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Schaefer, Bruna A metáfora do clamor no poema "Redes sociais&#34

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Academic year: 2023

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UNIVERSIDADEFEDERALDAFRONTEIRASUL CAMPUSCHAPECÓ

PROGRAMADEPÓS-GRADUAÇÃOEMESTUDOSLINGUÍSTICOS CURSODEMESTRADOEMESTUDOSLINGUÍSTICOS

BRUNASCHAEFER

A METÁFORA DO CLAMOR NO POEMA “REDES SOCIAIS” DE BRÁULIO BESSA UCHOA

CHAPECÓ 2022

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BRUNASCHAEFER

A METÁFORA DO CLAMOR NO POEMA “REDES SOCIAIS” DE BRÁULIO BESSA UCHOA

Dissertação apresentada para o Programa de Pós- Graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Linguísticos.

Orientador: Prof. Dr. Valdir Prigol

CHAPECÓ 2022

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Este trabalho foi realizado com apoio financeiro do Programa de Bolsas Universitárias da Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina (UNIEDU), com recursos do Fundo de Apoio à Manutenção e ao Desenvolvimento da Educação Superior (FUMDES).

Período: 03/2022 a 12/2022.

Bibliotecas da Universidade Federal da Fronteira Sul - UFFS

Elaborada pelo sistema de Geração Automática de Ficha de Identificação da Obra pela UFFS com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Schaefer, Bruna

A metáfora do clamor no poema "Redes sociais" de Bráulio Bessa Uchoa / Bruna Schaefer. -- 2022.

60 f.:il.

Orientador: Dr. Valdir Prigol

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal da Fronteira Sul, Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, Chapecó,SC, 2022.

1. Clamor. 2. Literatura. 3. Metáfora de leitura. I.

Prigol, Valdir, orient. II. Universidade Federal da Fronteira Sul. III. Título.

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BRUNASCHAEFER

A METÁFORA DO CLAMOR NO POEMA “REDES SOCIAIS” DE BRÁULIO BESSA UCHOA

Esta dissertação foi defendida e aprovada pela banca em: __/__/____.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________

Prof. Dr. Valdir Prigol – UFFS Orientador

_______________________________________

Prof. Dr. Saulo Gomes Thimoteo – UFFS Avaliador interno

_______________________________________

Prof.ª Dr.ª Nilceia Valdatti – Unicentro Avaliadora externa

_______________________________________

Prof.ª Dr.ª Angela Derlise Stübe – UFFS Avaliadora suplente

Dissertação apresentada para o Programa de Pós- Graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Linguísticos.

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AGRADECIMENTOS

• A mim, por ter resistido a todas as adversidades que estiveram presentes. Uma carga horária de 40 horas, uma pandemia e diferentes outras situações deixaram o peso deste trabalho quase impossível, mas eu fui guerreira e valente, não desisti! Pelo contrário, dei o meu melhor, contornei os problemas e, acima de tudo, aprendi e amadureci muito a cada obstáculo.

• Ao meu orientador, professor Dr. Valdir Prigol. Eternamente faltarão palavras para descrever a sua importância na minha vida, tanto acadêmica, profissional, quanto pessoal. Há oito anos está presente no meu dia a dia: aulas na graduação, conversas sobre leitura literária, eventos da universidade, orientação de TCC, aulas como aluna especial no mestrado, orientação e aulas como discente regular no mestrado, projetos de ensino, pesquisa e extensão... Enfim! Em todos esses contextos o professor sempre esteve pacientemente e cuidadosamente disponível, apoiando minhas pesquisas, chamando minha atenção quando necessário e me incentivando a dar o meu melhor.

Você é meu exemplo e referência! Muito obrigada!

• Aos professores: Saulo Gomes Thimoteo, Nilceia Valdatti e Angela Derlise Stübe, pelas contribuições tão importantes, tanto na banca de qualificação quanto na defesa desta dissertação.

• À Universidade Federal da Fronteira Sul, que deu sentido à minha vida, me acolhe desde 2015 e tanto me ensinou. Levo comigo a luta em defesa da universidade pública, gratuita e de qualidade!

• Ao Programa de Bolsas Universitárias de Santa Catarina (UNIEDU), pelo financiamento e apoio à pesquisa no período de 03/2022 a 12/2022.

• À Jozilaine. Minha amiga! Esteve comigo desde a graduação, depois estudamos juntas para o processo seletivo do Mestrado e agora concluímos mais uma etapa da formação acadêmica em parceria. Obrigada por tudo, Jozi! Seu apoio foi fundamental. Espero que nossa amizade continue se fortalecendo.

• À Carolina V., obrigada por estar comigo desde os estudos para o processo seletivo até aqui, pelas conversas e desabafos compartilhados. Você foi muito importante.

• A todos(as) professores, servidores e colegas do PPGEL.

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• À Rafaela e à Jozilaine, pelas excelentes e brilhantes revisões textuais realizadas neste trabalho.

• Ao meu esposo, que esteve ao meu lado em todos os momentos, contribuindo para que eu pudesse conciliar essa vida tão corrida. Obrigada por sempre me incentivar e por não ter me deixado desistir. Compartilharei para sempre essa conquista com você. Te amo.

• À minha mãe e ao meu pai; ao meu irmão, à Camila e ao Artur; à vovó Gertrudes; e à Sandra, que sempre estiveram presentes, apoiando e dando suporte para que eu estudasse. Vocês foram e são a minha razão maior. Obrigada por tudo!

• Aos compadres e comadres, aos amigos e amigas! Obrigada pelo apoio durante o mestrado e pela compreensão nos momentos em que estive ausente. Vocês foram essenciais!

• Aos(às) colegas de trabalho, em especial à Cristiane e à Beatriz. Muito obrigada por sempre me incentivarem a estudar, me capacitar e, como vocês sempre dizem, voar!

• A todos(as) que de alguma forma contribuíram para a minha formação.

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RESUMO

O poema “Redes Sociais” de Bráulio Bessa Uchoa é um texto de 2018 que foi publicado no livro Poesia que transforma e oralizado no programa televisivo Encontro com Fátima Bernardes, na Rede Globo, resultando em um vídeo performático compartilhado na internet e que obteve numerosas visualizações. O poema tornou-se um texto de muita circulação e, por isso, buscando entender a estrutura que proporciona tamanha potencialidade e alcance para a obra, este estudo busca propor um modo de ler “Redes sociais” a partir da metáfora do clamor.

Para tanto, o trabalho é constituído por três principais partes: primeiramente, minha relação com o poema é apresentada, assim como a concepção de leitura que sustenta este trabalho, o conceito de metáfora de Michel Pêcheux e a apresentação do clamor como metáfora; já a segunda parte refere-se às memórias consequentes da leitura de “Redes sociais” e são apresentados três textos, de diferentes gêneros e contextos, que também possuem o clamor em suas estruturas e configurações; e, para finalizar, a terceira parte visa um estudo sobre a discursividade do texto, objetivando explicar esse poema que, a partir do clamor, ensina ao leitor/ouvinte. Para isso, apresentarei os jogos de sentidos que envolvem a paródia e a parábase, assim como o clamor e o pedido e, em seguida, concluirei que o clamor possibilita um viés pedagógico no texto, proporcionando que o leitor/ouvinte se observe e aprenda. Encerrarei este trabalho propondo que “Redes sociais”, do mesmo modo como a própria literatura, pode ser compreendido a partir desse clamor.

Palavras-chave: Clamor. Literatura. Metáfora de leitura.

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RESUMEN

El poema “Redes Sociais” de Bráulio Bessa Uchoa es un texto de 2018 que fue publicado en el libro Poesia que transforma y oralizado en el programa de televisión Encontro com Fátima Bernardes, de la Rede Globo, que resultó en un video de performance publicado y compartido en internet y que obtuvo numerosas vistas. El poema se convirtió en un texto de amplia circulación y, por eso, buscando comprender la estructura que brinda tal potencialidad y alcance a la obra, este estudio busca proponer una forma de lectura de “Redes Sociais” a partir de la metáfora del clamor. Para eso, este trabajo consta de tres partes principales: en primer lugar, se presenta mi relación con el poema, así como la concepción de lectura que sustenta esta obra, el concepto de metáfora de Michel Pêcheux y la presentación del clamor como metáfora; la segunda parte se refiere a las memorias resultantes de la lectura de “Redes Sociais” y se presentan tres textos, de diferentes géneros y contextos, que también tienen el clamor en sus estructuras y configuraciones; y, finalmente, la tercera parte apunta para un estudio sobre la discursividad del texto, con el objetivo de explicar este poema que, desde el clamor, enseña al lector/oyente. Para eso, presentaré los juegos de sentidos que involucran la parodia y la parábasis, así como el clamor y la petición, y luego concluiré que el clamor habilita la noción de pedagogía en el texto, haciendo posible que el lector/oyente observe a sí mismo y aprenda.

