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Nº 3. Cadernos do IDN. Instituto da Defesa Nacional. II Série. Julho de Conhecer o Islão. Agostinho Paiva da Cunha

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Cadernos do IDN

Julho de 2009

Nº 3

II Série

Agostinho Paiva da Cunha

Conhecer o Islão

Nos dias de hoje somos constantemente bombardeados

com notícias relevantes referentes ao mundo islâmico, as

quais comportam uma miríade de termos e conceitos que

escapam na sua quase totalidade à maioria dos leitores ou

dos ouvintes. Mais ainda, esta falta de um conhecimento

mais aprofundado sobre certas questões que nos são

alheias tem originado muitas vezes, no mundo ocidental,

percepções e juízos de valor pouco correctos sobre outras

civilizações, o que por sua vez tem levado a mal entendidos

e a crispações que poderiam facilmente ser obviados com

um olhar mais atento sobre as realidades em questão...

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Os Cadernos do IDN II Série resultam de eventos promovidos pelo Instituto da Defesa Nacional, contribuindo para o debate sobre questões nacionais e internacionais.

As perspectivas são da responsabilidade dos autores não reflectindo necessariamente uma posição institucional do Instituto da Defesa Nacional sobre as mesmas.

Director

António Telo

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© Instituto da Defesa Nacional, 2009 Todos os direitos reservados.

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II Série

Cadernos do IDN

Nº 3

Living together in peace has proved tragically difficult. We must try harder to bring shared values

to life. With knowledge and leadership, we can live up to the best of all our traditions, and ensure human dignity for all. “1

BAN KI-MOON

“Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso”

2

Nos dias de hoje somos constantemente bombardeados com notícias relevantes referentes ao mundo islâmico, as quais comportam uma miríade de termos e conceitos que escapam na sua quase totalidade à maioria dos leitores ou dos ouvintes. Mais ainda, esta falta de um conhecimento mais aprofundado sobre certas questões que nos são alheias tem originado muitas vezes, no mundo ocidental, percepções e juízos de valor pouco correctos sobre outras civilizações, o que por sua vez tem levado a mal entendidos e a crispações que poderiam facilmente ser obviados com um olhar mais atento sobre as realidades em questão.

O Islão actual, ao contrário das culturas ocidentais, encontra-se arreigado nas suas tradições próprias e mantém como característica intrínseca a não separação da vida pública e privada do cidadão, ou melhor dizendo, do crente muçulmano, continuando a abraçar um conceito de sociedade que é essencialmente teocrático, onde não existe uma separação clara entre a religião e o direito. O Islão, visto pelos crentes muçulmanos simultaneamente como um modo de vida e uma religião, inclui instruções que se relacionam com todos os aspectos da actividade humana, ideal que inspira o próprio Direito islâmico. Assim, na sociedade islâmica, o termo Direito encontra-se imbuído de um significado muito mais amplo do que o utilizado pelo ocidente moderno e secularizado, pois engloba imperativos legais e morais, contrapondo-se à natural distinção ocidental entre o temporal e o espiritual.

Esta diferente forma de ver o mundo não é contudo motivo para a legitimação de um xenofobismo ocidental crescente, nem representa, na sua essência, uma tendência para o extremismo violento, não sendo sinónimo de radicalismo como muitas vezes é percebido pelas culturas ocidentais que demasiadas vezes o exploram para satisfação de interesses próprios, sejam eles políticos, estratégicos ou de controlo de recursos.

Considerando ser fundamental um conhecimento mínimo dos valores perfilhados por cada interveniente na cena internacional e, em linha com a perspectiva das democracias liberais, a aceitação das respectivas diferenças, decidi empreender este trabalho não só como uma forma de ajudar o leitor a arrumar as ideias, mas também como mais um contributo para o bom entendimento entre os povos, caminho que em minha opinião considero ser o mais adequado para a verdadeira manutenção da paz internacional. Através de uma explicação prática realço os motivos que originam e sustentam algumas das posições e dos entendimentos do Islão, procurando desfazer preconceitos e desmistificar as crenças que usualmente envolvem o Islamismo e que, quase invariavelmente, implicam também o seu relacionamento com as actividades radicais violentas.

1 Discurso do Secretário-geral da ONU à Assembleia-geral durante o encontro “High-Level Meeting on Culture of Peace”, em 12 de Novembro de 2008. 2 Frase com que começam todos os capítulos do Alcorão.

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Conhecer o Islão

Nº 3

Não reclamando o presente trabalho ser uma narrativa abrangente ou um estudo aprofundado sobre o Islamismo, mais do que uma história detalhada ou um manual científico é uma reflexão temática que contem um resumo de termos e conceitos coligidos sobre esta religião, somente uma caracterização geral e uma sistematização da nebulosa das suas interpretações. Pretende-se desta forma habilitar o leitor, em apenas meia dúzia de páginas, com o conhecimento elementar dos aspectos conceptuais mais relevantes, os principais marcos e ritos, e os mais importantes movimentos e seitas existentes no Islão, enquadrando-os no ambiente onde se situam e relacionando-os com o actual sistema internacional.

Sublinha-se ainda que o presente ensaio constitui uma tentativa de análise imparcial e desapaixonada, um trabalho interpretativo com a intenção de objectivar os conceitos numa perspectiva prática de compreensão dos seus aspectos, que de alguma forma contradiz teorias mais dramáticas como as do “Choque das Civilizações”, de Samuel P. Huntington.

Inclui-se, adicionalmente, um périplo pelo mundo islâmico, com uma descrição sumária da situação vivida em alguns dos países onde a presença do Islão é significativa, essencialmente os que de alguma forma têm evidenciado movimentos ou actividades fundamentalistas, pelas repercussões que podem ter no contexto da segurança regional e internacional.

Termino com uma breve explanação sobre as classificações geográficas mais comuns ligadas ao Islamismo e aos “orientes”, e com um glossário de termos do Islão, como instrumentos para uma melhor orientação do leitor menos familiarizado com estas designações específicas.

Espero, assim, que o presente manual seja um útil guia prático e um contributo para o esclarecimento do leitor comum, que possibilite a introdução e o melhor entendimento básico sobre o Islão e, ainda que de forma mais ou menos abreviada, permita aguçar a curiosidade do leitor para um aprofundamento posterior sobre a matéria.

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II Série

Cadernos do IDN

Nº 3

Conhecer o Islão

1. Principais termos do Islão

O Islão ou islamismo é uma religião monoteísta que surgiu no século VII na Península Arábica, baseada nos ensinamentos religiosos do profeta Maomé3

e numa escritura sagrada, o Alcorão. O monoteísmo é a ideia central do Islão, que advoga a crença num Deus único e omnipotente (Alá). Resumidamente, para o Islão, Deus criou o Universo e compete-lhe também mantê-lo. Aliás, Deus desempenha quatro funções fundamentais no Universo e na humanidade: criação, sustentação, orientação e julgamento, que se conclui com o dia do Juízo Final, no qual a humanidade será reunida e todos os indivíduos serão julgados de acordo com seus actos. A natureza, por sua vez, está subordinada ao homem, que a pode explorar e dela beneficiar. O objectivo humano último consiste porém em existir para o “serviço de Deus”.

O termo Islão (em árabe al-islām) deriva da quarta forma verbal da raiz slm, aslama, e significa "submissão" (a Deus), ideia que inspira o fundamento desta religião – o crente (muçulmano) aceita render-se ou submeter-se à vontade de Alá.

A palavra Alá (em árabe Allāh ou Allah: “Deus”) designa o único e verdadeiro Deus do Islão. A palavra Allah é uma contracção de Al-ilāh, ou seja, “o Deus”, sendo a sua tradução mais correcta de “Deus”, com maiúsculas, dado que se refere

ao Deus único. A palavra “deus” com minúsculas, que se refere a qualquer outra divindade, é ilāh (no plural ilāhāt).4

O termo Muçulmano deriva da palavra muslim (pl. muslimún), particípio activo do verbo aslama, designando "aquele que se submete" ou, textualmente, “submisso”. O muçulmano submete-se ao Corão (ou Alcorão) e à palavra de Alá, ou seja, à vontade de Deus. Há ainda quem defenda5

que sendo Muslim uma derivação do verbo aslama, palavra especializada no árabe moderno com o sentido de “se tornar muçulmano”, ou “converter-se ao Islamismo”, de facto, a verdadeira etimologia da raiz implicaria uma diferença subtil: a raiz slm tem um significado primordial de “ausência de contestação”, daí o sentido bem conhecido da palavra salâm - “paz”, “saúde” - e, no hebraico (língua próxima) - shalom; assim, o verbo derivado aslama

deveria significar “pôr-se de paz com” ou “fazer a paz”, em vez de meramente submisso. Em conformidade, num sentido mais abrangente, o muçulmano seria, portanto, aquele que se põe de paz com Deus e que coloca a existência de Deus e o seu poder acima de tudo.

