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De ponta-cabeça: percursos feministas no circo

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Academic year: 2023

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2022

UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES

FACULDADE DE LETRAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

Em colaboração com a Escola Superior de Teatro e Cinema, da Escola Superior de Dança e da Escola Superior de Música do

Instituto Politécnico de Lisboa

DE PONTA-CABEÇA

Percursos Feministas No Circo

Cyntia Carla Cunha Santos

Orientador: Prof. Doutor Rui Manuel Pina Coelho

Tese especialmente elaborada para a obtenção do grau de Doutor em Artes

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2022

UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES

FACULDADE DE LETRAS INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

Em colaboração com a Escola Superior de Teatro e Cinema, da Escola Superior de Dança e da Escola Superior de Música do

Instituto Politécnico de Lisboa

DE PONTA-CABEÇA

Percursos Feministas No Circo Cyntia Carla Cunha Santos Orientador: Prof. Doutor Rui Manuel Pina Coelho

Tese especialmente elaborada para a obtenção do grau de Doutor em Artes

Júri:

Presidente: Doutor Fernando Manuel Baeta Quintas, Professor Auxiliar e vogal do Conselho Científico da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Presidente do júri por nomeação do Presidente do Conselho Científico desta Faculdade, Prof. Doutor Ilídio Óscar Pereira de Sousa Salteiro, nos termos do n.° 1.1. do Despacho n.°- 3426/2021, do Diário da República, 2• série, n.° 62, de 30 de março;

Vogais:

- Doutora Francesca Clare Rayner, Professora Associada do Departamento de Estudos Ingleses e Norte- Americanos da Universidade do Minho [1º arguente];

- Doutor Tiago Manuel Monteiro Mora Porteiro, Professor Auxiliar da Escola de Línguas, Artes e Ciências Humanas do Departamento de Línguas Anglófonas e Norte Americanas da Universidade do Minho [2º arguente];

- Doutor Gustavo Alexandre da Silva Vidal Vicente, Investigador Doutorado do Departamento de Literaturas, Artes e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

- Doutora Maria José Fazenda Martins, Professora Coordenadora da Escola Superior de Dança do Instituto Politécnico de Lisboa;

- Doutor Rui Manuel Pina Coelho, Professor Auxiliar do Departamento de Literaturas Românicas/Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (orientador).

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03/08/2022

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RESUMO

A tese de doutoramento pretende, em diferentes ramificações, analisar as múltiplas influências das construções e género na performance feminina aérea. A partir de uma análise crítica da história circense, principalmente da sua fisicalidade elencamos alguns nomes femininos que marcaram o cenário circense entre os séculos XIX e XX para expor como as mudanças socioculturais alteraram a percepção da atuação feminina no circo e os mecanismos de controle social embutidos nessas transformações. Através de uma leitura que privilegia as questões de género e do corpo como agentes políticos de discurso, é proposto um diálogo dessas narrativas com os Estudos da Performance. Por fim, estes questionamentos serão somados às especificidades circenses para promover uma análise de como as construções generificadas intervêm na performatividade feminina do circo contemporâneo e as múltiplas formas encontradas para subverter estas influências.

Palavras-Chave:

Circo aéreo / Estudos de Género / Feminismo / Performatividade / Compulsoriedade/

História do Circo.

ABSTRACT

The following doctoral thesis pretends to analyze, in its different ramifications, the multiple influences of the constructions and gender in aerial female performance.

Beginning with a critical analysis of circus history, mainly on its physicality, we select some female names that marked the circus scenario between the centuries XIX and XX to showcase how sociocultural change altered female performance perception in the circus and the social control mechanisms imbued in those transformations. Looking through a lens that privileges questions of gender and body as political agents of discourse, we propose a dialogue between these narratives and Performance Studies. Finally, these inquiries will be added to the circus specificities to promote an analysis of how the genderized constructions intervene in female performance in contemporary circus and the multiple forms that were found to subvert those influences.

