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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELAINE CRISTINA SENKO IBN KHALDUN ( ) E UM OLHAR MUÇULMANO SOBRE A PENÍNSULA IBÉRICA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

ELAINE CRISTINA SENKO

IBN KHALDUN (1332-1406) E UM OLHAR MUÇULMANO SOBRE A PENÍNSULA IBÉRICA

CURITIBA 2009

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ELAINE CRISTINA SENKO

IBN KHALDUN (1332-1406) E UM OLHAR MUÇULMANO SOBRE A PENÍNSULA IBÉRICA

Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica, como requisito à conclusão do Curso de Licenciatura e Bacharelado em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná.

Orientadora: Professora Doutora Marcella Lopes Guimarães.

CURITIBA 2009

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DEDICATÓRIA

Esta obra é dedicada à Anna Focht e Henig Focht (in memoriam)

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AGRADECIMENTOS

Agradeço,

À minha mãe Ana Cristina Focht por estar ao meu lado na caminhada da vida. Ao apoio incondicional na vida e nos estudos, à minha fortaleza André Luiz Leme. À minha querida orientadora Professora Doutora Marcella Lopes Guimarães por acreditar nos estudos sobre o Oriente, por me contemplar com a bolsa de Iniciação Científica por três anos seguidos (pois foi primordial para minha manutenção na pesquisa e na Universidade) e por me ensinar o ofício de historiadora.

Ao meu querido Professor Doutor Renan Frighetto, que sempre se dispôs a me ensinar e me motivar pelos caminhos árduos da História do Oriente e da graduação em História.

À minha querida Professora Doutora Fátima Regina Fernandes, que sempre me inspirou com sua força pessoal e dedicação à História Medieval.

À todos que me ajudaram dentro do Núcleo de Estudos Mediterrânicos, grupo ao qual me honra ser um de seus integrantes.

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“Os lábios do tempo, entreabertos de satisfação, te saúdam com um sorriso” Ibn Khazar

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RESUMO

O presente trabalho se propõe a analisar a Autobiografia de Abu Zaid Abd’ul-Rahman Ibn Khaldun (1332-1406), escrita entre 1374-1378. Além do estudo dessa escrita narrativa de natureza autobiográfica, buscamos o auxílio de uma outra grande obra de Ibn Khaldun, a Muqaddimah para verificar dados concernentes à vida de Ibn Khaldun, analisar a legitimação da sua erudição proveniente de Al-Andaluz (região ao sul da Península Ibérica que na época medieval era assim nomeada pelos árabes) e nos familiarizar com a concepção da História do referido pensador islâmico. Assim encontramos a recorrência constante a Al-Andaluz em seus escritos, local que era um centro cultural e político autônomo do modelo imposto pelos governos muçulmanos do Oriente na Idade Média. Ao mesmo tempo em que investigamos a ação de Ibn Khaldun ao lado do poder, compreendemos sua angústia de ter sido um homem da pena e da espada, quando só as letras, sobretudo o conhecimento histórico, pareciam interessá-lo. Torna-se interessante também, e por fim, apontar a importância desse personagem no que diz respeito a seu papel na transferência de um saber produzido na Península Ibérica, proveniente de Al-Andaluz, para o norte da África, componente fundamental para a construção de sua identidade.

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ABSTRACT

This study aims to analyze the Autobiography of Abu Zaid Abd'ul-Rahman Ibn Khaldun (1332-1406), written between 1374-1378. Besides the study of this autobiographical narrative writing, we seek the help of another great work of Ibn Khaldun, the Muqaddimah, to verify some more information about the life of Ibn Khaldun, to analyze the legitimacy of his scholarship from Al-Andalus (the south region of Iberian Peninsula in medieval times was so named by the Arabs) and familiarize ourselves with the conception of history of this Islamic thinker. Thus we find the constant recurrence of Al-Andalus in his writings, it was a local cultural and political center of the autonomous model imposed by Muslim governments in the Middle Ages. While we investigated the action of Ibn Khaldun to the power side, we understand his anguish of having been a man of pen and sword, when only the letters, especially the history, seemed to interest him. It is also interesting, and finally, highlight the importance of this character in relation to its role in the transfer of knowledge produced in the Iberian Peninsula, from Al-Andalus, to the north of Africa, a key component to building identity.

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SUMÁRIO

I. INTRODUÇÃO... 8 II. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA: SABER E PODER EM IBN

KHALDUN... 12 III. AL-ANDALUZ, PARADIGMA PARA A FORMAÇÃO DE UM

HISTORIADOR: IBN KHALDUN (1332-1406)... 20

IV. A “AUTOBIOGRAFIA” DE IBN KHALDUN (1332-1406):

TRAJETÓRIA DO ERUDITO... 23 V. OS ESCRITOS DE IBN KHALDUN... 31 V.a. O CONTEXTO DE PRODUÇÃO DOS ESCRITOS DE IBN

KHALDUN... 34 VI. CONCLUSÃO... 37 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 40

GLOSSÁRIO ACERCA DA ARISTOCRACIA POLÍTICA

MUÇULMANA TARDO-MEDIEVAL... 46 TABELA DEMONSTRATIVA DA HIERARQUIA DA BUROCRACIA ISLÂMICA... 50

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I. INTRODUÇÃO

As análises sobre a Península Ibérica na perspectiva de um muçulmano da Idade Média podem ganhar novo entendimento valendo-se das concepções sugeridas por Edward Said, Albert Hourani e Roberto Marin Guzmán. Na obra Orientalismo, Said1 desmascara o recorrente discurso ocidental sobre o Oriente, o qual aponta a estigmatização realizada pelos europeus acerca dos muçulmanos, ressaltando a importância do papel do “outro”. Assim, poderíamos recorrer ao estudo de uma mentalidade individual, do ponto de vista islâmico, a fim de esclarecer e discutir alguns equívocos de interpretações.

A consciência da alteridade existente entre muçulmanos e cristãos no século XIV, nosso recorte temporal, possibilita-nos compreender de forma mais abrangente a produção erudita daquele período, aqui, sobretudo, focalizada na cultura islâmica. Optamos por adentrar esse ambiente de saber por meio da obra autobiográfica de Abu Zaid Abd’ul-Rahman Ibn Khaldun (1332-1406). Nesta, além de presenciar as ações de Reconquista2 cristã, o autor demonstra-se mais interessado em colocar por escrito suas observações a respeito da sociedade, da filosofia e da política de seu tempo.

Desse modo, para uma melhor compreensão do pensamento de Khaldun, faz-se necessário contextualizar historicamente a expansão dos muçulmanos para a Península Ibérica e Mediterrâneo. Foi em 711 que um antigo escravo berbere, Tariq, tornou-se chefe de um exército monumental de tropas islamizadas, que saíram do Magreb em direção à conquista de Al-Andaluz. Tariq e seu exército derrotaram as forças visigóticas e conquistaram Córdoba e Toledo. Posteriormente, em 712, os guerreiros muçulmanos se apoderaram de Sevilha e de Mérida. Três anos mais tarde já tinham se estabelecido em território hispano, logo após chegando até o sul da atual França. Neste momento ocorreu a derrota muçulmana para Carlos Martel na Batalha de Poitiers, em 732.

Após essa primeira incursão de muitos berberes e poucos árabes para a Península Ibérica ocorreram sucessivas ondas migratórias partindo do Oriente (em quantidade maior da Síria) e do Magreb, ainda durante o século VIII. A capital de Al-Andaluz era Córdoba e

1 SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São

Paulo: Companhia das Letras, 1990.

2A Reconquista cristã foi um processo formado por inúmeras batalhas na Península Ibérica entre cristãos e

muçulmanos. Esses embates ocorreram desde 711, com a invasão de Tariq e seus berberes na Península Ibérica, perpassaram a dinastia Omíada, o governo dos Almorávidas e dos Almôadas. Assim o evento prolonga-se com a expulsão em grande quantidade de muçulmanos da região de Al-Andaluz no século XIII, sob o comando de Fernando III (Córdoba em 1236 e Sevilha em 1248). Os andaluzes emigrados foram para regiões do norte da África, principalmente Túnis. No entanto, na região de Al-Andaluz permaneceu o governo islâmico de Granada, somente caindo em 1492. Entretanto, o processo de Reconquista não foi somente de caráter bélico, e sim, de trocas comerciais, políticas e culturais entre os cristãos, judeus e muçulmanos do período.