Em textos mais antigos os muçulmanos podem ser também designados como "maometanos", termo que tem vindo a cair em desuso porque implica, incorrectamente, que os muçulmanos adoram Maomé, o que torna este termo ofensivo para muitos. Durante a Idade Média, nas lendas e narrativas populares cristãs, os muçulmanos podiam igualmente ser designados como “sarracenos”, especialmente os da Síria e da Palestina, ou ainda por “mouros”, embora este último termo designasse mais concretamente os muçulmanos berberes, naturais do Magreb, que se encontravam na Península Ibérica.

O Alcorão ou Corão (em árabe Qur'an) significa literalmente “recitação” ou “livro” e contém a palavra de Alá. Os muçulmanos acreditam que Maomé recebeu estes ensinamentos por intermédio do anjo Gabriel (Jibreel), o arcanjo da revelação, através de revelações que ocorreram entre 610 e 632 d.C. Os muçulmanos acreditam assim que Deus, e não o Profeta, é o autor destas revelações e, por isso, o Alcorão é infalível. Apesar desta diferenciação, Maomé é para os muçulmanos a encarnação da perfeição de Deus no homem e um exemplo a seguir6

. Maomé recitou depois as revelações aos seus companheiros, que as memorizaram e se diz terem escrito em materiais que tinham na altura à disposição (folhas de palmeira, omoplatas de camelo, pedras, etc.).De acordo com a tradição islâmica, Maomé era analfabeto, pelo que as revelações a Maomé só posteriormente foram reunidas pelos seus companheiros e seguidores em forma de livro, o qual se estima ter sido composto entre 650 e 656 d.C., durante o califado de Otman. 7

O Alcorão descreve as origens do Universo, o Homem e as suas relações com o Criador. Define ainda leis para a sociedade, moral, economia e muitos outros temas, tendo sido escrito com o intuito de ser recitado e memorizado. Para os muçulmanos o Alcorão é a palavra sagrada e imutável de Deus que fornece as respostas acerca das suas necessidades humanas diárias, tanto espirituais como materiais.

3Abū al-Qāsim Muhammad (Maomé), considerado o último profeta de Deus e fundador do Islão. Nasceu na cidade de Meca, no ano 570 d.C. e pertencia a um ramo

pobre de uma das mais notáveis famílias do seu país, a tribo beduína Coraixita (Quraysh; “ tubarão”), dos Banu Hāshim, pertencente ao clã Ashemita (ou Haxemita).

4Allah” - Encyclopaedia Britannica, 2007.

5 Segundo Paulo Mendes Pinto, em “Re-ligare”, Religião, Sociedade e Cultura - blog dos Docentes e Investigadores da área de Ciência das Religiões da Universidade

Lusófona (Lisboa).

6 Segundo transcrição de David Bukey no seu livro “From Muhammad to Bin Landen” (p.13), o próprio Maomé encorajaria esta tendência dizendo “nenhum de vocês

terá fé até me amar mais que a sua fé, os seus filhos e toda a humanidade”.

7Hadith collections”, Compendium of Muslim Texts - University of Southern California.

Agostinho Paiva da Cunha Coronel

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Conhecer o Islão

Nº 3

O Alcorão está estruturado em 114 capítulos chamados suras e cada sura está subdividida em versículos denominados ayat8

. Os capítulos possuem tamanho desigual (o menor possui apenas 3 versículos e o mais longo 286 versículos) e estão dispostos aproximadamente de acordo com o seu tamanho e não de acordo com a ordem cronológica da sua revelação. Considera-se que 92 capítulos foram revelados ao Profeta em Meca e 22 em Medina (Yatrib), cidade onde o Profeta se refugiou quando perseguido e onde viria a falecer no ano 632 d.C., com 62 anos9

.

2. Os pilares do Islão

O Islão ensina seis crenças principais:

A crença em Alá, único Deus existente;

A crença nos Anjos10

, seres criados por Alá;

A crença nos Livros Sagrados, entre os quais se encontram a Tora, os Salmos e o Evangelho11. O Alcorão é o último e o

mais completo livro sagrado, constituindo a colectânea dos ensinamentos revelados por Alá ao profeta Maomé;

A crença em vários profetas enviados à humanidade12

, dos quais Maomé é o último;

A crença no dia do Julgamento Final, no qual as acções de cada pessoa serão avaliadas;

A crença na predestinação: Alá tudo sabe e possui o poder de decidir sobre cada pessoa.

A mensagem central do Islão caracteriza-se pela sua simplicidade. Para atingir a salvação basta acreditar num único Deus (Alá), rezar cinco vezes por dia, submeter-se ao jejum anual no mês do Ramadão, pagar dádivas rituais e efectuar uma vez na vida uma peregrinação à cidade de Meca.

8Ayah (pl. Ayat) – este termo designa literalmente “sinal” ou “milagre”, mas na sua utilização mais comum esta palavra refere-se a cada um dos 6.236 versículos do

Alcorão.

9 Em “Jesus e Maomé, Profetas de Deus!”, Rui Palmela, novaera-alvorecer.net.

10 Os Anjos foram criados por Alá a partir da luz e desempenham diversos papéis, entre os quais o anúncio da revelação divina aos profetas; protegem e vigiam ainda

os seres humanos, registando todas as suas acções.

11 A revelação dada a Abraão perdeu-se (o livro de Ibrahim), a lei dada a Moisés foi a Tora (Taura), a David foram dados os Salmos (o Zabûr) e a Jesus o Evangelho (o

Injil).

12 Os muçulmanos acreditam que Deus usou os profetas para revelar as escrituras aos homens. Acreditam ainda em todos os profetas cristãos e judeus, incluindo

Adão, Noé, Abraão, Ismael, Isaac, Jacob, José, Job, Salomão, Elias, João Batista e Jesus.

Kaaba em Meca

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II Série

Cadernos do IDN

Nº 3

Os 5 pilares do Islão (arkan al-Islam) são pois os 5 deveres básicos de cada muçulmano:

1º - A recitação e aceitação do credo (em árabe Chahada ou Shahada: o testemunho ou afirmação de fé) - A profissão de fé consiste numa frase que deve ser dita com a máxima sinceridade, através da qual cada muçulmano atesta que não há outro deus senão Alá e Maomé é seu servo e mensageiro. De acordo com a maioria das escolas islâmicas, para se converter ao Islão é necessário proclamar três vezes a Shahada perante duas testemunhas: “Achadu ala ilaha ila Allah. Achadu ana

Mohammad Rassululah” – “Testemunho que não há outra divindade senão Alá. Testemunho que Maomé é seu profeta

mensageiro”. Os muçulmanos xiitas têm por costume acrescentar ainda "e Ali ibn Abi Talib é amigo de Deus"13

. Esta frase também é dita quando se chama à oração (em árabe azan ou esan).

2º - Orar cinco vezes ao longo do dia (em árabe Salat ou Salah) - A palavra salat significa "santificar". Assim, o segundo pilar do Islão consiste na santificação e glorificação de Deus através da prática da oração, que deve ser efectuada cinco vezes por dia, em períodos concretos. Esses períodos não correspondem a horas, mas a etapas do curso do sol. Durante a oração os muçulmanos olham em direcção à Caaba14, em Meca. Antes de cada oração comunitária é feita uma chamada pública pelo

muezim, a partir do minarete da mesquita.

O dia sagrado dos Muçulmanos é a sexta-feira (jummâ) - o Profeta Adão foi enviado ao mundo numa sexta-feira, o Profeta Moisés atravessou o rio Nilo numa sexta-feira, a primeira revelação do Corão a Maomé foi feita numa sexta-feira e está previsto que o Dia do Julgamento Final terá lugar igualmente numa sexta-feira. Os Muçulmanos juntam-se todas as sextas-feiras nas Mesquitas, depois do meio-dia, para a oração congregacional de jummâ, onde o Imã (dirigente do culto islâmico) faz o sermão (khutba) e dirige a oração congregacional.

3º - Pagar tributo (em árabe Zakat ou Zakah) - A contribuição de purificação é um tributo religioso, muitas vezes impropriamente traduzido como esmola, e significa, literalmente, "crescer" ou "aumentar": "recebe, de seus bens, uma

caridade, que os purifica e os engrandece" (Alcorão 9:103). O seu pagamento é anual e obrigatório para todos os

muçulmanos. De uma maneira geral o zakat incide sobre 2,5% da riqueza de cada muçulmano, que pode escolher a altura do ano mais adequada para o pagar, embora muitos optem por fazê-lo no mês sagrado do Ramadão. Este tributo será depois distribuído pelos pobres, em dinheiro ou em espécie.