Keywords:

Aerial Circus / Gender Studies / Feminism / Performance / Compulsories / Circus History

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO 11

PARTE I: BASES E PARÂMETROS 16

1. PERFORMATIVIDADE: PLURALIDADE DOS DISCURSOS 16

1.1. Os Estudos da Performatividade 16

1.1.1 Performatividade circense 19

1.1.2. O imprevisível do risco 24

1.2. Feminismo: multiplicidade e transversalidade 38

1.2.1. Estudos de Género e o contemporâneo 49

1.2.2. Caminhos cruzados: Género e performatividade 58

2. POR UMA HISTÓRIA DAS MULHERES CIRCENSES 67

2.1. Importância da história circense feminina na atualidade 67

2.1.1. O Circo antes do Circo 68

2.1.2. Processos circenses no berço da civilização ocidental até o

medieval 74

2.2. O circo dos circenses e a importância da performatividade feminina 82 2.2.1 A revolução dos aéreos e as mulheres aladas 98 2.2.2. Desdobramentos do circo no Brasil e a noção de Circo

Tradicional 102

2.3. Rupturas e mudanças circenses 110

PARTE II: FEMININO NO CIRCO 121

1. ESTUDOS DE GÉNERO NA ATIVIDADE AÉREA FEMININA ENTRE OS

SÉCULOS XIX E XX 121

1.1. O mundo de ponta cabeça: as reverberações das mudanças sociais na

performatividade aérea feminina 121

1.1.1. A atividade física e sua relação com o circo e o feminino

feminina 123

1.1.2. Moldando o feminino circense 134

1.2. As fortes mulheres circenses: rupturas e adequações 145 1.2.1. Lala e as movimentações entre Género e raça 145

1.2.2. Charmion e seu trapézio subversivo 157

1.2.3. Katie Brumbach e Lillian Leitzel: diferenças entre

modalidades de solo e aéreas 172

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1.3. Feminilidade compulsória circense: padrões e repetição 183 1.3.1. O apaziguamento do feminino e o olhar masculino 183

1.3.2. A compulsoriedade feminina circense 191

2. O FEMININO NO CONTEMPORÂNEO CIRCENSE 200

2.1. O contemporâneo encontra o feminino 200

2.2. Caleidoscópio de paradoxos: a cena das correntes 205 2.3. Instar: a transformação de um corpo circense 218

2.4. Duetos: o desafio à hegemonia 227

2.5. Linhas voadoras, a travessia dos corpos: 239

3. CONCLUSÃO 251

BIBLIOGRAFIA 262

GLOSSÁRIO DE TERMOS CIRCENSES 278

ANEXOS 283

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LISTA DE ANEXOS

ANEXO 1 – Tecidos malucos da Intrépida Trupe, 2011.

ANEXO 2 – Cena da turnê internacional de Fuerza Bruta.

ANEXO 3 – Afresco do Toureador.

ANEXO 4 – A dançarina acrobata.

ANEXO 5 – Imagem retirada do livro Le Costume Ancien et Moderne.

ANEXO 6 – Asteas Group, c.350-325 a.C. (cerâmica).

ANEXO 7 – Uma mulher se equilibra em um par de espadas.

ANEXO 8 – Litografía de Jean Henri Marlet, em tableaux de París, 1822.

ANEXO 9 – Imagens de cartaz de divulgação Astley's Royal Amphitheatre, 1850.

ANEXO 10 – Xilogravura da Sra. Astley com breve descrição dos vários talentos de atividade exibido na Astley’s British Riding-School, Londres, 1773.

ANEXO 11 – Placa comemorativa azul do 250º, em 2018, do Astley's Circus, em Cornwall Road, na área de Waterloo de Londres.

ANEXO 12 – Circo Chiarini no Japão.

ANEXO 13 – Angélique Chiarini no Cirque Franconi, 1793.

ANEXO 14 – Programa do circo: Chiarini's Royal Italian Circu; Sexta, 11 de junho de 1880.

ANEXO 15 – Parte do programa do Circo Chiarini.

ANEXO 16 – Les Trois Rainats: trapezistas voadores, 1895.