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muitos dos sírios emigrados para a referida região formaram uma casta de guerreiros, os shamis3. O historiador Bernard Lewis aponta que os sírios prepararam a chegada do fugitivo da dinastia Omíada, Abd ar-Rahman, que se refugiou na Península Ibérica por conta da perseguição realizada pelos Abássidas4.

Já o reinado pacífico em Al-Andaluz de Abd ar-Rahman II (822-852) caracterizou-se pela consolidação de uma centralização política no território, reorganizando o reino cordobês de acordo com o modelo dos Abássidas no Oriente, ainda que de forma independente do ponto de vista político. Assim, o emir5 Abd ar-Rahman III (912-961) declarou-se califa6 e iniciou o apogeu dos Omíadas em Al-Andaluz.

A primeira metade do século XI, no entanto, foi de fragmentação política na Península Ibérica islâmica, momento conhecido como das taifas. Essa política foi mantida quando da conquista de Al-Andaluz pelos Rostos Velados7. É relevante lembrar que o mundo muçulmano estava dividido em três partes nesse momento, como o historiador Albert Hourani nos revela: a região do Irã e sul do Iraque; do Egito, Síria e Arábia Ocidental; e o complexo Al-Andaluz/Magreb8.

Nesse sentido podemos verificar a presença marcante do poder islâmico no Mediterrâneo. No século XII, mesmo os normandos que se estabeleceram na ilha de Sicília adaptaram-se à cultura islâmica. Por exemplo, temos a ação de Roger II (1130-1154), “o pagão”, que possuiu esse epíteto devido ao apoio que recebeu dos muçulmanos em diversas batalhas, nas estratégias de guerra e na formação arquitetônica normanda-sarracena9. Em momento posterior, Guilherme II (1166-1189) confiava cargos de negócios da ilha aos vizires10 muçulmanos. Os reis de Palermo e Sicília foram influenciados da mesma maneira que a própria população pela língua e cultura árabes. Na sucessão suábia, que substituiu os normandos na ilha de Sicília, ocorreu a troca da Língua Árabe pelo Latim. No entanto, a cultura árabe permaneceria na ilha sob os reinados de Frederico II (1215-1250), em que obras

3 LEWIS, Bernard. Os árabes na História. Tradução de Maria do Rosário Quintela. Lisboa: Estampa, 1994, p.

134.

4 Idem, p.139.

5 Emir: príncipe guerreiro. Verificar no glossário, p. 46.

6 Califa: cargo de suma importância para o mundo islâmico, pois unia o poder espiritual e o poder temporal.

Verificar no glossário, p.47.

7 Denominação khalduniana para os Almorávidas (1056-1147).

8 HOURANI, Albert. Uma História dos povos árabes. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia

das Letras, 2006, p.121.

9 LEWIS, Bernard. Os árabes na História. op. cit., p.131-135.

10Vizir: cargo da administração muçulmana que também possibilitava a atuação em guerras. Verificar no

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oriundas da falsafa11 foram sendo traduzidas para o Latim, e de Manfred (* - 1266). Porém, a atuação política muçulmana no Mediterrâneo foi mais próspera e resistente em Al-Andaluz.

A dinastia Almôada (1130-1269)12 que suplantou a Almorávida tanto no Magreb quanto em Al-Andaluz enfrentou um avanço ferrenho dos cristãos sob o último território (talvez uma resposta ao que ocorria no Oriente, pois em 1187 Salah al-Din derrotou os cruzados na Batalha dos Chifres de Hittin e reconquistou Jerusalém). O governo da dinastia Almôada passou por dificuldades que possuíam raízes na religiosidade e na própria política, como demonstração podemos lembrar do evento na Península Ibérica da Batalha de Navas de Tolosa13 (1212).

Enquanto Al-Andaluz era conquistada pelos Rostos Velados e depois passava para as mãos dos Almôadas, a importante família dos Khaldun sempre permaneceria próxima ao poder. Ainda em 1227-28, o emir Abu Zacaria repudiou a soberania dos descendentes de Abd Al-Mumin, declarou-se independente e senhor de Ifríkya (Túnis). Nesse ínterim, Al-Andaluz mergulhou na subversão e o rei cristão Fernando III aproveitou a ocasião para atacar a região por meio da Fronteira (formada pela planície que se estende de Córdoba, Sevilha e Jaen). O sultão Ibn Al-Ahmar se revoltava em Arjona e recorreu ao Conselho Municipal de Sevilha (em que a família Khaldun estava incluída) para ir contra Ibn Hud e deixar Fronteira ao rei cristão. Ibn Al-Ahmar estabeleceu-se em Granada e a tornou capital de seu reino, mas a família Khaldun precisou fugir para Ceuta por causa das incursões de Fernando III. Essa atitude militar do referido rei cristão provocou a fuga de inúmeras famílias de Al-Andaluz para o norte de África. Esse fato é atestado pelo relato do letrado medieval Ibn Khaldun, sobre os acontecimentos que envolveram seus antepassados.

A produção de saber promovida por Ibn Khaldun se revela através de sua Autobiografia em que lemos inclusive a experiência relatada por ele dentro do espaço agitado da política, tanto do norte de África quanto da Península Ibérica. Esse estudo da Autobiografia nos demonstra escolhas políticas dos soberanos muçulmanos e cristãos no momento anterior e posterior à Reconquista bélica mais ferrenha. Permite-nos ainda aproximarmos essencialmente do pensamento histórico de Ibn Khaldun, adentrarmos a sabedoria andalusi e é uma fonte medieval que deve ser valorizada como uma contra-voz de autoridade para o período tardo-medieval, levando-se em consideração o paradigma ocidental.

11 Falsafa: a filosofia produzida entre os árabes no medievo.

12 O fundador da dinastia Almôada foi Ibn Tumart que faleceu no ano de 1130.

13 A Batalha das Navas de Tolosa, que ocorreu na Península Ibérica em 1212, foi uma derrota das tropas

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Além disso, o contato com o personagem histórico Ibn Khaldun e sua obra demonstram as ações de um erudito muçulmano que enxergava uma realidade política islâmica em crise. Isso ocorre por conta do contexto histórico do momento de vida de Ibn Khaldun, segundo o qual as dinastias construídas pelos árabes entraram em contato não

somente com os mongóis, mas com o avanço ferrenho dos cristãos, enfrentaram a situação fora de controle do domínio sobre as principais tribos e, por outro lado, estava por se infiltrar na administração muçulmana o otomano vindo da Anatólia.

Por isso, Ibn Khaldun tenta resguardar a essência de Al-Andaluz, que foi necessária no ambiente de Túnis como exemplo da resistência do poder islâmico e para a preservação de uma memória cultural. Ele recorre a esse espaço de valor para nos apresentar a sua formação, de modo a propagar a sua erudição e definir o foco mantenedor do mundo em que viveu, que sofria mudanças profundas na política e na sociedade. Deste modo se faz necessária a explicação da existência de Al-Andaluz, pois a “umma” (comunidade muçulmana) teria uma forma perene se fosse concatenada à erudição.

Percebemos no objeto de nosso estudo, a erudição de Ibn Khaldun, um meio pelo qual podemos entender a história do mundo muçulmano de sua época. Assim, propomos uma atenta observação à nossa problemática que busca através dos relatos efetuados por Khaldun fragmentos de momentos importantes da política e cultura desenvolvida em Al-Andaluz, e sua provável continuidade no norte de África.

Os objetivos desse estudo são evidenciar a partir da leitura crítica da Autobiografia de Ibn Khaldun, como esse historiador identificava a formação do Magreb tardo-medieval entre a decadência política e um passado glorioso vivido em Al-Andaluz. Ao mesmo tempo, em que vamos revisar a bibliografia que focaliza a presença de árabes na Península Ibérica e no norte de África. Essas duas ações promoverão a compreensão do espaço dominado politicamente pelos árabes e depois com seu estabelecimento, como foi desenvolvida a erudição na região.

