim dar sentido e coerência a uma história de vida muitas vezes caótica. Desta forma, procurando contribuir para a melhoria da prática no campo do Serviço Social, apresentaremos as nossas propostas de intervenção, para que os Projetos de Vida e os PSEI’s das crianças/jovens estejam mais de acordo com as suas expetativas.

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O objeto desta dissertação é a Infância, nomeadamente, a criança ou o jovem que se encontra em situação de Perigo, e, por consequência, em Acolhimento Institucional, mais especificamente, em LIJ. Porém, embora em situação de institucionalização, as crianças/jovens não perderam o direito de estarem, também elas, inseridas no conceito global de Infância. Assim, exploraremos a situação social da Infância na contemporaneidade, para depois a apresentarmos na conjuntura daquilo que é designado por uma ‘Sociedade de Risco’. De seguida, apresentaremos a institucionalização dentro do contexto legislativo e esclareceremos o processo de elaboração dos Projetos de Vida e dos respetivos PSEI’s. Por todas as vicissitudes referidas, acresce que a colocação em Acolhimento Institucional representa para a criança/jovem uma situação de transição e, por esse motivo, pode constituir um momento traumático. Acrescente-se que, aquando da sua colocação em Instituição, é retirada do seu meio de origem e é colocada num ambiente estranho, com pessoas que nunca viu e com regras a que não estava habituada. Cria novas amizades, novas ligações afetivas. Começa a partilhar a mesma casa com outras crianças e jovens que não conhecia. Passa a frequentar uma escola nova, com outros professores, novos pares. Os vizinhos são outros. Muitas vezes nem a terra é a mesma.

Foi na Casa da Criança que fizemos a recolha dos dados para a presente investigação, nomeadamente com oito jovens do género feminino entre os 15 e os 18 anos de idade. Esta Instituição é uma Resposta Social (ou Valência) da Santa Casa da Misericórdia do Peso da Régua, que acolhe crianças e jovens apenas do género feminino. Colocando-nos na perspetiva do Construcionismo Social, que defende que a realidade é construída pela própria pessoa, que lhe atribui sentido, entendemos que os Projetos de Vida de cada criança/jovem deverão ter em conta a sua própria interpretação de vida e da realidade envolvente. É devido a esta valorização das subjetividades que foi utilizado o Método Biográfico, justamente por entendermos ser aquele que melhor pode dar conta das singularidades e das construções de sentido de cada indivíduo. Foram utilizadas Entrevistas semidirectas e ‘Roteiros de Vida’ junto das oito jovens, sendo comparados os resultados com a análise documental, recolhida com o apoio das técnicas da Instituição.

Desenvolveremos um quadro explicativo para entendermos os resultados da pesquisa, com o Modelo Ecossistémico e a Teoria da Vinculação. O primeiro ajuda-nos a compreender o Acolhimento Institucional, as relações e as ligações que os utentes criam e recriam nos diversos ambientes, com as pessoas, com os objetos e com as várias entidades da comunidade

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que utilizam. O Modelo da Vinculação remete-nos para as relações com as figuras de referência e que podem determinar o comportamento da criança/jovem, as suas atitudes e as suas decisões. Apresentaremos ainda uma nova linha explicativa que designaremos de Tese da ‘Identificação e Desidentificação’, com a qual pretendemos analisar de forma aprofundada os dados recolhidos.

Tendo em conta os resultados da investigação e o quadro explicativo apresentado, iremos expor ainda alguns contributos para otimizar a intervenção do Serviço Social junto do público-alvo de que tratamos. Desta forma, pretendemos contribuir para centralizar o lugar do ‘Eu’ e melhorar a escuta ativa, para que o planeamento da sua vida seja cada vez mais delineado com o recurso da participação efetiva e abrangente. Assim, poderemos chamar os verdadeiros atores para o palco da sua própria vida, e poderemos permitir que os seus sonhos não morram, espevitando a ‘chama’ para que sejam concretizados.

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CAPÍTULO 1

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1.1. SITUAÇÃO SOCIAL DA INFÂNCIA CONTEMPORÂNEA

Quando falamos em Infância referimo-nos ao que a ‘Convenção sobre os Direitos da

Criança’1 entende por Criança: “todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo” (art.º 1.º, da Parte I). Devido à complexidade da situação atual da infância, é pertinente passarmos em revista os seus contornos, pois permitir-nos-á entender os inúmeros entraves que a criança enfrenta, nomeadamente, para o exercício do direito de ser ouvida e de tomar decisões, numa sociedade que, aparentemente, não está preparada para aceitar tais pressupostos. E, quando a criança/jovem se encontra em LIJ, as dificuldades aumentam, devido, entre outras razões, a uma tradição ainda assistencialista e caritativa, e a “modelos macroinstitucionais, infelizmente recentes” (Valle, 1998, p. 3).

Na atualidade assistimos a um paradoxo: por um lado, surgem notícias e indicadores sobre o sofrimento de milhares de crianças, sobre a mortalidade infantil em consequência da fome, da guerra ou da doença; e, por outro lado, assistimos ao crescente aparecimento de políticas e programas de “proteção à infância, programas de assistência, programas de vigilância e esquemas de educação e avaliação” (Jenks, 2002, p. 189). Acrescente-se ainda que se assiste, em Portugal, desde os anos 90, “a um interesse crescente pela infância” sob o ponto de vista teórico ou académico (Rocha, Ferreira & Neves, 2002, p. 34). Este paradoxo deve-se a fatores estruturais derivados da “profunda desigualdade da sociedade contemporânea (…) no quadro do sistema social” (Sarmento, 2002, p. 14). Assim, apesar do aumento do interesse geral pelo bem-estar da criança, apesar da criança estar mesmo ao nosso lado, ela permanece envolvida em mistério: “difusa e ambígua (…) simultaneamente familiar e estranha” (Jenks, 2002, pp. 185-186).

