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EDUCAÇÃO GUARANI E EDUCAÇÃO ESCOLAR Clovis Antonio Brighenti & Ana Lúcia Vulfe Nötzold

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Academic year: 2021

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EDUCAÇÃO GUARANI E EDUCAÇÃO ESCOLAR: DESAFIOS DA EXPERIÊNCIA MBYA E NHANDEVA

Clovis Antonio Brighenti* Ana Lúcia Vulfe Nötzold**

Introdução

A promulgação da Constituição Federal brasileira em 1988, possibilitou pensar a educação escolar indígena como um espaço de gestão de saberes específicos e diferenciados a partir da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas. Contudo, criar um novo pensamento para romper com as velhas práticas, continua sendo um desafio. Uma nova educação escolar indígena exige um repensar, um refazer dos paradigmas no campo educacional e das relações de alteridade entre indígenas e não-indígenas. Uma nova territorialidade emerge desse debate e desafia educadores e gestores públicos a compreender a nova dinâmica e contribuir com os povos indígenas na conquista do espaço próprio.

É objetivo deste artigo, discutir as propostas apresentadas pelos Guarani em 2001, durante seminário sobre a educação escolar guarani no sul e sudeste brasileiro, que ocorreu na cidade de Florianópolis-SC, analisá-las a partir das experiências atuais, especialmente do documento da Comissão Guarani Nhemonguetá1, encaminhado a I Conferência de Educação Escolar Indígena, que ocorreu durante o ano de 2009. Objetivamos também refletir sobre a relação da escola na conquista das terras e na configuração do território Guarani. Faz-se

*

Doutorando em História Cultural pela UFSC sob orientação da Profª Drª Ana Lúcia Vulfe Nötzold. Bolsista CAPES. Integrante do Observatório da Educação Escolar Indígena. Membro do Conselho Indigenista Missionário. Email: clovisbrighenti@hotmail.com

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Etno-historiadora, Professora do Departamento de História, Coordenadora do LABHIN/Laboratório de História Indígena. Coordena o Observatório da Ed. Escolar Indígena – UFSC. Email:anotzold@hotmail.com 1

A Comissão Guarani Nhemonguetá é uma articulação de lideranças e caciques Guarani em Santa Catarina, criada em 2006, tendo como finalidade articular o povo Guarani e defender os direitos dessas comunidades.

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necessário esclarecer que os dois documentos acima citados, objeto de nossa análise, foram elaborados pelos Guarani dos subgrupos linguísticos Mbya e Nhandeva/Xiripa. Portanto, quando o artigo menciona Guarani estamos nos referindo a estes subgrupos linguísticos. Isso implica também que não está em análise as proposições dos Kaiowa ou de outros subgrupos linguísticos Guarani que vivem em território paraguaio, argentino e boliviano.

Território Guarani

Os Guarani dos subgrupos linguísticos Mbya e Nhandeva estão presentes em mais de uma centena de aldeias em sete estados brasileiros sendo que a maioria das comunidades não possuem terras regularizadas. Fundamentam o pertencimento a um território para além das fronteiras estaduais e nacionais pelas redes de sociabilidades através das relações de parentesco e reciprocidade. Mantém intercâmbios recíprocos entre as comunidades presentes nos estados do Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul2, além de intensas relações com os Guarani que vivem no território argentino, especialmente na província de Misiones e no leste paraguaio. De maneira coletiva ou individual percorrem esse território para intercambiar mudas e sementes de espécies vegetais que consideram de pertencimento específico do povo Guarani. Essa prática da troca atualiza permanentemente o território e permite à manutenção e continuidade de práticas históricas, dando sentido e consistência à resistência em manter formas próprias de vida. Observamos que sem o permanente intercâmbio e o sentimento de pertencimento a um território para além das fronteiras estaduais tornaria demasiada pesada a sobrevivência cultural. No Brasil essa população perfaz aproximadamente sete mil pessoas.

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A maioria da população indígena Guarani no Mato Grosso do Sul pertence ao subgrupo linguístico Kaiowa, auto-identificando-se apenas como Kaiowa em relação aos Guarani, identificados como Nhandeva.

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Figura1: Mapa do Cone Sul da América indicando a localização aproximada das aldeias Guarani

dos subgrupos linguísticos Mbya e Nhandeva/Xiripa. Fonte: Brighenti 2010.

Ao tomarmos apenas a realidade fundiária no estado de Santa Catarina, podemos observar que o quadro é nada favorável aos Guarani. Duas aldeias – Limeira e Toldo - localizam-se dentro de Terras Indígenas -TI pertencentes aos indígenas Kaingang e Xokleng, remontando a um período em que a política do Estado brasileiro era o confinamento da população indígena objetivando a integração dos mesmos. Dessa forma, bastava apresentar-se como indígena para ser transferido para uma das duas reservas existentes no estado, uma pertencente ao povo Kaingang e outra ao povo Xokleng. Outra comunidade Guarani vive exilada na TI Toldo Chimbangue, também pertencente ao povo Kaingang, por condições circunstanciais, uma vez que a terra da referida comunidade Guarani – TI Araçaí – ainda não está demarcada e encontra-se ocupada por agricultores não-indígenas. Uma única terra Guarani está regularizada – TI M’biguaçu – porém são apenas 59 ha. Essa comunidade já solicitou à Funai a revisão dos limites, mas até o momento não foi atendida. Cinco comunidades – Marangatu, Itanhaem, Curi’i, Tawaí e Vy’a – vivem em terras adquiridas, sendo cinco com recursos advindos do Convênio Funai/Dnit3 como medida mitigadora pela duplicação da BR 101 trecho Palhoça/SC-Osório/RS, entre 2007 a 2009 e uma adquirida com recursos das medidas mitigadoras do gasoduto Bolívia-Brasil. Além de configurarem-se como terras dominiais, essas seis áreas se caracterizam por terem superfície territorial que gira entre