Terminaré este trabajo proponiendo que “Redes sociais”, del mismo modo que la propia literatura, puede ser comprendido desde el clamor.

Palabras-clave: Clamor. Literatura. Metáfora de lectura.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ... 9

2. DA LEITURA COMO RELAÇÃO À METÁFORA DO CLAMOR ... 16

2.1 O CLAMOR EM “REDES SOCIAIS” ... 16

2.2 O CLAMOR COMO METÁFORA DE LEITURA ... 21

2.3 A METÁFORA DO CLAMOR ... 24

3. MEMÓRIAS DO CLAMOR ... 28

3.1 O CLAMOR EM AUTO REPRESENTADO NA FESTA DE SÃO LOURENÇO, DE JOSÉ DE ANCHIETA ... 28

3.2 O CLAMOR EM “BROSOGÓ, MILITÃO E O DIABO”, DE PATATIVA DO ASSARÉ ... 33

3.3 O CLAMOR EM “QUEM MATOU APARECIDA? HISTÓRIA DE UMA FAVELA- DAQUE ATEOU FOGO ÀS VESTES”, DE FERREIRA GULLAR ... 35

4. O CLAMOR EM “REDES SOCIAIS” E NA LITERATURA ... 40

4.1 PARÓDIA E PARÁBASE ... 41

4.2 CLAMOR E PEDIDO ... 45

4.3 O CLAMOR E A LITERATURA ... 51

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 55

REFERÊNCIAS ... 58

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1 INTRODUÇÃO

Em 2019, no meu Trabalho de Conclusão de Curso de graduação em Letras1, propus uma leitura dos poemas de Bráulio Bessa Uchoa, procurando compreender o motivo do repentino interesse de familiares e de inúmeros brasileiros por esses textos. Embora essa pesquisa tenha alcançado resultados importantes e interessantes, configurou-se em um início, devido à falta de tempo para aprofundá-la. Desse modo, esta dissertação visa dar continuidade ao estudo, objetivando alcançar maiores resultados.

O texto estudado neste trabalho é o poema “Redes sociais” (BESSA, 2018a; 2018b), de Bráulio Bessa Uchoa, que me prendeu o interesse por meio dos significados estabelecidos pelo clamor presente na obra. Esse poema aborda a temática das redes sociais, narrando ao receptor quais as principais características desse meio virtual, e finda clamando para que os leitores/ouvintes reflitam sobre o uso das redes sociais e vivam a vida e o real.

O objetivo desta pesquisa é propor uma leitura de “Redes sociais” a partir da metáfora do clamor, a qual considero como um ponto central na estrutura do poema. Com isso, busco compreender que texto é esse que, a partir do clamor, visa chamar a atenção, solicitar por uma tomada de posição e, principalmente, ensinar o leitor/ouvinte, apresentando mecanismos para isso.

“Redes sociais”, assim como os demais poemas de Bráulio Bessa, tornou-se famoso no contexto atual devido à ampla disseminação por meio de publicações em redes sociais, aparições em rede televisiva e também em palestras de fomento à cultura realizadas pelo autor.

Inúmeros leitores se constituíram e outros se mantiveram ativos na leitura a partir da aproximação com esse poema e, por isso, uma justificativa para esta pesquisa está centrada na necessidade de compreender qual a força e a configuração desse texto, que proporciona um significativo interesse dos leitores.

Ao ler “Redes sociais” e deparar-me com solicitações por reflexões acerca do comportamento dos receptores, recordei de distintas vivências nas quais fui submetida a pedidos aflitos por conscientização religiosa, ambiental, emocional etc., ou então à valorização de atitudes e valores relativos à moralidade.

Percebi que a força de “Redes sociais” em atrair o público e, mais do que isso, em sensibilizá-lo com o conteúdo apresentado era significativa e continha uma força motriz: o

1 Pode ser observado em Schaefer (2019).

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clamor. A partir disso, quis entender os mecanismos que envolviam esse clamor e que estavam funcionando para que o texto conseguisse despertar diferentes sensações e sentimentos.

Para propor um modo de ler o poema de Bessa a partir do clamor, inicio da seguinte pergunta: como se lê literatura? Apresentarei três principais teorias referentes a essa temática, as quais tiveram diferentes contribuições nos estudos e pesquisas da teoria da leitura e, a partir dessa contextualização, exibirei a teoria da leitura que sustenta este trabalho.

Leitura é a “arte de ler”, e tal arte vem sendo estudada, nas últimas décadas (ou séculos), por diferentes pesquisadores que se interessam pelo assunto. A teoria da leitura que dominou os estudos literários, bem como o ensino em sala de aula nas últimas décadas – e continua presente em muitos desses espaços –, se constitui a partir do entendimento de que o texto guia o leitor no processo da leitura.

Essa teoria foi levantada por Wolfgang Iser, pesquisador e professor alemão, que afirma:

“Sendo uma atividade guiada pelo texto, a leitura acopla o processamento do texto com o leitor;

este, por sua vez, é afetado por tal processo” (ISER, 1999, p. 97). No viés apresentado, é possível compreender o texto como guia do leitor, não havendo espaço para memórias ou percepções individuais de quem lê, o que resulta em interpretações ou compreensões lineares e uniformes de um texto, mesmo que lido por diferentes pessoas.

Iser, por meio dessa teoria, também se posiciona sobre o vínculo entre texto e leitor em momentos de ausência de conteúdo, afirmando que, mesmo nesses momentos, em que o leitor é responsável pela condução do entendimento “sozinho”, não o faz sem interferência do texto:

“Os lugares vazios omitem as relações entre as perspectivas de apresentação do texto [...] eles fazem com que o leitor aja dentro do texto, sendo que sua atividade é ao mesmo tempo controlada pelo texto” (ISER, 1999, p. 107).

A teoria de Iser muito influenciou para a leitura de textos literários, e se trata de uma perspectiva tão atual e condizente com a realidade que basta recordar meu processo de alfabetização e escolarização, ou, anos mais tarde, meu ensino médio, cursos pré-vestibulares e, depois, estágios de docência do curso de licenciatura em Letras, que me deparo com frases pronunciadas por professores/as, como: “precisamos compreender o que o autor quis dizer”.

Esses movimentos acabam por desconsiderar as relações individuais de cada leitor com o texto, assim como suas memórias, limitando o entendimento exclusivamente ao conteúdo textual apresentado.

Em contrapartida, enquanto uma segunda concepção, Umberto Eco propôs uma teoria da leitura oposta, na qual apresenta a perspectiva de que é o leitor quem guia o texto. Nesse

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caso, é possível explicar o porquê de cada leitor constituir um entendimento, uma interpretação diferente frente à leitura de uma mesma obra. Como afirma Eco:

A poética da obra "aberta" tende [...] a promover no intérprete "atos de liberdade consciente", pô-lo como centro ativo de uma rede de relações inesgotáveis, entre as quais ele instaura sua própria forma, sem ser determinado por uma necessidade que lhe prescreva os modos definitivos de organização da obra fruída [...] O leitor do texto sabe que cada frase, cada figura se abre para uma multiformidade de significados que ele deverá descobrir; inclusive, conforme seu estado de ânimo, ele escolherá a chave de leitura que julgar exemplar, e usará a obra na significação desejada (fazendo-a reviver, de certo modo, diversa de como possivelmente ela se apresentara numa leitura anterior) [...] Está claro que não há outras leituras possíveis [para alguns casos, e] o intérprete pode orientar-se mais para um sentido do que para outro, no âmbito dessa frase de quatro estratos, mas sempre segundo regras de univocidade necessária e preestabelecida. (ECO, 1993, p. 41-43).