Para conhecermos a criança, é necessário percebermos as condições em que ela vive e cresce, as quais podem ter efeitos perniciosos, podendo conduzir à exclusão social. Assim, por um lado, a “modernidade tardia” e a globalização não trouxeram a completa “erradicação da exploração do trabalho de menores”, antes “criaram as condições da sua generalização, quer nos países periféricos, quer nos países semiperiféricos e centrais, nos setores da indústria que fundam a sua competitividade nos baixos-custos da mão-de-obra assalariada” de menores,

1 “Adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de setembro de 1990” (A Convenção sobre os Direitos da Criança, p. 2).

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mas também as atividades de lazer, os espetáculos e a publicidade, que “têm vindo a inscrever de modo cada vez mais reforçado o trabalho no quotidiano das crianças” (Sarmento, 2002, p. 19). Por outro lado, as entidades que tratam e recebem as crianças, tais como a família, os infantários, as escolas, as clínicas, etc., estão concebidas e implementadas “para processar a criança enquanto entidade uniforme” (Jenks, 2002, p. 189). Segundo Bronfenbrenner (2011), pertence ao passado o panorama em que “as crianças eram criadas e educadas por seus pais” (p. 223). Acontece que na sociedade contemporânea assiste-se a uma progressiva erosão das Instituições, entre elas a Instituição ‘Família’. Em consequência, a família tradicional sofreu uma reestruturação, perdendo, de forma progressiva, “o estatuto de instância primeira de socialização, por efeito das sucessivas recomposições e reestruturações que tem sofrido”, passando a desempenhar esse papel “as instituições estatais”, a rua ou o bairro, “espaços estes geradores de novos processos de referência e de sociabilidades” (Sarmento, 2002, p. 22). Deste modo, nas sociedades modernas, “a responsabilidade pela educação dos filhos tem-se deslocado da família para outros contextos na sociedade” (Bronfenbrenner, 2011, p. 223), e a criança passa grande parte do dia fora de casa, longe dos pais, em instituições de educação. Por conseguinte, dá-se o rompimento com a “organização social típica”, com “padrões instituídos”, onde a educação era uma tarefa exclusiva da família, para passar a ser “uma tarefa pública socialmente compartilhada” (E. Rocha, 2002, p. 68). Esta partilha da educação por esses diversos segmentos públicos provoca uma multidisciplinariedade educativa, devido à diversidade de relações e à partilha de diferentes modelos educativos.

Segundo Jenks (2002), a infância deve ser vista como um “constructo social”, porque está ligada e diz sempre respeito a uma sociedade concreta, a uma “estrutura social”, e, por conseguinte, a um “contexto cultural particular”, onde a passagem de um estádio a outro (da infância para a adultez) não é simplesmente uma questão de mudança física, mas não deixam de estar presentes, apesar de numa sociedade pós moderna, os costumes, as tradições, e, portanto, o “ritualismo”, as influências externas, dos pares, do grupo e do bairro (p. 191). Assim, a imaturidade biológica, para além de um traço natural, não deixa de ser também “um fato da sociedade e da cultura que, podendo variar, fazem da criança uma Instituição social e é neste sentido que podemos falar de construção social da infância” (Rocha et al., 2002, p. 35).

Por outro lado,

as crianças produzem a primeira de uma série de culturas de pares nas quais o conhecimento infantil e as práticas são transformadas gradualmente em

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conhecimento e competências necessárias para participar no mundo adulto. (Corsaro, 2002, p. 114)

Assim, observando a realidade da criança do ponto de vista do adulto, ela é percecionada, por um lado, como o passado comum partilhado por todos e como a garantia de continuidade do futuro; e, por outro lado, a criança é percecionada como se houvesse uma separação entre a infância (como o “indesejável”) e a adultez, (como “algo reconhecível, completo e em equilíbrio estático, mas também (…) como um mundo desejável”) (Jenks, 2002, p. 193). É por este motivo que se tem perpetuado uma “visão adultocêntrica da infância”, que “impede os adultos de olhar a criança como ator social, com direito à palavra e como produtora de sentidos” (Vilarinho, 2002, p. 92). Desta forma,

as crianças não só internalizam individualmente a cultura adulta que lhes é externa mas também se tornam parte da cultura adulta, isto é, contribuem para a sua reprodução através das negociações com adultos e da produção criativa de uma série de culturas de pares com as outras crianças. (Corsaro, 2002, p. 115)

Quando se abordam temáticas da infância de uma perspetiva teórica, a tendência é partir-se da postura normativa do mundo adulto, avaliando a criança segundo essa perspetiva, sendo ignorada “a prática social contínua e vivida de ser criança, com a sua estrutura de significados específica e coerente”, condenando a criança a um “permanente estatuto conceptual de uma presença ausente” (Jenks, 2002, p. 194). A criança cria o seu próprio mundo e tem que lhe ser dada a possibilidade da diferença, e, ao ser orientada por uma visão ideal do adulto, é abandonada pela teoria, de tal forma que atualmente somos confrontados com “diferentes crianças ‘teóricas’ que servem os diferentes modelos teóricos” (Jenks, 2002, p. 214). Por conseguinte, apenas se pode compreender as especificidades do mundo da criança a partir da perspetiva da própria criança e não tanto do ponto de vista do adulto. Estamos, assim, perante uma nova exigência que nos leva a encarar o infante como ator e construtor social de si próprio e do seu ambiente, que nos obriga a pôr a questão da sua participação nas decisões da sua vida e mesmo nas decisões da própria sociedade em que vive.

Não se tem dado voz às crianças, sendo necessário:

estabelecer sistemas em que estas sejam de fato ouvidas e tem também de se considerar que nem sempre os interesses dos adultos coincidem com os interesses

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das crianças e que, nestes casos, prevalece normalmente, através do poder que lhe é investido pela sociedade, o interesse do adulto. (Cunha, 2008, p.4)

Assim, faz falta a “mobilização da participação das crianças e dos jovens”, que seria um aspeto decisivo, quer para uma “efetiva expressão dos direitos das crianças”, quer para combater “um dos mais assinaláveis indicadores de exclusão: o da participação política e da vida democrática, pela não detenção do direito de voto” (Sarmento, 2002, p. 24).

Da mesma forma, também estimular a participação e o envolvimento das crianças/jovens que se encontram em LIJ na tomada de decisões que podem afetar diretamente a sua vida, nomeadamente, nos seus Projetos de Vida, traria enormes benefícios, nomeadamente no fortalecimento da sua habilidade “para funcionarem e se integrarem tanto ao nível das relações sociais como ao nível da sua afirmação enquanto cidadãos legítimos da sociedade” (Cunha, 2008, p. 4).