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Convênio PP 025/2002 – 00 firmado entre Funai e Dnit com a finalidade de implementar o Programa de Apoio às Comunidades Indígenas Guarani – PACIG, elaborado a partir do Programa Básico Socioambiental componente do EIA/RIMA da duplicação da BR 101, trecho Palhoça-Osório.

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80 ha a 220 ha, apenas uma atinge 500 ha. Oito terras – Morro dos Cavalos, Piraí, Tarumã, Morro Alto, Conquista, Pindoty, Jabuticabeira e Yvapuru4 – estão com a Portaria Declaratória assinada, aguardando a demarcação física; e cinco terras – Massiambu, Cambirela, Amâncio, Reta e Yaka Porã – estão sem providência administrativa.

Resumidamente, as condições fundiárias e ambientais das terras indígenas em Santa Catarina estão distante daquilo que almejam as comunidades Guarani. São pequenos fragmentos de um amplo território. Observamos que restaram aos Guarani as terras menos próprias para a agricultura e as não desejadas ou que ainda não haviam despertado interesse da especulação imobiliária para fins de empreendimento turístico ou industriais5. Em pelo menos três delas incide unidades de conservação ambiental. Mesmo constatando que os interesses econômicos não são tão intensos como em áreas desflorestadas, não significa que não sofram pressões contrárias a regularização fundiária. Nos últimos anos o litoral catarinense vem sendo ocupado de maneira intensiva, o que faz das terras Guarani espaço de intensas disputas. Aquelas áreas que até a pouco tempo não estimulavam interesses, tornaram-se “vazios demográficos”, especiais para realização de grandes obras de infra-estrutura, na visão do capital. Algumas vezes essa disputa ocorre no seu entorno, porém com forte influência sobre as comunidades, como é o caso do projeto do Porto de Laranjeiras, em São Francisco do Sul que atingirá a comunidade de Morro Alto ou o Projeto Intermodal, que significará porto, aeroporto, ferrovia e parque industrial, localizado em contiguidade as TI Pindoty e Tarumã. Em cada obra há necessidade de fornecimento de energia e vias de comunicação terrestre, significando mais obras no entorno.

A escola nas aldeias

Sinteticamente descrevemos acima o espaço ocupado atualmente pelas comunidades Guarani em Santa Catarina, para demonstrar que são nessas condições e situações que ocorre a educação escolar e a educação Guarani. As condições ambientais e fundiárias das demais aldeias Mbya e Nhandeva nas outras unidades da federação não se diferenciam enormemente da realidade catarinense.

Distinguimos primeiramente, de maneira sintética, aquilo que convencionamos

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No dia 25 de Agosto de 2010 o Ministro da Justiça revogou as portarias declaratórias que reconheciam as identificações e delimitações das TIs Piraí, Tarumã, Morro Alto, Conquista, Pindoty, Jabuticabeira e Yvapuru. Para o Ministro a decisão foi para atender uma liminar da Justiça federal em primeira instância, no entanto, para os Guarani o ato tem fundamento político, serviu para beneficiar candidatos ao governo estadual.

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As TI Araçai e Limeira estão localizadas no oeste do estado de Santa Catarina e possuem solo apropriado ao tipo de agricultura praticada pelos Guarani, apesar de possuir pouca mata nativa.

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chamar de educação escolar indígena, concebida diferentemente da educação indígena. A primeira entendida como aquela oferecida a partir de fora, como conteúdos, métodos, pedagogias e ideologias a partir de quem a oferece e a controla, ou seja, o Estado brasileiro; a segunda é aquela praticada pela própria comunidade, a partir de seus conhecimentos e experiências, com lugares e saberes específicos.

Entendemos que a educação escolar indígena, com a mudança dos marcos legais em 1988, seja na Constituição Federal seja na legislação infraconstitucional, vem modificando e incorporando em sua prática novos elementos a partir da experiência e proposição das comunidades indígenas, porém, percebemos que no caso Guarani em nenhum momento ela deixa de ser elemento externo às práticas do grupo e em nenhum momento ela deixa de cumprir uma função social específica, relacionada a criar uma homogeneidade social em termos de pensamento e ideologia.

Ainda tomando como referência a realidade catarinense, observamos que nesse estado a escola nas aldeias Guarani é uma realidade recente. Até o início da década de 1990 funcionava apenas escolas para Guarani nas aldeias localizadas no interior da TI Xokleng e da TI Kaingang, mantidas pela Funai. A primeira escola Guarani foi implantada em 1994, pela Secretaria do Estado da Educação6, na aldeia Massiambu, localizada no município de Palhoça. A implantação da escola ocorreu logo após a transferência de um grupo Guarani que vivia as margens da rodovia federal, BR 282, para um espaço de 4,6 ha, local provisório em terreno sequestrado judicialmente, sendo a Fundação Nacional do Índio - Funai a depositária fiel, em usufruto do grupo indígena Guarani. Notemos que essa foi a primeira escola criada em aldeias Guarani no estado após a promulgação da Constituição Federal de 1998. Essa escola se constituiu como um marco importante, em virtude de que até então a experiência de escola para os Guarani em SC constituía-se em escolas que funcionavam dentro das terras Kaingang e Xokleng ou mesmo compartilhando escola fora das terras indígenas. Na análise dessa primeira experiência devemos nos ater também nas condições territoriais e fundiárias que estava submetida a referida comunidade indígena.