Segundo Eco, é o leitor o responsável por atribuir sentidos ao texto, utilizando, para isso, suas memórias, vivências e concepções de mundo. Como mencionado, nesse viés o leitor é quem determina o significado da leitura, que é resultante de um conjunto de elementos, de seu estado de ânimo, e até sua maturidade e suas vivências. Desse modo, o entendimento de um mesmo texto pode ser distinto se realizado em momentos diferentes, seja algumas horas, dias ou anos depois.

Nessa mesma perspectiva, Michèle Petit, em seu texto “Para que serve a leitura?” – presente no livro Ler o mundo: experiências de transmissão cultural nos dias de hoje –, apresenta-nos a multiplicidade e diversidade de interpretações e sentidos que cada leitura proporciona para quem lê, tornando cada experiência tão singular por conta das memórias e vivências particulares (PETIT, 2019, p. 37).

Petit propõe que, para muitos leitores, a leitura é necessária para além de critérios acadêmicos e de estudo em geral, existindo nela um papel vital em suas vidas, sendo um auxílio para organizar suas memórias, relações, experiências e sua identidade.

Ao ouvir lembranças de leituras das pessoas, dentre eles muitos filhos de imigrantes, logo me espantei ao constatar que essas lembranças eram, muito frequentemente, associadas a metáforas espaciais. Mais precisamente, meus interlocutores falavam de um espaço que lhes teria, literalmente, dado lugar, “os livros eram uma terra de asilo”,

“eram a minha paisagem” [...]. (PETIT, 2019, p. 43).

Para esses leitores, a interpretação de cada texto é singular, pois refere-se às suas vivências, às suas realidades e ao que guardam nas suas lembranças. Michèle Petit menciona que “para cada pessoa, ler e se lembrar de suas leituras [...] serve para projetar no cotidiano um pouco de beleza, dar um plano de fundo poético à vida [...]” (PETIT, 2019, p. 51).

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Nesse sentido, fragmentos específicos de cada texto se sobressaem e chamam atenção do leitor, fazendo com que fiquem marcados na lembrança. Esse trecho marcante tem relação com a vida, as emoções e os sentimentos do leitor. E é por isso que, às vezes, ao voltar para uma leitura anos depois, ocorre uma decepção ao não encontrar mais tal sensação e sentimento – visto que já não há o mesmo sentido de antes. E assim vice e versa.

Eco (1993) e Petit (2019) trazem um entendimento da teoria da leitura com o leitor sendo o guia no ato da leitura e, assim, quem determina a interpretação, o que torna o entendimento das obras variável conforme cada leitor. Para esse modo de entender a leitura, a centralidade está no leitor, enquanto na proposta de Iser (1999) está no texto.

Até aqui apresentei duas abordagens relevantes para o entendimento da leitura, que contribuíram muito para os estudos da área e proporcionaram, sobretudo, a possibilidade do desenvolvimento de novas propostas e perspectivas para a teoria da leitura. Desse modo, apontarei agora para uma terceira possibilidade: refiro-me à teoria da leitura como relação entre o texto e o leitor.

Elaborada e proposta pelo professor e pesquisador Daniel Link (2002), essa teoria dialoga com o modo de entender a intervenção analítica definida por Lacan, a qual “faz fronteira com a descrição e com a interpretação e não deveria ser confundida com uma nem com a outra”

(LINK, 2002, p. 19). Daniel Link apresenta a leitura como uma correlação entre duas séries de sentido: uma que vem do texto e outra do leitor. Como Link afirma: “O sujeito lê um objeto.

Chamemos 1 ao objeto; 2 ao sujeito; 3 à relação entre sujeito e objeto: o que chamamos leitura é a correlação de duas séries de sentido, uma inerente ao objeto e outra inerente ao sujeito [...]”

(LINK, 2002, p. 19, grifo do autor).

De acordo com essa teoria, a leitura acontece quando é constituído um sentido entre o texto/objeto e o leitor/sujeito, demostrando que ambos possuem relevância equivalente no processo de construção de sentido para uma obra. Link explica que sem essa relação estaríamos diante de outras experiências, que não leitura, mas sim da descrição e interpretação: “Se o que aparece é apenas série de sentidos ‘que vem’ do objeto e apenas do objeto, estamos diante de uma descrição. Se o que se impõe é a série de sentidos do sujeito [...], estamos diante de uma interpretação.” (LINK, 2002, p. 19).

Com base nisso, em sua teoria de leitura como relação, Link (2002, p. 29) afirma que

“todos os textos podem ser lidos ou que encontrarão uma série em relação com a qual seu sentido apareça”. Isso demonstra que, para esse autor, diferentes obras podem ser lidas e interpretadas, pois constituirão sentidos ao leitor no ato de ler; desse modo, seja um texto considerado erudito ou relativo à cultura de massa, seja de alto ou baixo nível de complexidade,

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seja antigo ou novo, escrito por um autor renomado ou uma pessoa desconhecida... Não importa, para a teoria da leitura como relação todos os textos podem ser lidos de igual forma.

Isso reforça o potencial dessa teoria para que diferentes textos sejam alcançados, sem distinção por gênero textual, estilo ou qualquer outra categoria que possa ser considerada com maior ou menor relevância. Sendo assim, a teoria de Link constitui uma espécie de subversão do cânone literário em nome da relação do leitor com os textos, e acolhe todas as obras, já que a leitura não é determinada somente pelo conteúdo escrito, nem somente pelo leitor, mas sim, depende da relação entre os dois.

Antoine Compagnon (1999), em seu livro O Demônio da Teoria – Literatura e senso comum, trabalhou o conceito do valor na literatura, compreendendo que

Toda teoria, pode-se dizer, envolve uma preferência, ainda que seja pelos textos que seus conceitos descrevem melhor, textos pelos quais ela foi provavelmente instigada [...] Entre os New Critics, dos quais muitos eram também poetas, a valorização da analogia e da iconicidade favorecia a poesia em detrimento da prosa. Em Barthes, a distinção entre texto legível e texto escriptível, abertamente valorativa, privilegia os textos difíceis ou obscuros. No estruturalismo, em geral, o desvio formal e a consciência literária são valorizados em oposição à convenção e ao realismo [...] Todo sistema literário depende de um sistema de preferências, consciente ou não. A possibilidade e a necessidade de objetividade e de cientificidade vão ser, ao longo do século XX, questionadas, como o fez a hermenêutica, até a exaustão.

(COMPAGNON, 1999, p. 226).

A partir desse entendimento, Campagnon passou a levantar perspectivas de pensadores e teóricos sobre aspectos do valor e do cânone literário, comentando os diferentes pontos de vista sobre o que é um clássico, quais as defesas do objetivismo e do subjetivismo, entre outras questões relacionadas. O crítico literário afirmou que “Não é possível definir racionalmente um valor. Um sensus communis, um consenso, um cânone, pode nascer, às vezes, de maneira empírica e errática, mas não constitui nem um universal, nem um a priori” (COMPAGNON, 1999, p. 233).

Nesse sentido, visando encontrar um equilíbrio entre a atribuição de valor ao texto e o relativismo total, Compagnon (1999) apresentou, entre outras teorias, questionamentos e reflexões, duas perspectivas sobre o clássico: uma que o considera liberal e universal e outra nacional, visando manter uma tradição. Ao finalizar sua reflexão sobre o tema, afirmou que: “O valor literário não pode ser fundamentado teoricamente: é um limite da teoria, não da literatura”

(COMPAGNON, 1999, p. 233).

Ainda referente ao valor atribuído a uma obra, o artista Salvador Dali, de acordo com Daniel Link (2012 p. 26), “propõe um método paranoico-crítico para ler imagens triviais [...]

capaz de devolver às imagens mais estereotipadas o sentido que perderam”. Esse método

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depende de uma série e a imagem será, nesse sentido, analisada a partir de tal série, num ato de imposição de sentidos. Dali, a partir dessa proposta que visa devolver sentidos para uma obra, está modificando e, de certa forma, desafiando a estrutura convencional de atribuição de valor.

