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No contexto muçulmano, como aponta Albert Hourani, o modelo de Casa da Cultura, fundada pela dinastia fatímida no século XI no Cairo, configurava-se através de bibliotecas, muitas vezes anexas às mesquitas e madrasas (escolas), formando centros para a cópia de manuscritos. Segundo Hourani, com o tempo, os livros passaram a serem doados como waqf (dotações religiosas) e a produção dos livros era conduzida desta maneira:

Grande parte da produção dos que liam e escreviam livros pertencia ao que o estudioso moderno chamou de ‘literatura de referência’, dicionários, comentários sobre literatura, manuais de prática administrativa, sobretudo historiografia e geografia. Escrever história era uma característica de todas as sociedades muçulmanas letradas, e o que se escrevia parece ter sido amplamente lido. (...) Para uma parte do público leitor, eram de importância especial: para os soberanos e os que os serviam, a história oferecia não apenas um registro das glórias e feitos de uma dinastia, mas também uma coletânea de exemplos com os quais se podiam aprender lições de estadismo69.

Na Península Ibérica, no caso especifico de Al-Andaluz, podemos aceitar a observação de Hourani, quando este nos apresenta que durante a fragmentação política da unidade do Califado, as diversas cortes desenvolveram tradições de escrita da história local:

Nessas obras, podia haver um resumo de história universal, extraído dos grandes autores do período abácida, mas era seguido por uma crônica de acontecimentos locais ou de uma dinastia, registrados ano a ano. Assim, na Síria, Ibn al-Athir (1163-1233) situou os acontecimentos de seu tempo e lugar no contexto de uma história universal. No Egito, histórias locais escritas por al-Maqrisi (m. 1442) e Ibn Iyas (m.1524) cobriram o período dos mamelucos. No Magreb, a história das dinastias árabes e berberes escrita por Ibn Khaldun foi precedida por seu famoso Muqaddima (Prolegômenos), em que se apresentam os princípios e interpretação do texto responsável de história70. (meu grifo).

A elite intelectual islâmica, de acordo com Hourani, muitas vezes desenvolvia aptidões diferenciadas dos sábios e estudantes das madrasas. Isso nos aproxima da realidade

69 HOURANI, Albert. Uma História dos povos árabes. op. cit.,p. 268. 70 Idem, p. 269.

proposta pela Autobiografia de Ibn Khaldun, quando o historiador medieval cumpre simultaneamente os cargos nas cortes por onde passou e também estuda de maneira autônoma. Hourani indica essa concomitância em busca da sabedoria:

[...] Em particular, as famílias que forneciam secretários, contadores e doutores aos soberanos tinham uma atração, devido à natureza de seu trabalho, pelo pensamento relutante da observação e dedução lógica de princípios racionais. As especulações dos filósofos eram encaradas com desconfiança por algumas escolas de lei religiosa e alguns soberanos, mas outras maneiras de usar a razão para elucidar a natureza das coisas despertavam menos suspeita e tinham usos práticos71.

É nessa situação última que se encontra Ibn Khaldun e que o torna ponto essencial foi abranger na Muqaddimah e na Autobiografia uma especificidade na análise da história e do movimento sócio-político do Oriente, do Magreb Medieval e de Al-Andaluz. A escrita khalduniana é um ponto de apoio e forma complementar de se entender o ambiente tardo- medieval visto por um muçulmano. Vale a pena lembrar, que nesse período da Idade Média no Ocidente, verificamos um florescer de escritores que almejam a solidão para se entregar à erudição72.

O olhar de Ibn Khaldun na parte inicial de sua obra Muqaddimah (da qual faz parte a Autobiografia) legitima a importância do historiador em seu tempo, pois relata seu próprio contato com documentos que preservam a memória. Assim aos historiadores é indicada a função erudita de se aprofundar nos resíduos do que está no passado:

Nesses tempos remotos, os cronistas destinavam seus escritos ao uso da família reinante. Os jovens príncipes empenhavam-se em conhecer a história de seus antepassados e seus feitos, para lhes trilharem os passos e se guiarem pelo seu exemplo; mas, sobretudo, sentiam a necessidade de saber como e onde escolher os personagens que deviam tomar os grandes encargos e de confiar a alta administração e outros empregos aos descendentes de antigos protegidos da casa real e seus servidores. (...) Os historiadores viam-se, pois, na necessidade de entrarem nestes detalhes pormenorizados73.