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1.2. A CRIANÇA INSERIDA NA DESIGNADA ‘SOCIEDADE DE RISCO’

A criança vive num ambiente específico e está inserida numa sociedade repleta de riscos e de incertezas, próprios da designada pós-modernidade, os quais se estão a tornar cada vez mais visíveis - é neste panorama que a Infância se enquadra. Esta sociedade em que vivemos, repleta de capacidades inerentes ao enorme progresso, tornou-se para Beck (2010) na designada “sociedade de risco”, em que “os aspetos negativos do progresso determinam cada vez mais a natureza das controvérsias que animam a sociedade”, de tal forma que o que ninguém desejava, “a saber, colocar a si mesmo em perigo e a destruição da natureza, está cada vez mais a tornar-se o motor da história” (p. 229). Estas caraterísticas situam-se na transição da modernidade para a “pós-modernidade”2

, englobando todas as sociedades da atualidade que não se encaixam “nos padrões da modernidade” (Hespanha, 2002, p. 163). Desta forma, “o processo de modernização social implicou a intensificação e a multiplicação dos riscos sociais, ao nível individual e ao nível coletivo, articulados com novos quadros existenciais de incerteza e contingencialidade” (Carapinheiro, 2002, p. 199).

Sobre o conceito de ‘Risco’, Giddens (2007) distinguiu os riscos do passado dos riscos que enfrentamos na atualidade: “ao contrário dos riscos do passado, que tinham causas estabelecidas e efeitos conhecidos, os riscos de hoje são incalculáveis e de consequências indeterminadas” - aqueles são designados “riscos externos”, que “não estão relacionados com a ação do homem” mas sim da Natureza; estes são designados de “riscos manufaturados”, pois são “produto da nossa ação sobre a natureza” (pp. 65-66). Por outro lado, Beck (2010) separou o conceito de ‘Risco’ do de ‘Perigo’, sendo que aquele estaria ligado aos acontecimentos calculáveis, situando-se os incalculáveis no espectro do Perigo: atualmente a sociedade confronta-se “com o próprio potencial de autodestruição, criado artificialmente”, sendo que “transpassamos o limiar entre riscos calculáveis e perigos incalculáveis” (pp. 229-230). Carapinheiro (2002), por sua vez, entendeu que o ‘Risco’ pode ainda ser entendido como uma “construção social”, como um “entendimento racional da realidade que pressupõe uma tentativa de domesticação da incerteza”, sendo que, “face aos seus usos e efeitos, a sua construção é sempre política, incluindo, inevitavelmente, julgamentos morais” (pp. 197-198).

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Os riscos e as incertezas próprios da designada ‘Sociedade de Risco’ trazem consequências sérias para a criança e para a sua família, e, nesse sentido, destacamos algumas áreas relevantes, que pretendemos explorar de seguida: os efeitos da distribuição da riqueza, onde se denota o aumento da polarização social, ou seja, o reforço das desigualdades na distribuição da riqueza; as questões do emprego, “cada vez mais precário, descontínuo e informal” (Hespanha, 2002, p. 161), e que afetam sobremaneira sobretudo as famílias das crianças que se encontram em contexto institucional; os Estados Nação expropriados das suas funções, e que, por esse motivo, podem influenciar as instituições que acolhem crianças em perigo, por via da criação legislativa; os sistemas de proteção social cada vez mais fragilizados; e a saúde.

Quanto à distribuição da riqueza, esta não se concretiza de forma igual em todos os países europeus, verificando-se “diferentes impactos e diferentes resultados, assim como diferente intensidade, consoante os locais” (Hespanha, 2002, p. 188)3

. É de referir a “disparidade entre o mundo desenvolvido e o mundo em vias de desenvolvimento”, que “tem aumentado a um ritmo contínuo durante os últimos vinte anos, sendo hoje maior do que nunca” (Giddens, 2007, p. 70). Esta diferenciação crescente entre ricos e pobres é um dos fatores de exclusão, de aumento da insegurança, de violência e da crescente distância entre ricos e pobres, e, por isso, é designada por Hespanha (2002) por “miséria do mundo”, porque funciona “como uma enorme máquina de exclusão exercendo uma triagem sistemática entre as camadas sociais e as zonas geográficas para rejeitar tudo o que não pode integrar na sua lógica” (p. 165).

Quando se pretende abordar o assunto do emprego e do desemprego, é crucial lembrar o fato de estarmos imersos numa era de capitalismo global: o “comércio global e as novas tecnologias tiveram um profundo impacto nas comunidades que assentavam na manufatura tradicional” (Giddens, 2007, p. 62), deixando pessoas sem aptidões necessárias para o trabalho, sendo agravada esta situação pelo “enfraquecimento das fronteiras e limites de regulação social colocados pelos Estados-nação” (Carapinheiro, 2002, p. 200), que permitiram a entrada fácil de concorrentes melhor preparados. Além disso, o emprego está cada vez mais dependente de políticas influenciadas por orientações económicas transnacionais e por orientações de “formas mais distintamente pós-modernistas de

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Na União Europeia, há uma tendência “a configurar-se a existência de grupos distintos de países, de acordo com os padrões de distribuição de riqueza” (Hespanha, 2002, p. 183): os indicadores estatísticos sublinhados por Hespanha (2002) mostram “os quatro países nórdicos com taxas de pobreza na ordem dos 5%, os países do centro em que essas taxas oscilam entre os 10 e os 15% e os países do Sul, a que se junta a Inglaterra, como um terceiro grupo apresentando taxas em torno dos 20%” (p. 183).