A partir dessa primeira escola em terra Guarani, foram criadas outras escolas, como na TI Morro dos Cavalos e na TI M’biguaçu. Tanto a TI Morro dos Cavalos como a TI M’Biguaçu não estavam com as terras regularizadas, eram pequenos espaços nas margens da

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Pelo decreto nº 26 de 04 de fevereiro de 1991, do presidente Fernando Collor de Melo, a competência para coordenar as ações referentes a educação escolar indígena sai do âmbito da Funai e passa ao MEC e as ações ficam a cargo do Estados e Municípios: Art. 1º Fica atribuída ao Ministério da educação a competência para

coordenar as ações referentes à educação indígena, em todos os níveis e modalidades de ensino, ouvida a Funai. Art. 2º As ações previstas no Art. 1º serão desenvolvidas pelas Secretarias de Educação dos Estados e Municípios em consonância com as Secretarias Nacionais de educação do Ministério da Educação.

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rodovia federal BR 101, reivindicados pelos Guarani. Na TI Morro dos Cavalos, depois de funcionar por diversos anos em pequena casa de madeira, o Governo do Estado de Santa Catarina construiu, em 2002, um prédio de alvenaria, com duas salas de aula, uma sala para biblioteca/multimeios, um prédio para abrigar a secretaria, cozinha, refeitório e banheiros. Esse novo prédio gerou controvérsias jurídicas na própria administração estadual, diante da não regularização fundiária da referida Terra Indígena7. O local escolhido foi nas margens da rodovia BR 101, terreno contíguo a faixa de domínio público. A escolha do terreno deveu-se, segundo os argumentos do estado, por ser o único local plano, dentro do pequeno espaço da aldeia. Mais três prédios escolares foram construídos nesse mesmo ano, em madeira pré-fabricada, multisereada, para servir às comunidades Piraí, Pindoty e Morro Alto. Na TI Tarumã não foi possível construir escola, porque a pessoa que se diz proprietária do terreno não permitiu sua construção. Com a aquisição da TI Marangatu, em 1999, no município de Imarui, teve início a construção da escola. A comunidade de M’biguaçu conseguiu uma nova escola somente em 2007, com pelo menos cinco salas, que serve também para ministrar o ensino médio.

A partir de 2003, com a posse do novo governo estadual, houve mudança de postura com relação ao atendimento às comunidades Guarani que vivem em terras não regularizadas. Após longas discussões, o governo determinou que somente atenderia comunidades que ocupassem terras já declaradas8.

Atualmente, das 23 comunidades Guarani em Santa Catarina apenas 17 possuem escola no interior da TI, porém, em apenas 08 existem prédios construídos para essa finalidade. Em algumas Terras Indígenas Guarani, as aulas ocorrem em espaços provisórios e improvisados, geralmente em casas de famílias ou em galpões velhos. Em seis comunidades as crianças precisam se deslocar fora da Terra Indígena para estudar em escolas junto com alunos não-indígenas. Em virtude de terem que frequentar a escola fora da Terra Indígena, no ano de 2008, as lideranças da TI Yaka Porã denunciaram ao Ministério Público Federal e a Gerência Regional de Educação em Joinville/SC, que a diretora da escola onde as crianças Guarani estudavam, proibiu-as de falar na própria língua materna.

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A identificação da TI Morro dos Cavalos aconteceu em 2002, porém somente em abril de 2008 o Ministro da Justiça assinou a Portaria Declaratória, com superfície de 1988 ha. Atualmente a terra está em fase de demarcação física. A controvérsia jurídica girava em torno de que o estado não poderia construir escola em terra não regularizada.

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A Portaria Declaratória do Ministro da Justiça é a quarta etapa do procedimento administrativo de demarcação de Terra Indígena, segundo o decreto 1775/96. Essa etapa é precedida da identificação e delimitação, publicação do resumo e contraditório. É um procedimento longo e desgastante para o grupo indígena, porque as experiências em Santa Catarina tem demonstrado que essas etapas do procedimento administrativo de demarcação de Terra Indígena, são as que mais incidem conflitos com os não-indígenas.

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Apropriações e traduções da escola pelos Guarani

O encontro de 2001

Com a implantação das escolas nas aldeias, houve grande inquietação entre os Guarani, a discussão estava entre aceitar ou não a escola. De um lado estavam as comunidades embasadas em sua cultura e modo de ser, buscando garantir a manutenção do modo de vida e transmissão dos conhecimentos às novas gerações a partir da aplicação das formas próprias de educação. Por outro lado estava o Estado, fundamentado na obrigatoriedade da oferta do ensino como “dever de Estado” (Art. 205 da CF/1988) e sua concepção da escola como espaço único de educação, zelando de maneira impositiva a presença do aluno na escola (Art. 208, § 1º, § 2º e § 3º da CF/1988). Apesar de muitas lideranças não aceitarem a escola, havia a imposição da Secretaria de Estado da Educação, que se utilizava das diferenças de pensamento existentes no interior das próprias comunidades9, entre os que desejavam a escola e os que não a desejavam, em virtude de que no universo das aldeias da região haviam diferentes experiências e distintas expectativas com relação a escola.