4º - Observar o jejum no Ramadão (em árabe Saum ou Siya) – O Ramadão é o nono mês do calendário islâmico durante o qual os muçulmanos praticam o seu jejum ritual (saum), o quarto pilar do Islão. Sendo o calendário islâmico lunar15

, o Ramadão não é celebrado cada ano na mesma data, podendo passar por todas as estações do ano.

13Ali ibn Abi Talib pode ainda aparecer graficado como Ali ben Abu Talib (600 a 661 d.C.) e foi o quarto Califa sucessor de Maomé. Nasceu em Meca onde o seu pai,

Abu Talib, era um tio do Profeta. Ali foi adoptado por Maomé e educado ao seu cuidado (ver à frente o Islão Sunita e Xiita).

14 A Caaba ou Kaaba (também conhecida como Ka'bah ou Kabah) é uma construção reverenciada pelos muçulmanos na mesquita sagrada de Al Masjid Al-Haram, em

Meca, sendo considerada como o lugar mais sagrado do mundo. A Caaba é uma construção cúbica de 15 metros de altura, cercada por muros, e está coberta

permanentemente por uma manta escura com bordados dourados que é regularmente substituída. A Caaba é o local de adoração que Deus teria ordenado a Abraão e

Ismael para construírem, há aproximadamente 4.000 anos. Foi feita em pedra e, muitos acreditam, foi o local original de um santuário estabelecido por Adão. Deus teria ordenado depois a Abraão para convocar toda a humanidade para visitar o local e quando os peregrinos lá vão recitam "Eis - nos aqui, ó Senhor!", em reposta a

essa convocação.

15O calendário islâmico baseia-se no ciclo lunar que mede o ano pelas 12 revoluções completas da Lua em torno da Terra, sendo, em média, 11 dias menor do que o

ano solar. Foi introduzido pela primeira vez no ano 638 d.C. pelo segundo califa Umar ibn al-Khattab (592-644 d.C.). Tornando-se necessário racionalizar os vários

sistemas de datas usados naquela época, Umar consultou os seus conselheiros sobre qual seria a melhor data de início da nova cronologia muçulmana e, finalmente,

foi acordado que o acontecimento de referência mais adequado para o calendário islâmico era a Hégira - era muçulmana que tem como início a fuga de Maomé, de Meca para Medina. Para a data do início do calendário muçulmano foi escolhido, com base no ano lunar (contando-se para trás) o primeiro dia, do primeiro mês (1° de

Muharram) do ano da Hégira. O 1° Muharram, do ano 1 AH., corresponde portanto ao dia 16 de Julho do ano 622 da era cristã. O calendário islâmico, dentro da era

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Conhecer o Islão

Nº 3

O Ramadão é um mês sagrado, período de renovação da fé, da prática mais intensa da caridade e vivência profunda da fraternidade e dos valores da vida familiar. Neste período pede-se ao crente uma maior proximidade aos valores sagrados, leitura mais assídua do Alcorão, frequência à mesquita, correcção pessoal e auto domínio. O jejum é observado durante todo o mês, do nascer ao pôr-do-sol e aplica-se também ao fumo e às relações sexuais (o crente deve não só abster-se delas, como também não pensar nelas).

Para além destes preceitos específicos do Ramadão, tanto o homem como a mulher são comandados no Alcorão a aderir permanentemente às directrizes Islâmicas do comportamento e da forma de vestir discretas. Isto inclui não só o uso de vestimentas modestas (características dos muçulmanos), assim como a necessidade de que homens e mulheres que não tenham laços familiares não se reúnam sozinhos ou construam amizades uns com os outros fora do casamento (ver Alcorão 24:31). Se o homem e a mulher tiverem de interagir por qualquer motivo (por exemplo no mercado), ambos são comandados a baixar o olhar e a absterem-se de namoros e conversas desnecessárias. Um homem que se sinta atraído por uma mulher, que não a sua esposa, é comandado a evitar aquela mulher e ir para casa ter com a esposa, enquanto que ao homem não casado é recomendado o jejum, como forma de supressão do desejo sexual. O casamento realizado numa idade ainda muito jovem é altamente recomendado, tanto para homens como para mulheres, como meio de completar a fé e como solução para o lidar com as inúmeras tentações que poderiam conduzir ao pecado16

. Acrescem ainda a estas instituições a permanentemente proibição do consumo de álcool e de carne de porco.

5º - Fazer a peregrinação a Meca (em árabe Hajj ou Hadj), se tiver condições financeiras para tal. É o último dos cinco Pilares do Islão17, sendo obrigatória pelo menos uma vez na vida para todo o muçulmano adulto, desde que disponha de

meios económicos e goze de saúde. O Hajj só pode ser efectuado uma vez por ano, no Mês da Peregrinação (Dhu al-Hijja), ou seja, no último mês do calendário muçulmano, entre o 8º e o 12º ou 13º dia.

No Islão não existe uma autoridade oficial que decida se uma pessoa é aceite ou excluída da comunidade de crentes (a

Umma ou Ummah). O Islão é aberto a todos, independentemente da sua raça, idade, género ou crenças prévias. É pois

suficiente acreditar na doutrina central do Islão, acto que é formalizado pela recitação da shahada, o enunciado de profissão de fé, sem o qual uma pessoa não pode verdadeiramente ser considerada muçulmana.

3. A jurisprudência islâmica

As duas fontes fundamentais da doutrina e da prática islâmicas são o Alcorão, a escritura sagrada, e a Suna18, os exemplos do profeta. A Suna é conhecida graças aos Ahadith19, que são narrações acerca da vida do profeta e do que ele

aprovava, que chegaram até nós graças a uma cadeia de transmissão oral a partir dos

Companheiros de Maomé (Sahaba – o consenso

dos companheiros do profeta). Uma terceira fonte de jurisprudência, já secundária, é o itjihad raciocínio individual), ao qual se recorre quando não há respostas claras no Alcorão ou na Suna sobre um dado tema. Neste caso o jurista raciocina por analogia (qiyas - casos análogos)

para encontrar a solução para o problema em estudo. A quarta e última fonte de jurisprudência é

a Ijma (consenso da Umma) ou Maslaha al

Mursalah (benefícios), os quais não são porém

amplamente aceites pelas diversas escolas de pensamento Islâmico20

. Existem ainda algumas

práticas, igualmente chamadas de Sharia, que têm raízes nos costumes locais (Al-urf).

16 Em “Comunidade Islâmica na Web”, myCIW.org.

17 Alguns grupos kharijitas existentes na Idade Média consideravam a jihad como o sexto pilar do Islão. Actualmente, alguns grupos do xiismo ismaelita entendem

como sexto pilar do Islão a "fidelidade ao Imã".

18Suna ou Sunnah é a vida do Profeta Maomé. Literalmente, o termo significa “caminho percorrido” contudo, o significado de “prática habitual” passou a imperar,

indicando as palavras e actos específicos da vida do Profeta.

19Hadith (pl. Ahadith) é o corpo de leis, lendas e histórias sobre a vida de Maomé (Suna) que incluem a sua biografia (sira) e os próprios dizeres e opiniões do

Profeta, nos quais ele justificou as suas escolhas ou ofereceu conselhos. Ou seja, enquanto a Suna é o caminho ou feitos do Profeta, durante a sua vida, as Ahadith são

a colecção das suas narrações, opiniões e aprovações, durante o mesmo período. As colecções Hadith de Sahih Bukhari e Sahih Muslim são consideradas pelos sunitas como as mais importantes. Para além destes dois livros, os Sunitas reconhecem ainda 4 outros livros como autênticos (não tão importantes como os de Bukhari e de Muslim) e todos juntos formam os chamados "Seis Livros" ou também “Kutubi-Sittah”.