Destarte, é necessário fazer a recomposição dos traços da singularidade da erudição de Al-Andaluz e destacar sua “continuidade” no norte de África através da formação de Ibn Khaldun, essência de nosso trabalho. E como tal processo forjou o letrado muçulmano, para que enfim este apresentasse o modelo de ensino que lhe foi transmitido por mestres andaluzes e assim elaborasse sua concepção de História.

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II. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA: SABER E PODER EM IBN KHALDUN

Atualmente o diálogo historiográfico acerca dos estudos sobre o Oriente se deve muito ao esforço de Edward W. Said com a obra Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente14. Said esclarece nessa obra o interesse de se estudar o Oriente e o discurso do orientalismo por meio do aspecto cultural:

A minha idéia é que o interesse europeu, e depois americano, pelo Oriente era político de acordo com alguns de seus aspectos históricos óbvios que descrevi aqui, mas que foi a cultura que criou esse interesse, que agiu dinamicamente em conjunto com as indisfarçadas fundamentações políticas, econômicas e militares para fazer do Oriente o lugar variado e complicado que ele obviamente era no campo que eu chamo de orientalismo15.

Dessa forma, entendemos que o orientalismo não foi somente como salienta Immanuel Wallerstein, “uma particularidade essencialista” 16 ligada a uma dominação política, mas antes uma forma do Ocidente se aproximar de fontes antes desconhecidas em seu ambiente cultural. Nesse sentido, Robert Irwin nos pode esclarecer que o orientalismo também passou a ser estudado em diversas perspectivas por outros autores:

[...] Livros de importância crítica sobre o orientalismo de autoria de Anouar Abdel-Malek, Edward Said, Alain Grosrichard e outros também levantaram questões profundas e difíceis sobre a natureza do discurso do “Outro”, “o Contemplar” e um amplo leque de questões epistemológicas afins. Para lidar com esses e com outros textos críticos, é necessário levar em consideração a pertinência potencial para o estudo do orientalismo de conceitos formulados por Antonio Gramsci, Michel Foucault e outros17.

Assim, passamos a analisar a obra de Ibn Khaldun como fonte para compreendermos a história produzida no Oriente pela sua especificidade, mas atentamos também à questão que envolve nosso trabalho, a discussão do orientalismo. Vamos, a partir de agora, analisar mais detalhadamente as discussões historiográficas que se inter-relacionam com ela. Primeiramente, a obra de Ibn Khaldun foi escrita entre 1374-1378 e é dividida em: Autobiografia de Ibn Khaldun, os Prolegômenos e o Livro dos Berberes. O autor reconhecido que tivemos acesso, por ser um estudioso da obra histórica de Ibn Khaldun, foi o Doutor Franz Rosenthal. O pesquisador traduziu os manuscritos em língua árabe da Muqaddimah

14 SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Tomás Rosa Bueno.

São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

15 Idem, p.23.

16 WALLERSTEIN, Immanuel Maurice. O universalismo europeu: a retórica do poder. Tradução de Beatriz

Medina. São Paulo: Bontempo, 2007, p.66.

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para a língua inglesa (The Muqaddimah, an introduction to History) 18 e assim se aprofundou nos conceitos de civilização propostos por Ibn Khaldun. Rosenthal pontua que Ibn Khaldun pertencia a uma família aristocrática e de líderes políticos na região do sul da Península Ibérica que, a partir de 1248, passou para o Norte de África. O historiador, a partir dos relatos da Autobiografia de Ibn Khaldun, contextualiza os fatos políticos da época e aponta no sentido do que também encontramos em nossa pesquisa: a presença da família Khaldun ao lado do poder em território do sul da Península, a transferência dela para o Norte de África e a importância do saber andaluz na vida do autor:

The love of learning and intellectual pursuits for wich his father and grandfather were noted, coupled with the political aspirations that had fired a long line of this Moorish forebears, produced the rare combination of philosopher and statsman that we find in Ibn Khaldun19.

Rosenthal ressalta ainda para a educação recebida por Ibn Khaldun por “linhas tradicionais”:

His early education followed traditional lines. He was tutored in the Qu’rân, the Hadith, jurisprudence, and the subtleties of Arabic poetry and grammar by some of the best-known scholars of the time, and later applied himself to the study of Arab mysticism and the philosophy of the Moorish Aristotelians (...)20.

Ibn Khaldun rejeitou a superstição e se aprofundou em uma análise crítica da sociedade de sua época. Assim, para Rosenthal, o centro dos estudos de Ibn Khaldun é o homem – o que de certa forma podemos verificar também na concepção de História de Marc Bloch.

O historiador muçulmano foi influenciado pelos escritos de Ibn Sina (Avicena) e Ibn Ruchd (Averróis), por isso podemos nos voltar para a afirmação da historiadora inglesa Karen Armstrong quando esta afirma em sua obra O Islã 21 a necessidade de se rever a figura de Ibn Khaldun como o último representante da falsafa:

Ibn Khaldun queria descobrir as causas subjacentes dessa mudança. Ele foi provavelmente o último grande faylasufita espanhol. Sua grande inovação foi aplicar os princípios do racionalismo filosófico ao estudo da história, (...). Ibn Khaldun acreditava que, sob o fluxo dos incidentes históricos, havia leis universais que governavam os destinos da sociedade (...)22.

18 ROSENTHAL, Franz. The Muqaddimah – An Introduction to History. Editado por DAWOOD, N.J.; New

Jersey: Princeton, 1981.

19 Idem, vii. 20 Idem, ibdem.

21 ARMSTRONG, Karen. O Islã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 22 Idem, p. 154-155.

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Nossa análise dialoga com Armstrong no sentido de que Ibn Khaldun foi um observador da decadência do anterior grande poder dos muçulmanos. O conceito elaborado sobre o movimento cíclico de ascensão, apogeu e decadência, ao lado da ação da “asibiyyah”23 e “umram”24 , definem a perspectiva política e social de Ibn Khaldun.

Também indicamos para os estudos efetuados por Albert Hourani que sinaliza já no prólogo e ao longo do seu livro Uma história dos povos árabes 25 uma visão da história dos árabes concomitante à importância histórica dos escritos de Ibn Khaldun. A influência khalduniana em Hourani é de fácil percepção, pois o historiador inglês se utiliza do método de Ibn Khaldun para descrever os diversos momentos de uma história de conquista do poder pelos árabes. O estudo da Autobiografia de Ibn Khaldun, nesse caso como o de Rosenthal, amplia por meio da ação do indivíduo as concepções políticas, econômicas e sociais de um recorte histórico. A voz de Ibn Khaldun é de suma importância para se entender aspectos do movimento cultural, a ação da Reconquista cristã, a erudição muçulmana ao lado do poder e também os vestígios do próprio silêncio. Segundo Hourani:

A vida de Ibn Khaldun, segundo sua própria descrição, nos diz alguma coisa sobre o mundo a que pertenceu. (...) Sua própria trajetória mostrou como eram instáveis as alianças de interesses em que se baseavam as dinastias para manter o poder; (...) Mas uma coisa era estável, ou parecia ser. Um mundo onde uma família se mudava do sul da Arábia para a Espanha, e seis séculos depois retornava ao lugar de origem e continuava a ver-se num ambiente familiar, tinha uma unidade que transcendia as divisões de tempo e espaço; (...) 26.

Constatamos assim a manutenção dessa unidade, a sabedoria, no caso de Ibn Khaldun – esta proveniente de Al-Andaluz e estimulada pelos sábios andaluzes em Norte de África. Tal como Hourani apresenta sua perspectiva sobre a cultura desenvolvida no sul da Península Ibérica:

A cultura continuou a florescer em torno de algumas cortes dos pequenos reinos nos quais se dividiu o Califado Omíada, os muluk a-tawa’if, ou ‘reis de partido’. Os almorávidas, que vinham das margens do deserto do Magreb, trouxeram um austero gênio de estrita aderência à lei malikita (...). Após os almôadas, o processo de expansão cristã foi extinguindo um centro de vida muçulmana após outro, até restar apenas o reino de Granada. A tradição que ela criara foi continuada, porém, de

23 Asibiyyah: “Espírito de parentesco” ou força de um grupo. É a partir dessa idéia de asibiyyah que Ibn

Khaldun desenvolveu a teoria do processo histórico dos povos muçulmanos e dessa forma mantém uma conexão com o conceito de umram.

