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(1)

filosofia contemporânea

carlos joão correia

o

2015-2016 1ºSemestre

(2)

John Eccles

Singularidade

“Considero que há duas proposições básicas para qualquer tentativa de nos compreendermos a nós próprios e de compreendermos a nossa relação com o mundo incluindo outros eus. Essas proposições podem classificar-se como certezas primordiais.

Em primeiro lugar, a certeza de que existimos como um ser autoconsciente [self-consciousness] único. Em segundo lugar, a certeza de que o mundo material existe, incluindo o nosso corpo e o nosso cérebro.

A filosofia contemporânea negligencia problemas relacionados com a unicidade vivida por cada si [self]. [...] Centrarei a minha atenção no acontecimento mais extraordinário no mundo da nossa vivência, nomeadamente a emergência de cada um de nós como um ser autoconsciente único. [...] Não há dúvida de que cada pessoa humana reconhece a sua própria singularidade e isto é aceite como a base da vida social e da lei. Ao examinarmos os motivos desta convicção, a neurociência moderna elimina uma explicação em termos do corpo. Restam duas alternativas possíveis – o cérebro e a psique [Psyche]. Os materialistas devem subscrever a primeira, mas os dualistas interaccionistas têm de encarar o Si [Self] como a entidade que tem a vivência da unicidade.

(3)

John Eccles

Singularidade

Se a unicidade vivenciada de cada um derivar directamente da singularidade do seu cérebro, temos de examinar os níveis de singularidade de cérebros humanos. Não podia ser a singularidade de toda a infinidade de pormenorizadas conexões dos 10000 milhões de células do córtex cerebral humano. Essas conexões estão em modificação constante em termos de plasticidade e de degeneração. A afirmação materialista mais vulgar é que a experiência de unicidade deriva da singularidade genética. (…) [Ora], o desenvolvimento fenotípico do cérebro está bastante distanciado das instruções genotípicas [...] Por exemplo, o genótipo está implicado na construção do cérebro, mas actua num meio que modela profundamente o seu processo de construção do fenótipo. No caso de gémeos verdadeiros, os genomas idênticos contribuíram para a construção de cérebros diferentes devido à diversidade do ruído de desenvolvimento. [...] Deste modo, há um imenso abismo de desenvolvimento entre as instruções genéticas fornecidas pelo zigoto e o cérebro do bebé recém-nascido. Compreender-se-á que o ruído de desenvolvimento torna caótica e incoerente qualquer tentativa para derivar a nossa experiência de unicidade da nossa singularidade genética.

(4)

John Eccles

Singularidade

Uma resposta frequente e superficialmente plausível para este

enigma é a asserção de que o factor determinante é a

singularidade das experiências acumuladas de um Si ao longo

da sua existência. É fácil concordar que o nosso comportamento

e as nossas memórias e, de facto, todo o conteúdo da nossa

vida consciente interior dependem das experiências acumuladas

das nossas vidas; mas, por extrema que seja a modificação (…),

seríamos ainda o mesmo Si capaz de retraçar a nossa

continuidade na memória até às primeiras recordações por volta

de um ano de idade, o mesmo Si com um aspecto

completamente diferente. Não poderia haver eliminação de um Si

e criação de um novo Si!”

John Eccles, A Evolução do Cérebro. A Criação do Eu, trad.port. Lisboa: Instituto Piaget. 1995, 360-363 (Evolution of the Brain: creation of the Self. London/New York: Routledge.1989, 236-237).

(5)

”Se depois de eu morrer, quiserem

escrever a minha biografia,

Não há nada mais simples.

Tem só duas datas - a da minha

nascença e a da minha morte.

Entre uma e outra todos os dias são

meus.”

Fernando Pessoa/Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos (escrito entre 1913-15; publicado em Atena nº 5, Fevereiro de 1925.)