Assim também faz Daniel Link, ao propor a teoria da leitura como relação entre o texto e o leitor, mostrando que não é possível afirmar que um texto tem mais ou menos valor que o outro. Para Link, o valor de uma obra depende da relação, que é incontrolável. Essa ampla forma de entender os textos determina que todos podem ser lidos e proporcionar (ou não) significativos sentidos ao leitor.

Diante disso, uma das possibilidades para a resposta da pergunta anterior – como se lê literatura? – é partindo da noção de leitura como relação, que reconhece a importância do texto sem deixar de reconhecer o papel do leitor. Dessa forma, essa abordagem constitui-se como um pilar para o desenvolvimento desta pesquisa. Compreendo, com Link, que frutíferos estudos, pesquisas e teorias podem ser desenvolvidos a partir da concepção de leitura como relação entre texto e leitor.

Nessa direção, o entendimento de literatura deste trabalho é baseado em Antônio Candido, a partir da seguinte afirmação presente no texto “O direito à literatura”:

Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações. (CANDIDO, 2013, p. 176).

Esse entendimento abrangente da literatura, junto com a teoria de Daniel Link, permite considerar todos os textos e não estabelecer valores a priori para as obras. Além disso, a partir dessa teoria, um texto não pode ser menosprezado ou enaltecido pelo seu estilo ou tipo.

Nesse sentido, irei apresentar um modo de ler “Redes sociais” a partir de três principais momentos: primeiramente, no capítulo 2 “Da leitura como relação à metáfora do clamor”, iniciarei apresentando a minha relação com o poema, principalmente no que se refere ao clamor e aos sentidos que me são estabelecidos no ato da leitura.

No subitem 2.1, “O clamor em ‘Redes sociais’”, apresentarei o poema, suas características, estrutura e o aparecimento do clamor; já no subitem 2.2, “O clamor como metáfora de leitura”, proporei uma forma de chamar e apresentar esse clamor, apontando para a conceituação de metáfora com base em Michel Pêcheux; em seguida, para fechar o capítulo 2, no subitem 2.3, “A metáfora do clamor”, contextualizarei o clamor como metáfora no poema

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e explicarei como a estrutura do texto é montada para se dirigir ao clamor, e este divide o poema em duas partes, uma relativa à narrativa e outra à solicitação/clamor ao receptor.

No capítulo 3, “Memórias do clamor”, apresentarei e comentarei três obras lembradas a partir da leitura de “Redes Sociais” e que também possuem o clamor em sua estrutura, com os subitens: 3.1 “Clamor em Auto representado na festa de São Lourenço, de José de Anchieta”;

3.2 “Clamor em ‘Brosogó, Militão e o Diabo’, de Patativa do Assaré”; e 3.3 “Clamor emQuem matou Aparecida? História de uma favelada que ateou fogo às vestes’

,

de Ferreira Gullar”.

Após expor e contextualizar essas obras lembradas na leitura de “Redes sociais”, concluirei propondo que os textos relembrados, assim como no poema de Bessa, iniciam contando uma história, para, em seguida, com o clamor, entrarem em um diálogo direto com o receptor e solicitarem algo. Todas as obras mencionadas também visam, a partir do clamor, ensinar o receptor.

No capítulo 4, “O clamor em ‘Redes sociais’ e na literatura”, construirei uma possibilidade de explicação para a discursividade do poema, visando mostrar que essa obra é movida e sustentada pelo clamor e que, tanto o poema de Bessa como a própria literatura podem ser lidos a partir dele. Apresentarei, para isso, dois principais jogos de sentidos que emergem do clamor presente no poema: com o subitem 4.1, “Paródia e parábase”, explicarei a divisão ocorrida na estrutura do poema a partir da noção de paródia séria e de parábase; e com o subitem 4.2, “Clamor e pedido”, proporei uma relação entre a voz do sujeito poético e seu significado, demonstrando o poder da retórica em “Redes sociais”.

Por fim, com o subitem 4.3, “O clamor e a literatura”, encerrarei o capítulo propondo uma tentativa de entender a discursividade do clamor presente no poema, mostrando que ele proporciona um espaço para que o sujeito poético se dirija ao leitor, para solicitar que o leitor olhe a si mesmo e, assim, observe, pense e aprenda. Sugerirei que é possível compreender tanto

“Redes sociais” como a própria literatura a partir do clamor, pois a literatura aparenta se dirigir ao leitor e visar ensinar algo, mas normalmente de forma implícita, enquanto no poema de Bessa esse movimento ocorre explicitamente.

As conclusões, por fim, cumprirão o papel de articulação geral do trabalho, com o ob- jetivo de apresentar uma síntese da proposta de leitura desenvolvida.

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2 DA LEITURA COMO RELAÇÃO À METÁFORA DO CLAMOR

Conheci o poema “Redes sociais”, responsável pelo objeto principal da pesquisa que deu origem a este trabalho, em meados de 2019, quando deparei-me com a obra do poeta Bráulio Bessa Uchoa a partir da indicação de dois grandes fãs do artista: meus pais. Minha motivação inicial para realizar a leitura desses poemas originou-se da tentativa de compreender o porquê do interesse repentino de meus pais, antes não leitores, pela poesia de Bessa.

Na busca pela resposta, adquiri todos os livros do poeta e li e reli seus textos, assim como conheci a história do autor e passei a acompanhar suas aparições na mídia, sendo a Rede Globo, o Facebook, o Instagram e o YouTube os principais veículos em que se manifestava.

Além disso, tive duas oportunidades de acompanhar o trabalho do poeta presencialmente, em eventos específicos realizados nas cidades de Carazinho/RS e Chapecó/SC, para os quais Bessa foi convidado a ministrar palestras de fomento à cultura.

Após conhecer a obra de Bráulio Bessa, fiquei impressionada com seus poemas, principalmente “Redes sociais”. Um ponto que me chamou muito a atenção foi a forma com que o texto atrai os receptores, porque ao ler ou ouvir “Redes sociais” eu me sentia conectada com o sujeito poético, como se o poema me dirigisse a diferentes sentimentos no decorrer dos versos.

2.1 O CLAMOR EM “REDES SOCIAIS”

Ao realizar a leitura, a escuta e a visualização do poema “Redes sociais”, de Bráulio Bessa, percebi que havia algo que me chamava a atenção, que me prendia na leitura por parecer gritar nos textos do autor. O que ressoava e ainda ressoa nesse poema, para mim, é a forma com que o sujeito poético pede por algo, solicitando por atitudes que competem à reflexão e à moralidade. Em “Redes sociais”, esse pedido ou súplica aparece representada pelo clamor, que é exposto textualmente nesse poema publicado no livro Poesia que transforma (2018a, p. 62), que compartilho a seguir, na íntegra.

Redes Sociais

1 - Lá nas redes sociais 2 - o mundo é bem diferente, 3- dá pra ter milhões de amigos 4 - e mesmo assim ser carente.

5 - Tem like, a tal curtida, 6 - tem todo tipo de vida

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7 - para todo tipo de gente.

8 - Tem gente que é tão feliz 9 - que a vontade é de excluir.

10 -Tem gente que você segue 11 - mas nunca vai lhe seguir.

12 - Tem gente que nem disfarça, 13 - diz que a vida só tem graça 14 - com mais gente pra assistir.

15 - Por falar nisso, tem gente 16 - que esquece de comer, 17 - jogando, batendo papo 18 - nem sente a fome bater.

19 - Celular virou fogão, 20 - pois no toque de um botão 21 - o rango vem pra você.

22 - Mudou até a rotina

23 - de quem está se alimentando.

24 - Se a comida for chique, 25 - vai logo fotografando.

26 - porém, repare, meu povo:

27 - quando é feijão com ovo 28 - não vejo ninguém postando.

29 - Esse mundo virtual 30 - tem feito o povo gastar.

31 - exibir roupas de marca, 32 - ir pra festa, viajar.

33 - e claro, o mais importante, 34 - que é ter, de instante a instante, 35 - um retrato pra postar.

36 - Tem gente que vai pro show 37 - do artista preferido,

38 - no final volta pra casa 39 - sem nada ter assistido, 40 - pois foi lá só pra filmar.

41 - Mas pra ver no celular, 42 - nem precisava ter ido.