24 Umram: Al-umran, ou seja, civilização. A sociedade para Ibn Khaldun é um ser histórico e que se processa

conforme leis próprias.

25 HOURANI, Albert. Uma História dos povos árabes. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia

das Letras, 2006.

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várias formas nas cidades do Magreb, e do Marrocos em particular, para onde migraram os andaluzes27.

É interessante observar que Hourani demonstra a elaboração das madrasas andaluzas, suas respectivas lições dadas por ilustres mestres e como isso se expandiu em direção ao Magreb, região para a qual a família Khaldun se viu deslocada. A influência da cultura muçulmana no território da Península Ibérica se mostrou nessa pesquisa fundamental para se compreender o período tardo-medieval da Reconquista cristã e como a erudição de Ibn Khaldun preservara essa idéia de continuidade da produção do saber medieval islâmico proveniente de Al-Andaluz.

Conforme nos aponta Miguel Attie Filho em sua obra Falsafa: a filosofia entre os árabes 28 sobre o espetáculo da erudição produzida em Al-Andaluz: “(...) Al-Andaluz, sempre que pôde, rivalizou com os Abássidas, tanto política como culturalmente” 29. Attie Filho infere também sobre Ibn Khaldun que ele nos legou o sentido científico da história30.

Também temos de fazer justa reverência aos esforços de José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury, que publicaram nas décadas de 1950/60 a tradução que utilizamos como fonte para esta pesquisa. No que se refere a trabalhos acadêmicos brasileiros, há que se destacar a tese de doutorado de Aidyl de Carvalho Preis O sentido da História através dos Prolegômenos de Ibn Khaldun 31. Preis apresenta a importância histórica de Ibn Khaldun e da sua formação intelectual para indicar um “complexo cultural” entre a Península Ibérica e Norte de África32. E os cargos da vida pública que Ibn Khaldun assumiu eram vividos concomitante à sua busca pelo conhecimento. Se faz necessário afirmar que a Autobiografia de Ibn Khaldun é utilizada pelos já mencionados pesquisadores como base para compreender a obra Muqaddimah. Nossa pesquisa versa sobre o estudo minucioso da Autobiografia como forma de legitimação das posições de Ibn Khaldun como homem de saber e também como estudo primordial para o entendimento da sua obra-prima.

27 HOURANI, Albert. Uma História dos povos árabes. op. cit., p.255.

28 ATTIE FILHO, Miguel. Falsafa: a filosofia entre os árabes: uma herança esquecida. São Paulo: Palas

Athena, 2002.

29 Idem, p.302. 30 Idem, p.338.

31 PREIS, Aidyl de Carvalho. O sentido da História através dos Prolegômenos de Ibn Khaldun. Tese de

Doutorado: Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1972.

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A dissertação de mestrado de Richard Max de Araújo Ibn Haldun: o estudo de seu método à luz da idéia de decadência nos Estados do Ocidente muçulmano medieval 33 faz um percurso histórico político sobre as obras de Ibn Khaldun e dá maior espaço e importância para a Autobiografia. Araújo define Ibn Khaldun como uma personalidade singular e de existência dividida:

Para entender a postura de Ibn Haldun é necessário ter em conta o mundo em que vivia. Muito do que ele escreveu sobre si em sua Autobiografia diz respeito também à história do Ocidente muçulmano. Apesar de sua cultura e erudição foi um homem de ação que viveu grande parte de sua vida entre lutas e conspirações e seu caráter duro o conservou até sua velhice. Essa personalidade forte reflete-se em sua obra, sobretudo na objetividade com que julga os feitos humanos34.

O erudito Ibn Khaldun tem sua autoridade atestada, pois é por meio de seus escritos que conhecemos a forma como eram ensinadas as lições, como aponta Jamil Ibrahim Iskandar: “Segundo Ibn Haldun, ‘o Corão enviado do céu em língua árabe e num estilo adequado à maneira seguida pelos árabes para bem exprimir seus pensamentos’ era inicialmente compreendido por todos (...)”35. A Autobiografia nos aponta os métodos de aprendizado seguidos por Ibn Khaldun e logo após quando nos remetemos a Muqaddimah presenciamos um tratado de erudição de cada etapa de transmissão do saber, esta de procedência andalusi. Ao mesmo tempo em que se produzia essa corrente de estudos andaluzes podemos atentar para a produção das crônicas régias medievais em território recém conquistado pelos cristãos36. Um paralelo pode ser estabelecido com a produção de crônicas feitas por Fernão Lopes e Gomes Eanes de Zurara, nesse período próximo à vida de Ibn Khaldun.

Obtivemos ainda a importante contribuição do pesquisador medievalista Diego Melo Carrasco, atual membro docente da Universidad Adolfo Ibañez, Chile. Carrasco defende a idéia do prolongamento político e cultural entre a Península Ibérica e Norte de África no período tardo-medieval, o qual, em nossa pesquisa, se faz transparecer na Autobiografia. Nesse sentido, Carrasco estabelece o contato entre as ditas regiões:

33ARAÚJO, Richard Max de. Ibn Haldun: o estudo de seu método à luz da idéia de decadência nos Estados do Ocidente muçulmano medieval. Dissertação de Mestrado: Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, 2004.

34 Idem, p.29.

35 ISKANDAR, Jamil Ibrahim. Al-Qur’an: O Corão, o Livro Divino dos Muçulmanos. In: PEREIRA, Rosalie

Helena de Souza, (organização). O Islã clássico: itinerários de uma cultura. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 115.

36 Sobre o estudo erudito de crônicas na Península Ibérica do período tardo-medieval: GUIMARÃES, Marcella

Lopes. Estudo das Representações de Monarca nas Crônicas de Fernão Lopes (séculos XIV e XV). Tese de Doutorado, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2004.

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Coetáneamente, el norte africano se vio afectado por las complicaciones de al-Andalus, debido a que el primero era um espejo de este último em cuanto a câmbios políticos se refiere. Lo anterior, tênia su más palmaria manifestación en la política intervencionista de los Emires andalusíes en la cuestiones del Magreb. Será en este complejo escenario de la historia islámica, en donde emergerá la figura de Abd-al-Rahman Ibn Jaldun37.

Segundo Carrasco podemos pontuar a singularidade da Autobiografia de Ibn Khaldun em seu período: “(...) Lo cierto es que el género biográfico no será de los más difundidos dentro del Islam medieval, en donde se le otorgará mucho más importancia a la recopilación de notícias, así como las genealogias y las crónicas”38.

A produção intelectual de Ibn Khaldun se revela através de sua Autobiografia, ao lado da Muqaddimah, mas na primeira presenciamos a experiência relatada por ele dentro do espaço agitado pela política, tanto do norte de África quanto da Península Ibérica. Esse estudo pormenorizado da Autobiografia nos revelou fragmentos de escolhas políticas dos soberanos muçulmanos e cristãos no momento anterior e posterior de Reconquista, nos permitiu reconstruir o pensamento histórico de Ibn Khaldun, adentrarmos a sabedoria andalusi e é uma fonte medieval que deve ser valorizada como uma voz de autoridade para o período tardo-medieval. Portanto, nossa pesquisa contribui para um aprofundamento das escolhas de Ibn Khaldun através de sua Autobiografia, modo pelo qual encontramos o cerne dos princípios formulados pelo historiador muçulmano e isso nos coloca frente às ações provocadas pela erudição proveniente da Península Ibérica medieval.

De acordo com Juan Martos Quesada39 as diversas madrasas (escolas) de jurisprudência islâmica pertenciam a determinados locais e tinham suas especificidades, por exemplo, a escola que nos interessa no caso de Ibn Khaldun é a malikita40, pois ela era a predominante em norte de África e Al-Andaluz. As escolas de jurisprudência islâmicas tiveram seu início na região do sul da Península Ibérica tão logo a família Omíada se instalou lá, trazendo então uma perspectiva de ensino conservador. No entanto, a escola malikita já existia desde o século VIII no Oriente:

37 CARRASCO, Diego Melo. Una aproximación al mundo de Ibn Jaldun: precursor medieval de la Historia de

las civilizaciones. In: I Jornadas Internacionales de Teoría y Filosofía de la Historia, organizadas por la Facultad de Humanidades de la Universidad Adolfo Ibañez, Viña del Mar, 2004, p.2-3.