(6)
(7)

E.M. Forster

1879-1970

o rei morreu, a rainha morreu”

a rainha morreu de desgosto”

(8)

”Estou à espera do autocarro quando um jovem ao meu lado me diz: ‘O

nome do pato comum selvagem é Histrionicus histrionicus’. Não há

qualquer problema em relação ao sentido da frase que ele enunciou: o

problema está antes em saber o que é que ele estava a fazer ao

enunciá-la. Suponhamos que o jovem enuncia esta frase em intervalos aleatórios;

isto poderia ser uma possível forma de loucura. Mas nós tornaríamos esta

frase inteligível se uma das seguintes situações se revelasse verdadeira.

Ele confundiu-me com uma pessoa que ontem se aproximou dele na

biblioteca e lhe perguntou: 'por acaso, sabe o nome latino do pato comum

selvagem?'. Ou ele acabou de chegar de uma sessão com o seu

psicoterapeuta que o incitou a acabar com a timidez falando com

estranhos. 'Mas o que devo dizer?' 'Oh, qualquer coisa'. Ou ele é um

espião soviético que tinha combinado um encontro e enunciava o estranho

código que o identificaria perante o seu contacto. Em cada caso, o acto de

enunciação torna-se inteligível quando se descobre o seu lugar numa

narrativa.”

A.

A. MacIntyre. After Virtue. A Study in Moral Theory. London: Duckworth. 1985, 210

(9)

Tese de MacIntyre

A narrativa não é o trabalho de poetas, dramaturgos e romancistas

reflectindo sobre os acontecimentos que não tinham nenhuma ordem

narrativa antes de serem configurados [imposed] pelo cantor ou escritor; a

forma narrativa não é nem disfarce nem decoração. Barbara Hardy escreveu

que nós sonhamos narrativamente, temos devaneios [day-dream] sob a

forma de narrativa, lembramos, antecipamos, esperamos, desesperamos,

acreditamos, duvidamos, planeamos, revemos, criticamos, construímos,

m e x e r i c a m o s , a p r e n d e m o s , o d i a m o s , e a m a m o s a t r a v é s d a

narrativa [ Towards a Poetics of Fiction: an approach through narrative .

Novel 2, 1968: 5]. […] Defendi que, para identificar e compreender com

sucesso o que alguém está a fazer, nós situamos sempre um acontecimento

particular num conjunto de narrativas históricas, histórias referentes aos

indivíduos em questão e à situação em que eles agem e sofrem. Torna-se,

agora, claro que nós tornamos as acções dos outros inteligíveis sob esta

forma porque a acção é ela própria de natureza histórica. É porque todos nós

vivemos narrativas nas nossas vidas e porque compreendemos as nossas

próprias vidas em termos narrativos que apreendemos [live out] que a forma

da narrativa é apropriada para entender a acção dos outros.

(10)

Arte e Narrativa

“O público pode, por assim dizer, perceber a ‘originalidade’ da obra [de arte], mas não a sua relevância. Por outras palavras, dá-se uma falha de comunicação. Mas se é esse o problema, há uma solução evidente: reconstruir a conversa de maneira a que a importância da contribuição do artista seja posta em evidência, quiçá trazendo ao de cima pressuposições omitidas ou que passaram despercebidas, dando destaque a elementos do contexto anteriormente ignorados e tornando as intenções do artista explícitas ao mostrar que essas intenções são inteligíveis no âmbito da conversa e do seu contexto, etc.

É claro que reconstruir a conversa desta forma equivale a uma narrativa histórica. Quando se verifica um lapso na conversa – quando falta uma ligação -, ele é corrigido ao retomar a conversa de uma forma que a reconstrua historicamente, colmatando a falha em simultâneo. Sempre que é possível produzir uma conversa deste tipo, temos, em geral, motivo suficiente para classificar um candidato como obra de arte.”

(11)

Identidade Narrativa

Formei então a hipótese segundo a qual a constituição da

identidade narrativa, seja de uma pessoa individual, seja de uma

comunidade histórica, era o lugar procurado desta fusão entre

história e ficção. Temos uma pré-compreensão intuitiva deste

estado de coisas: não se tornam as vidas humanas mais legíveis

quando são interpretadas em função das histórias que as pessoas

contam a seu respeito? E estas histórias da vida não se tornam

elas, por sua vez, mais inteligíveis, quando lhes são aplicadas

modelos narrativos - as intrigas - extraídas da história e da ficção

(drama ou romance)? O estatuto epistemológico da autobiografia

parece confirmar esta intuição.

