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Revisão de trajetória – desafios e perspectivas

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Academic year: 2021

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Revisão de trajetória – desafios e perspectivas

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“Hoje vejo que somos todos tão diferentes em nossas trajetórias, mas tão iguais em nossa perplexidade diante dos fatos da vida”.

(psicóloga, 50)

Vera Brandão A epígrafe que ilumina esta reflexão e as outras que a complementam fundamentam a edição especial da Revista Portal de Divulgação, de nº 35, comemorativa do 3º ano da sua existência. Este ano comemoramos ainda nove anos do Portal do Envelhecimento, e o 7º aniversário da fundação do Observatório da Longevidade Humana e Envelhecimento - OLHE.

Somos tão iguais e ao mesmo tempo tão diferentes. Perplexidade...

Assim, damos espaço ao Tempo. O Cronos, datado, aliado ao Kairós, vivido. Uma revisita do percurso de Quem faz o Portal, o OLHE, e a Revista, nestes anos que aqui celebramos.

A memória marca, contextualiza, confere sentidos. Daí a importância da memória social, com foco no potencial formador das narrativas e escritas de si e suas ressonâncias nos indivíduos e nos grupos.

As mudanças observadas no processo auto e heterobiográfico da revisita do percurso de vida-trabalho indicam a passagem dos projetos prospectivos – do

que foi realizado ou não - para projetivos – o que podemos e desejamos

realizar no futuro.

O “tomar nas mãos” a própria história é a matriz da construção de sentidos das trajetórias, por meio de um percurso de reconhecimento de si e do reconhecimento mútuo, força e impacto dos processos narrativos, e da escrita e escuta sensível, na construção de uma perspectiva renovada dos saberes e ações gerontológicas.

Temos pouco tempo, um número limitado de páginas, e nossa proximidade é, na maior parte das vezes, virtual. Seria muito ambicioso acontecer nosso projeto de revisitar a trajetória pessoal, profissional de membros que fazem o OLHE e todos seus programas - como o Portal, a Revista e o Programa Cuidar é Viver? Quais os sentidos de nossas ações? Qual nossa missão? No que acreditamos?

Falar do passado... Perplexidade!

1As bases teóricas sobre o percurso de reconhecimento foram desenvolvidas e se encontram,

em parte, em Brandão, V. (2011). Longevidade e Espiritualidade. Narrativas Autobiográficas. São Paulo: Centro Universitário São Camilo; Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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Para alguns, o passado é como um fardo. Muitas vezes lembramos, com saudades, de momentos idílicos vividos na infância e na adolescência. A idade adulta vem sempre com sua carga de responsabilidades, desejos frustrados, perdas, dores, tristezas.

Na fase do envelhecimento parece natural lembrar e esquecer.

Dizem alguns que, liberados do cotidiano de trabalho, os idosos teriam mais tempo de lembrar o passado. E pensar no futuro?

Velho pensa no futuro? O que é o futuro de um velho?

O que é o passado e o que será o futuro para cada um de nós, independentemente da idade hoje? Lembranças de projetos, sonhos, realizações, desilusões.

Refletimos sobre nosso caminhar?

O que a análise da trajetória pessoal e profissional pode nos trazer? Ouvimos muitas vezes dos idosos:

“Não gosto de lembrar o passado. Sofri muito!”

“No tempo da juventude sim era bom! A gente tinha aquela disposição...” “Perdi tudo... hoje me sinto vazia de sentimentos. Falar do passado... Não!” Mas ouvimos, por outro lado:

“Foi tão bom! Passei a vida a limpo!”.

“Sabe, no começo foi difícil, mas agora vejo como foi importante. Achava que só eu tinha sofrido. Revendo minha história e ouvindo os outros, reconheço que no balanço final tive uma vida boa”.

Na ressignificação da trajetória de profissionais em processo de formação continuada ouvimos:

“Pude constatar que a rememoração favorece a ressignificação, reforça a sensação de pertinência a um grupo de origem e destino (...) o que levou a uma revisão e reafirmação da minha própria identidade, pois estava meio ‘perdida’, sem saber que caminho trilhar”.

“Falar de si é uma tarefa ou ação de reflexão pouco explorada. Mas foi um desafio superado e concretizado com o relato de minha pequena trajetória profissional e pessoal com o anseio de novos projetos e conquistas”.