Diante dessa situação a Comissão de Apoio aos Povos Indígenas – Capi, organziação não governamental formada por profissionais da educação, história, antropologia e indigenistas, promoveu em agosto de 2001, um encontro com presença Guarani (homens, mulheres, crianças, professores, líderes religiosos, caciques etc) da toda região sul e sudeste do Brasil, desde o estado do Espírito Santo até o Rio Grande do Sul. Para subsidiar os debates e auxiliar na elaboração de um documento final, em que os Guarani pudessem externar seus pensamentos numa linguagem compreensível aos não-indígenas, foram formuladas quatro questões, sobre as quais os Guarani se manifestaram.10

A primeira questão era bastante objetiva: “Os Guarani querem escola?” Sobre a qual os Guarani responderam:

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No estado do RS, no ano de 2002, a Secretaria da Educação resolveu construir uma escola no interior da TI Barra do Ouro. Lideranças mais jovens aprovaram a proposta, contrariando o grupo liderado pela liderança religiosa. Estes optaram em abandonar a TI e acampar na beira da estrada que submeter-se ao sistema da escola. Observa-se que essa terra estava com a situação fundiária regularizada com superfície superior a 2 mil ha, em local com mata e água, ou seja, a opção pela manutenção das formas próprias da educação significa mais importante que a própria condição do espaço. Fonte: anotações do caderno de campo do autor.

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Encontro de Educação Escolar Guarani da região litoral Sul realizado de 27 a 31/08/2001, na localidade de Morro das Pedras, em Florianópolis -SC.

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Os guarani que aqui estão reunidos entendem que deve haver escola nas aldeias que já discutiram e querem. Deve ser respeitada a decisão de cada comunidade que não quer escola. (Documento Final 2001). A resposta traduzia o momento que estavam passando os Guarani Mbya e Nhandeva, ou seja, havia os que desejam a escola, mas havia também os que não a desejavam. Não havia unanimidade, como também o consenso de todos era respeitar as individualidades.

A segunda questão buscava compreender as motivações das comunidades que desejam a escola: “Por que os Guarani que optaram por ter escola em suas comunidades decidiram desta forma?”

Para o indígena Guarani ser alfabetizado em sua própria língua e em português; Para aprender a ler e escrever bem e então escrever a sua própria historia; Porque é importante que não se perca a própria historia; Para o resgate da cultura tradicional que pode estar se perdendo; Para aprender o necessário para a sobrevivência física e cultural, não mais que o necessário. (Documento Final 2001).

Nessa resposta está implícita a necessidade da escola como espaço de mediação com o não-indígena. Percebe-se que não havia demanda por um espaço de formação que retirasse o jovem da comunidade ou mesmo que vislumbrasse a formação profissional. Buscavam tão somente conhecer os códigos dos não-indígenas para melhor dialogar.

A terceira questão: “em que prejudica a escola normal dos não índios hoje?” Essa questão possibilitou ao grupo externar suas críticas ao modelo de escola oferecido a eles.

Porque pode mudar a mentalidade dos jovens, porque a educação Guarani é feita com respeito e para ter bom comportamento. A escola do branco é entendida, pelos indígenas que não querem escola, como voltada só para o dinheiro; Porque os Guarani já tem seu sistema próprio de educação. Por exemplo, as avós (xe jaryi) ensinam as crianças quando faz artesanato, pesca, faz opy. Tudo isto é educação. (Documento Final 2001).

Finalmente, a quarta questão já partia do pressuposto que muitas comunidades desejam a escola ou pelo menos a aceitavam: “O que os Guarani esperam da escola?”

Esperam que seja um espaço de conscientização e valorização da cultura Guarani, considerando comparativamente a matemática, a geografia, a botânica, os mitos, a ciência e a história Guarani. Os mais velhos, que conhecem bem a cultura, devem ser professores e também participar da formação dos jovens. As secretarias e os órgãos responsáveis devem providenciar ajuda de custo ou salário para o velho desenvolver sua atividade e deve haver rotatividade de professores velhos.

A escola deve ter um beneficio prático, profissionalizante e conforme a necessidade da comunidade que definirá as formações. Por exemplo:

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enfermeiro, merendeira, técnico agrícola, professor e outros com currículo específico e visando a autonomia dos Guarani. Que o curso seja curto, por exemplo, com formação até a 4ª série, esteja formado e com uma profissão. Que o professor da 1ª e 2ª série seja Guarani e ele mesmo dê aula; o curso deve ser específico para a formação de professores Guarani. Em todas as ações das secretarias as comunidades devem ser consultadas. (Documento Final 2001).