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II Série

Cadernos do IDN

Nº 3

O corpo das leis religiosas muçulmanas, encontradas no Corão e na Suna, muitas vezes descritas como a lei islâmica,

chama-se Sharia ou Xariá (também graficada como Charia, Shari'a, Shariah ou Syariah) e é a base do Islão, comandando a vida pública e privada de qualquer muçulmano. Ao contrário da cultura ocidental, no Islão não existe uma separação clara entre a religião e o direito. Todas as leis são religiosas e são baseadas ou nas escrituras sagradas ou nas opiniões de líderes religiosos. Em conformidade, o Islão é visto pelos crentes simultaneamente como um modo de vida e uma religião, que inclui instruções que se relacionam com todos os aspectos da actividade humana, sejam eles políticos, sociais, financeiros, legais, militares ou inter pessoais. O conceito islâmico de sociedade é assim teocrático, sendo que o objectivo de todos os muçulmanos é o "governo de Deus na Terra". A filosofia social islâmica baseia-se na crença de que todas as esferas da vida constituem uma unidade indivisível que deve estar imbuída dos valores islâmicos. Este ideal inspira o Direito islâmico (sharia) e, por isso, na sociedade islâmica, o termo Direito tem um significado muito mais amplo do que no Ocidente moderno e secularizado, pois engloba imperativos morais e legais. Para verdadeiramente perceber a conduta dos países muçulmanos é pois importante ter em atenção que a distinção ocidental entre o espiritual e o temporal é, em teoria, alheia ao Islão. Tal pressuposto é categoricamente deduzido, por exemplo, em ilações como as do sociólogo Ernest Gellner, no seu livro “ Pós-modernismo, razão e religião” (1992), no qual refere especificamente que o Islão contraria a tendência para a secularização,

presente nas restantes grandes civilizações. Apesar destas divergências, o Islão é a religião que mais cresce no mundo e coabita com iniciativas como a da República turca, bem como as de outros países islâmicos, que têm feito um apreciável esforço para a laicização do Estado.

As normas da Sharia para o dia-a-dia são cinco: as prescritas (Fard), recomendadas (Mandub), permissíveis (Mubah),

não recomendadas (Makruh) e as ilícitas ou proibidas (Haram). A distinção entre elas é se a sua prática ou não-prática é

recompensada, não recompensada, punida ou não punida. A norma prescrita (fard) também se refere quanto à sua

obrigatoriedade (wajib), compulsoriedade (muhattam) ou necessidade (lazim). 21

A Sharia antiga tinha um carácter muito mais flexível do que aquele hoje associado com a jurisprudência islâmica (fiqh), e muitos académicos muçulmanos acreditam que devia ser renovada e que os juristas clássicos deveriam perder o seu actual estatuto prestigiado. Esta alteração implicaria a necessidade de formular uma nova fiqh, que fosse praticável no mundo moderno, como a proposta pelos defensores da islamização do conhecimento. Este movimento, não pretendendo alterar os pontos fundamentais do Islão, tenta evitar más interpretações e libertar o caminho para a renovação do estatuto do mundo islâmico, como um centro de pensamento moderno e de liberdade21

. A Fiqh22

é a metodologia utilizada para converter em legislação aplicável as normas do Corão e da Suna. Conhecida como “jurisprudência islâmica”, é sinónimo literal de "compreensão" ou "conhecimento" (linguisticamente Fiqh significa ter conhecimento em algo) e é constituída pelas decisões dos académicos islâmicos que dirigem as vidas dos muçulmanos. Como termo de jurisprudência, a Fiqh pode assumir dois significados distintos: ter conhecimento das regras da Sharia, que são extraídas das fontes legisladoras, ou, todas as leis islâmicas, sendo esta última definição praticamente sinónima ao termo

Sharia. O conceito de Fiqh e Sharia como sinónimos não é unânime entre os estudiosos muçulmanos, acreditando a maioria

que existem diferenças, como resumidamente realça Bilal Philips23:

Sharia é o corpo das leis reveladas, encontradas no Corão e na Suna, enquanto Fiqh é o corpo de leis deduzidas da Sharia para cobrir situações específicas não directamente tratadas nas leis da Sharia.

• A Sharia é fixa e imutável, enquanto Fiqh muda de acordo com as circunstâncias sob as quais ela é aplicada.

• Na sua maioria, as leis da Sharia são gerais e determinam princípios básicos. Em contraste, as leis de Fiqh tendem a ser específicas, demonstrando como os princípios básicos da Sharia devem ser aplicados em determinadas circunstâncias.

21 Ver, por exemplo, o artigo “A Maneira Islâmica de Islamização” do Dr. Ahmad Shafaat publicado em primeira-mão no magazine islâmico"Al-Ummah" (1985). 22 Desenvolvido nas “Hadith collections” - Compendium of Muslim Texts - University of Southern California.

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Conhecer o Islão

Nº 3

A Fiqh pode ser dividida em duas partes: o estudo das fontes da lei e da metodologia (usul al-fiqh, raízes da lei) e

as regras práticas ou normas legais (furu' al-fiqh, ramos da lei). A diversidade de fontes da jurisprudência islâmica e das suas possíveis interpretações leva-nos a aprofundar e especificar aqui o significado do termo “Usul Al Fiqh”, que designa a ciência da fonte e metodologia na Jurisprudência Islâmica, ou seja, a metodologia de extracção da fiqh. O

conceito de Usul al Fiqh é pois comparável à metodologia da condução de uma experiência científica, sendo o

conhecimento dessa metodologia o meio que capacita uma pessoa deduzir normas islâmicas das fontes legisladoras no Islão.

A colecção de princípios relacionados com a Usul al Fiqh é grande. Sendo necessário o domínio de diversas áreas para a sua dedução, realçam-se especialmente as seguintes: 24

Conhecer a Língua Árabe: A importância de compreender a estruturação gramatical e léxico da língua árabe para compreender o correcto significado, por exemplo, de um Ayah (versículo do Alcorão) ou de um Hadith, para poder fazer a sua correcta interpretação. Um exemplo prático disto mesmo é, quando não se tem o pleno domínio da gramática árabe para interpretação das fontes legisladoras, dificilmente se poder dizer (deduzir) se um determinado acto é pecado (haram) ou apenas não recomendado (makruh).

Interpretar os textos do Corão e da Suna: A menos que os textos do Corão e da Suna sejam correctamente compreendidos, nenhuma regra pode ser deduzida deles. O estilo do Alcorão é alusivo e elíptico, com gramática e vocabulário difíceis. Igual a outras escrituras, está sujeito a diferentes interpretações25. O árabe em que está

escrito o Alcorão distingue-se de qualquer variante idiomática árabe. É uma mescla de prosa e poesia sem métrica, difundida entre os beduínos para veicular uma literatura essencialmente oral. O Alcorão foi recitado nesta língua e a sua redução à palavra escrita (cujas regras gramaticais começaram a ser fixadas por filólogos apenas no século VIII), gerou o árabe literário clássico, que se tornou a língua oficial, embora inúmeros dialectos sejam falados no mundo islâmico. A estrutura linguística do Corão e da Suna varia ainda de estilo para estilo, conforme quem as escreveu, sendo alguns exemplos desses estilos os seguintes: texto especulativo (Thanniy), texto definitivo (Qatai), texto geral (Amm), texto específico (Khass), texto literal (Haqiqi) e texto metafórico (Hajazzi). A diferenciação

destes estilos é pois um importante tópico no Usul al Fiqh.

Fontes Legisladoras: Outro aspecto essencial que envolve a interpretação destes textos gira em torno da ab-rogação das suas regras. O estudo da delicada ab-ab-rogação de regras do Corão e da Suna envolve a sua relação com outros Ayahs ou Ahadith, e como reconciliar as diferenças entre ambos. É pois necessário conhecer todas as fontes de jurisprudência e ter a capacidade não só de as interpretar, como também de as relacionar entre si.

Normas da Sharia: conhecer as normas para o dia-a-dia, ou seja, quais as prescritas, recomendadas,

permissíveis, não recomendadas e proibidas, mas avaliando-as dentro do contexto em que ocorrem. Para a

aplicação de qualquer norma é necessário o conhecimento da situação, da regra e do método. Por exemplo, um princípio geral no Islão é que a mão de um ladrão deve ser cortada. No entanto, se a pessoa rouba comida estando faminto, este princípio geral não é aplicado nesta situação particular. Consequentemente, o conhecimento de “como” e “onde” aplicar as leis são obrigatórios.

Face ao descrito anteriormente, apercebemo-nos da miríade de gradações e de conceitos muito semelhantes que podem existir no Islão. Em virtude de não haver uma estrutura clerical definida, que de alguma forma decida quais as interpretações correctas da Fiqh, podem ocorrer diferentes interpretações que são igualmente válidas, originando diferentes correntes e escolas de pensamento. O Islão sunita subdivide-se basicamente em quatro grandes escolas

ortodoxas de jurisprudência (maddhabs), enquanto os kharijitas e os xiitas têm os seus próprios sistemas de

jurisprudência (ver à frente o capítulo sobre os Ramos do Islão).