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imperialismo”, sobretudo de países como os Estados Unidos e a Alemanha, impondo a cultura, a economia e “estratégias para abalar a auto-suficiência nacional” (Jameson, 2002, p. 24). Também a Comunidade Económica Europeia assume uma posição de intermediação entre as determinantes globais e as determinantes nacionais, permitindo esta posição de intermediação assegurar “as condições indispensáveis para a reprodução dos interesses do capitalismo transnacional” (Carapinheiro, 2002, p. 212). Assim, o risco aumenta, e com ele a insegurança face ao emprego como consequência da globalização das economias e da flexibilização dos mercados de trabalho. O desemprego afeta as camadas sociais mais vulneráveis, transformando-se em fator de exclusão social face ao direito ao emprego e à necessidade vital de pertença social. Assim, a falta de emprego leva a um novo tipo de risco social, em que “a figura moderna do indivíduo ideal, perfeitamente autónomo e integrado” não é concretizada, levando à “produção e disseminação de um sofrimento ancorado socialmente”, assistindo-se no dia-a-dia à “marca vivencial do indivíduo de face dramática” (Albuquerque, 2010, p. 69). Assim, o fenómeno da globalização está fortemente associado à produção da incerteza e do risco, “afetando praticamente todos os aspetos do mundo social”, sendo que “as suas consequências são difíceis de prever e controlar” (Giddens, 2007, p. 65).

Perante um ambiente caraterizado pelo mercado global, os Estados-Nação são expropriados das suas funções de regulação sob o efeito dos interesses de forças transnacionais:

A manutenção e reprodução de uma nova desordem mundial exige a presença de Estados fracos (quase-Estados) (…) que são expropriados de funções de regulação independente de mercados (…), a partir da permeabilidade e porosidade que ganham as economias nacionais face às pressões dos mercados financeiros mundiais, em última instância ‘salvando a face’ apenas através da conservação da garantia dos equilíbrios financeiros nacionais (…) para, progressivamente, os Estados nacionais se converterem em simples executores e representantes de forças transnacionais. (Carapinheiro, 2002, p. 215)

Assim, as políticas de ajustamento estrutural “manifestam-se, quase sempre, na desestruturação de sistemas pobres mas fiáveis de segurança básica, na alteração radical das oportunidades conhecidas de investimento e de emprego e na demissão da função regulatória do Estado na vida económica” (Hespanha, 2002, p. 181). Desta forma, “parece notório que as estruturas e os modelos políticos existentes não estão preparados para enfrentar um mundo

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cheio de riscos, desigualdades e desafios que transcendem as fronteiras dos países” (Giddens, 2007, p. 75). Portugal, pelas suas caraterísticas geográficas e culturais, “que favorecem uma elevada abertura à penetração das formas hegemónicas de globalização”, e também pela sua condição semiperiférica no contexto mundial, “constitui um bom exemplo de uma sociedade vulnerável aos impactos negativos da globalização económica” (Hespanha, 2002, p. 182). Tal como Jameson (2002) defendeu, “a cultura torna-se decididamente económica, e esse tipo especial de economia claramente define uma agenda política, ditando formas de ação política” (p. 24). Desta forma, as políticas sociais correm o risco sério de serem substituídas por uma agenda política voltada para a economia.

Por outro lado, a proteção social é retirada dos territórios, sendo deslocalizada a níveis mais centralistas, mas dependentes de orientações globais. No que diz respeito a Portugal, as decisões políticas a tomar no setor da proteção social manifestam-se vacilantes, “dado o impacto das diversas experiências de pluralismo assistencial, de tom liberalizante, produzidas pelos países mais desenvolvidos e veiculadas pelas instâncias comunitárias a todos os Estados membros” (Carapinheiro, 2002, p. 209). Desta forma, a tendência é “a acentuação das responsabilidades individuais na segurança dos riscos acrescidos e das margens alargadas de incerteza e, simultaneamente, para a progressiva desativação das responsabilidades do Estado na redução dos riscos ou dos seus efeitos mais gravosos” (Carapinheiro, 2002, p. 212). Assim, o Estado-Providência e o modelo social europeu estão em profunda crise, sobretudo para os países da periferia europeia:

Os regimes de bem-estar e as formas de Estado-Providência que têm servido de suporte ao exercício dos direitos de cidadania são alvo crescente de críticas e começam a sofrer reformas cada vez mais profundas. Portugal e outros países da periferia europeia mostram as maiores dificuldades em acertar o passo com os seus parceiros da União Europeia na construção de um sistema eficiente e equitativo de proteção social. (Hespanha, 2002, p. 162)

No campo da saúde, a situação atual em Portugal deve-se a “um conjunto de medidas incluídas nas agendas políticas neoliberais dos países europeus para a criação de barreiras de acesso dos cidadãos aos serviços de saúde, que inclui também medidas de restrição orçamental, criação de listas de espera”, um modelo gestionário em que “a preocupação com os custos de saúde é dominante” (Carapinheiro, 2002, pp. 216-217). O acesso à saúde é cada

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vez mais difícil e mais caro, o que prejudica as camadas sociais mais frágeis. Assim, os direitos sociais encontram-se em profundo risco:

É que se está a assistir a uma desvalorização deslizante dos direitos sociais nos países em que estes pareciam estar bem consolidados, a um adiamento interminável da sua institucionalização naqueles em que o capitalismo industrial se expandiu mais recentemente, a uma insolúvel incapacidade de garantir direitos em países que a globalização económica está a deixar para trás e a uma incapacidade de manter direitos já consagrados em países cujos projetos de construir um socialismo dirigido pelo Estado fracassaram. (Hespanha, 2002, p. 174)

Por tudo isto, “a incerteza, o paradoxo e o risco marcam o futuro das nossas sociedades”, a “passagem de um período de certezas e de crises, que podem ser controladas, para um período de crise profunda de natureza civilizatória” (Hespanha, 2002, p. 164). Desse modo, surgem “novos fatores de incerteza e de imprevisibilidade”, “consequências não esperadas” e “generalização da insegurança” (Hespanha, 2002, p. 164). O cidadão tem que provar constantemente à sociedade a sua validade social, pois “a sociedade exige daquele que procura reerguer-se, reconhecer-se e ser reconhecido, provas da sua utilidade social, do seu contributo pessoal, de acordo com as regras que a própria sociedade instituiu, observando-o, perversamente, a uma lupa poderosíssima que revela as menores inadaptações, tornadas indesculpáveis”, colocando-se numa “situação paradoxal de estar ao mesmo tempo ‘dentro’ e ‘fora’ da sociedade, sob uma lógica de mero adiamento da morte social” (Albuquerque, 2010, p. 73-75), devido à inexistência dos meios para efetivar o socialmente exigido. Da criança é esperado que se prepare para esta capacidade exigente e inflexível.