43 - Lá nas redes sociais 44 - todo mundo é honesto, 45 - é contra a corrupção, 46 - participa de protesto, 47 - porém, sem fazer login, 48 - não é tão bonito assim.

49 - O real é indigesto...

50 - Fura a fila, não respeita 51 - quando o sinal tá fechado, 52 - tenta corromper um guarda 53 - quando está sendo multado.

54 - Depois, quando chega em casa, 55 - digitando mete brasa

56 - criticando um deputado.

57 - Lá nas redes sociais 58 - a tendência é ser juiz

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59 - e condenar muitas vezes 60 - sem saber nem o que diz.

61 - Mas não é nenhum segredo 62 - que quando se aponta um dedo 63 - voltam três pro seu nariz.

64 - Conversar por uma tela 65 - é tão frio, tão incerto.

66 -Prefiro pessoalmente, 67 -pra mim sempre foi o certo.

68 - Soa meio destoante, 69 - pois junta quem tá distante 70 - mas afasta quem tá perto.

71 - Tem grupo de todo tipo, 72 - com todo tipo de conversa 73 - com assuntos importantes 74 - e outros, nem interessa.

75 - Mas tem uma garantia:

76 - receber durante o dia 77 - um cordel do Bráulio Bessa.

78 - E se você receber 79 - esse singelo cordel, 80 - que eu escrevi à mão 81 - num pedaço de papel, 82 - que tem um tom de humor 83 - mas no fundo é um clamor 84 - lhe pedindo pra viver.

85 - Viva a vida e o real 86 - pois a curtida final

87 - ninguém consegue prever. (BESSA, 2018a, p. 62, numeração nossa).

O que despertou a minha atenção nesse poema foi a sua ludicidade, ritmo e conteúdo, e, por isso, deixou em mim a sensação de prazer ao realizar a leitura e também ao acompanhar a performance de Bessa. O autor oralizou esse poema apresentando uma performance ao vivo, na Rede Globo, no dia 17 de agosto de 2018, no quadro Poesia com Rapadura, do Programa Encontro com Fátima Bernardes. A declamação se deu junto a um cenário com um fundo marcado pelo texto do poema, assim como ilustrações, cores e sons associados à forma com que a mídia, de modo geral, normalmente contextualiza a região Nordeste.

O poeta declamou “Redes sociais” de pé e em voz alta, estava sendo assistido pelos participantes e pela plateia do programa, e também por numerosos telespectadores, que acompanharam o momento exato dessa performance ou então assistiram o vídeo posteriormente, em sites da internet ou até mesmo em compartilhamentos da gravação nas redes sociais.

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Figura 1 – Bráulio Bessa declamando seu poema no programa da Fátima Bernardes, na rede Globo

Fonte: Bessa (2018b).

Com relação à construção do poema, “Redes sociais” é constituído por onze septilhas (estrofes com sete versos) e uma décima (estrofe com dez versos), totalizando doze estrofes. As rimas presentes são externas, ou seja, ocorrem no final dos versos; consoantes, pois apresentam semelhanças tanto de vogal quanto de consoantes; e pobres, sendo que a maior parte das rimas é configurada por classes gramaticais iguais, e os sons posteriores à vogal tônica são idênticos.

O ritmo do poema é assimétrico, em função de os versos serem constituídos sem uma padronização de número de sílabas poéticas, as quais variam de cinco a oito e aparecem de forma aleatória. De acordo com Goldstein, no caso do ritmo assimétrico: “O modo de compor associa-se à temática do poema para traduzir um modo de vida, um conjunto de valores, uma visão de mundo” (GOLDSTEIN, 2004, p. 25). Isso leva à reflexão sobre qual a proposta desses poemas, por utilizarem diferentes recursos estruturais na sua produção.

É possível perceber que elementos com diferentes propósitos são utilizados na obra:

versos em septilhas e décima, rimas externas e a presença de redondilha maior em parte dos versos, sobre a qual Goldstein (2004) explica:

O verso de sete sílabas é heptassilábico ou redondilha maior, é o mais simples, do ponto de vista das leis métricas. Basta que a última sílaba seja acentuada; os demais acentos podem cair em qualquer outra sílaba, talvez por isso ele seja o verso predominante nas quadrinhas e canções populares. Verso tradicional em língua portuguesa, já era frequente nas cantigas medievais. (GOLDSTEIN, 2004, p. 36).

Isso remete a uma estrutura simples, que visa simplificar a leitura, facilitando o entendimento e a memorização. A partir dessas características, é possível associar a construção

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de “Redes sociais” a uma aproximação da estrutura tradicional do cordel (no verso 79 o poema é chamado assim), mas com traços de modernidade.

“Redes Sociais” é um poema de Bessa que teve muita repercussão e visibilidade, alcançando muitos leitores e ouvintes. Foi exibido em TV aberta também se disseminou nas redes sociais, onde foi visualizado numerosas vezes2. O poema mantém proximidade com as canções populares que, com suas formas e rimas, facilitam a memorização de conteúdo pelo leitor/ouvinte. Entre os aspectos que remetem à fixação do poema estão: a presença frequente de ritmo binário ou ternário (marcados pela alternância entre sílabas fortes e fracas nos versos), as rimas emparelhadas, interpoladas e externas e a presença de performance.

Seja no seu quadro televisivo, na grande parte dos vídeos que publica em redes sociais ou então nas palestras em que Bessa declama esse poema, a performance está presente, no ambiente, nas vestimentas e usos de acessórios pelo poeta, bem como na entonação de voz e gestos envolvidos. Outra característica da obra é sua escrita em linguagem coloquial, que pode ser compreendida sem dificuldade por diferentes leitores/ouvintes, tornando o texto acessível.

Sobre a temática, o poema aborda o uso das redes sociais pelos indivíduos, sendo que o sujeito poético está apresentando, no decorrer dos versos, seu ponto de vista sobre o tema. Ao longo da obra são anunciadas as principais características das redes sociais para, ao findar, o sujeito poético clamar pela reflexão e por uma tomada de posição da parte de seus leitores/ouvintes, pedindo para que vivam “a vida” e “o real”:

mas no fundo é um clamor lhe pedindo pra viver.

Viva a vida e o real pois a curtida final

ninguém consegue prever. (BESSA, 2018a, p. 62).

A palavra clamor, que aparece nessa estrofe final, despertou minha atenção porque parece atribuir ao texto uma marca de divisão em dois momentos, duas forças no poema. Esse clamor, que solicita por algo somente após uma longa exposição do sujeito poético a respeito de seu entendimento e ponto de vista sobre as redes sociais, torna, para mim, o clamor muito importante e considero, assim, que pode ser um modo de ler o poema de Bráulio Bessa.

2 É possível observar isso, por exemplo, no vídeo “Lá nas redes sociais Bráulio” (BESSA, 2018d), no link https://www.youtube.com/watch?v=f1cNmeU4f5w, na plataforma Youtube. Esse vídeo possui em 06/11/2022 um total de 531 mil visualizações.

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Considerando esse clamor como aspecto central para a minha leitura de “Redes sociais”, no tópico seguinte adentrarei no estudo sobre a noção de metáfora a partir de conceitos de Michel Pêcheux, buscando relacionar o clamor com esse conceito de metáfora.

2.2 O CLAMOR COMO METÁFORA DE LEITURA

O que surge a partir da minha relação com o poema “Redes Sociais” é o clamor.

Considero esse o ponto central da obra, levando em consideração a relação particular entre eu- leitora e o texto. Mas o que é esse clamor? Como posso chamá-lo? Como é possível explicar que uma palavra tenha me despertado tantos significados e tanto interesse?

Encontro suporte para responder a essas perguntas no livro Semântica e Discurso (1995), de Michel Pêcheux, que apresenta uma definição para metáfora que não está relacionada à perspectiva da semântica formal, mas sim à:

[...] concepção do processo de metáfora como processo socio-histórico que serve como fundamento da “apresentação” (donation) de objetos para sujeitos, e não como uma simples forma de falar que viria secundariamente a se desenvolver com base em um sentido primeiro, não-metafórico, para o qual o objeto seria um dado natural, literalmente pré-social e pré-histórico. (PÊCHEUX, 1995, p. 132).