Já através do relato cronológico intrínseco à Autobiografia, Khaldun expressa sua ligação com seus antepassados e uma certa independência para com eles, pois para nosso historiador é necessário cultivar ao longo de sua carreira de homem político e militar, oriunda da tradição de sua família, a pena em mãos. Essa idéia pode ser verificada seguindo os passos da carreira de Khaldun, que mesmo atrelado à sua atividade profissional construiu por sua

71 HOURANI, Albert. Uma História dos povos árabes. op. cit., p.270. 72

DUBY, Georges; ARIES, Philippe (Dir.) A emergência do indivíduo. In: História da Vida Privada, Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 526.

73 KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I). Tradução integral e direta do árabe por José

conta as bases de uma filosofia da história na Muqaddimah e ampliou em sua Autobiografia um campo para refletir sobre suas decisões.

O sacrifício de Ibn Khaldun ao emprego das armas e da convivência política serviu de mola propulsora para que ele mantivesse uma incessante conquista por meio da ação de sua pena. A leitura da Autobiografia de Ibn Khaldun é legitimadora da posição de Khaldun como homem público pertencente às cortes, por onde exerceu funções ao lado de diversos sultões em seus comandos e desmandos políticos. O sucesso de Khaldun como “diplomata” e cortesão está revelado por toda a Autobiografia. Esse interesse de Khaldun pela erudição talvez se deva a uma autonomia de seu caráter, principalmente quando tenta se afastar da maneira que sua família vinha se conduzindo ao lado do poder. No entanto se utilizou dessa tradição, pois não conseguiu sobreviver ao lado do poder sem ela e a manteve para fornecer o apoio necessário para os seus estudos. Assim, Khaldun procurou sempre estar ligado a governos que passassem pela fase de tranqüilidade em que ele poderia encontrar o momento para que o cargo da pena triunfasse. Entretanto, eram poucas as oportunidades de tranqüilidade, assim Khaldun buscou o exílio para se dedicar ao conhecimento. Devemos, acima de tudo, compreender Ibn Khaldun na sua especificidade, atentando para o que ele conta e como o faz, buscando o que sua visão nos revela dos acontecimentos que ele vivenciou.

Os fatos relatados por Ibn Khaldun demonstram também que o estilo de escrita da Autobiografia de Ibn Khaldun pertence à uma forma privada e que o objetivo do historiador foi identificar, por meio da escrita do eu, as reações de um homem em seu próprio contexto. Esse resgate da memória produz também a própria História74 . Khaldun se coloca no centro do ato discursivo para configurar uma identidade própria: um erudito que possui influências políticas, culturais, econômicas e sociais próprias do “ombreamento” – dentro do “complexo mediterrânico”- entre a Península Ibérica e o norte de África durante os séculos XIV e XV.

74 RODRIGUES, Maria Aparecida. Autobiografias: as formas de escrita do eu. In: Fragmentos de Cultura,

VI. CONCLUSÃO

Como resultado do nosso estudo, que se deu por meio das pesquisas de Iniciação Científica75, apresentamos a contribuição da erudição proveniente de Al-Andaluz com a qual Ibn Khaldun entrou em contato através de seus ilustres mestres, sua ligação com a região por meio de seus antepassados e o fato da relação intrínseca entre a Península Ibérica e o norte de África. Escrever a história nessa época tardo-medieval fazia parte das sociedades muçulmanas letradas, e nesse estudo demonstramos que elas fomentavam eruditos, como Ibn Khaldun. Esse historiador foi o representante de um tempo de cultura miscigenada, no qual Al-Andaluz seria o local representativo dessa esfera de sabedoria e poder. Para Ibn Khaldun a concepção de História era:

A História é um dos ramos dos conhecimentos humanos que se transmitem de geração a geração. (Tesouro de ensinamentos), ela atrai estudantes e estudiosos dos países mais longínquos que acodem pressurosos para ouvirem-lhe as lições. (Objeto de estudo e de meditação dos sábios), a História é ouvida com avidez pelo vulgo (que nela acha deleite e passatempo) granjeando a História ao mesmo tempo a estima dos reis e dos grandes, o apreço dos homens de estudos e a atenção dos ignorantes76.

Apontamos que o letrado Ibn Khaldun pertenceu à esfera das cortes muçulmanas medievais, nas quais ocupou cargos específicos ao lado do poder, posições essas legitimadas pela sua própria erudição. Dessa forma, Ibn Khaldun conquistou notoriedade em sua época por ser um sábio que depois de aprender as lições obrigatórias se dedicou a desenvolver seus estudos de forma autônoma. A família dos Khaldun era fornecedora de elementos para as devidas cortes tanto em Al-Andaluz quanto em norte de África, mas o que tornou Ibn Khaldun singular foi sua ação de se identificar como historiador e também como homem em defesa do que se colocava sob a pena.