(12)

Parece, pois, plausível ter como válida a cadeia seguinte de asserções: o

conhecimento de si próprio é uma interpretação, - a interpretação de si próprio,

por sua vez, encontra na narrativa, entre outros signos e símbolos, uma

mediação privilegiada, - esta última serve-se tanto da história como da ficção,

fazendo da história de uma vida uma história fictícia ou, se se preferir, uma

ficção histórica, comparáveis às biografias dos grandes homens em que se

mistura a história e a ficção.

"Delimitar a noção de identidade narrativa, isto é, o tipo de identidade à qual

um ser humano acede graças à mediação da função narrativa.”

Ricoeur, “A Identidade Narrativa”: 108

(13)

“O acto de contar parece, assim, ser a chave do tipo de conexão

que evocamos quando falamos, com Dilthey, da «conexão de uma

vida» (

Zusammenhang des Lebens). Não se tratará, com efeito, de

uma unidade fundamentalmente narrativa, como questiona Alasdair

McIntyre quando fala, em

After Virtue, da unidade narrativa de

uma vida? Mas enquanto McIntyre se apoia principalmente sobre

as histórias contadas durante e no meio de uma vida, proponho

fazer o desvio pelas formas literárias da narrativa e mais

precisamente por aquelas da narrativa de

ficção. Com efeito, a

problemática da conexão, da permanência no tempo, em suma da

identidade, encontra-se aí elevada a um nível de lucidez e também

de perplexidade que não atingem as histórias imersas durante o

próprio curso da vida.

(14)
(15)

“Suponhamos que a minha réplica é enviada sobre a superfície de

qualquer planeta e que eu próprio sou «teletransportado» ao

encontro da minha réplica. Suponhamos ainda que, durante a

viagem, o meu cérebro é destruído e que eu não me encontre com a

minha réplica, ou ainda que só o meu coração é danificado e que eu

encontre a minha réplica intacta, a qual me prometeria tomar conta

da minha família e da minha obra após a minha morte. A questão é

de saber se, num caso ou noutro, eu sobrevivo na minha réplica.

Como se vê, a função desses casos embaraçantes é de criar uma

situação tal que seja impossível decidir se sobrevivo ou não. O

choque de retorno da indizibilidade da resposta é de minar a crença

que a identidade, seja no sentido numérico, seja no sentido da

permanência no tempo, deva sempre ser determinada; se não

podemos decidir, diz Parfit, é porque a própria questão é vazia;

chega então a conclusão: a identidade não é o que importa”

Ricoeur, “A Identidade Narrativa”: 113

(16)
(17)
(18)

O quadro conceptual que proponho submeter à prova de análise

repousa sobre a diferença fundamental que faço entre dois usos

principais do conceito de identidade: a identidade como mesmidade

(latim idem, inglês same, alemão gleich) e a identidade como

si-próprio [soi] (latim ipse, inglês self, alemão selbst). A ipseidade não

é a mesmidade.

A minha tese é que muitas dificuldades que obscurecem a questão

da identidade pessoal resultam da falta de distinção entre os dois

usos do termo identidade. Iremos ver que a confusão não é sem

razão, na medida em que as duas problemáticas se recobrem num

certo ponto. A determinação desta zona de recobrimento será, a

este respeito, da maior importância.

(108-109)

(19)

Partamos pois da ideia de identidade como mesmidade (idem).

Várias relações são operadas a este nível. Em primeiro lugar, a

identidade em sentido numérico; assim, dizemos que duas

ocorrências de uma coisa designada por um nome invariável não

constituem duas coisas diferentes mas uma só e mesma coisa; a

identidade, aqui, significa unicidade; o seu contrário é a pluralidade:

não uma, mas duas ou várias; este primeiro sentido do termo

corresponde à identificação compreendida como reidentificação do

mesmo.