A partir desse encontro a Capi propôs às Secretarias de Educação do RS, SC e PR, ao MEC e a Funai, a organização de um curso para formação de professores Guarani. A Secretaria de Estado da Educação em Santa Catarina, em conjunto com as demais Secretarias firmaram o “Protocolo Guarani”, com vistas a realização de um Curso de Formação de Professores Guarani. Esse curso faz parte do Programa de Formação para a Educação

Escolar Guarani na Região Sul e Sudeste do Brasil Kuaa Mbo’o – Conhecer e Ensinar,

desenvolvido em parceria com o MEC11. A proposta da Secretaria de Educação de Santa Catarina é abrir concurso público para contratação de professores Guarani para as escolas nas aldeias, assim que o curso estiver concluído. Com o concurso público pretendem substituir os professores não-indígenas das escolas nas aldeias.

Depois do encontro de 2001, houve um aumento no número de escolas e na contratação de professores/auxiliares nas aldeias. Mas esse aumento não foi progressivo na implementação de uma escola diferenciada, do jeito Guarani. Segundo a avaliação da liderança Guarani do TI Morro dos Cavalos e cursista do Kuaa Mbo’o, Leonardo da Silva Gonçalves, o grande desafio é fazer com que a escola seja realmente diferenciada, pois essa proposta de escola diferenciada só está no papel. Segundo avaliação de Gonçalves (2006):

A escola não é diferenciada. Por enquanto a única diferença é que as aulas são dadas na língua Guarani, mas o conteúdo é igual a do branco. A Secretaria de Educação exige o controle de frequência e a avaliação é feita por prova escrita, e para passar de ano o aluno tem que saber o mesmo conteúdo da criança branca. (Gonçalves 2006). Leonardo Gonçalves observa que não é apenas a pressão exercida pela Secretaria de Estado da Educação, mas há uma pressão interna entre os que almejam seguir na universidade e os que apenas desejam conhecer o suficiente para o diálogo intercultural:

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O curso iniciou com 85 professores Guarani, sendo 31 de Santa Catarina, 16 do Paraná, 14 do Rio Grande do Sul, 07 do Espírito Santo e 07 do Rio de Janeiro. No total são 2.400 horas de formação das quais 1.920 presenciais e 1.600 a distância, com duração de cinco anos. O curso está organizado em 10 etapas (duas por ano), e teve início em 2003 com término previsto para 2008, porém até o fechamento deste artigo o curso não havia encerrado. Informações retiradas do site http://www.sed.rct-sc.br/ em 26/09/2006.

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os professores Guarani vivem num dilema, porque eles não podem deter muito tempo para o ensino da cultura Guarani, porque eles têm que passar o conteúdo obrigatório imposto pela Secretaria de Educação. Os professores estão muito preocupados porque sabem que para nossas crianças poder competir com os não-índios num vestibular, ela tem que aprender o mesmo conteúdo do branco. (Gonçalves 2006).

Questionado o porquê essa discussão não foi feita dentro da Secretaria de Estado da Educação, Gonçalves avalia que

por enquanto não há uma disposição por parte da Secretaria de Educação em pensar outros conteúdos e metodologia para as escolas Guarani. Outro fato que contribui para manter essa situação, é que nós lideranças ainda não estamos fortes, não discutimos e não pensamos uma proposta comum entre nossas aldeias para as nossas escolas. (Gonçalves 2006).

Para que a escola diferenciada aconteça na prática das aldeias Guarani, Gonçalves destaca:

tem que se dedicar mais ao ensino da cultura Guarani, e não se preocupar com o conteúdo do branco, o sistema de avaliação tem que ser outro, o calendário das aulas tem que ser diferente das aulas do branco, tem que ser do jeito Guarani, por que se continuar assim, ter escola ou não ter escola, dá no mesmo, mas o melhor mesmo é não ter escola, porque a escola confunde as crianças e fazendo-as assumir outros valores, que não é dos Guarani. (Gonçalves, 2006).

Essa preocupação, externada por Leonardo Gonçalves, levou os Guarani a pensar formas de assumir o controle das políticas públicas voltas para suas comunidades, e formular propostas aos gestores e executores dessas políticas. Perceberam que na ausência de consensos entre as comunidades, muitas sugestões e deliberações não eram aplicadas ou não eram observadas as especificadas de cada comunidade. Na tentativa de iniciar a implementação de um espaço maior de discussão e elaborar proposta de políticas públicas sobre temas como terra, saúde e educação, os Guarani do litoral, resolveram criar um Conselho Indígena Guarani, que denominaram de Comissão Guarani Nhemonguetá, composta por lideranças, caciques, professores e velhos das aldeias Mbya e Nhandeva.

I Conferência de Educação Escolar Indígena - I Coneei

Em 2009, por ocasião da Primeira Conferência de Educação Escolar Indígena – I Coneei, promovida pelo Ministério da Educação, a Comissão Guarani Nhemonguetá elaborou

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um documento tecendo críticas ao modelo de escola em funcionamento nas suas aldeias e ofertando propostas para superação das debilidades.

Passados oito anos do primeiro encontro ocorrido em 2001, esse foi o segundo encontro em que o tema foi discutido de maneira ampla (muito embora temos que considerar que esse segundo documento foi produzido apenas por representantes das aldeias Mbya e Nhandeva em Santa Catarina). As discussões resultaram na produção de um documento público. Nesse período de oito anos as escolas foram sendo concretizadas, mais pela força da obrigatoriedade do que do desejo das comunidades. Essa forma impositiva não permitiu que determinados aspectos pudessem ser melhor trabalhados, conforme aponta o documento à I Connei, ficando evidenciado no início da análise da Nhemonguetá:

A escola hoje é ainda um espaço mais voltado para apropriação do conhecimento e das pedagogias da sociedade não-indígena do que de nosso povo. A escola é mais um espaço da presença e dominação do Estado em nossas aldeias - “Embaixada do Estado” em nossas aldeias - do que propriamente um espaço apropriado pela comunidade, inserida na vida da comunidade. A escola é um espaço apartado, com estrutura e regras diferentes da comunidade, onde as crianças e os professores devem se portar diferentemente da vida cotidiana na aldeia. (Documento à I Coneei 2009).