38 Idem, p.3.

39 QUESADA, Juan Martos. O Direito Islâmico Medieval (Fiqh). In: PEREIRA, Rosalie Helena de Souza,

(organização). O Islã clássico: itinerários de uma cultura. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 213-246.

40 Uma das quatro escolas do mundo muçulmano, privilegiava o uso dos ditos proféticos ao contrário da escola

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A escola malikita fundada por Malik b. Anãs (m. 795), reúne a sunna de Medina, e sob sua influência é escrita a compilação mais antiga de Direito, a Muwatta’. Essa escola medinense é defensora do Corão e da sunna como fontes primordiais (...).Estende-se pelo Norte de África e foi doutrina oficial de Al-Andaluz41.

Nesse sentido da produção de conhecimento conservador, o erudito Ibn Khaldun revela, segundo Massimo Campanini42, que o símbolo máximo de poder era o califado, ou

seja, a melhor forma de governo, e a sociedade como fio condutor para se entender a história:

Uma análoga saudade dos belos tempos passados do califado originário está presente em ‘Abd al-Rahman Ibn Khaldun, historiador e filosófo magrebino (1332-1406), mas que viveu longamente no Cairo sob os mamelucos. Compôs uma monumental História universal intitulada ‘Livro dos exemplos’, à qual antepõe uma Introdução (ou Muqaddimah) que compreendia a novidade de seu pensamento. Tal novidade consiste na apresentação de um método de análise realista do devir histórico que leva Ibn Khaldun a considerar a sociedade no centro da história e a política no centro da sociedade43.

Campanini nos chama atenção para a relação no Ocidente, da posição do saber como instrumental - como já conhecemos no Ocidente desde a Antiguidade – da ação efetiva do poder. No entanto, no Oriente, um homem de saber como Ibn Khaldun tem uma movimentação nas diversas esferas políticas sem ser o homem que governa. Portanto, ele se aproximaria mais do conselheiro e do artista por excelência nas cortes islâmicas.

Para se compreender o espaço de atuação de Ibn Khaldun – como letrado e militar – temos que nos reportar ao contexto de sua época, a geografia de sua movimentação histórica e devemos nos atentar para o nosso próprio olhar, já que estamos chegando até o passado pelo nosso entendimento atual. Segundo François Dosse44, o historiador está inserido em seu próprio tempo, e em nossa análise sobre o erudito Ibn Khaldun podemos concordar com o pensador francês quando este explica:

A especificidade do tempo do historiador é, justamente, manter-se nessa tensão entre um sentimento de continuidade do presente diante do passado e o sentimento de um fosso que aumenta e que institui uma descontinuidade entre duas dimensões45.

A obra autobiográfica de Ibn Khaldun tem esse caráter de abranger duas dimensões, pois tenta resgatar por meio do relato um passado “quase que perfeito” em Al-Andaluz e sua

41 QUESADA, Juan Martos. O Direito Islâmico Medieval (Fiqh). op. cit., p.230.

42 CAMPANINI, Massimo. O Pensamento Político Islâmico Medieval. In: PEREIRA, Rosalie Helena de Souza,

(organização). O Islã clássico: itinerários de uma cultura. São Paulo: Perspectiva, 2007, pp.247-283.

43 Idem, p.262.

44 DOSSE, François. A História. Tradução de Maria Elena Ortiz Assumpção. Bauru: Edusc, 2003. 45 Idem, p.74.

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realidade contemporânea em norte de África. Podemos afirmar ainda que a Autobiografia de Ibn Khaldun é uma fonte histórica, pois, por mais que o autor tente reforçar certos acontecimentos ao longo da narrativa, ele busca acima de tudo representar uma verdade para os que virão. Conforme Dosse, o discurso é um meio de se compreender uma realidade: “A história, como modo de discurso específico, nasceu de uma lenta emergência e sucessivas rupturas com o gênero literário, em torno da busca da verdade” 46.

Voltando ao quadro latino-americano, destacamos, pela análise sobre Ibn Khaldun e o mundo islâmico medieval, Roberto Marin Guzmán. Marin Guzmán é atual professor de História da Cultura, História do Oriente Médio, História Medieval e Língua Árabe na Universidade da Costa Rica. Marín Guzmán é fundador e coordenador da Cátedra “Ibn Khaldun” de Estudos do Oriente Médio e África do Norte pela referida universidade. A Cátedra “Ibn Khaldun” 47 é dedicada a organizar conferências, mesas redondas e cursos a professores e estudantes locais e estrangeiros sobre temas ligados ao Oriente. A Cátedra “Ibn Khaldun” estimula a publicação de trabalhos de investigação histórica sobre o Oriente Médio e norte da África com o objetivo de favorecer a compreensão mútua e o diálogo entre as diversas religiões e civilizações, tendo por base a utilização da trandisciplinaridade, da interculturalidade, do cosmopolitismo e uma democratização e popularização do conhecimento.

Diante dessa revisão bibliográfica, propomos ressaltar a importância da formação de historiador de Ibn Khaldun, tendo a perspectiva de análise sobre sua posição como membro de grande influência na política no século XIV e observador tácito da sociedade, em declínio, de seu tempo. Nosso estudo possui, portanto, uma proposta de caráter reflexivo que permite o diálogo entre a cultura islâmica e o poder. A construção dessa sabedoria muçulmana realizada por Ibn Khaldun legitima sua própria imagem histórica, pois que a relevância de seus escritos sustenta o nosso estudo acerca desse letrado na Idade Média, naquele ambiente efetivo de ruído estridente de espadas.

46 DOSSE, François. A História. op. cit., p.13.

47 MARÍN GUZMÁN, Roberto. Estado de la cuestión sobre la Mahdiyya – Estudio de las fuentes del movimiento Mahdista en el Sudán. Editor Roberto Marín Guzmán. 1ª edição. Costa Rica, 2009, p.36.

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III. AL-ANDALUZ, PARADIGMA PARA A FORMAÇÃO DE UM HISTORIADOR: IBN KHALDUN (1332-1406)

Para adentrarmos o mundo vivido por Ibn Khaldun é imprescindível esclarecer a importância de Al-Andaluz na vida desse letrado muçulmano. Ibn Khaldun concebe duas significações para Al-Andaluz: uma de contexto político e uma contemplativa.

A significação de contexto político estaria vinculada à conquista islâmica da região ao sul da Península Ibérica. A partir de 711, os muçulmanos comandados pelo líder berbere Tariq, conquistaram a região povoada antes por hispano-romanos e visigodos, introduzindo uma administração própria, uma nova organização social e cultural. Os muçulmanos que a partir daí povoaram essa região trouxeram consigo as tradições e instituições do Oriente Médio, mas a região da Península foi sofrendo transformações próprias por conta do contato com os povos mais ao norte e com as novas levas migratórias.

Ainda no século VIII ocorreu a independência política de Al-Andaluz do centro de poder em Bagdá. Isso se efetuou quando do estabelecimento da dinastia omíada em território hispano e sua definitiva separação do governo Abássida no Oriente. Daí em diante, esse novo governo centralizado passou a se fortalecer cada vez mais, tornando-se um centro de saber único no mundo medieval. E é o modelo de governo da época do califado que Khaldun tentará expor como exemplo de poder perfeito.

Al-Andaluz significa um local híbrido formado pela alteridade entre cristãos e muçulmanos. Além disso, é também uma região caracterizada por meio de novas formas de contato construídas socialmente. Nesse sentido, o olhar antropológico de Clifford Geertz nos pode ajudar a compreender que em situações de hibridismo social “o que acontece a um povo em geral também acontece à sua fé e aos símbolos que a formam e sustentam” 48. Assim sendo, Roberto Marin Guzmán aponta que, quando Al-Andaluz foi sucessivamente conquistada pelos árabes e berberes, manteve-se a noção da importância do Islã e da influência dessa religião para os diferentes povos que a habitavam:

[...] El Islam no es solo una religión sino también una cultura y un modo de vida que logra permear todos os aspectos de la sociedad. En al-Andalus el Islam llegó a ser, como ya lo era en otras provincias del Imperio Musulmán, el elemento más importante para establecer la separación entre los conquistadores y los conquistados. Por esta razón la clasificación que se puede hacer de los varios

48 GEERTZ, Clifford. Observando o Islã: o desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia. Tradução

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grupos existentes cobra también un cariz religioso. Los elementos religiosos influenciaban asimismo las relaciones entre los diferentes grupos49.