Ricoeur, A Identidade Narrativa : 109

(20)

A Lei de Leibniz ou o Princípio

da Identidade dos Indiscerníveis

Discurso da Metafísica §9

não é verdade que duas substâncias se

assemelhem inteiramente e sejam

diferentes solo numero

(21)

Vem, em segundo lugar, a ideia de semelhança extrema: X e Y trazem o mesmo

fato, isto é, fatos de tal forma semelhantes que são substituíveis um pelo outro.

O contrário é aqui o diferente. Estas duas primeiras ideias não são exteriores

uma à outra. Em certos casos, a segunda serve de critério indirecto para a

primeira, quando a reidentificação do mesmo é objecto de dúvida e de

contestação; então, esforça-se para mostrar que marcas materiais (fotos, sinais,

etc.) ou, em casos mais problemáticos, as lembranças de uma mesma

testemunha, ou os testemunhos concordantes de várias testemunhas,

apresentam uma tão grande semelhança, por exemplo, entre um acusado agora

presente em tribunal e o autor presumível de um crime antigo, que o homem

hoje presente e o autor do crime são uma só e a mesma pessoa.

Ricoeur, A Identidade Narrativa : 109

(22)

”””Imaginemos que, num belo dia, os lisboetas [les Lyonnais] decidem construir na Praça dos Restauradores [place Bellecour] uma torre que se assemelha traço por traço com a torre Eiffel. Para realizar este projecto ambicioso, decide‑se reencontrar os planos originais de Gustave Eiffel e de produzir a partir deles uma torre com a mesma escala, como o mesmo número e o mesmo género de traves de ferro, dispostas umas em relação às outras do mesmo modo do que acontece na torre Eiffel. Para levar a semelhança o mais longe possível, decide-se fabricar traves de ferro segundo as técnicas, os procedimentos e os métodos em uso em 1889 [...]. Encontramos, assim, duas torres Eiffel, a de Paris e a de Lisboa e, até aí, o risco de confusão é relativamente limitado: estas duas torres são simultaneamente numericamente diferentes e qualitativamente idênticas. Imaginemos agora que durante uma violenta tempestade a torre Eiffel de Paris desaba. [...] Imaginemos, em seguida, que os lisboetas oferecem por sua vez a sua torre Eiffel aos parisienses para os consolar desta perda. Decide-se assim deslocar a torre Eiffel lisboeta da Praça dos Restauradores ao Champ-de-Mars, na localização exacta da antiga torre Eiffel. E é aqui que o risco de confusão aparece. Na medida em que só subsiste uma única torre Eiffel, a ilusão de óptica pode iniciar-se e corre-se o risco de considerar esta torre Eiffel como a torre Eiffel, ou dito de outra forma de tomar a réplica pelo original [...]. Da mesma forma que ao folhearmos um livro sobre Piero della Francesca acreditamos estar a admirar a sua obra autêntica, os turistas em Paris acabariam por considerar que eles visitam a torre Eiffel embora não se tratando dela. É importante não esquecer este ponto, pois numerosas teorias sobre a identidade pessoal sofrem precisamente do que se poderia chamar a síndroma da torre Eiffel, isto é, desta passagem intempestiva e como insensível da identidade qualitativa à identidade numérica."

Stéphane Ferret. Le philosophe et son scalpel. Paris: Minuit. 1993, 14-15

(23)

É precisamente a fraqueza do critério de similitude no caso de uma

grande distância no tempo que sugere uma outra noção, que é ao

mesmo tempo um outro critério de identidade, a saber a continuidade

ininterrupta no desenvolvimento de um ser entre o primeiro e o último

estado da sua evolução. Assim, dizemos de um carvalho que ele é o

mesmo da semente à árvore na força da idade; da mesma forma, de

um animal, do nascimento à morte, e mesmo do homem enquanto

amostra da espécie, do feto ao velho; a demonstração desta

continuidade funciona como critério anexo do da similitude ao serviço

da identidade numérica. O contrário da identidade tomada neste

terceiro sentido é a descontinuidade. Ora, com este terceiro sentido,

entrou em linha de conta a mudança no tempo.