Pêcheux (1995, p. 262) afirma que a metáfora "se localiza no ponto preciso em que o sentido se produz no non-sens”. Esse sentido, como expõe Pêcheux, é um efeito ideológico e o autor explica que “um efeito de sentido não preexiste à formação discursiva na qual ele se constitui [,mas sim corresponde ao processo de] interpelação do indivíduo em sujeito [,tornando-se] sujeito do discurso, sob o efeito do interdiscurso” (PÊCHEUX, 1995, p. 261), que é a memória, o já-dito e o cruzamento entre os discursos já existentes no sujeito.

Assim, é possível relacionar o sentido que me é estabelecido para o clamor com um efeito de sentido que foi constituído a partir da leitura do poema “Redes sociais”, que originou- se a partir de uma metáfora, e está localizada no ponto da formação desse sentido. Nesse caso, a metáfora é o clamor, que é um efeito das minhas memórias, dos discursos que já conheço e vivenciei até aqui. Pêcheux nos ajuda a entender e explicar que é a partir da leitura, quando o leitor é constituído no ato de uma leitura, que os sentidos são originados/constituídos, sob o efeito dos discursos já-ditos, ou seja, da memória desse sujeito.

Em sua conceitualização de metáfora, Pêcheux afirma que “a metáfora constitutiva do sentido é sempre determinada pelo interdiscurso” (PÊCHEUX, 1995, p. 263) e, assim, é

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possível compreender que da mesma forma que o clamor, para mim, proporcionou determinado sentido, para outra pessoa (ou para mim mesma em outro momento), poderia determinar um sentido distinto, porque o sentido de cada leitor atrelará o clamor a outros já-ditos, ou seja, outras memórias. Desse modo, a metáfora não possui uma definição fixa ou um sentido padrão, mas sim, é constituída pela relação de distintos discursos:

É sobre essa concepção da metáfora que se baseia o que adiantamos acima dizer que uma palavra, uma expressão ou uma proposição não tem um sentido que lhes seria próprio, preso a sua literalidade [...] o sentido é sempre uma palavra, uma expressão, ou uma proposição por uma outra palavra, uma outra expressão ou proposição.

(PÊCHEUX, 1995, p. 263).

A ideologia apresenta evidências para definir que algo é o que é, ou que quer dizer o que de fato diz, mas essas evidências mascaram o que Pêcheux chamou de o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados, que depende do interdiscurso.

Propomos chamar interdiscurso a esse “todo complexo com dominante” das formações discursivas. [...] o próprio de toda formação discursiva² é dissimular, na transparência do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso, que determina essa formação discursiva como tal, objetividade material essa que reside no fato de que “algo fala” (ça perle) sempre antes, em outro lugar e independentemente, isto é, sob a dominação do complexo das formações ideológicas.

Descobrimos, assim, que dois tipos de discrepância, respectivamente, o efeito de encadeamento do pré-construído e o efeito que chamamos articulação – que consideramos, de início, como leis psico-lógicas do pensamento – são, na realidade, determinados materialmente na própria estrutura do interdiscurso. (PÊCHEUX, 1995, p.162).

É da relação entre os discursos já-ditos (interdiscurso) que resultam novos enunciados, os quais somente podem ser constituídos a partir das bagagens discursivas do indivíduo. Com base nisso há outro movimento, a atualização dos já-ditos, que Pêcheux define como intradiscurso, explicando que “enquanto fio do discurso do sujeito, é, a rigor, um efeito do interdiscurso sobre si mesmo” (PECHEUX, 1995, p. 167).

Partindo desse pressuposto, entendo que o clamor observado no poema “Redes Sociais”

constitui-se como uma metáfora e, pensando nela como um processo sócio-histórico, compreendo que é formada por memória, ou seja, diferentes discursos e significados para e na história e sociedade. Para cada um desses casos, o clamor esteve presente e constituindo um significado, que agora se atualiza nos poemas de Bráulio Bessa.

A partir desses termos, chega-se ao conceito de discursividade, que significa investigar, ou seja, analisar tais produções/efeitos de sentido. De modo geral, a discursividade é o discurso em funcionamento e, de acordo com Pêcheux (1995, p. 259), a forma da discursividade possui

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em sua constituição o interdiscurso (memórias, já-ditos) e o intradiscurso (atualização dos já- ditos).

Pêcheux (2012) afirma que o interdiscurso torna-se o princípio do funcionamento da discursividade, “porque os elementos da sequência textual, funcionando em uma formação discursiva dada, podem ser importados (metaforizados) de uma sequência pertencente a uma outra formação discursiva que as referências podem se construir e se deslocar historicamente”

(PÊCHEUX, 2012, p. 158).

A discursividade não é a fala ou uma utilização da língua, mas sim um processo que envolve sujeitos e suas memórias, bem como os sentidos produzidos através delas. É no processo da discursividade que se sustenta o estudo para entender determinada metáfora de leitura e seu funcionamento, como neste trabalho a procura pelo entendimento do funcionamento do clamor no poema.

Ou seja, situando tal conjunto de afirmações à constituição da metáfora do clamor por mim, leitora do poema “Redes sociais” de Bráulio Bessa, o sentido que a leitura causou não existia antes do ato de leitura e antes da minha relação com o texto, mas sim, somente após deparar-me com o clamor durante a leitura e ocorrer um movimento do inconsciente, dos esquecimentos e das minhas memórias (interdiscurso), que resultou em um outro modo de olhar para o texto e, consequentemente, para o clamor.

De acordo com Pêcheux, o sujeito do discurso se constitui pelo esquecimento daquilo que o determina, e os discursos que os sujeitos estabelecem nunca são originais, mas sim

“efeito, na forma-sujeito da determinação do interdiscurso como discurso-transverso, isto é, o efeito da ‘exterioridade’ do real ideológico-discursivo, na medida em que ela ‘se volta sobre si mesma’ para se atravessar” (PECHEUX, 1995, p.172).

Pêcheux, a partir do diálogo com a psicanálise, afirma que no inconsciente existem dois esquecimentos inerentes ao discurso: o esquecimento número 1 expõe que o sujeito-falante não pode se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina; enquanto o esquecimento número 2 afirma que todo sujeito-falante “seleciona” no interdiscurso formas e sequências – sendo essa a única possibilidade de autenticidade do sujeito na constituição de seus discursos (PÊCHEUX, 2014, p. 160-165).

Por isso, sendo a constituição da metáfora tão individual a partir da conceituação de Pêcheux, estabelecida por imagens que carregam as memórias de um sujeito quando este lê uma obra, é possível afirmar que cada indivíduo interpreta o texto literário de uma forma particular.

No tópico seguinte, retornarei ao poema “Redes Sociais” para adentrar no processo de intradiscurso, analisando a atualização da metáfora do clamor no poema de Bráulio Bessa.

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2.3 A METÁFORA DO CLAMOR

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa define clamor como:

1 ato ou efeito de clamar 2 gritarias de quem suplica, protesta, reclama, ameaça, aplaude etc. 3 Rogo ou queixa proferida em altas vozes 4 procissões de preces em que os fiéis, juntos, caminham rezando alto 5 P (reg.) procissão expiatória c. público insatisfação e revolta demonstradas publicamente. ETIM lat. “Clamor”, õris

‘“clamor”, de clamãre ‘gritar’; ver clam-; f. hist. cramor SIN/VAR ver sinonímia de assuada, grito, lamentação e rogo. ANT ver antonímia de assuada. (HOUAISS;

SALLES, 2001, p. 735).

Se o clamor é definido como o ato de clamar, suplicar, protestar etc. por meio de gritos, a estrofe final de “Redes sociais” que diz que o poema é “[...] um clamor/ lhe pedindo pra viver [...]” (BESSA, 2018a, p. 62) mostra que o leitor/ouvinte é colocado em uma posição de quem é cobrado a fazer algo, que precisa tomar uma posição, ter uma postura em relação à solicitação imposta.

Desse modo, é possível afirmar que a metáfora do clamor em “Redes sociais” constitui- se como um ponto central do texto, porque marca não uma solicitação qualquer, mas sim algo maior: um clamor que foi antecedido por um contexto narrativo que visava preparar o receptor para tal pedido que chegaria na sequência.