24 Em “Termos Básicos em Jurisprudência Islâmica” - TeachIslam.com

25A interpretação do Alcorão (tafsir) é um campo de investigação que vem desde a época da codificação do texto até nossos dias. Foram escritos numerosos livros

sobre o tema e existem numerosos comentários atribuídos a estudiosos, principalmente nos três primeiros séculos do islamismo, mas o trabalho mais importante de

tafsir pertence a Al-Tabari, falecido no ano 923 d.C. Al-Tabari analisa cada verso do Alcorão e oferece diversas opiniões de estudiosos da época em relação à sua

vocalização, gramática, léxico, interpretação ética, moral e relação do texto com a vida de Maomé.

A tradição do tafsir reflecte muitas vezes as divergências e tendências do islamismo onde a própria natureza dúbia do texto corânico favorece essas interpretações

divergentes. A interpretação xiita de alguns versos difere radicalmente da interpretação sunita, por exemplo, e nos últimos tempos, tanto os modernistas reformistas como os fundamentalistas têm interpretado os textos de maneira que se adapte aos respectivos pontos de vista.

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II Série

Cadernos do IDN

Nº 3

Embora não exista no Islão uma estrutura clerical semelhante à das correspondentes igrejas cristãs, existe contudo um conjunto de pessoas que são reconhecidas e aceites pelo seu conhecimento da religião e da lei islâmica, denominadas ulemá

(em árabe Âlim, pl. Ulemá; sábio): podem ser professores, religiosos, juristas, juízes, imãs, ayatollahs, etc. e são geralmente

referidos como um grupo monolítico de intelectuais guardiães da "ortodoxia".

Por sua vez, os académicos que se destacam pelo seu conhecimento da lei islâmica recebem o título de Mufti26, sendo os

responsáveis pela emissão de pareceres - fatawa27- sobre determinadas questões da lei islâmica e, em teoria, estes pareceres

só devem ser seguidos pela pessoa que os solicitou. Não existindo no Islão uma estrutura clerical central, não há também unanimidade quanto às interpretações ou métodos para determinar quem pode emitir fatawa, o que leva alguns académicos a queixarem-se que demasiadas pessoas se sintam hoje qualificadas para tal. No Irão e noutras partes da Ásia refere-se ainda o termo Mullah, palavra que deriva do termo árabe mawla e significa "mestre", sendo usada como título de respeito quer por figuras religiosas quer por juristas.

Califa significa literalmente "representante", podendo, em alguns casos, ser o "Sucessor do Profeta" pois provem do verbo khalafa, cujo significado é "suceder" ou "vir atrás". É o título que foi inicialmente usado por Abu Bakr, o sogro de

Maomé, quando o sucedeu como o primeiro líder da comunidade muçulmana, a Umma, em 632. Os primeiros quatro califas são conhecidos como os "Califas Correctamente Guiados" (al-Khulufa al-Rashidun) e o detentor deste título clamava a soberania sobre todos os muçulmanos28

. A partir daí as cisões no grupo acentuaram-se, especialmente entre Fatimidas e Abássidas29

. No seguimento destes conflitos, outros líderes muçulmanos reivindicaram o título de califa, mas com a sua progressiva derrota o califado Otomano foi crescentemente afirmando-se como o califado principal, sendo considerado, até à Primeira Guerra Mundial, a maior e mais poderosa entidade política islâmica. O título de califa deixou de existir quando a República da Turquia aboliu o Império Otomano, em 1924.

A comunidade muçulmana é liderada pelo Imã (em árabe imame, imam ou imâm; pl. a'imma), designação que pode ter uma variedade de conotações que necessitam ser cuidadosamente distinguidas. Derivando do vocábulo árabe com o significado de "chefiar" ou "conduzir a oração", o Imã tem como primeiro e mais comum sinónimo, o de líder da prece. Não tendo o Islão uma autoridade oficial, o Imã responsável da mesquita não é ordenado, podendo qualquer homem muçulmano dirigir a oração na sua ausência. Nos primórdios da história islâmica o título de Imã estava associado ao de califa, mas actualmente tem sido usado simplesmente como título de respeito, como por exemplo pelo falecido Khomeini, que preferia ser tratado por Imã e não por Ayatollah. Para os xiitas, o imã é o herdeiro continuador da missão espiritual do Profeta e é muito mais poderoso do que o califa sunita. Para os sunitas, o Imã é apenas um chefe civil e político, sem autoridade espiritual em especial.

26 O mufti serve de ponte entre a jurisprudência pura e o Islão actual e pode, ou não, ter o título de "qadi" (juiz).

27Fatwa (plural "fatawa") - Termo usado na lei islâmica para indicar um julgamento ou deliberação legal formal efectuada por um especialista em lei religiosa, sobre

um assunto específico. Normalmente, uma fatwa é emitida a pedido de um indivíduo ou de um juiz, de modo a esclarecer uma questão onde a fiqh é pouco clara.

28 O Período dos Quatro Califas, que se seguiu à morte de Maomé, é quando se começa a formar o Império Islâmico propriamente dito e os califas eram

considerados simultaneamente Malik (rei) e Imã (líder religioso).

29 As origens da dinastia Fatímida situam-se no ismailismo, uma corrente do islão xiita (ver à frente o Islão Sunita e Xiita). Os membros da dinastia Fatímida

alegavam ser descendentes de Fátima az-Zahra (Meca 606-Medina 632), filha do profeta Maomé, e do seu marido Ali ibn Abi Talib.

Enquanto xiitas, opunham-se ao califado sunita dos Abássidas (750-1258) - a segunda dinastia de califas - fundada por Abu al-Abbas al-Saffa, descendente de

Abbas, tio do profeta Maomé. Esta dinastia muçulmana do Oriente transferiu a capital da Síria para o Iraque e foi a mais famosa e a mais duradoura do Islão, tendo

sido composta por 37 califas. O seu apogeu verificou-se durante o reinado de Harun al-Rashid (786-809), o califa das “Mil e Uma Noites”. Os Abássidas tinham

sucedido aos Omíadas - o primeiro califado ou Dinastia Umayyad - que durou apenas 90 anos (661-750) e esta mudança constituiu uma importante alteração na

essência da composição do califado, que levou o centro do Império Muçulmano de Damasco para Bagdad. Segundo, por exemplo, Nagib Dahdah (em “Évolution de la Nation Libanaise”, p. 81), “o novo império muçulmano foi incontestavelmente árabe até à queda dos Omíadas de Damasco” o que se justifica pelo novo califado

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Conhecer o Islão

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De acordo com o Xiismo o Imã exerce 3 funções principais: governar a comunidade islâmica, explicar as ciências religiosas e a lei, e ser líder espiritual para levar os Homens ao entendimento do significado interior das coisas. Por causa destas funções o Imã não pode ser eleito por uma assembleia pública e, como guia espiritual, recebe a sua autoridade apenas do “alto”, isto é, cada Imã é apontado através da designação do Imã que o antecedeu por “comando Divino”. O Imã deve ocupar-se com os assuntos mundanos diários, bem como com o mundo espiritual, ou seja, as suas funções são ao mesmo tempo humanas e cósmicas30.

Ayatollah ou Aiatolá - literalmente "o Sinal de Deus" - é o título atribuído no século XX, por aclamação popular e pelos

seus pares, aos académicos xiitas que alcançaram eminência, geralmente no campo da jurisprudência ou da teologia islâmica. Depois da revolução iraniana de 1979 aumentou muito o número dos que se consideram “ayatollahs”, mas apenas alguns deles (talvez menos do que dez) ostentam o título de Ayatollah al-Uzma – “o Maior Sinal de Deus”. Destes, o mais conhecido era o Ayatollah Khomeini, que detinha também o título de Marji’ al-Taqlid 31 ou “fonte de imitação”. O grau abaixo

de Ayatollah é Hujjat I-Islam.

(Al-) Mahdi - literalmente, "aquele que é correctamente guiado"- é uma outra figura com profundo significado no Islão e

também um título frequentemente reclamado por vários líderes na história islâmica. O seu “poder justo” é prenúncio da aproximação do fim dos tempos. Sunitas e xiitas aderem ambos à crença no Mahdi, embora o xiismo tenha desenvolvido uma doutrina mais profunda neste âmbito.

4. Ramos do Islão

Existem várias correntes no Islão, cada uma com diferenças ao nível legal e teológico. Os maiores ramos são o Islão sunita e o Islão xiita, que aceitam diferentes colecções de Hadith como genuínas. Para perceber realmente o significado destas divisões devemos começar por lançar um breve olhar para a origem e para a história daquilo que é hoje o Islão.