Ricoeur, Identidade Narrativa : 109-110

(24)

É em função deste fenómeno essencial que entra em cena o quarto sentido

da identidade-mesmidade, a saber, a permanência no tempo. É com este

sentido que começam os verdadeiros problemas, na medida em que é difícil

não relacionar esta permanência a qualquer substrato imutável, a uma

substância, como fez Aristóteles, e como Kant o confirma a seu modo,

deslocando do plano ontológico para o plano transcendental, o das

categorias do entendimento, a primazia da substância sobre os acidentes:

«Todos os fenómenos contêm algo de permanente (substância) considerada

como o próprio objecto e algo de mutável, considerado como uma simples

determinação deste objecto, isto é, de um modo de existência do objecto» (A

182, B 224). [...] É exactamente esta quarta determinação que coloca

problemas na medida em que a ipseidade, o si-próprio [soi], parece cobrir o

mesmo espaço de sentido.

Ricoeur, A Identidade Narrativa : 110

(25)

• 

Identidade Numérica ( dizemos que duas ocorrências de uma coisa designada por um nome invariável não constituem duas coisas

diferentes mas uma só e a mesma coisa; a identidade, aqui, significa unicidade; o seu contrário é a pluralidade )

• 

Semelhança extrema ( a ideia de semelhança extrema: X e Y trazem o mesmo fato, isto é, fatos de tal forma semelhantes que são substituíveis um pelo outro. O contrário é aqui o diferente. )

• 

Continuidade ( a continuidade ininterrupta no desenvolvimento de um ser entre o primeiro e o último estado da sua evolução. Assim, dizemos de um carvalho que ele é o mesmo da semente à árvore na força da idade (...); a demonstração desta continuidade funciona como critério anexo do da similitude ao serviço da identidade numérica. O contrário da identidade tomada neste terceiro sentido é a descontinuidade. )

• 

Identidade Substancial ( o quarto sentido da identidade-mesmidade, a saber, a permanência no tempo. É com este sentido que começam os verdadeiros problemas, na medida em que é difícil não relacionar esta permanência a qualquer substrato imutável, a uma substância, como fez Aristóteles, e como Kant o confirma a seu modo ).

(26)

Como é que a noção de si, de ipseidade, se cruza com a de mesmidade? O ponto de partida do desenvolvimento da noção de ipseidade deve-se procurar na natureza da questão à qual o si constitui uma resposta, ou um leque de respostas. Esta questão é a questão quem, distinta da questão o quê. É a questão que colocamos de preferência no domínio da acção: procurando o agente, o autor da acção, perguntamos: quem fez isto ou aquilo? Chamamos atribuição o assinalar de um agente a uma acção. Através disso, atestamos que a acção é a posse daquele que a pratica, que é sua, que lhe pertence propriamente. Sobre este acto ainda neutro do ponto de vista moral enraíza-se o acto de imputação que reveste uma significação explicitamente moral, no sentido em que ela implica acusação, desculpa ou absolvição, censura ou louvor, em suma, estimação segundo o «bom» ou o «justo». Dir-se-á: porquê este vocabulário desajeitado do si-próprio [soi] em vez do eu? Simplesmente porque a atribuição pode ser enunciada em todas as pessoas gramaticais: na primeira pessoa na confissão, na aceitação da responsabilidade (eis-me), - na segunda pessoa na advertência, no conselho, na ordem (tu não matarás), - na terceira pessoa na narrativa, o qual vai precisamente ocupar-nos em breve (ele diz, ela pensa, etc.) O termo si, ipseidade, cobre o leque aberto pela atribuição no plano dos pronomes pessoais e de todos os termos gramaticais que dependem dele: adjectivos e pronomes possessivos (meu, o meu - teu, o teu, - seu, sua, o seu, a sua, etc.), advérbios de tempo e de lugar (agora, aqui, etc.). Ricoeur. A Identidade Narrativa : 110-111.

(27)

Dito isto, o si encontra-se em intersecção com o mesmo num

ponto preciso, precisamente a permanência no tempo. É, com

efeito, legítimo interrogar-se sobre o tipo de permanência que

convém a um si [ipseidade], quer a tomemos, na linha de

atribuição, por um carácter, definido por uma certa constância

das suas disposições, quer lhe reconheçamos, na linha da

imputação, a forma de fidelidade a si próprio que se manifesta

na maneira de manter as suas promessas. E contudo, por

mais próxima em aparência, que esta manutenção de si

próprio [...] esteja da permanência no tempo do idem, trata-se

de duas significações que se recobrem sem se identificar.