O sacrifício de Ibn Khaldun também como um homem das armas e político serviu de inspiração para que ele pudesse se impor perante o poder das cortes como um homem legítimo da pena. Esse paradigma fornecido pela figura histórica de Ibn Khaldun justifica seu afastamento da tradição militar de sua família e demonstra em sua vida pública de “diplomata” um contraste com sua vida privada de um estudioso medieval.

75 Pesquisas de Iniciação Científica intituladas: “Ibn Khaldun (1332-1406) e o olhar muçulmano sobre a

Península Ibérica” (2007-2008); “A Autobiografia de Ibn Khaldun (1332-1406): a erudição proveniente da Península Ibérica” (2008-2009) e “Ibn Khaldun (1332-1406) e a burocracia islâmica entre Al-Andaluz e o Magreb” (2009).

A Autobiografia de Ibn Khaldun tem como objetivo revelar o escrito de um historiador imerso em sua realidade particular. A fonte nos preparou para um aprofundamento do gênero narrativo histórico autobiográfico na Idade Média, nos recepcionou para o contexto da Reconquista cristã na Península Ibérica percebida por outro foco, permitiu o estudo do contexto das dinastias muçulmanas em Al-Andaluz e dos cargos políticos do Império islâmico, além de fornecer indícios primordiais para se examinar os estudos desenvolvidos nas madrasas (escolas) andaluzas ao lado do prolongamento das idéias da falsafa provenientes do Islã Clássico na Idade Média.

Para se compreender a postura assumida por Ibn Khaldun como erudito e propagador efetivo de uma cultura híbrida originária de Al-Andaluz nos baseamos na produção de suas fontes e no vestígio efetivo que elas nos apresentaram. Ibn Khaldun se propôs a ser um erudito que se dedicou à ciência histórica tendo por base suas observações sobre a sociedade de seu tempo.

As lições apreendidas por Ibn Khaldun revelam um esforço da própria escola de saber islâmica em revelar um modelo, ou seja, esse paradigma seria o próprio Khaldun. Ele produz na terceira parte de sua obra Muqaddimah os meios para se obter o saber islâmico e nos deixa um esquema de ensino, muitas vezes utilizado até os dias de hoje. Como fonte comprobatória dessa intenção de Ibn Khaldun temos seu relato na sua própria Autobiografia, meio de que ele dispôs para registrar sua posição de renomado sábio. Khaldun detalhou na Autobiografia sua educação, listando os mestres e lições que aprendeu. Ele decorou o Alcorão, estudou seus comentários, alçando até a posição de Cádi dentro da esfera de direito islâmico, se dedicava à literatura árabe e criou um estilo próprio de escrever em verso e prosa. Além disso, ainda criou uma visão única da teoria da história.

Nosso estudo aqui apresentado entende, então, que os indícios sobre a vida de Khaldun podem comprovar a intenção deste em se apresentar como sábio de sua época, mas não simplesmente, os sultões deveriam enxergá-lo também como tal e efetivamente o fizeram, sendo um cabedal a ser utilizado como base de seus poderes.

Portanto, nosso estudo procurou evidenciar a formação do historiador Ibn Khaldun e sua conexão com a política de sua época por meio dos distintos cargos que assumiu, assim demonstrando a sua intensa movimentação em cortes islâmicas. A Autobiografia, estilo de exceção em sua época de produção, nos indica que Khaldun talvez seguisse um modelo de escrita de tradição andaluza. Assim, para se analisar todo o panorama da vida de Ibn Khaldun traçamos este paralelo entre sua vida pública e privada, e identificamos elementos de complementação. Esse estudo propicia um caminho para se compreender as fontes medievais

do Oriente em sua própria particularidade e com o objetivo de abranger uma nova concepção de História. A busca de critérios investigativos foi utilizada para se demonstrar cientificamente que os documentos em estudo são válidos para nos aprofundar ainda mais em conceitos da especificidade da história pertencente à Idade Média, com o foco no grupo dos muçulmanos e suas relações de poder a partir dos escritos de Ibn Khaldun. O exame detido das fontes produzidas por Ibn Khaldun apresenta inúmeros caminhos para as ciências humanas empreenderem interpretações desse contexto. Isso corroborou na divulgação acadêmica de uma visão inovadora e complementar de estudos sobre o já citado período, de forma a contribuir para o desenvolvimento e o enriquecer da ciência história em território brasileiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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