Os reinos cristãos ao norte da Península, por sua vez, também foram sendo constituídos fundamentalmente por meio dessa sinalização do “outro”, ou seja, daquilo que é diferente. A independência política, econômica e cultural de Al-Andaluz constituiu um local de prestígio e também de formação única de uma categoria social, os moçárabes50.

Dessa forma, para entender o predomínio de Al-Andaluz na perspectiva khalduniana, é importante a observação sobre a sua independência política dos centros de poder do Oriente com a derrubada da dinastia dos califas omíadas em Damasco e a ascensão dos abássidas. É nesse período em que o jovem ’Abd al-Rahman (um dos sobreviventes omíadas) se estabelece no Magreb e chega à Península Ibérica, tornando-se emir em 756.

Quando da desintegração no sul da Península em diferentes reinos islâmicos, ou taifas, no século XI, ação em que colaboraram Almorávidas e depois Almôadas, Al-Andaluz foi enfraquecendo seu poder através das fronteiras. Sabemos, por meio de nossa fonte, que a família dos Khaldun esteve sempre próxima desse poder islâmico desde o período Omíada na Península e que após a data de 1248, momento do apogeu da Reconquista cristã, esta passou para o território magrebino. Segundo Ibn Khaldun: “A família Khaldun é de origem sevilhana; transportou-se para Túnis nos meados do século VII da Hégira, na época da emigração que se seguiu à tomada de Sevilha pela tropas de Ibn Adfonso, rei da Galícia”51.

A partir dessa influência do contexto político de Al-Andaluz no pensamento de Ibn Khaldun, passamos a entender o motivo da sua contemplação pelo saber. É por meio da caracterização do saber na obra de Ibn Khadun que podemos pontuar as lições recebidas por este, por meio do modelo que era utilizado na Península e depois no norte de África. Deve-se ressaltar que as lições foram propostas a Ibn Khaldun pelos mais famosos mestres andaluzes, magrebinos e tunisianos da época, pois que o nosso historiador conseguiu todos os certificados de conclusão de maneira lisonjeira.

O que deve ser salientado é a migração intensa de mestres andaluzes para as madrasas em norte de África. Esses mestres em breve despertariam a inevitável admiração de Khaldun por esse mundo de saber. Inclusive o capítulo mais longo da Autobiografia é

49 MARÍN GUZMÁN, Roberto. Sociedad, política y protesta popular en la España Musulmana. San José:

Editorial UCR, 2006, p.92.

50 Moçárabes: Homens cristãos da Península Ibérica que viviam no território sob domínio dos árabes.

51 KHALDUN, Ibn. Autobiografia. In: Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). Tradução integral e direta

do árabe por José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1958, p.479.

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dedicado aos mestres de Khaldun, intitulado “De minha educação”. A seguir citaremos um trecho da fonte no qual Khaldun relata sobre um de seus mestres:

(...) Aprendi a ler o santo livro, tendo por mestre de escola Abd Allah Muhammad Ibn Nazal Al-Ansari, oriundo de Jalla, localidade da província de Valência, na Andaluzia, que fizera seus estudos com os primeiros mestres desta cidade e dos arredores, e sobrepujava a todos seus contemporâneos no conhecimento das diversas leituras corânicas52.

Khaldun nos demonstra por meio da fonte que se dedicava com muita atenção aos estudos desde tenra idade, e que valorizava os sábios de sua época:

Desde minha mocidade, sempre me mostrei ávido de conhecimentos e me empenhei com grande zelo a freqüentar as escolas e os cursos das diversas disciplinas. Após a grande epidemia que arrebatou nossos homens mais notáveis, nossos sábios, nossos professores e que me privou de meu pai e de minha mãe, assistia regularmente ao curso do professor Abu Abd Allah Al-Abelli, e, depois de três anos de estudos sob sua direção, achei enfim que eu sabia alguma coisa53.

Com base nesse relato de Ibn Khaldun podemos verificar como os estudos eram a base formadora para o futuro historiador. Além disso, os estudos iriam ajudá-lo a seguir carreira dentro da burocracia islâmica. A excepcionalidade da formação erudita de Ibn Khaldun o transformou em um letrado de vários ramos do saber, num momento em que não havia as divisões disciplinares como entendemos atualmente. Khaldun se dedicou ao cargo da pena com maior afinco, pois sabia que a sabedoria era o meio sustentador do poder:

(...) quando o império ainda está no meio de sua carreira, o príncipe não sente tanta precisão de seus serviços guerreiros; a autoridade está assegurada e não tem outra preocupação senão recolher os frutos da soberania. (Agora, o essencial para ele) é recolher os impostos, registrar receita e despesa, rivalizar em munificência com as outras dinastias e transmitir suas ordens a todo mundo. Para isso, a pena é seu melhor auxiliar, e é grande a necessidade que tem de recorrer a ela. Em tempos assim, as espadas, for falta de uso, descansam nas suas bainhas, a menos que algum acontecimento grave venha perturbar a ordem e que se necessite delas para fazer frente a qualquer ameaça. Enquanto as espadas se calam, as penas triunfam; o prestígio, as riquezas, o bem-estar são então o apanágio dos escritores54.

Portanto, compreendemos como Ibn Khaldun retratava historicamente sua época por meio da explicação do contexto político e sua ênfase para a época do califado. Ao mesmo tempo, verificamos uma rede de compreensão histórica da erudição produzida inicialmente em Al-Andaluz e depois transferida para o território magrebino.

52 KHALDUN, Ibn. Autobiografia. In: Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op. cit., p.492. 53 Idem, p.500.

54 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo II). Tradução integral e direta do árabe por José

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IV. A “AUTOBIOGRAFIA” DE IBN KHALDUN (1332-1406): TRAJETÓRIA DO ERUDITO

O presente estudo deve se valer do modelo narrativo da fonte e dos apoios investigativos dos pesquisadores que foram aqui escolhidos. Segundo Peter Burke55 o modelo autobiográfico revela uma perspectiva enriquecedora para o historiador, pois permite uma análise mais acurada de um contexto tendo por fonte uma individualidade. Quando Ibn Khaldun revela a angústia de estar ligado a guerras ou aos cargos da administração, verificamos a preocupação do historiador com sua erudição e percebe-se a tradição de sua família que lhe ensinou uma valiosa lição: estar sempre ao lado do poder, mesmo quando os governantes fossem substituídos. Essa política realizada pela família dos Khaldun teria seu ponto de partida nas formas de poder na Península Ibérica, com continuidade, adaptação e sobrevivência nos altos escalões no norte de África.

A Autobiografia de Ibn Khaldun nos demonstra que seu autor possuía uma origem remota na Península Arábica através da tribo dos Hadramut, o representante na época era Uail Ibn Hojr que foi, segundo o historiador, um dos Companheiros do Profeta (século VII). Logo após ocorreu a migração de parte dessa tribo para a Península Ibérica. Nesse momento, dos séculos XI-XII a família Khaldun se encontrava ao lado da dinastia dos Almorávidas e depois com a substituição destes passou a compartilhar do poder com os Almôadas. Ibn Khaldun nos lembra e legitima seus antepassados relatando conforme a sua Autobiografia que Curaib Ibn Othman e seu irmão Khalid foram os detentores do poder em Al-Andaluz. Os Khaldun se estabeleceram inicialmente em Carmona e depois em Sevilha.

Conforme a descrição de Ibn Khaldun, em meados do século XIII, o sultão Abu Zacaria se apoderou e tornou-se soberano de Ifríkya (Túnis). Logo depois da morte desse, Al-Andaluz mergulhou na subversão e o rei cristão Fernando III (1217-1252) aproveitou a ocasião e atacou a região de Fronteira (formada pela planície que se estende de Córdoba, Sevilha e Jaen). O sultão de Granada realizou acordos com Fernando III e estabeleceu-se nessa região da Península Ibérica. Assim a família Khaldun partiu para Ceuta e após se fixou em Túnis. Nesse ponto da Autobiografia localizamos um passado mais próximo de Ibn Khaldun por meio da figura do representante de sua família Al-Haçan Ibn Muhammad Ibn Khaldun que trabalhou na corte do emir Abu Zacaria. Al-Haçan, vivendo sob tutela do governo Hafsida (1228 –1574), recebia apontamentos e iqta56 . O filho de Al-Haçan, Abu

55 BURKE, Peter. O que é História Cultural? Tradução de Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

2005, p.116.