Assim, os Estados nacionais estão numa posição de grande fragilidade, “tanto pelo fato de os fatores de crise se gerarem fora das suas fronteiras como pelo fato de as manifestações da crise assumirem expressões localizadas bastante distintas” (Hespanha, 2002, p. 174). Os Riscos são originados a nível global, e, por conseguinte, ao nível dos Estados nacionais os modelos de gestão do risco não funcionam. Porém, segundo Carapinheiro (2002), ao nível local há respostas de instituições e organizações locais que poderão constituir alternativas, as chamadas “solidariedades locais” (p. 221), que, apesar de, em alguns casos, reconhecidamente desajustadas, poderão representar algum grau de resposta para a incerteza instalada. Carapinheiro (2002) aponta ainda outra proposta para esta referida ‘sociedade de risco’: a “glocalização”, consistindo na “redistribuição dos fortúnios e dos infortúnios, da

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riqueza e da pobreza, da posse e da ausência de poder, da liberdade e do constrangimento, enquadrada num processo de ‘reestratificação’ à escala mundial” – “glocalização é um processo de polarização da mobilidade, que encerra processos de diferenciação, também à escala mundial” (p. 223).

É nesta sociedade repleta de fatores de risco e incerteza social e familiar que a criança está inserida, deixando um grande número delas “em estado de total desamparo, mesmo quando se trata de suprir as necessidades mais básicas, como a existência de uma casa, comida, roupa, escola e adultos fiáveis, isto é, não negligentes, maltratantes ou abusadores” (Strecht, 2005, p. 169).

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1.3. A CRIANÇA/JOVEM EM ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL

A primeira lei portuguesa em matéria de infância e juventude em situação de institucionalização surgiu com a implantação da República. Trata-se da ‘Lei de Proteção da

Infância’ (LPI), que foi editada em ‘Diário do Governo’ em 27 de Maio de 1911. Até então,

as respostas existentes para as crianças e jovens em situação de Perigo eram praticamente inexistentes, destacando-se as obras de pendor assistencialista e caritativo, concretamente as “denominadas casas de correção” (Poiares, 2010, p. 5). No séc. XIX, a industrialização fabricou um problema transversal a que Caeiro (2008) designou “questão social”, inerente ao crescimento exponencial das cidades e ao êxodo rural, que arrastaram “desemprego, fome, miséria, condições insalubres (…) condições de higiene e saúde” (p. 215). Neste contexto, as crianças, sendo mais frágeis, foram as que mais sofreram, carecendo de uma proteção acrescida. Assim, a LPI procurou resolver esta questão social, tendo em conta a “tragédia que era, no Portugal herdado da monarquia, ser-se criança e pobre excluído” (Poiares, 2010, p. 5).

Já na década de 40, a institucionalização de crianças e jovens ainda funciona com “enfoques carcerários ou caritativos” (Cañellas, 2004, p.21), caraterística que vai perdurar por várias dezenas de anos. Em 1978 foi criado o Dec-Lei 314/78 de 27 de Outubro, que, em matéria da ‘Organização Tutelar de Menores’, reorganiza o ‘Tribunal de Menores’, ao qual se passa a atribuir responsabilidades apenas em matéria de crianças e jovens, colocando os assuntos de família ao abrigo da competência do então criado ‘Tribunal de Família’. Em 1990, Portugal validou a ‘Convenção dos Direitos da Criança’ publicada em 1989 que “impulsionou uma nova perspetiva dos Direitos da Criança e das responsabilidades dos atores envolvidos na Promoção e Proteção da infância, que direcionou a reforma da legislação portuguesa neste domínio” (Reis & Castro, 2011, p.34). Em 1999 o referido Dec-Lei 314/78 é dividido em duas áreas distintas, sendo criadas duas leis: a ‘Lei de Proteção de Crianças e

Jovens em Perigo’ (LPCJP) e a ‘Lei Tutelar Educativa’ (LTE). Ao abrigo desta última, a

aplicação das ‘Medidas Tutelares Educativas’ são motivadas por um ato do próprio menor (art. 1.º da LTE), enquanto as ‘Medidas de Promoção e Proteção’, aplicadas ao abrigo da LPCJP, são fruto de atos ou omissões cujo responsável não é o menor mas os seus pais ou responsáveis legais (n.º 1 do art. 3.º da LPCJP).

Para efeitos de intervenção em situações de Perigo, a LPCJP alarga o termo ‘criança’ para o de “criança ou jovem” e define-o como “a pessoa com menos de 18 anos ou a pessoa

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com menos de 21 anos que solicite a continuação da intervenção iniciada antes de atingir os 18 anos” (al. a, do art.º 5.º, da Lei n.º 147/99, de 1 de setembro4

). Neste sentido, podem existir em LIJ crianças ou jovens até aos 21 anos. Assim, estas crianças/jovens são colocadas em Instituição ao abrigo de uma ‘Medida de Promoção e Proteção’, aplicada pelas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) ou pelos Tribunais (Art.º 6.º, da Lei n.º 147/99, de 1 de setembro). A ‘Medida de Acolhimento Institucional’ ocorre em situações de Perigo comprovado (art.º 1.º, 2.º e 3.º da Lei 147/99, de 1 de setembro), sendo a criança/jovem colocada “aos cuidados de uma entidade que disponha de instalações e equipamento de acolhimento permanente e de uma equipa técnica” multidisciplinar (art.º 49.º da Lei 147/99, de 1 de setembro). Há situação de ‘Perigo’ sempre que a “segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento” da criança/jovem sejam postos gravemente em causa pelos “pais, representante legal ou quem tenha a guarda de fato”, ou por uma “ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo” (n.º 1, do art.º 3.º da Lei 147/99, de 1 de setembro).