Maomé revolucionou verdadeiramente o mundo árabe, que transformou de um conjunto anárquico de tribos beduínas politeístas, onde a religião era pouco importante na vida política e social, numa unidade cultural em que a ideia de religião (islâmica) é o único poder que interessa, o único critério de identidade e de lealdade do grupo32

. O profeta Maomé faleceu contudo em 632 sem deixar claro quem deveria ser o seu sucessor na liderança da nova comunidade muçulmana, a Umma. Após a sua morte, as antigas inimizades tornaram-se uma vez mais evidentes – a comunidade muçulmana de Medina era então composta por quatro grupos principais: os Mhajirin, muçulmanos de Meca que tinham acompanhado Maomé por ocasião da Hégira33; os Ansar, cidadãos de Medina que tinham recebido os muçulmanos de Meca e lutado com eles; os

partidários de Ali, que defendiam que o sucessor de Maomé deveria ser alguém da família Ashemita34

, no caso, Ali ibn Abi

Talib, genro e primo do Profeta; e os Omíadas, pertencentes à aristocracia de Meca, cujo líder do clã era Abu Sufyan. Todos

estes grupos, de uma forma ou outra, achavam-se os legítimos sucessores do Profeta.

30 Em “Islão: Sunitas e Xiitas”, TeachIslam.com

31Maraji al-Taqlid (singular Marji' al-Taqlid) ou fontes de Imitação. É a maior autoridade em religião e lei no Islão Xiita. Este é o epíteto que caracteriza os ayatollahs

com a patente de Ayatollah al-Uzma. Um único ou supremo Marji' chama-se Marji' al-Taqlid al-Mutlaq. Este título era usado por exemplo pelo Ayattolah Khomeini no

Irão, mas o seu sucessor, Ali Khamenei, ainda não conseguiu ser aclamado como tal.

32 Em “From Muhammad to Bin Landen”, David Bukey, 2008 (p.15)

33Hégira (Hijra) - era muçulmana com início em 622 d.C. - fuga de Maomé de Meca para Medina.

34Ashemita ou Haxemita, de Meca, invoca a sua descendência de Hashim, bisavô do profeta Maomé. Este termo é, actualmente, conotado mais directamente com a

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Sem ter deixado nenhum filho homem e não tendo o Profeta determinado explicitamente a forma da sua sucessão, segundo a tradição, a escolha deveria ser feita em função da experiência, sabedoria e prestígio. Assim,

Abu Bakr (632-634), companheiro do profeta e um dos primeiros convertidos ao Islão, foi o eleito como califa

"representante", função que desempenhou apenas durante dois anos. Para outros o sucessor deveria ter sido Ali, primo de Maomé e casado com a sua filha Fátima, mas era ainda um jovem. Esta primeira sucessão, se não totalmente consensual, não constituiu uma verdadeira oposição à escolha de Abu Bakr, que após a morte de Maomé

teve a difícil tarefa de reunificar as tribos de beduínos que entretanto tinham abandonado o Islão e ainda de acalmar os que entendiam não lhe deverem lealdade. Para além disso, vários homens apresentavam-se como profetas e geravam ainda maior agitação. A revolta destes beduínos ficou conhecida como Ridda (apostasia35

) e foi solucionada por Abu Bakr pela conjugação da diplomacia e do recurso à força militar.

Uma vez unificada a Arábia, Omar (Umar ibn al-Khattab, 634-644), o segundo califa, nomeado por Abu Bakr

para o suceder antes da sua morte, concentrou-se na expansão do Islão para fora da península36

. As suas primeiras conquistas territoriais ocorreram na Síria, com a tomada da cidade de Damasco (635) e depois Jerusalém (638). Ao mesmo tempo, as forças islâmicas avançavam para Este, em direcção à Mesopotâmia e à Pérsia, mas também para Oeste, conquistando Alexandria em 642.

Após a morte de Omar, em 644, assassinado por um cristão persa, foi eleito seu sucessor Otman (Uthman ibn

Affan, 644-656), um genro do profeta, que continuou a obra de expansão territorial naquilo que era então o império bizantino. Ao contrário dos anteriores califas, Otman não tinha o apoio de Ali e nomeou o seu primo Muawiyah (Muawiyah ibn Abu Sufyan, 602-680) como governador da Síria, o que na altura foi interpretado como um acto de nepotismo - ambos pertenciam ao clã Omíada de Meca, que tinha tido em Abu Sufyan (pai de Muawiyah) um dos inimigos mais ferozes de Maomé. Em 656, Otman morre assassinado.

Após o assassinato de Otman ocorreu novamente uma grande disputa em torno de quem deveria ser o novo

califa. Para alguns, essa honra deveria recair sobre Ali, como aliás sempre tinham defendido; para outros, o califa deveria ser Muawiyah, primo de Otman. Escolheram porém Ali (656-661), que foi finalmente eleito, tornando-se o quarto Califa e o último dos califas “correctamente guiados”37. A questão não foi contudo pacífica e Muawiyah

contestou a sua eleição, o que originou uma guerra civil entre os partidários das duas facções. Em 657 as forças de

Ali e Muawiyah enfrentam-se na Batalha de Siffin, mas nenhum dos lados se sagrou vencedor. Ali concordou então

com uma arbitragem proposta por Muawiyah, uma espécie de julgamento para decidir a vitória na batalha e se a sua ascensão ao poder era legítima.

Uma parte dos apoiantes de Ali entendeu porém que ele procedeu incorrectamente ao aceitar a arbitragem e retirou-se, dando origem à primeira cisão no Islão, a dos Kharijitas. Outro partido permaneceu fiel a Ali e às suas pretensões ao califado e deu origem aos Xiitas.

Ali foi assassinado por um kharijita em Kufa, em 661, e Muawiyah, aproveitando-se da situação, apodera-se

finalmente do califado, pugnando pela sua transformação de electivo em hereditário e inaugurando em si uma nova dinastia. Tem então início a dinastia sunita Omíada (661-750), que transfere a sede do califado da Arábia para Damasco, na Síria. Sob o signo desta dinastia a propagação muçulmana prosseguiu com uma rapidez espantosa, sendo marcada por uma segunda vaga de expansão territorial: a ocidente - o Magreb é conquistado entre 669 e 710

e a Península Ibérica em 711 - mas as conquistas avançam também a oriente. Em menos de cem anos, o império

muçulmano estendia-se já do rio Indo à Península Ibérica.

35 Em algumas interpretações do Islão a conversão de muçulmanos a outras religiões é proibida e chamada de apostasia. Na teologia muçulmana, a apostasia

corresponde a um crime de traição, à traição do seu próprio país. A penalidade inclui o ostracismo ou mesmo a pena capital, caso sejam habitantes ou tenham vivido num "Estado Islâmico" e forem considerados inimigos do Estado.

36 Do ponto de vista estratégico, cultural e económico, Omar foi um califa muito eficiente. Promoveu a expansão do Islão para além da península arábica e ordenou a

construção de três cidades que serviriam de bases militares - Kufa, ao sul da antiga Babilónia; Basra, também chamada Basorah, ambas no Iraque, e Fostat, a primeira

capital árabe no Egipto, actual Cairo. Com a finalidade militar de defender e controlar a região, eram também utilizadas socialmente como pólos de islamização da região. Foi igualmente Omar quem organizou o calendário Muçulmano, que é ainda hoje seguido, e organizou as finanças do império criando o balanço (a diferença entre o receita e a despesa). Organizou também administrativamente os territórios conquistados sob as ordens de um Wali, general e governador, assistido por um Amir, responsável pela receita de cada uma das regiões conquistadas.

37 Apesar destas disputas, os primeiros quatro califas - os chamados quatro califas “correctamente guiados” ou “virtuosos” - são considerados como tendo vivido tão

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Conhecer o Islão

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Os partidários de Ali (shiat Ali, ou seja, xiitas) acreditavam porém que o primeiro califa foi um usurpador que retirou a Ali o seu legítimo direito à liderança, sendo esta crença justificada em Ahadith interpretados como reveladores de que, quando Maomé se encontrava ausente, ele nomeava Ali como líder momentâneo da comunidade. Enquanto viveram os elementos que gozaram da intimidade de Maomé o seu califado foi aceite pelos muçulmanos e coube-lhes pelo processo de eleição mas, com a morte de Ali, como referido, reacenderam-se as discussões em torno do direito de sucessão e ainda sobre o conteúdo de

algumas das interpretações dogmáticas do Alcorão.