As onze estrofes iniciais de “Redes sociais” constituem-se em uma narrativa apresentada ao leitor/ouvinte e, na maior parte dela3, há um julgamento aos comportamentos citados, considerando-os negativos, como a falsa sensação de amizade e felicidade; a busca incansável e inconsequente por status; entre outros aspectos, conforme os versos a seguir:

Redes Sociais

[...] dá pra ter milhões de amigos e mesmo assim ser carente.

[...] tem gente

que esquece de comer, [...] Se a comida for chique, vai logo fotografando.

porém, repare, meu povo:

quando é feijão com ovo não vejo ninguém postando.

Esse mundo virtual

3 A estrofe 11, anterior à parábase, é a única que apresenta um olhar positivo para as redes sociais, pois quando a

narrativa está explanando sobre a existência de diversos grupos e assuntos, o sujeito poético faz um elogio aos seus próprios poemas: “Mas tem uma garantia:/ receber durante o dia/ um cordel do Bráulio Bessa” (BESSA, 2018a, p. 62).

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tem feito o povo gastar.

[...] e claro, o mais importante, que é ter, de instante a instante,

um retrato pra postar. (BESSA, 2018a, p. 62).

O sujeito poético expõe, nessa narrativa, o seu ponto de vista sobre as redes sociais, como se estivesse contando uma história bem-humorada. Diversos contextos que envolvem as influências das redes sociais são comentados e, nesse sentido, o sujeito poético oferece ao receptor diversos argumentos negativos a respeito das ações mencionadas.

Para descrever as redes sociais e as vivências marcadas por elas ocorre uma separação entre os elementos “lá” e “cá”, que proporciona um posicionamento para o sujeito poético melhor comparar os comportamentos de dentro e de fora dessas redes, como pode ser observada no verso 1 (além de nos versos 7 e 9): “Lá nas redes sociais”, que estabelece indicações de “lá”

= nas redes sociais, relacionado a algo ruim; e, consequentemente, indica um “cá” como = vida fora das redes sociais, relacionado a algo bom. É possível observar esse posicionamento do sujeito poético nas estrofes 9 e 10:

Lá nas redes sociais a tendência é ser juiz e condenar muitas vezes sem saber nem o que diz.

Mas não é nenhum segredo que quando se aponta um dedo voltam três pro seu nariz.

Conversar por uma tela é tão frio, tão incerto.

Prefiro pessoalmente, pra mim sempre foi o certo.

Soa meio destoante, pois junta quem tá distante

mas afasta quem tá perto. (BESSA, 2018a, p. 62).

Com essa separação entre o “lá” e o “cá”, o sujeito poético aponta ao leitor/ouvinte qual é o caminho correto a seguir e o porquê disso, apresentando argumentos para persuadir o receptor a uma visão negativa das redes sociais. Além disso, marca um distanciamento do sujeito poético ao contexto da narração, como se estivesse longe e, quem sabe, superior a isso, posicionamento que fica mais evidente com o verso 5 da segunda estrofe, que diz “tem gente que nem disfarça/diz que a vida só tem graça/ com mais gente pra assistir” (BESSA, 2018a, p.

62), como quem diz: tem gente que é assim, mas eu não sou. Ademais, a oposição aos comportamentos dos usuários também é reforçada pelo “nem disfarça”, afinal, normalmente as pessoas tentariam disfarçar algo que não é positivo.

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De modo geral, o sujeito poético define as redes sociais através de críticas às características comuns ao dia a dia das pessoas, bem como situações cotidianas frequentes à maior parte dos indivíduos que vivem nos tempos atuais, tecnológicos; exemplos disso são as estrofes 4, 5, 8 e 9, referentes à alimentação, roupas, ostentação, likes, ou ainda à falta de respeito e de honestidade.

Como foi possível observar, toda a narrativa apresentada tem uma marca forte de exposição de informações, pontos de vista, e argumentação. Essa marca se solidifica ainda mais com a chegada da última estrofe do texto, em que o sujeito poético encerra o poema com uma estrofe não mais característica de uma narrativa, mas sim de uma conversa com o receptor:

E se você receber este singelo cordel que eu escrevi a mão num pedaço de papel que tem um tom de humor mas no fundo é um clamor lhe pedindo pra viver viva a vida e o real pois a curtida final

ninguém consegue prever. (BESSA, 2018a, p. 62).

Nessa estrofe, já no primeiro verso, o leitor/ouvinte é chamado e o sujeito poético explica que esse poema, apesar de toda a narrativa apresentada e seu tom leve e engraçado é algo maior: um clamor que pede para viver. É possível, a partir da leitura dessa estrofe, compreendeer que há, agora, uma solicitação ao receptor, pedindo uma reflexão sobre suas ações, instigando um modo de olhar para a narrativa apresentada não mais de forma “leve”, mas sim “reflexiva”.

Ao analisar a forma com que o poema é organizado, é possível perceber que, ao chegar na estrofe final, o sujeito poético ofereceu informações e argumentos suficientes para, de certo modo, preparar o receptor para a solicitação feita, já que, ao longo do texto, descreveu as redes sociais, na maior parte das vezes criticando-as e julgando-as, para mostrar e convencer o leitor/ouvinte de que é preciso refletir e usá-las moderadamente. Ao clamar, o sujeito poético está pedindo por algo que abordou ao longo do texto, da primeira à penúltima estrofe, em que vivências cotidianas foram narradas com o intuito de dar subsídios ao leitor/ouvinte para receber o clamor no final.

Em consequência, durante a narrativa o receptor do poema tem uma posição neutra, de quem acompanha o ponto de vista do outro (sujeito poético) e – pela forma com que é escrito ou oralizado, a partir das formas e rimas da escrita ou da performance –, se diverte com o

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poema. Em seguida, ao iniciar a estrofe final, que se dirige ao receptor, este não tem mais papel neutro, pelo contrário, agora recebe uma solicitação e é condicionado a refletir e tomar uma posição diante do clamor recebido.

Nesse sentido, sugiro que a configuração de “Redes sociais” se volta fortemente ao clamor, pois toda a narrativa que antecede a estrofe final está se dirigindo a ele. A metáfora do clamor, nesse texto, divide o poema em dois momentos: um que narra apresentando diversas situações cotidianas relacionadas ao uso das redes sociais num tom de contradição e crítica; e outro que clama, quando o sujeito poético se dirige ao leitor/ouvinte para lhe abrir os olhos diante do contexto exposto. Isso, consequentemente, estabelece diferentes papéis para o receptor do poema, que primeiro recebeu as informações e depois foi convidado a tomar uma posição diante da solicitação recebida.

A partir da leitura que estou construindo para o poema de Bessa, recordei de outros textos da literatura que também contém o clamor em sua estrutura e, assim como “Redes sociais”, primeiramente apresentam uma narrativa e, depois, solicitam uma tomada de posição do leitor/ouvinte. No próximo item adentrarei nas memórias do clamor, apresentando outros textos marcados por ele.

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3 MEMÓRIAS DO CLAMOR

Conforme foi possível construir no capítulo anterior, ao realizar a leitura de “Redes sociais” a metáfora do clamor tornou-se muito forte e significativa para mim, pois é através dela que se solidifica a minha relação com o poema. O clamor aparece na última estrofe, ocasionando uma divisão do texto em duas partes, uma relativa à narrativa e a outra à conversa com o leitor/ouvinte, numa estrofe que se dirige diretamente ao receptor e solicita por reflexão frente às suas ações nas redes sociais.

De acordo com Pêcheux (1995, p. 132) é possível chamar o clamor de metáfora por compreendê-lo como um processo sócio-histórico e que constitui memória. O autor também afirma que elementos de uma sequência textual podem ser importados a outras formações discursivas, ou seja, podem deslocar-se historicamente (2012, p. 158).

A metáfora do clamor carrega memórias e, neste capítulo, adentrarei no âmbito delas ao apresentar e exemplificar outros textos que também apresentam o clamor, assim como o poema de Bessa. De igual modo são divididos em duas partes: uma que narra ao apresentar o assunto e seu contexto; e outra que solicita por algo ao receptor por meio do clamor.