Uma vez a criança/jovem admitida em LIJ, a equipa da Instituição deverá dinamizar os meio adequados para a elaboração do seu ‘Projeto de Vida’, bem como o respetivo plano para o concretizar (PSEI). Quando nos referimos ao ‘PSEI’ designamos: o conjunto das estratégias ou projetos que levarão à concretização dos Projetos de Vida de cada criança e jovem, tendo sempre em conta os “meios e recursos ativados pelos indivíduos para resolverem os seus problemas e obstáculos dos seus percursos”, assentando “no princípio da capacidade de ação racional do sujeito que associa as práticas às atitudes, representações e dispositivos individuais, agindo sempre de forma personalizada” (Gomes, 2005, p. 10). Por outro lado, quando mencionamos o termo ‘Projeto de Vida’, referimo-nos ao encaminhamento de cada criança/jovem ao abrigo da LPCJP e da respetiva ‘Execução das Medidas de Promoção e

Proteção’ em meio natural de vida (prevista no Decreto-Lei n.º 12/2008 de 17 de janeiro).

Assim, os Projetos de Vida são estandardizados sob duas premissas: 1) A prevalência da Família (al. g, do art.º 4.º, da Lei 147/99 de 1 de setembro), incluindo: o ‘Regresso à Família’ (Nuclear ou Alargada), o ‘Acolhimento Familiar’ e a ‘Adoção’; 2) A ‘Autonomização’, ou preparação para uma vida independente. Em Espanha, na região da Cantábria, os Projetos de Vida são semelhantes, constando do Manual de acompanhamento institucional: “reunificação familiar”, “integração estável em família alternativa”, “integração estável em ambiente

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residencial especializado” e “preparação para a vida independente” (Valle, 2008, pp. 13-17). Desta forma, “o Projeto de Vida pode ser considerado uma chave mestra na intervenção a desenvolver durante o período de acolhimento” (Instituto da Segurança Social, 2012, p. 38). O objetivo fundamental na intervenção em Acolhimento Institucional é acompanhar cada criança/jovem de acordo com o seu Projeto de Vida, pois a admissão em LIJ tem como finalidade a sua desinstitucionalização segura e em tempo útil, de acordo com o princípio da “intervenção mínima” previsto pela LPCJP (al. d, do art.º 4.º, da Lei n.º 147/99, de 1 de setembro). Assim, é exigido que toda a criança/jovem admitida em LIJ “responda a um Projeto de Vida, cujo objetivo deve estar claramente estabelecido, servindo de orientação básica para o trabalho educativo” (Valle, 2008, p. 13). Desta forma, é imprescindível ativar todos os recursos disponíveis e facilitadores, bem como envolver o próprio implicado, vendo-o cvendo-omvendo-o vendo-o verdadeirvendo-o atvendo-or neste prvendo-ocessvendo-o.

O perfil da criança/jovem que é admitida em Instituição alterou-se radicalmente, pois, ainda há cerca de uma década, “a maioria das instituições estava organizada num modelo assistencial ou caritativo, recebendo casos de rapazes ou raparigas órfãs, ou vindas de famílias com poucos recursos económicos” (Strecht, 2005, p. 170). Mas o ano de 2007 marcou o início do ‘Plano DOM’ (Desafios, Oportunidades e Mudanças)5

, seguindo-se o ‘Plano SERE+’ (Sensibilizar, Envolver, Renovar, Esperança, MAIS)6, e, desde essa altura, as exigências caminharam no sentido de aumentar a qualidade da intervenção. Por consequência, o perfil de entrada em Instituição modificou-se, e o ‘Instituto da Segurança Social’ (2012), no relatório ‘Casa’ referente ao ano de 2011 detetou os seguintes caraterísticas “associadas às crianças e jovens acolhidos”: “problemas de comportamento”, “toxicodependência”, “problemas de saúde mental”, “debilidade mental”, “deficiência mental” e “deficiência física” (pp. 15-16) - a prevalência situa-se na elevada percentagem dos problemas de comportamento, sendo significativa a prevalência de jovens “na faixa etária dos 15-17 anos” (p. 16). Perante os novos perfis de admissão e de estadia em Instituição cada vez mais complexos, assistimos atualmente a diversos problemas concernentes ao Acolhimento Institucional, a que a equipa técnica tem que dar respostas eficazes. Mas esta realidade não se resolve com uma “resposta

5 Criado em 2007 em Despacho n.º 8393/2007. Foi implementado na rede de Lares de Infância e Juventude (de âmbito nacional) a partir de 2007, tendo contribuído para uma importante alteração paradigmática, cujo objetivo principal é “a implementação de medidas de qualificação da rede de lares de infância e juventude, incentivadoras de uma melhoria contínua da promoção de direitos e proteção das crianças e jovens acolhidas, no sentido da sua educação para a cidadania e desinstitucionalização, em tempo útil” (n.º 1 do Despacho n.º 8389/2007).

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Criado em 2012 (e iniciado em julho desse mesmo ano) em Despacho n.º 9016/2012. Trata-se da evolução do Plano DOM para “um modelo renovado de intervenção integrada e mais especializada, onde além da proteção se atenda à socialização e a um cuidado com o equilíbrio emocional das crianças e jovens” (Despacho n.º 9016/2012).

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comportamental e punitiva” tal como acontecia nos modelos anteriores, mas, “à semelhança de outros países da União Europeia, propõe-se uma resposta compreensiva e reparadora para estas dificuldades psicossociais, num modelo de intervenção terapêutica” (Strecht, 2005, pp. 170-171).

O acolhimento institucional tem sofrido, em Portugal, uma lenta mudança de paradigma, deixando que o modelo de formato macro ceda lugar a um modelo mais terapêutico, em ambiente familiar. O modelo institucional macro pressupunha perfis de menores baseados em carências socioeconómicas, orfandade ou abandono (Rocha et al., 2002, p. 54); já o modelo terapêutico pressupõe perfis de admissão mais complexos, exigindo programas de intervenção orientados para as necessidades de cada criança/jovem e suas famílias. O modelo institucional pecava pela permanência excessiva e desadequada em LIJ, sobretudo devido a problemas relacionados com a inexistência de acompanhamento técnico, resultando em sérios “obstáculos para conseguir reunificações, adoções e acolhimentos, quando possível ou quando as crianças estão em condições de o poder concretizar” (López, Valle, Boada & Arteaga, 2010, p. 93). Esta situação foi parcialmente corrigida com a implementação do Plano DOM, que, investindo no reforço técnico, os Projetos de Vida passaram a ser uma realidade concreta.