A questão do direito de Ali suceder a Maomé dividiu o Islão até aos dias de hoje, entre:

Sunitas: partidários dos califas abássidas, descendentes de Abbas, tio do Profeta, que acham que Maomé não designou um sucessor e implicitamente comandou os muçulmanos a escolher o líder que julgassem mais apropriado através do voto. Justificam a sua legitimidade apoiados na tradição e nos juristas que sustentam que o califado pertenceria aos que fossem considerados dignos pelo consenso da comunidade.

Xiitas: partidários de Ali, casado com a filha de Maomé, e seguidores da disciplina e liderança. Entendem que Maomé nomeou Ali publicamente e julgam que a questão da liderança não é para ser debatida, argumentando que só os descendentes directos do Profeta são os verdadeiros imãs - guias infalíveis na sua interpretação do Alcorão e da Suna graças ao conhecimento secreto que lhes foi dado por Deus.

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Nº 3

O Islão sunita e xiita reflectem igualmente diferentes respostas muçulmanas às revelações divinas: os sunitas preocupam-se mais com a vida interior e os xiitas com a exterior. Os sunitas mostram-se pois mais preocupados em criar e preservar estruturas de sociedade em que a comunidade possa cumprir as suas responsabilidades perante Deus, enquanto os xiitas, que começaram pelo martírio de Ali e do seu filho Hussein, sempre estiveram conscientes do sofrimento e da alienação que fazem parte da condição humana e procuram respostas para uma interpretação mais exotérica do Corão e da Sharia. Os dois ramos distinguem-se ainda em certas questões jurídicas e até nos rituais mas, no fundo, a diferença entre ambos não é muito grande - a divergência principal diz verdadeiramente respeito à natureza da chefia.

4.1. O Islão sunita

Os Sunitas são o grupo muçulmano que constitui a maioria da comunidade islâmica mundial, compreendendo actualmente quase 90% de todos os muçulmanos. A maioria dos sunitas acredita que o seu nome deriva da palavra Suna, que se refere aos preceitos baseados nos ensinamentos de Maomé e nos dos primeiros quatro califas “correctamente guiados”. Os sunitas são assim os seguidores do Corão e da Suna, tal como é relatada pelos companheiros de Maomé

(sahaba) nos livros de Ahadith. Outros afirmam que o termo significa apenas "caminho moderado”, referindo-se à ideia de que o sunismo toma uma posição mais neutra do que outras correntes dissidentes, que têm sido percebidas como mais extremadas, como é o caso de algumas seitas xiitas ou dos Karidjitas.

A posição dos sunitas poderá ser resumida da seguinte forma: ninguém poderia suceder a Maomé na sua natureza e qualidade de Profeta, dado que o Corão, que determina a revelação da vontade divina, declarou Maomé como o "último dos profetas". O sucessor de Maomé seria então apenas um guardião do legado profético; seria um califa, com uma autoridade subordinada como líder dos crentes, com responsabilidade pela administração dos assuntos da comunidade, em obediência ao Corão e aos precedentes profetas. Pelo processo do consenso (ijma), a comunidade escolheria o seu líder entre os homens que fossem membros da tribo Coraixita, a que Maomé pertencera. Os Sunitas também acreditam que a comunidade islâmica (a Umma) se manteria unida sob a autoridade dos califas, que conservariam o governo pela lei e persuasão. A tendência sunita tem sido assim acomodar-se às diferenças de opinião das minorias e confirmar o consenso da comunidade no que se refere a assuntos doutrinais.

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Dentro da teologia Sunita desenvolveram-se diversos matizes interpretativos, que se dividem em quatro escolas ortodoxas de jurisprudência (maddhabs de Fiqh). Estas escolas de teologia sunitas tomam o nome dos seus fundadores - Imã

Abu Hanifah, Imã Malik, Imã Shafi'i e Imã Hanbal - e guardam a sua raiz e origem na única escola Xiita Jafarita (Jafari),

estabelecida pelo Imã Jaafar Ibn Mohammad (as-Sadiq) em meados do século VI. As escolas sunitas, embora partilhem a

maioria das suas decisões, diferem nas Ahadith particulares que aceitam como autênticas de Maomé e o peso que dão à analogia ou à razão (qiyas) em decidir perante questões não respondidas no Corão ou na Suna38.

A escola Hanafita, considerada a mais antiga, nasceu em Kufa39

e é assim chamada por ter sido criada pelo persa

Nu'man ibn Thabit conhecido como Abu Hanifah (80-150 AH.). Abu Hanifah viveu 52 anos sob o governo Omíada, mas não

concordando com este governo e acreditando que o direito ao califado pertencia aos filhos de Ali, teria emitido um fatwa em apoio à revolução dos Alawi40

, liderada por Zaid ibn Ali Ibn Hussein, defendendo mesmo o pagamento de Zakat àqueles revolucionários41

. Os Abássidas ainda tentaram obter o seu apoio e al-Mansur (o segundo califa Abássida) ofereceu-lhe a posição de juiz, mas Abu Hanifah recusou, optando por manter-se independente e, em virtude da troca de correspondência alegando a sua recusa, foi preso e chicoteado, acabando por morrer na prisão.

Abu Hanifah foi um dos que menos aceitou basear os regimes legais inteiramente no Corão ou nos Ahadith,

aconselhando, por exemplo, a que os duros castigos corânicos (Hadd) fossem aplicados muito raramente e apenas para servirem de exemplo. Baseando-se essencialmente na “opinião” e na “analogia”, Abu Hanifah trabalhava em função de casos para formular doutrinas e a sua metodologia apesar de aceite pelos califas Abássidas, foi refutada pelos Imãs das outras escolas (Maliki, Hambal e Jaafar). A escola Hanafita é considerada a mais liberal das escolas do pensamento Islâmico e, apesar de inicialmente contestada, tornou-se na lei maioritária entre os muçulmanos. Hoje, quase 55% dos muçulmanos sunitas são Hanafitas, com forte presença na Ásia Central e do Sul, na Turquia, nos Balcãs e também na China, Índia, Paquistão e Irão.

38 Ver, por exemplo, “Hadith collections” - Compendium of Muslim Texts - University of Southern Califórnia, ou em “Arressala” – Centro Islâmico do Brasil. 39 Kufa: cidade iraquiana a 170 km a sul de Bagdad e a cerca de 10 km nordeste de Najaf.

40 Os Alawitas são hoje um grupo étnico-religioso proeminente na Síria (ver mais à frente o Islão xiita). 41 Em “ O Islão e as escolas de jurisprudência” por Al Musawi - Arressala – Centro Islâmico do Brasil.

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A escola Malikita, igualmente uma das primeiras, foi fundada em Medina pelo árabe Maliki ibn Anãs (93-179 AH.).

Maliki estudou com Ulema como o Imã Jaafar As-Sadiq e alcançou fama como sábio durante o período Omíada. Depois da

queda desta dinastia e da ascensão dos Abássidas, tal como fez Abu Hanifah, Maliki emitiu uma fatwa contra o apoio exigido a Al-Mansur, proclamando cooperação à revolução liderada por Mohammad Ibn Abdillah Ibn al-Hassan, o que lhe valeu a prisão e a tortura. O pensamento de Maliki altera o direito alegado pelos califas Omíadas de fazer leis sem referências ao Corão, reforçando a importância da hadith (tradição oral) e a importância dos ensinamentos dos 4 “califas correctamente

guiados”. Escreveu a este respeito o livro Al-Mu’watta e deste modo a sua Fiqh propagou-se, especialmente pelo norte da África e na Andaluzia.

A escola Shafiita foi a terceira escola de jurisprudência islâmica, a maior e mais importante durante o período dos Abássidas. Foi fundada em Bagdad pelo árabe Mohammad Idris al-Shafi’i (150-204 AH.). Shafi’i instruiu-se também com vários ulama de seu tempo, tais como Muslim al Makhzumi e Maliki Ibn Anãs da escola Malikita. Após a morte de Maliki,

Shafi’i exerceu funções oficiais no Iémen, mas durante o governo de Al-Rashíd, em 178 AH., foi também acusado de apoio

aos Alawitas sendo levado a julgamento em Bagdad. Shafi escapou da prisão e viajou para o Egipto onde se estabeleceu e

desenvolveu a sua Fiqh, que se propagou por diversos países, encontrando-se hoje na África oriental, Médio Oriente, Indonésia, Malásia e Filipinas. A escola Shafiita defende que o conhecimento perfeito da sharia só pode ser conseguido através da revelação do Corão ou em precedentes de inspiração divina do profeta Maomé (Suna), através de relatos autênticos de Ahadith. A razão humana seria apenas usada como excepção, nos casos em que não se aplicasse a revelação divina.