3.1 O CLAMOR EM AUTO REPRESENTADO NA FESTA DE SÃO LOURENÇO, DE JOSÉ DE ANCHIETA

Retornei, inicialmente, a uma peça de 1583, de José de Anchieta, chamada Auto representado na festa de São Lourenço. Escrita em um contexto de colonização do Brasil e catequização dos povos nativos pelo missionário jesuíta, a peça foi representada pelos próprios indígenas em homenagem a São Lourenço. Sua narrativa apresenta o contexto relacionado à religiosidade, mais precisamente ao cristianismo, e ao findar do texto são expostas falas diretas ao leitor/ouvinte, que também solicitam por algo e cobram um posicionamento do receptor.

Desse modo, é possível visualizar uma atualização do sentido do clamor nesse auto de Anchieta.

A proposta de José de Anchieta com a peça era converter os povos nativos, ou seja, desviar os indígenas sua identidade, costumes e rituais para conduzi-los ao catolicismo. Por isso, na peça, os diabos são os próprios deuses dos nativos e o objetivo é demonizá-los, para que os indígenas passassem a acreditar no Deus cristão. Alfredo Bosi, no livro Dialética da colonização (1996), afirma que: “O projeto de transpor para a fala do índio a mensagem católica demandava um esforço de penetrar no imaginário do outro” (BOSI, 1996, p. 65), e é exatamente esse movimento que identifico na peça, principalmente no quarto ato desta, em que há o diálogo

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com o receptor do conteúdo e apresenta-se diretamente a intenção de solicitação por algo através do clamor.

A peça é dividida em cinco atos, começando pela cena do martírio de São Lourenço, representada através de uma canção. Após a mencionada morte, o diabo (indígena) pretende, junto a seus aliados, perverter os nativos. Por isso, o segundo ato contém diálogos e batalhas entre o diabo e os santos, pois estes querem defender a aldeia. Como desfecho dessa parte do texto, os santos matam o diabo e prendem seus aliados e isso traz, consequentemente, a fala do anjo ao público.

No final do segundo ato já é possível identificar um primeiro momento em que um personagem se dirige ao público, quando o anjo faz uma prática aos ouvintes/leitores e dialoga com o receptor da peça, repassando orientações de tranquilidade, engrandecendo o louvor a Deus, a São Lourenço e a São Sebastião, assim como a outros santos. Também é pedido que o demônio seja renegado e os vícios extirpados – conforme é possível observar no trecho:

[...]Tentai

velhos vícios extirpar, e as maldades cá da terra evitai, bebida e guerra, adultério, repudiai

tudo o que o instinto encerra.

Amai vosso Criador cuja lei pura e isenta São Lourenço representa.

Engrandecei ao Senhor que de bens vos acrescenta.

Este mesmo São Lourenço que aqui foi queimado vivo pelos maus, feito cativo, e ao martírio foi infenso, sendo o feliz redivivo.

Fazei-vos amar por ele, e amai-o quanto puderdes, que em sua lei nada se perde.

E confiando mais nele, mais o céu se vos concede.

Vinde

à direita celestial de Deus Pai, ireis gozar junto aos que bem vão guardar no coração que é leal,

e aos pés de Deus repousar [...]. (ANCHIETA, 1973, s. p.).

Posterior a essa interação com o receptor da peça, se chega ao terceiro ato, no qual Aimbirê e Saraiva, aliados do diabo, são ordenados pelo anjo a sufocarem os imperadores, por estes terem matado São Lourenço. O quarto ato é marcado por uma parte muito significativa para este trabalho, em que novamente o anjo dirige-se aos ouvintes/leitores da peça, pregando

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palavras de solicitação. Nesse momento, o corpo de São Lourenço está na tumba e é levado à sepultura. Enquanto isso, os personagens anjo, temor de Deus e amor de Deus dialogam com os receptores, transmitindo palavras de explicação sobre o ocorrido, com reflexões e ensinamentos solicitando aos ouvintes/leitores para que temam e respeitem a Deus, assim como que o amem acima de tudo.

Como mencionado, o ato inicia com a proclamação do anjo, que expõe a grandiosidade de Deus e de São Lourenço, afirmando que no fogo os maus irão se queimar, como ocorreu com os imperadores. O anjo usa todo o acontecimento da peça como exemplo para os receptores da obra, apresentando o ocorrido como uma lição de moral, para que outros indivíduos não repitam o erro de não confiar em Deus e nos santos, ou terão a morte como consequência. É possível visualizar isso no trecho:

Deixai-vos deles queimar como o mártir de São Lourenço, e sereis um vivo incenso que sempre haveis de cheirar

na corte de Deus imenso. (ANCHIETA, 1973, s. p.).

Percebe-se que é apresentado um exemplo, com o objetivo de deixar uma lição aos indígenas, visando orientá-los sobre o caminho correto. Ivanete Maria Klier, em sua pesquisa

“A produção da memória no Auto de São Lourenço, de José de Anchieta” ao referir-se ao trecho da obra mencionado, complementa que “o incenso mostra a imagem do espectador que se quer formar a partir do discurso religioso. O discurso religioso é direcionado ao espectador com o intuito de penetrar no imaginário e acender a palavra divina” (KLIER, 2014, p. 12).

Após a fala do anjo, o temor de Deus proferiu suas palavras, deixando o seu recado para quem há de pecar. Esse discurso apresenta ao receptor a noção do quão doloroso é o inferno, assim como quais passos precisam ser dados (pecados) para que a pessoa seja destinada a ele.

O temor de Deus solicita que o Senhor não deve ser ofendido e, caso isso seja feito, o preço a se pagar será alto. Com afirmações temerosas, como “[...] pois tu verás de contínuo ao horrendo Lúcifer [...]” e “[...] mudar-se-ão alegrias em tristezas e agonias [...]” (ANCHIETA, 1973, s.

p.), o discurso visa apresentar o caminho do inferno, comprovando ao receptor que esta não é a direção que deve seguir. O temor de Deus finaliza dizendo:

Tu o ofendes, ele te ama.

Cegou-se por dar-te a luz.

Tu és mau, pisas a cruz Sobre a qual morreu Jesus.

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Homem cego

porque não começas logo a chorar por teu pecado?

E tomar por advogado A Lourenço que, no fogo, Por Jesus morreu queimado?

Teme a Deus, juiz tremendo, que em má hora te socorra, em Jesus tão só vivendo, pois deu sua vida morrendo

para que tua morte morra. (ANCHIETA, 1973, s. p.).

Tendo o temor de Deus dado seu recado, chega a vez do amor de Deus se manifestar, solicitando os ouvintes que amem a Deus, pois a todos criou e é muito amado. São apresentados muitos argumentos para convencer de que Deus é bom, sendo o principal a obrigação de devoção e eterna gratidão pela criação de cada um, apontando que somente com intermédio dele é possível existir a vida. O amor de Deus argumenta que Deus “Seu próprio filho entregou/

à morte, por te salvar. / Que mais te podia dar, / se tudo o que tem te dou?” (ANCHIETA, 1973, s. p.). Com a fala do amor de Deus é sugerido ao ouvinte um sentimento de gratidão eterna, que deve ser lembrada sempre e retribuída em forma de amor e devoção. Essa parte do quarto ato finaliza com:

Em paga de tudo isto, oh, ditoso pecador, pede apenas teu amor.

Despreza pois todo o resto por ganhar o tal Senhor.

Dá tua vida pelos bens que Sua morte te ganhou.

És seu, nada tens de teu, Dá-lhe tudo quanto tens,

pois tudo o que tem te deu! (ANCHIETA, 1973, s. p.).

Para concluir o quarto ato, entra em cena o momento chamado “despedida”, em que se reforça o pedido para que todos louvem e amem a Deus e aos santos, tendo consciência do zelo de Deus. Um trecho a se destacar, findando o ato quatro, diz: “[...] tomai meu conselho: sua vida e virtude tende por espelho, chamando-o sempre com grande afeição [...]” (ANCHIETA, 1973, s. p.).

Nesse trecho aparece, textualmente, a intenção de aconselhar o receptor da obra, característica que pode ser identificada em todos os momentos da peça em que há discursos diretos ao ouvinte. O quinto ato encerra a peça com uma dança indígena, apresentada pelos próprios nativos na procissão de São Lourenço, acompanhada de uma canção.

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