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1.4. A SINGULARIDADE DO ‘EU’ E A ESCUTA ATIVA

O título desta Dissertação tem dois termos que pretendemos prestar alguns esclarecimentos: o ‘lugar do Eu’ e a ‘escuta ativa’. Com o primeiro queremos designar a própria criança/jovem que se encontra em contexto institucional na sua singularidade. Concretamente, pretendemos sublinhar a sua importância na elaboração do seu próprio Projeto de Vida e do respetivo PSEI. Trata-se da diferença entre fazer o Projeto de Vida ‘para’ e fazê-lo ‘com’ cada uma delas. Realçar esta postura permite, por um lado, atribuir aos verdadeiros atores o lugar de destaque no processo da sua vida, e, por outro lado, permite atribuir maior responsabilidade pelo que acontece no percurso. Esta responsabilidade é referida por Emmanuel Levinas (2000), filósofo da alteridade, como a “estrutura essencial, primeira, fundamental da subjetividade”, sendo esta subjetividade entendida “em termos éticos” (p. 87). Assim, na nossa perspetiva, o ‘lugar do Eu’ deve ser encarado como uma reconstrução de si próprio, começando pela subjetividade, pelo ‘Eu’, que se responsabiliza pelo que é a caminho do que será (através da participação na elaboração do seu Projeto de Vida), para, posteriormente, partir a caminho de uma maior abrangência social, ou seja, para a “responsabilidade por outrem, portanto, como responsabilidade por aquilo que não fui eu que fiz, ou não me diz respeito; ou precisamente que me diz respeito” (Levinas, 2000, p. 87). Nesta abrangência se enquadram os cuidadores da Instituição, os direitos mas também os deveres, os pares, a sociedade em geral e, se for o caso, a família (tendo em conta a realidade de cada situação concreta). Ora, depois de a criança/jovem se reconstruir a si própria, depois de se empenhar na reconstrução da sua vida, então poderá olhar para a sua família de origem com a mesma responsabilidade, através de uma dedicação ajustada e equilibrada. Por outro lado, é importante e urgente que esta responsabilidade também seja praticada em sentido inverso, ou seja, dos pais para os seus filhos, uma responsabilidade exigente, de entrega total, mesmo “sem esperar a recíproca” (Levinas, 2000, p. 90). Esta responsabilidade parental foi, em muitos casos, na população que tratamos nesta investigação, esquecida, deixada esmorecer, por via da retirada dos filhos das suas casas e a consequente entrega a outros cuidadores.

Nesta Dissertação, não nos referimos a um ‘Eu’ psicológico nem a um ‘Eu’ social desdobrado em diversos atributos e construções de si próprio, construções estas inerentes a diversos papéis desempenhados na sociedade, a que poderíamos designar de diferentes ‘Eus’.

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Assim, não foi nossa preocupação distinguir as diferentes representações de ‘verdade’, tais como, segundo Goffman (2002), “a representação verdadeira, sincera, honesta; e a falsa, que falsificadores completos reúnem para nós” (p. 70). O nosso intuito é encarar a criança/jovem em contexto institucional entendida como uma unidade completa (embora complexa), a que designamos de ‘Eu’, e perceber se é colocada no centro do processo de decisão sobre a sua vida, entendida, portanto, como um todo homogéneo e singular, distinto de outra criança/jovem, representando esta como outro ‘Eu’ diverso.

Por outro lado, o conceito de ‘lugar do Eu’ tem uma relação direta com o de ‘escuta

ativa’, pois a criança/jovem apenas tem participação no seu Projeto de Vida se a sua voz for

escutada, ou seja, se ela for colocada no centro. Poderíamos afirmar que este é o início do processo de intervenção em Instituição, e que se prolonga por todo o trajeto em LIJ (e mesmo após a desinstitucionalização). ‘Escutar’ é distinto de ‘ouvir’, pois este último remete para o sentido da audição e a consequente interpretação neuronal, enquanto escutar não envolve apenas os ouvidos, mas também implica ‘estar ao lado de’ quem se apresenta à nossa frente. Diríamos que, mais que estar ao lado, escutar é uma atitude empática, cujo significado etimológico nos remete para a ação de sofrer com o outro (e não pelo outro).

Ambos os termos referidos, o de ‘lugar do Eu’ e o de ‘escuta ativa’, são, assim, elementos fundamentais nesta Dissertação, uma vez que permitem ir ao encontro da própria criança/jovem e dar voz aos seus sentidos, e, por outro lado, também norteiam desde logo a presente investigação, que procurará que seja feita ‘pelas’ e ‘com’ as próprias entrevistadas, colocando-as no centro deste trajeto investigativo.

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CAPÍTILO 2

Quadro de compreensão da criança e do jovem em Acolhimento

Institucional

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25 2.1. O MODELO ECOSSISTÉMICO

2.1.1 – Conceitos

A perspetiva ecossistémica parte do Modelo Sistémico, cujo início remonta à década de 50, quando se começou a “reconhecer a necessidade de considerar o contexto, nomeadamente o familiar”, na prática social, sendo que a mudança é “procurada no seio de todo o sistema familiar” (Pereira & Santos, 2011, p. 21). Assim, o Modelo Ecossistémico surge da perspetiva sistémica, que, por sua vez, emerge da corrente teórica do ‘Funcionalismo’. Segundo Amaro (2008), o Funcionalismo é um dos “quatro campos teóricos paradigmáticos onde se podem inscrever as diferentes teorias do Serviço Social”, sendo eles, além do Funcionalismo, o “Humanismo”, o “Estruturalismo” e o “Interpretativismo” (p. 69). Estes campos teóricos paradigmáticos emergem tendo em conta “dois eixos fraturantes (…): o que vai da ação à estrutura e o que vai do conflito à ordem” (Amaro, 2008, p. 69). Assim, uma posição Estruturalista situa-se no quadrante da estrutura/objetivo, por um lado, e do conflito/mudança, por outro; o Humanismo está voltado para este último quadrante e no da ação/subjetivo; o Interpretativismo também se situa na linha da ação/subjetivismo, e também na linha da ordem/regulação; finalmente, o Funcionalismo preocupa-se com esta última linha e pela estrutura/objetivo. Desta forma, podemos entender a intervenção do Serviço Social fundada em uma destas quatro teorias, a ponto de orientar a análise e a compreensão dos fenómenos sociais, bem como a ação, podendo variar as metodologias utilizadas, os problemas e o quadro explicativo.