Nos séculos que precederam o aparecimento do Império Otomano a escola Shafiita era a dominante no Islão. Foi apenas no período dos sultanatos Otomanos, no início do séc. XVI, que esta escola foi substituída pela Hanafita, a quem foi dada autoridade judicial em Constantinopla, enquanto na Ásia Central a supremacia passava para o Xiismo duodecimano (12 imãs), como resultado da revolta Safawid, liderada por Shah Ismail, em 1501.42

Finalmente, a escola Hanbalita, de longe a mais fundamentalista das quatro, foi também fundada em Bagdad pelo árabe Ahmad ibn Hanbal (164-241 AH.), um jurista para quem a Sharia se deveria basear exclusivamente no Corão e na

Suna. A sua grande contribuição para a teologia islâmica é uma colecção de cinquenta mil tradições, conhecidas por

Musnadul”43

. A despeito da importância do seu trabalho, a escola Hanbalita não recolheu a popularidade das restantes escolas sunitas de direito e os seguidores de Hanbal foram considerados como reaccionários e incomodativos pela sua relutância em dar opiniões pessoais sobre questões de direito, pela rejeição da analogia, a fanática intolerância a pontos de vista diferentes dos seus e o hábito da exclusão dos adversários do sistema judicial e do poder. A sua impopularidade levou mesmo à ocorrência periódica de combates e de perseguições contra si.

Existem ainda três movimentos estabelecidas dentro do sunismo: o Barelvi (também graficado como Barelwi ou

Berailvi), que é um movimento sufista44

hanafita indiano, com origem no Imã Ahmed Raza Khan (1856-1921) de Bareilly,

Rohilkhand, Índia; o Deobandi45, movimento sufista revivalista, também da escola hanafita indiana, e o Wahhabi,

movimento conservador reformista, fundado por Muhammad ibn Abd al Wahhab no século XVIII, na Arábia Saudita, que segue a escola hanbalita. É a escola dominante na Arábia Saudita e Qatar.

42 No séc. XV e XVI nasceram 3 grandes impérios que tinham como religião oficial o Islão: o Império Otomano no Médio Oriente, Balcãs e Norte de África; o Império Safávida (1502-1736) na Pérsia (Irão) e o Império Mongol na Índia. Baber invadiu a Índia e na batalha de Panipat fez-se senhor do Punjab estabelecendo um novo Império Mongol na Índia, conhecido pelo nome de Império Mogol (nome persa para Mongol).

43 Em Believe, “Overview of World Religions Project”, Bülent Þenay. 44Sufismo ou misticismo islâmico (ver à frente Outras Correntes do Islão).

(18)

Conhecer o Islão

Nº 3

Ou seja, podemos esquematicamente subdividir o Islão sunita em:

Malikitas

Hanafitas

o

Barelvi

o

Deobandi

Shafiitas

Hanbalitas

o

Wahhabi

Importa aqui realçar que o Wahhabismo tem vindo a obter uma influência cada vez maior no mundo islâmico, devido ao financiamento saudita a diversas mesquitas e madraris46

noutros países. Antes do wahhabismo a relação entre sunitas e xiitas era mais muito próxima que hoje, tendo sido o sexto Imã xiista (Jaafar As-Sadiq) mestre de Maliki e Hanifah, os fundadores de duas das escolas sunitas. Foi ainda entre os xiitas que surgiu a estruturação das universidades, gerando produção intelectual e aproximação cultural entre Xiitas e Sunitas.

Os sunitas não são unânimes quanto às suas visões dos xiitas, embora pareçam estar de acordo que as diferenças entre xiitas e sunitas não são comparáveis às que existem entre as diferentes escolas de Fiqh sunita. Uma pequena minoria sunita acredita porém que os xiitas, especificamente os Jafaryia ou dos doze, podem ser considerados como uma "quinta maddhab" do Islão. A prestigiosa Universidade Al-Azhar47

, no Egipto, por exemplo, chegou mesmo a emitir um decreto apoiando este ponto de vista, o qual foi todavia amplamente condenado por académicos sunitas em todo o mundo. A maioria dos sunitas considera o xiismo como um grupo rebelde, mas apesar disso dentro do Islão. Por outro lado, grupos radicais como a Nação do Islão, Ahmadiyya, Zikris e outros48

são considerados como hereges e apóstatas ou desertores pela maioria dos sunitas e, por isso, fora do Islão.

4.2. O Islão xiita

Xiita é um termo colectivo que se refere a várias seitas muçulmanas e que, no seu todo, constituem apenas cerca de 10% do mundo islâmico. Os demais muçulmanos, como vimos, são sunitas.

Os xiitas são os partidários de Ali (shiat Ali), primo e genro de Maomé, além

de quarto califa da comunidade islâmica. 49

O movimento xiita começou por Ali reclamar o poder para si, alegando que a sucessão de Maomé deveria seguir uma linha de sangue, em contrapartida ao pensamento sunita, para quem bastava o candidato a líder ser um exemplo a seguir e repetir a suna do profeta, ou seja, o seu comportamento. Os xiitas consideram o islamismo que praticam como a mais pura representação da religião original de Maomé e acreditam que o líder da comunidade muçulmana - o Imã - deve ser um descendente de Ali e de sua esposa Fátima, sendo ainda obrigatório que cada muçulmano siga um Marja (Fonte de Imitação) vivo. Existem vários

Marjas xiitas vivos hoje, como o Aiatolá Khamenei, Aiatolá Ali al-Sistani, Aiatolá Fazil Linkarani, Aiatolá Sadiq Sherazi, Aiatolá Fadlullah, etc.

46Madrasa (plural "madaris") - Escola ou lugar de ensino, normalmente ligada ou associada a uma mesquita.

47 A Universidade de Al-Azhar, localizada no Cairo, é também uma mesquita. Foi fundada como escola de teologia na dinastia dos Fatímidas, em 988, sendo a

segunda mais antiga universidade do mundo. Al-Azhar - literalmente "O Brilhante" ou "O Radiante" - tem como nome completo al-Jami al-Azhar (A Mesquita

Radiante). Foi criada inicialmente como um bastião da doutrina ismaelita, mas tornou-se um reduto da ortodoxia sunita com os Ayúbidas, dinastia que precedeu os Mamelucos e cujo nome deriva do curdo Ayyub, pai do famoso Saladino.

48 Ver à frente o capítulo sobre “o fundamentalismo islâmico”

(19)

II Série

Cadernos do IDN

Nº 3

Resumidamente pode-se afirmar que são quatro os princípios de diferenciação normalmente aceites pelos xiitas50:

• Ali foi eleito por Deus como Imã e chefe justo do mundo; • Todos os imãs têm que descender de Ali;

• A existência do universo depende da presença de um imã vivo;

• Ali e seus descendentes possuem qualidades sobre-humanas, reconhecidas pelos outros muçulmanos apenas nos profetas.

Os xiitas reinaram no mundo muçulmano especialmente com os Fatímidas no Cairo (909-1171), e na Pérsia com os Safávidas (1502-1736), onde impuseram o xiísmo como forma de se libertarem do império otomano sunita. Os muçulmanos xiitas estão hoje espalhados por todas as partes do mundo, mas alguns países têm uma concentração particularmente forte de xiitas: o Irão é quase totalmente xiita e no Iraque quase dois terços da população é xiita. Encontram-se também grandes concentrações de xiitas no Bahrein (70%), em Oman (75%), no Azerbeijão (70%), no Líbano (40%), no Iémen (30%), nos Emiratos Árabes Unidos (15%), na Síria e na Turquia. Os Xiitas constituem igualmente minorias importantes no Paquistão e na Índia. Entre as comunidades islâmicas que residem no Ocidente também é possível encontrar minorias xiitas.

O Islão xiita contemporâneo pode ser subdividido em três ramos principais: os xiitas dos Doze Imãs (duodécimos), os ismaelitas e os zaiditas. As três seitas possuem posições distintas sobre a questão da autoridade religiosa, embora os duodécimos e os ismaelitas compartilhem quase a mesma teoria, atribuindo qualidades hereditárias e milagrosas aos seus imãs. Todos estes grupos estão de acordo em relação à legitimidade dos quatro primeiros Califas, porém, discordam em relação aos seguintes.

Os xiitas dos Doze Imãs (também designados Ithna Asharites, duodécimos ou imamitas), formam o maior grupo dentro do xiismo e reconhecem uma linha de 12 imãs sucessivos, o último dos quais estaria ainda vivo, apesar de se ter “ocultado” no ano 874 d.C.51

50 Segundo o resumo da Loja maçónica AGDGADU: benemérita Loja António João Nº 5

51Muhammad al-Mahdi, “o Guia” e 12º Imã encontra-se escondido e crê-se que regressará no fim do mundo.

Referências

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