Segundo a avaliação Guarani, existe uma lacuna na legislação, no que pese seus avanços, está distante de contemplar a demanda do povo: “isso ocorre devido a distância entre aquilo que queremos da escola e aquilo que a legislação permite ou nos dizem que permite” (Documento à I Coneei, 2009). Demonstraram que no entendimento Guarani existe diferenças significativas naquilo que vem a ser a Educação Indígena; - Educação Escolar Indígena; e - Escola Indígena.

Importante destacar que em todo momento o Documento a I Connei faz referência ao documento produzido em 2001, demonstrando a continuidade do debate e apresentam, de maneira explícita, a distinção entre educação escolar e educação Guarani:

Fizemos um debate de como era a educação Guarani antes do juruá: ...antes do juruá não precisávamos de escola, o alimento não era armazenado, a vivência era coletiva. O calendário Guarani era baseado na natureza, na floração de uma árvore ou no canto de um passarinho. Para plantações e colheitas, o clima e as estações baseavam-se no canto dos pássaros. A reprodução dos animais e do ser humano era conforme o ciclo da lua.

Os anos também eram contados conforme a natureza. O ano novo começa com Ara Pyau, que no calendário juruá seria a primavera. A época da floração das árvores, no começo do plantio e também nesta

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época, os animais começam a se reproduzir. O calendário não está baseado em dias do ano para se comemorar uma data.

O manejo era o cuidado com a terra, por exemplo: quando se constrói uma aldeia, na mata, onde se planta e constrói casas, com o passar do tempo a terra vai enfraquecendo, para fortalecê-la novamente, antigamente, as pessoas mudavam para outro lugar e deixavam tudo que tinham construído, casas, roças e outras plantações. Com o passar do tempo aquela construção servia como adubo para a terra, por que não existia lixo e tudo era orgânico.

Educação Escolar Indígena depois de 1500: Com a chegada dos europeus tudo foi mudando. A natureza sendo destruída e tudo passou a ser comercializado e a nossa cultura começou a ser mudada e dominada pela cultura envolvente. A partir do momento que a nossa cultura começou a ser dominada pela outra cultura, fomos obrigados a participar da escola juruá, e participando da escola, tivemos a necessidade de adaptar-se dentro da aldeia. (Documento à I Coneei 2009).

Lamentam que “hoje não podemos voltar a viver como antigamente”, e que a escola é um espaço que os torna dependentes, ou seja, “a escola nos ajuda a manter nossa sobrevivência”.

Dentre as propostas apresentadas não aparece mais a negação à escola, como emergiu em 2001. Fica a impressão que essa discussão já passou, ou seja, na batalha entre escola e não escola venceu a primeira. Porém perceberam que o debate deve estender-se para as condições onde se realiza a vida na comunidade, ou seja, o espaço da aldeia. Pontuaram como demanda primeira a necessidade de garantia de terras suficientes para viver o modo de ser Guarani: “Demarcação das terras/tekoa Guarani como condição primeira e fundamental para que exista educação Guarani e educação tradicional Guarani. Sem tekoa não há tekó”. (Documento à I Coneei 2009).

Um dos principais problemas enfrentados no gerenciamento da escola e na sua relação com a Secretaria de Estado da Educação é quanto a dificuldade de aplicar formas próprias na escola, já que o sistema que gerencia a educação escolar é único para toda rede pública estadual. Dessa forma apontam que não podem ter calendário específico ou forma própria de avaliação se não conseguem colocar os dados no sistema. Dessa forma sugerem a

criação de um Sistema Único de Educação Indígena Guarani ligado ao MEC. Esse sistema deve prever os distritos de educação escolar indígena, como instâncias técnico-administrativas autônomas, para que nossas comunidades possam exercer controle nas políticas de educação. Entendemos que esses distritos devem ter autonomia financeira e administrativa para que neles seja garantido o respeito a

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forma de nosso povo pensar, viver e se organizar. Entendemos que essa proposta deve ser levada à debate a todo povo Guarani. (Documento à I Coneei 2009).

Observaram que a educação escolar como um todo deve ser diferenciada, porque segundo os Guarani, não basta ter um sistema específico e diferenciado nas séries iniciais, se depois o aluno tiver que concorrer com os demais alunos para vagas nas universidades, com níveis distintos de aprendizados.

Que este sistema respeite as leis nacionais e convenções internacionais de promoção da educação diferenciada indígena, respeitando as necessidades de cada comunidade indígena, sua escola indígena e seus métodos de ensino, desde os níveis iniciais, cursos técnicos, até o Ensino Superior Diferenciado voltado para as necessidades indígenas. Não basta o ensino ser diferenciado no nível fundamental e médio se na universidade os indígenas deve se enquadrar nos sistemas pré-existentes. As universidades públicas devem oferecer cursos específicos para indígenas, voltados para atender as diversas demandas das comunidades e executados o mais próximo das aldeias, para evitar deslocamentos. Que este sistema respeite o interesse de cada povo em ser executado em período integral ou meio período (grifo no original). (Documento à I Coneei 2009).