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Bacr Muhammad Ibn Khaldun obteve as mesmas bondades régias, mesmo com o falecimento do referido emir em 1249 na região de Bona. Logo após, o emir Abu Ishac conquistar Ifríkya, Abu Bacr Muhammad Ibn Khaldun foi nomeado Amir Al-Achgal (ministro das operações financeiras, função dos grandes dignitários almôadas, podendo nomear, destituir e pedir contas a perceptores, usando até o emprego da tortura) e em Bugia tornou-se hajib (primeiro ministro do sultão). De acordo com Khaldun quando Ibn Abi Omara tomou Ifríkya mandou retirar a fortuna, torturar e assassinar Abu Bacr Muhammad Ibn Khaldun na prisão.

O filho de Abu Bacr, Muhammad Ibn Khaldun, desempenhou uma ação militar que influenciou Khaldun quando homem da espada. De acordo com Ibn Khaldun, Muhammad Ibn Khaldun realizou a peregrinação a Meca em 1319, em seguida mais uma peregrinação surrerogatória em 1324 e depois disso recolheu-se na solidão de sua casa. Esse avô de Ibn Khaldun possuía uma grande importância para o governo de Túnis:

O sultão conservou-lhe (a Muhammad Ibn Khaldun) todos os favores e as honras anteriormente tributadas, e continuou a conceder-lhe grande parte dos emolumentos e pensões com que o Estado o tinha gratificado. O príncipe convidou-o muitas vezes, mas inutilmente, para tomar lugar de primeiro ministro57.

Ibn Khaldun acrescenta que, quando o sultão Abu Yahia não estava em Túnis, confiava a guarda da cidade a seu avô. O historiador nos aproxima de seu tempo presente quando indica a presença do seu pai:

No ano de 737 (1336-37), ao falecer meu avô, meu pai, Abu Bacr Muhammad, deixou a carreira militar e administrativa para dedicar-se à ciência (a lei) e à devoção. (...) Desde o dia em que meu avô renunciou aos negócios, passava seu tempo ao lado de Abu Abd Allah, e meu pai, que tinha sido entregue aos cuidados deste doutor, aplicou-se ao estudo do Alcorão e da lei. Meu pai cultivou com paixão a língua árabe e era versado em todos os ramos da arte poética. Filólogos de profissão recorriam a seu critério – fato que testemunhei – e lhe submetiam seus escritos. Faleceu, arrebatado pela grande epidemia do ano de 74958.

Nessa direção da interpretação da Autobiografia indicamos a autenticidade da erudição de Ibn Khaldun por sua formação específica com mestres andaluzes e magrebinos em Túnis. A madrasa (escola) de formação de Ibn Khaldun foi a malikita, que era a escola oficial em Al-Andaluz e tinha por lições: leitura específica do Alcorão, o Tafassi (sobre tradições escritas no Muwatta que servia de base ao sistema da jurisprudência malikita), o Tamhid, o Tashil (sobre regras gramaticais), Mukthaçar (resumo de jurisprudência) e também foram ensinados a Ibn Khaldun as poesias citadas no Kitab Al-Agani.

57 KHALDUN, Ibn. Autobiografia. In: Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op. cit., p.490. 58 Idem, p.491. A grande epidemia se refere à Peste Negra (1348/1349).

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A carreira intelectual de Ibn Khaldun paralela àquela exercida oficialmente por ele em diversos sultanatos foi a mola propulsora de suas obras. A política de sua época era dominada ainda pelos conflitos no norte de África entre a dinastia dos Hafsidas (1228-1574) e a dinastia dos Marínidas (1196-1465). Além dessas duas grandes dinastias, as quais Ibn Khaldun serviu, podemos destacar a importante tribo do norte de África, os Banu Hilal. Na perspectiva externa, a política estava pressionada pelos turcos seldjúcidas oriundos da Ásia Menor, pelo avanço frenético dos mongóis e pelos interesses permanentes dos mamelucos do Egito. No entanto, o homem político Ibn Khaldun soube negociar em prol de seus interesses para manter sua posição todo tempo próxima do poder, pois isso era o que lhe garantia triunfar com a ação de sua pena.

Em 1352, o jovem estudioso Ibn Khaldun ingressou como escrivão do parafo real (função da pena que cabia àquele que registrava dados concernentes à administração real) sob a dinastia Hafsida em Túnis. Em seguida passou a ser o secretário do sultão Abu Inan em Fez, sob a dinastia dos Marínidas, pois uma comitiva de sábios um tempo antes o tinha impressionado, o que o fez prometer a si mesmo um dia seguir o caminho do Marrocos. Mas seu ofício ao lado do sultão Abu Inan foi curto e em 1357 Ibn Khaldun foi preso a mando desse mesmo sultão e solto apenas quando o soberano morreu. O sucessor de Abu Inan, o sultão Abu Salem nomeou Ibn Khaldun novamente como secretário do governo marínida, somando a esse dois novos cargos: o de chefe de chancelaria e de madhalim (aquele que repara as injustiças). O novo governo marínida se encontrava em posição instável e Ibn Khaldun retornou para Túnis em 1362. Nesse ínterim, Ibn Khaldun realizou uma missão diplomática em 1363, na qual era necessária a ratificação de um tratado de paz entre o sultão Ibn Al-Ahmar (Muhammad V), sultão de Granada e Pedro, o Cruel (rei de Castela e Leão):

No ano seguinte mandou-me (Muhammad V) em missão diplomática à corte de Pedro, filho de Afonso, e rei de Castela. (...) Chegando a Sevilha, onde pude contemplar inúmeros vestígios deixados pelos meus poderosos antepassados, fui apresentado ao rei cristão que me recebeu com as maiores honras. (...) O rei Pedro quis então me guardar perto de si; ofereceu-me devolver a herança dos meus avós em Sevilha, que ao tempo se achava nas mãos de alguns altos dignitários de seu Império. (...) Quando de minha despedida, deu-me cavalo e provisões, e confiou-me uma excelente mula, equipada com sela e freio guarnecido de ouro, que devia entregar ao sultão de Granada59.

Obtido o sucesso nessa negociação, Ibn Khaldun passou a ser professor da mesquita de Bujaya (norte de África), mas a instabilidade era constante no Magreb Medieval e ele teve de deixar de lecionar para servir ao senhor de Tlemcen, o sultão Abu Hammu. Nessa posição,

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Ibn Khaldun era o responsável por registrar os impostos do reino de Tlemcen (uma das funções de secretário de parafo), cobrar dos berberes o pagamento efetivo dos impostos devidos ao sultão e era ainda o hajib (aquele que mantém a harmonia dentro da sociedade islâmica). Essa atitude militar no Magreb perturbaria tanto Ibn Khaldun que ele se retirou para um ribat (parte de uma mesquita ou madrasa que servia de recolhimento para a meditação religiosa e erudita muçulmana). Tempos depois, encontramos Ibn Khaldun em Biskra como funcionário do jovem sultão de Fez e soberano do Marrocos, Abd-al-Aziz. Em 1372, Khaldun se refugia da perseguição de seu antigo protetor, o sultão Abu Hammu, que não admitia a sua saída do governo de Tlemcen. Em 1374, o sultão Abu’l-Abbas se torna soberano da dinastia Marínida e passou o controle da cidade de Fez para o emir Abd’ ur-Rahman. Então, nesse momento, Ibn Khaldun passa para território hispano:

Foi somente no mês de Rabia de 776 (agosto-setembro de 1374) que desembarquei neste local, em que tinha firmado o propósito de fixar residência e de passar o resto de meus dias no retiro e no estudo. Chegando a Granada, apresentei-me ao sultão Ibn Al-Ahmar, que me acolheu com sua bondade peculiar60.