Quanto ao Funcionalismo, segundo Amaro (2008), este situa-se no “paradigma vigente”, que designa o “pensamento mais clássico do Serviço Social”, apontando para uma “prática voltada para a estabilidade” (p. 69). É dentro deste paradigma que se deve entender a teoria sistémica.

Payne (2002) refere que a ideia dos sistemas aplicada ao Serviço Social tem origem na teoria geral dos sistemas de Von Bertalanffy, sendo “uma teoria biológica que propõe que todos os organismos são sistemas, compostos por subsistemas, os quais são, por sua vez, parte de super-sistemas” (p. 195). A teoria dos sistemas “teve um grande impacto no trabalho social nos anos setenta” (Payne, 2002, p. 197), que, transportada para a abordagem das famílias, convergem três teorias: a “teoria do desenvolvimento familiar”, a “teoria dos sistemas” e a

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“ecologia do desenvolvimento humano” (Olivares, 2001, p. 2). Assim, a primeira centraliza a sua análise no “ciclo vital das famílias”, os seguidores da teoria dos sistemas “aplicaram os seus princípios ao estudo da mesma”, e os que defendem a ecologia do desenvolvimento humano “convidam-nos a ver as famílias como ecossistemas” (Olivares, 2001, p. 2). Esta última é a que interessa para o nosso estudo, sendo que comporta duas correntes: a que se refere ao “desenvolvimento humano”, sendo teorizada por Bronfenbrenner (2011); e a que se orienta para a prática social, sendo referida por Payne (2002) como o “modelo da vida”, desenvolvido por Germain e Gitterman, segundo o qual as pessoas estão “como que em constante adaptação num intercâmbio com muitos aspetos diferentes do seu ambiente” (p. 205).

Baseando-nos ainda em Payne (2002), há vários conceitos referentes à teoria sistémica e que se aplicam de uma forma geral à teoria ecossistémica (ou ecológica):

=> “Um sistema é uma entidade com fronteiras dentro das quais é trocada energia física e mental numa proporção maior do que através das suas fronteiras”;

=> Sistema fechado – “aquele em que não existe qualquer intercâmbio através da fronteira” (p. 195);

=> Sistema aberto – “quando a energia atravessa as fronteiras”; => Input – “energia que entra no sistema através da fronteira”;

=> Atravessamento – “forma como a energia é utilizada dentro do sistema”; => Output – “efeitos no ambiente da energia passada através da fronteira”;

=> Voltas de retorno – “a informação e a energia que interferem sobre o ambiente”: => Entropia – “os sistemas utilizam a sua própria energia para se manterem, o que significa que a não ser que recebam inputs de fora da fronteira, esgotam-se e morrem” (p. 196).

Bronfenbrenner (2011) defendeu que “o contexto ecológico é considerado como um conjunto de estruturas encaixadas e interconectadas”, não estando hermeticamente fechadas umas em relação às outras, mas sendo interdependentes, constituindo quatro níveis ecológicos - o “microssistema”, o “mesossistema”, o “exossistema” e o “macrossistema” (pp. 82-83):

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1.º) O primeiro nível, o ‘microssistema’, é o nível “mais central” (Bronfenbrenner, 2011, p. 82), que, referindo-nos à criança, inclui “as interações que desenvolve em territórios como a casa/família, com os pais e os irmãos, a sala de aula ou o parque infantil” (Delgado, 2009, p. 159), ou seja, “envolve estruturas e processos que ocorrem em um contexto imediato” (Bronfenbrenner, 2011, p. 114). Neste sentido, a família seria o principal microsistema, envolvendo o “complexo de relações entre as pessoas e o envolvente imediato em que se desenvolvem” (Olivares, 2001, p. 52).

2.º) O ‘mesossistema’ “engloba as relações entre dois ou mais ambientes dos quais a pessoa em desenvolvimento participa ativamente” (Bronfenbrenner, 2011, p. 82), pelo que, para uma criança, incluiria relações ou interconexões entre a “escola/família, ou família/amigos da vizinhança” (Delgado, 2009, p. 159).

3.º) O ‘exosistema’ pode ser definido “como um contexto em que a pessoa em desenvolvimento não está presente, mas no qual ocorrem eventos que influenciam o ambiente que contém a pessoa” (Bronfenbrenner, 2011, p. 83). Para uma criança com idade escolar, o exossistema pode incluir “por exemplo o desemprego ou as condições de trabalho dos pais” (Delgado, 2009, p. 159). Desta forma, “o que ocorre num microssistema pode estar influenciado pelo que ocorre noutros sistemas, mesmo quando uma das pessoas (…) não desempenhe nenhum papel no sistema que influencia” (Olivares, 2001, p. 53).

4.º) O ‘macrossistema’ remete “para a cultura social, para os valores, as crenças e os modos de agir de uma determinada sociedade, para a forma como ela se organiza” (Delgado, 2009, p. 159). Assim, o macrossistema “engloba as caraterísticas dos padrões do micro, meso e exossistema de uma determinada sociedade ou segmento” (Bronfenbrenner, 2011, p. 115).

Consideramos ainda um quinto nível ecológico o designado por Olivares (2001) por “cronosistema”, referindo-se às “mudanças que permanecem no tempo e que se produzem nos ambientes em que as pessoas vivem”, ou seja, “os sucessos que se mantêm através do tempo e que afetam o desenvolvimento das pessoas” (p. 53).

2.1.2 – Método:

Como já foi referido, o Modelo Ecossistémico surge da Teoria dos Sistemas Sociais, e este, por sua vez, entronca no campo paradigmático designado de Funcionalismo. Do ponto de vista funcionalista, “o principal objetivo da intervenção é a manutenção do equilíbrio do

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Figura 1: Dinâmica da Vitimização.

Referências

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