Demandam também a “contratação diferenciada de professores, anciões e sábios das aldeias, para nossas escolas, de acordo com a necessidade e período indicado pelas comunidades” (Documento à I Coneei 2009), porque consideram que os sábios e anciãos são fundamentais para contribuir no ensino em sala de aula. E por fim elencaram uma série de demandas, algumas um tanto simples, como merenda diferenciada, mas que não ocorrem devido a dificuldade de compreensão por quem gerencia a educação escolar indígena ou mesmo pelo próprio sistema de educação estadual que não está formulado para acolher as diferenças.

Esses período de oito anos, entre a realização dos dois encontros, demonstrou que do primeiro encontro praticamente nada foi implementado. Todo o debate, em termos de princípios entre ter ou não escola, que deveria nortear toda a discussão, foi desconsiderado, já que todos são obrigados a estudar. Agrava-se se analisarmos que a escola implantada em algumas aldeias está distante daquilo que demandam as comunidades. Fica a impressão que mais do que uma educação diferenciada, a proposta do Estado é vê-los frequentando a escola, seja na Terra Indígena ou fora dela; seja em espaços com condições de acomodar crianças e jovens ou não; seja contemplando o todo da comunidade, especialmente as condições de viver em terras demarcadas e regularizadas ou não, pouco se importando com as condições de vida

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da aldeia.

A escola é, na metáfora Guarani, uma embaixada do Estado nas aldeias, o lugar dentro das comunidades indígenas regido por outras regras e propósitos. Cada vez mais às comunidades vão sendo sugadas por este sistema.

A escola como sistema cultural

Atualmente a escola é uma realidade nas aldeias Guarani, no entanto a terra demarcada com possibilidades de desenvolver atividades relacionadas ao universo cultural e mitológico é um projeto distante devido a omissão do Estado na implementação das determinações constitucionais que dizem respeito aos povos indígenas. A aceitação da escola e a luta para aproximá-la do tekó (sintetizado como modo de ser) continua sendo um desafio para os Guarani que oscilam entre a aceitação e negação da escola. A escola como um agente externo, embaixada do Estado na Terra Indígena, pouco tem contribuído com a luta pela conquista das terras e praticamente não tem permitido espaços para a incorporação dos saberes e práticas tradicionais em seu cotidiano, delimitando dois espaços interno diferenciados, um representado pela educação tradicional que ocorre no dia-a-dia e tem como referência a opy (casa de reza), e outro, pelo espaço escolar, representado pela transmissão de práticas e saberes não-indígenas.

Benito Oliveira, ancião e líder religioso Guarani, durante reunião da Comissão Nhemonguetá manifestou seu entendimento e sua preocupação com relação a manutenção do modo de ser Guarani. Explicou que o fundamental para manutenção da cultura Guarani é a preservação das sementes de cultivares, especialmente milho, amendoim e feijão, além de plantas como a cana doce. Afirma que, para continuidade do modo de ser Guarani, a manutenção dessas espécies é mais importante que a própria língua. Porém lamentava a falta de terras para poder cultivar essas espécies e para viver a cultura de acordo com o tekó. Essa manifestação de Oliveira tem muito a ver com o debate em torno da educação escolar. Enquanto que para o povo Guarani a educação tem a ver com o todo, ou seja, é necessário a terra e os conhecimentos do cultivo para poder manter-se Guarani a partir da perspectiva da coletividade, na escola o sistema é externo, privilegia o indivíduo, sua capacidade de aprendizagem e, em grande medida é avaliado pela apropriação do conhecimento externo.

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Todo sistema social é tecido no interior de cada cultura. Ensina-nos Foucault (1996: 44) que “todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”. As perguntas e respostas para cada demanda surgem no interior da cultural e são por ela respondidos. Considerando que não há cultura superior nem inferior, então podemos compreender que as respostas serão dadas a partir da complexidade das perguntas. Nas sociedades ocidentais, da qual deriva o sistema escolar, os discursos provêm da tradição helênica/cristã, que crê no progresso, no desenvolvimento e na separação entre humanos e natureza. Esse pensamento é oposto à cosmologia Guarani (cosmologia na interpretação de Boff (2001: 194): “imagem de mundo que uma sociedade produz pra orientar-se nos conhecimentos e para situar o lugar do ser humano no conjunto desses seres”), compreendida como o tekó, ou seja, o modo de ser, o sistema e a imagem de mundo projetada sobre a humanidade, que cria sentido e relações, que orienta e gera comportamento. É a partir do modo de ser que transmitem às novas gerações seu conhecimento sobre educação. Possuem lugares para isso, denominado tekoa – ou seja, o lugar onde é possível existir o tekó. No tekoa a terra, a água e a mata formam um todo, não podem ser separados. Os seres que habitam têm sua igual importância, desde os humanos, animais até os seres que transcendem a condição corporificada.