Ibn Khaldun, novamente no norte de África, voltou a lecionar em Tlemcen, mas encontrou-se mergulhado em conflitos com berberes da região e afirma que era o momento de pôr sob a pena a Muqaddimah e grande parte de sua Autobiografia:

(...) Estabeleci-me então em Calat Ibn Salama, castelo fortificado no país de Banu Toujin e que os Zauawida desfrutavam como icta’, doado pelo sultão. Fiquei ali durante quatro anos, completamente livre de qualquer preocupação, longe das agitações da política, e foi ali que comecei a composição de meu trabalho sobre a História Universal. Neste retiro acabei os Prolegômenos, obra cujo plano é completamente original, e para cuja execução tinha tomado o melhor de uma massa enorme de material e de informações. (...) Durante minha longa permanência neste castelo tinha completamente esquecido o reino do Magrib e o de Tlemcen para me ocupar unicamente da presente obra. Quando passei à História dos Árabes, dos Berberes e dos Zanatas, depois de ter terminado os Prolegômenos, desejava grandemente consultar muitos livros e coletâneas que se encontravam somente nas grandes cidades; tinha que corrigir e pôr a limpo um trabalho quase ditado de memória; (...)61.

Logo após optou por uma peregrinação a Meca, mas acabou por se encontrar em 1383 no Cairo. E foi nesse local que Ibn Khaldun angariou, sob a influência do sultão egípcio Malik Al-Daher, o posto de professor de jurisprudência malikita na Mesquita de Al-Azhar, ocupou cadeira no Colégio d’Alcamha e um ano após tornou-se Grande Cádi do Rito Malikita do Cairo. E foi através desse último cargo de cádi (juiz) que Ibn Khaldun teve uma atitude

60 KHALDUN, Ibn. Autobiografia. In: Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op. cit., p.530. 61 Idem, p. 532-533.

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obstinada contra a corrupção no Cairo realizada pelos adel (testemunhos que tinham as funções de assessor do cádi e de escrivão), contra a fraqueza dos hakam (oficiais encarregados de fiscalizar a administração judiciária e de fazer valer as sentenças proferidas pelo cádi) e do modo de proceder pernicioso dos muftis (legistas consultores) do rito malikita. Nessa ocasião Ibn Khaldun perde toda a sua família num naufrágio e parte definitivamente em direção a Meca em 1387 com a solidariedade do sultão egípcio. De seu retorno destacamos as seguintes palavras de Ibn Khaldun em sua Autobiografia: “Desde que retornei da peregrinação, até este momento, ou seja, até ao começo de 797 (fim de outubro de 1394), continuei a viver no retiro, gozando boa saúde e unicamente ocupado em estudar e lecionar. (...)”62.

A parte final da Autobiografia é completada por outros três historiadores: Makrizi (1364-1442), Ibn Chohba (c. século XIV) e Ibn Arabchah (c. século XIV). Esses relatam um mesmo encontro realizado em 1400: o de Ibn Khaldun com o líder mongol Tamerlão em Damasco. Em 1401, Ibn Khaldun retorna ao Cairo e foi renomeado Grande Cádi, mas foi substituído diversas vezes, quando retomou esse cargo em 1406, morreu em 25 de março do referido ano.

Dessa maneira, produzimos o gráfico abaixo63, em que podemos observar o tempo em que o historiador muçulmano Ibn Khaldun permaneceu em determinadas cidades, conforme a Autobiografia: Túnis (35%), Cairo (31%), Fez (8%), Tlemcem (7%), Calat Ibn Salama (5%), Sevilha (4%), Al-Batna (4%), Ceuta (1%), Damasco (1%), Bugia (1%) e localidades pertencentes a caminhos para se chegar a determinada região, locais em que o historiador pouco tempo ficou e a região de peregrinação a Meca, esses somados denominamos “outros”, (3%). A importância desse levantamento nos conduziu a uma visualização da mobilidade de Ibn Khaldun e sua transição permitida entre diversas esferas de poder no medievo.

62 KHALDUN, Ibn. Autobiografia. In: Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). op. cit., p.545-546. 63 Gráfico produzido no processo da pesquisa de Iniciação Científica (2007-2009).

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Permanência territorial de Ibn Khaldun ao longo da descrição da "Autobiografia" 35% 31% 8% 7% 5% 4% 4% 1% 1% 1% 3% Tunis Cairo Fez Tlemcem Calat Ibn Salama Sevilha Al-Batna Ceuta Damasco Bugia Outros

FIGURA 1: Gráfico percentual da presença de Ibn Khaldun em algumas cidades medievais.

Ibn Khaldun como um historiador muçulmano da Baixa Idade Média permite uma visão complementar das ações de Reconquista na Península Ibérica. Uma personalidade erudita como a dele demonstra uma movimentação política e territorial que desmistifica a imobilidade no medievo. Por isso construímos um mapa64 de sua movimentação, partindo de uma série de estudos detalhados acerca de cada cidade em que o historiador muçulmano viveu, perpassou simplesmente ou aquelas em que exerceu por um determinado período um poder local definido. Ibn Khaldun era levado aos lugares muitas vezes por determinações políticas de sultões, que de alguma maneira desejavam sua presença na corte. Dessa maneira, podemos exemplificar a movimentação de Khaldun pelo trecho de fonte abaixo:

Chegando a Ceuta no começo de 764 (outubro 1362), recebi a acolhida mais fervorosa do cherif Abu’l-Abbas Ahmad Al-Huçaini, personagem principal da cidade e aliado por matrimônio com a família dos Azif. (...) Desembarcamos em Gibraltar (Jabal Al-Fath), que pertencia na ocasião ao soberano dos Merinidas; escrevi a Ibn Al-Ahmar, sultão de Granada, e a seu vizir Ibn Al-Khatib, informando-os do que me tinha acontecido, e parti em seguida para Granada65.

Esse trecho da fonte nos remete a passagem de Ibn Khaldun do norte da África a Granada para resolver o já referido acordo político entre Muhammad V, sultão de Granada e o rei cristão Pedro, o Cruel. Assim, os detalhes que Ibn Khaldun apresenta em suas viagens são

64 Mapa produzido ao longo da pesquisa de Iniciação Científica (2007-2009) e apresentado no 16º e 17º EVINCI.

A base da figura do referido mapa pertence ao site www.google.com/linkmaps. A construção feita dos caminhos de Ibn Khaldun pertence à minha autoria e a elaboração gráfica a Daniel A. A. Orta.

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importantes para tentarmos nos aproximar da sua movimentação, esta que pertence ao mundo dos viajantes árabes no medievo.

FIGURA 2: Mapa da trajetória de Ibn Khaldun pelos locais onde exerceu os ofícios de espada e de pena (erudito).

A construção do mapa também tornou possível um olhar mais abrangente sobre o autor, um agente da história, e o mundo em que viveu, marcado por muitos conflitos de caráter político. Dito isso, é importante lembrar que Khaldun também exercia dessa maneira o ofício próximo ao que hoje entendemos como o de “diplomata”.

Para melhor visualizarmos o mapa, citaremos em forma de síntese, os locais já anteriormente referenciados por onde Ibn Khaldun perpassou em sua trajetória de vida ao lado dos cargos que ele assumiu. Em Túnis (1332) nasce Ibn Khaldun. Na adolescência foi escrivão do parafo real do sultão Abu Ishac. O cargo de escrivão do parafo real consistia em ter controle da administração do sultão, tal posição somente era concedida àqueles que estudavam as lições islâmicas com afinco. Em 1352, em Tebessa, Khaldun fazia parte do exército Hafsida seguindo os sábios marínidas pelo Norte da África, estes últimos sob liderança do sultão Abu Inan. O exército Hafsida perdeu a batalha contra os Marínidas e Khaldun teve que se refugiar em Tebessa e depois em Gafsa. Nesse mesmo ano, Khaldun refugiado em Gafsa, passou posteriormente para Biskra. Depois, em Batna, Khaldun encontrou-se com um oficial do exército marinida chamado Ibn Abi Amr. Este oficial levou Khaldun para Bugia (1353) e depois conquistou tal cidade. Em Fez (1354), Ibn Khaldun foi convidado pelo sultão Abu Inan para ser seu secretário do parafo (Khaldun não gostou dessa posição porque não honrava sua descendência, ou seja, seus antepassados nunca ocuparam tal cargo) e integrante das reuniões dos sábios. Ainda em Fez, Khaldun em 1355-1356, foi

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