Ricoeur, A Identidade Narrativa : 111

(28)

Onde a confrontação com Parfit se torna interessante é quando a

ficção literária produz situações onde a ipseidade se dissocia da

mesmidade. O romance moderno abunda em situações em que se

fala correntemente da perda da identidade do personagem,

exactamente inversa do tipo de fixidez do herói que caracterizava o

folclore, o conto de fadas, etc. Poder-se-ia dizer a este respeito que

o grande romance do século XIX, tal como Lukács, Bakhtine e

Kundera o interpretaram, explorou todas as combinações

intermediárias entre o completo recobrimento entre a

identidade-mesmidade e a completa dissociação entre as duas

modalidades de identidade que nós vamos agora evocar.

(29)

Podemos agora comparar os puzzling-cases da ficção científica e os da ficção literária. As diferenças são numerosas e assinaláveis.

Em primeiro lugar, as ficções narrativas permanecem variações imaginárias em torno de um invariante, a condição corporal que se pressupõe constituir a mediação inultrapassável entre si próprio e o mundo. As personagens do teatro e do romance são entidades semelhantes a nós, agindo, sofrendo, pensando e morrendo. Dito de outra forma, as variações imaginativas no campo literário têm como horizonte incontornável a condição terrestre. [...] Porque é que é assim? Porque as ficções são imitações - por mais errantes ou aberrantes que se queira - da acção, isto é, do que conhecemos já como acção e interacção num ambiente físico e social. Por comparação, os

puzzling-cases de Parfit são variações imaginativas que fazem aparecer como contingente a própria

invariante de uma hermenêutica da existência. E qual é o instrumento deste contorno? A tecnologia; não a tecnologia efectiva, mas o sonho da tecnologia. As variações imaginativas das narrativas de ficção dirigem-se sobre a relação variável entre ipseidade e mesmidade, as variações imaginativas da ficção científica referem-se a uma única mesmidade, a mesmidade desta coisa, desta entidade manipulável, o cérebro. Uma análise impessoal da identidade aparece, assim, dependente de um sonho tecnológico no qual o cérebro foi assumido como o equivalente substituível da pessoa. O verdadeiro enigma é, então, de saber se nós somos capazes de conceber variações tais como a corporeidade, - como nós a conhecemos, a saboreamos ou a sofremos, - enquanto variável, uma variável contingente, sem que se tenha de transpor as nossas experiências terrestres para a própria descrição do caso em questão. “

(30)

Sobre o trajecto da aplicação da literatura à vida, o que

transportamos e transpomos na exegese de nós mesmos é a

dialéctica do ipse e do idem. Nela reside a virtude purgativa das

experiências do pensar postas em cena pela literatura, não apenas

no plano da reflexão teórica, mas sobre o da existência. Sabeis

qual a importância que dou à relação texto-leitor. Gosto sempre de

citar este belo texto de Proust no Le temps retrouvé: «Mas para

voltar a mim mesmo, pensava mais humildemente no meu livro e

seria mesmo inexacto dizer que pensava naqueles que o leriam,

nos meus leitores. Pois eles não seriam os meus leitores, mas os

próprios leitores de si mesmos, sendo o meu livro uma espécie

dessas lentes ampliadoras como aquelas que o oculista de

Combray oferecia a um comprador; o meu livro graças ao qual eu

forneceria o meio de eles se lerem a si mesmos». [Pléiade III, p.

1033].

(31)

“Parece-me […] difícil falar de autonomia sem

falar de identidade. Mas pode-se falar a partir

de dois pontos de vista diferentes: em primeiro

lugar, o ponto de vista da nossa relação com o

tempo - falar-se-á de identidade narrativa - em

seguida, do ponto de vista inerente à

perspectiva insubstituível que marca a

singularidade da identidade pessoal.”

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