Para Melià (1988: 310) a educação Guarani é uma educação da palavra, “para o Guarani a palavra é tudo e tudo para ele é palavra”. Como essa frase Melià sintetiza o modo de ser Guarani e toda sua cosmografia. No caso da palavra Guarani, não se trata da palavra ensinada ou aprendida por outros humanos, mas da palavra enquanto essência de vida que só Nhanderu/Nosso Pai, (isto é, a divindade) pode ensinar. Embora seja comunicada individualmente, geralmente em casos de maior densidade inspiradora, como em situações de mudanças profundas ou perigos eminentes, é proferida em público e passa ser de uso coletivo.

Dom da palavra por parte dos Pais “divinos” e participação da palavra por parte dos mortais marca o que é e o que pode chegar a ser um Guarani. O certo é que a vida do Guarani, em todas as suas instâncias críticas – concepção, nascimento, recepção do nome, iniciação, paternidade e maternidade, enfermidade, vocação xamânica, morte e

post-mortem - define-se a si mesma em função de uma palavra única e

singular que faz o que diz, que de certa forma consubstancia a pessoa. (Melià, 1988: 309).

A palavra nutre as relações na comunidade, interligando todo o sistema social. Para um chefe Guarani a palavra é praticamente seu único poder, e para que ela se torne

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efetivamente poder ela deve ser antes um dever. Para que a palavra tenha efeito é necessário que seja ouvida e acolhida, que pressupõe efetivamente prestígio. Dessa forma ela jamais será comando de poder, porque ela só será ouvida se ele exprimir o sentimento da comunidade. Quanto mais inspirada e profunda, mais efeito de coesão terá na comunidade.

A concepção Guarani não está distante do pensamento de Foucault (1996: 44), ao indagar,

“o que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra; senão uma qualificação e uma fixação dos papéis para os sujeitos que falam; senão a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso. Senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes?”.

Percebemos que o conflito entre educação escolar e educação Guarani ocorre justamente na ordem do discurso que fundamenta a cosmologia das sociedades que criaram seu sistema. Ao impor aos Guarani outro modelo estamos impondo uma outra racionalidade. Convêm perceber também que não apenas para o outro a educação pode significar um imposição de valores, mas ela serve para manter e reproduzir as desigualdades no interior de uma sociedade. O sociólogo francês Pierre Bourdieu tem refletido sobre essa questão, demonstrando que a escola pode ser um instrumento de conservação das desigualdades sociais:

... para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidos os mais desfavorecidos, é necessário que a escola ignore, no âmbito dos conteúdos do ensino que transmite, dos métodos e técnicas de transmissão e dos critérios de avaliação, as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes classes sociais. Em outras palavras, tratando todos os educandos, por mais desiguais que sejam, como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura. (Bourdieu 2003: 53).

Considerações finais

Essa década de debates sobre territorialidade e educação escolar Guarani aponta para a necessidade de ampliar o entendimento e concepção sobre a instituição escola. Primeiramente é necessário perceber que a escola é uma instituição civilista, burguesa criada para manter as desigualdades sociais. Pensá-la como educação libertadora, de acordo com o pensamento de Paulo Freire, exige um repensar da própria sociedade. Percebemos que entre os indígenas Guarani a contribuição da escola tem servido para afastá-los de seu meio, para afastá-los de

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seus tekó. Os positivistas souberam muito bem como introduzir a escola nas aldeias para transformar os indígenas em “civilizados”. Hoje a prática da escola continua sendo uma prática positivista. Percebemos, pelos apontamentos dos Guarani nos documentos analisados, que o discurso da escola diferenciada ainda está distante de se tornar realidade. As práticas demonstram que as diferenças estão em aspectos superficiais, uma vez que a metodologia e os objetivos são os mesmo de escolas não indígenas. O que existe de diferente é o que acontece por força da “teimosia” da própria comunidade indígena.

Nos debates sobre educação diferenciada os Guarani se perguntam: pra que a escola? Onde vamos chegar com essa escola ou aonde a escola vai nos levar? Nossas crianças vão ter que sair para cursar universidade, ser profissional e ir trabalhar para os juruá/não indígenas? O indígena formado na universidade é superior ao indígena que não é formado? Se o professor deseja introduzir um conteúdo diferenciado enfrenta problemas, porque as crianças não passam de ano, não recebem o conteúdo exigido pela Secretaria de Estado da Educação e enfrentarão problemas no ano seguinte. Se o conteúdo não é passado conforme deseja o “sistema civilista” como eles irão enfrentar a universidade e mercado de trabalho. Não poderão nem ser contratados como professores das escolas nas aldeias! Essas questões refletidas pelos Guarani também são nossas inquietações.

A escola cria as ciladas que atrai e domina. A falta de condições para produzir os alimentos leva a dependência da merenda escolar; o salário dos professores gera no interior das aldeias uma categoria distinta, como rendimentos mensais e possibilidades de acesso a produtos e serviços que outros não os têm. Se na educação Guarani o sábio é aquele que ensina, na escola é o jovem que aprende com o não-indígena, no geral domina mais os sistemas externos que a própria cultura.

A questão territorial é o grande desafio. Mais do que se debruçar a pensar sobre a escola, seria oportuno se o Estado contribuísse de maneira objetiva para que ocorra a educação indígena. Para isso seria necessária a regularização fundiária, a garantia das terras e dos recursos naturais necessários a sobrevivência física e cultural. Essa proposta poderia alterar profundamente a lógica da escola, porque esta vem justamente para ocupar o lugar da educação indígena.

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Referências

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