Para os membros do OLHE, rever e ressignificar a trajetória profissional à luz do nosso encontro com a Gerontologia, e os trabalhos que realizamos nestesúltimos anos, têm como objetivo marcar e ressignificar uma história de muitos desafios, alguns ultrapassados na conquista com alegria, outros vivenciados na frustração e na tristeza. Nosso trabalho tem como foco o ser humano em seu longeviver; então, não realizar um projeto é vivido como perda

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não só para nós, mas, especialmente, por aqueles por quem nada pudemos fazer.

O filósofo Paul Ricouer (1913-2005) na obra o Percurso de Reconhecimento (2006) indica como construir um percurso de reconhecimento a partir das narrativas e escritas de si. Seu pensamento serve de base para uma prática na qual, pela palavra falada e escrita, dizemos e compartilhamos as escolhas, nossas experiências pessoais, objetivas e subjetivas, contextualizadas em

meio a uma teia de relações sociais - em determinado tempo e lugar –,

espelhando a cultura em seu sentido expressivo.

A apropriação da história pessoal é portadora de um poder de (auto)formação, afirma os indivíduos como atores por ela responsáveis, e reafirma a competência de agir sobre os projetos de descoberta e reinvenção de si, e o impacto dessas escolhas na vida-trabalho. Podemos, assim, encontrar o sentido e o significado dos projetos passados, presentes e futuros, em uma perspectiva existencial.

Consideramos que o projeto existencial é constituído de pequenos e grandes projetos de vida (planos) e de trabalhos, mas, ao contrário dos últimos, não tem um fim e nem um tempo determinado, são projetos em processo com um significado e sentido mais amplo, e não necessariamente instrumental (Boutinet, 1996).

Trabalhar por uma cultura da longevidade é um projeto existencial.

No processo de revisão das trajetórias e dos projetos - por meio das narrativas e escritas de si - resgatamos a construção de um percurso de reconhecimento e de auto (re)construção. Segundo Ricouer (2006), os processos de reconhecimento de si e do reconhecimento mútuo, que formam as bases das culturas, surgem das inter-relações e reciprocidades estabelecidas entre os indivíduos e os grupos – nos atos de dar e receber.

Observamos que este “dom” da troca - tão bem estudada pelos antropólogos, com o qual nos deparamos nos trabalhos de ressignificação e partilha das memórias individuais, coletivas e históricas, é pleno de sentidos ligados aos valores éticos, morais e jurídicos, princípios que regem e organizam a vida social - raiz de nossas identidades - e que são inerentes à partilha das narrativas e escritas de si.

Ricouer (2006), em sua obra, parte da análise dos inúmeros significados linguísticos do termo reconhecimento, até chegar aos seus usos filosóficos, na perspectiva de uma teoria do reconhecimento, propondo como pontos de síntese: o reconhecer como identificação; o reconhecer-se a si mesmo; e o reconhecimento mútuo.

Esse percurso de reconhecimento que aqui propomos se constrói em um

movimento de retroalimentação – primeiramente o reconhecimento de si –

autobiográfico, na reflexão escrita sobre a trajetória na formação gerontológica, e no trabalho no OLHE; e do outro – heterobiográfico, quando partilhamos esse caminho entre nós e com nossos leitores.

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Reconhecer como identificação: quem sou?

Reconhecer-se a si mesmo – em meio às diferentes experiências do que viveu, se apropriou e construiu “seu” universo de valores.

Reconhecimento mútuo – na possibilidade de abertura ao diálogo-partilha,

como um dom de si, no sentido das solidariedades mútuas, integradoras de sentidos.

O percurso de “reconhecimentos” só é possível considerando a constituição

neurobiológica dos sujeitos, que possibilita a aprendizagem das experiências, que são transformadas, incorporadas, armazenadas e, posteriormente passíveis de resgate - se consolidadas como memórias de longa duração. Incluem-se nesse processo os (re)conhecimentos vividos e adquiridos por meio de ensinamentos e relatos de experiências de outros: familiares, amigos, professores, e dos acervos de cultura formal e informal ao qual pertencem e têm acesso.

Os reconhecimentos, bases das culturas, surgem das inter-relações entre

memória individual, coletiva e histórica – e entre as quais os sentidos ligados

aos valores éticos, morais e jurídicos, princípios que regem e organizam a vida social.

O “nó” de significados aparece nas narrativas – faladas, escritas, transcritas, oferecidas como dom aos leitores - por meio das palavras socializadas no tempo e espaço das culturas - espelhadas no diálogo/ encontro do eu e o(s) outro(s).

Nos encontros cada um diz de si o que sabe e pode – capacidades, desejos,

talentos e competências – processo de apropriação do poder-saber sobre a

vida e silêncio, omissão, apagamento, esquecimento e (re) construção de sentidos, instâncias da interpretação, ressignificação e reinvenção de si - ato de dar sentido à vida - passando do momento individual e solitário para a partilha e, dela, para uma ação criativa envolvendo o meio social (Josso 2006; 2010; Momberger, 2008).

Nesse processo surge um texto relacional - indicativo da construção de múltiplos sentidos formativos, investigativos e narrativos – que se aproxima da concepção de Lejeune (2007) na afirmação: quem fala e escreve pede, propõe e oferece algo ao interlocutor, esperando aceitação, aprovação, comunhão de sentidos no partilhar da humanidade comum - em suas complexidades, diversidades, fragilidades - pede o reconhecimento do outro e espera uma reciprocidade - o dom da troca.

Ao construirmos a possibilidade de trocas, por meio das narrativas, e nelas a compreensão da raiz da busca de sentidos, nos aproximamos dos princípios de solidariedade, com destaque na dignidade, paz e respeito à diversidade na gestão da vida em comum.

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No percurso de reconhecimento - a passagem do reconhecimento de si, ao

reconhecimento mútuo – surge, como aponta Ricouer (2006), o

reconhecimento como gratidão – a partir do encontro e do desvelamento das

intersubjetividades no plano social. Nessa ética para a vida a escuta ampliada e compartilhada estabelece um vínculo entre quem fala e quem escuta, considerando as “estranhezas” e as similaridades. O que falamos e, principalmente, escutamos, nos tranquilizaria pela partilha na semelhança, como inquietar pelo choque da diferença, mas, em ambos os casos, no confronto nos projetamos e teríamos, a partir das experiências de reconhecimentos, a compreensão das múltiplas possibilidades de ser, e nos deparamos com a complexidade inerente à vida, e a busca de seus sentidos. No percurso de reconhecimentos pela fala e escuta - identificações e compreensões solidárias – estabelecemos um “compromisso de reciprocidade”, e a passagem do uso do termo reconhecer da voz ativa – eu reconheço – para

a voz ativa – eu sou reconhecido. Ação recíproca de identidades construídas

nas relações de alteridade - eu reconheço e sou reconhecido - e, retribuindo o dom do reconhecimento, reconheço o outro, o que nos coloca no caminho da

gratidão – hóspede inesperado na morada dos sentidos do reconhecimento –

em um “movimento de retorno, espontâneo, gracioso, em todos os sentidos da palavra” (2006, p.19).

Das reflexões sobre o percurso de reconhecimento à gratidão - parte da ética para e da vida - extraímos um sentimento, simultaneamente, de esperança e

de responsabilidade em relação ao futuro comum a todos – um longeviver

digno.

Perplexidade frente às diferenças, respeito, ética e solidariedade nas ações. Comunicação, solidariedade e rede embasam a proposta inovadora do Portal, antes mesmo da implantação do Estatuto do Idoso, e posteriormente do Observatório, hoje um bom exemplo da cultura da longevidade: maior disseminação qualificada de saberes sobre a longevidade humana.

As pessoas idealizadoras e envolvidas no OLHE são exemplos de empreendedores sociais focados na perspectiva do longeviver.

Referências bibliográficas

Boutinet, J.P. A Antropologia do Projeto. Lisboa: Instituto Piaget, 1990.

Brandão, V.M.A.T.; Mercadante, E.F. Envelhecimento ou Longevidade? São Paulo: Paulus, 2009.

Josso, MC. Caminhar para si. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.

____________________ “As figuras de ligação nos relatos de formação: ligações formadoras, deformadoras e transformadoras”. Revista da Faculdade de Educação – USP. São Paulo, vol.32 /02. pp.373-383. 2006.

Lejeune, Phillipe. “Une pratique d’avant-garde. Les écritures du moi”. In:

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Momberger, C. D. Biografia e Educação. Figuras do indivíduo-projeto. São Paulo: Paulus, 2008.

Ricouer, P. Percurso do Reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006.

Vera Brandão - Pedagoga (USP). Mestre e doutora em Ciências Sociais -

Antropologia pela PUC-SP. Pesquisadora CNPq PUC-SP. Docente do COGEAE PUC-SP. Idealizadora e docente da Oficina de Formação Continuada: Narrativas Autobiográficas: Memória, Identidade e Cultura.

Editora do Portal do Envelhecimento e da Revista Portal de Divulgação

Referências

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