ANEXO 17 – Mlle Azella's no trapézio.

ANEXO 18 – Leona Dare.

ANEXO 19 – Circo Nerino.

ANEXO 20 – Victoria Chaplin no Número de funambulismo do Cirque Imaginaire, 1970.

ANEXO 21 – Annie Fratellini e Pierre Etaix, Paris, 1977.

...ANEXO 22 – Teresa Ricou com João Lagarto, 1987.

ANEXO 23 – Gravura de um campo de ginástica em Hasenheide, Berlim no século XIX.

.ANEXO 24 – Miss Olga et Kaïra, fotografia de Desbonnet.

ANEXO 25 – Miss LaLa surnommée La Femme Canon, 1879, litografiacolorida (56 x 43 cm).

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ANEXO 26 – Edgar Degas, Miss La La La no Cirque Fernando, Lemoisne 522, 1879, óleo sobre tela (117 x 77,5 cm).

ANEXO 27 – Costas Musculadas de Charmion’s, fotografia de Frederick Whitman Glasier, 1904.

ANEXO 28 – Uma série de fotos mostrando o a retirada de roupas do número de Charmion, por volta de 1899.

ANEXO 29 – Trapeze Disrobing Act, Thomas Edison, 1901.

ANEXO 30 – Katie Sandwina. The Lady Hercules, 1990.

ANEXO 31 – Litografia Colorida: Barnum & Bailey com: Seigrist- Silbons, La Mar Troupe e Marvelous Flying Neapolitans em New York, 1909.

ANEXO 32 – Leamy Ladies. Turnê pela Europa em 1905. Lillian Leitzel (primeira a esquerda) suas tias Tina e Toni Pelikan, sua mãe Nellie Pelikan e Lily Simpson.

ANEXO 33 – Vídeo com compilação de apresentações. Leitzel, Lillian. Extraordinary aerial gymnast. USA, 1929.

ANEXO 34 – Pôster do circo: Ringling Bros and Barnum & Bailey / Dainty Miss Leitzel, 1920.

ANEXO 35 – Cartaz do filme Trapèze de 1956, com Gina Lollobrigida, Burt Lancaster e Tony Curtis.

ANEXO 36 – Foto da trupe Mexicana Flying Gaonas no Big Apple Circus, 1982.

ANEXO 37 – Fotos da figura “sereia” no trapézio e na lira.

ANEXO 38 – Cena final de Paradoxo Zumbi, da Trupe de Argonautas. Espaço PÉ DiReitO.

Brasília, 2016.

ANEXO 39 – Venda de Mulan em Paradoxo Zumbi da Trupe de Argonautas. Funarte.

Brasília, 2016.

ANEXO 40 – Venda de Mulan em Paradoxo Zumbi da Trupe de Argonautas. Espaço PÉ DiReitO. Brasília, 2016.

ANEXO 41 – Trecho inicial de Instar na Varieté Mulher do Mundo 8M. Espaço Cultural Renato Russo. Brasília, 2020.

ANEXO 42 – Trechos de Instar, com Allana Matos. Brasília, 2020 . ANEXO 43 – Trecho final de Instar de Allan Matos.

ANEXO 44 – Espetáculo De Paetês da Trupe de Argonautas. Funarte. Brasília, 2007.

.ANEXO 45 – Cena de Te Amo...? em Noite de Quimeras da Trupe de Argonautas.

Espaço PÉ DiReitO. Brasília, 2018.

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ANEXO 46 – Dueto de Quimera’s Bar, da Trupe de Argonautas. Teatro da Caixa, em Brasília, 2018.

ANEXO 47 – Portagem padrão para duetos de trapézio em Noite de Quimeras.

ANEXO 48 – Duo em Paradoxo Zumbi da Trupe de Argonautas. Brasília, 2016.

ANEXO 49 – Linhas Voadoras com a funambulista francesa Tatiana-Mosio Bongonga . Lisboa, Portugal, 2019.

ANEXO 50 – Detalhe de movimentação em Linhas Voadoras.

ANEXO 51 – Crianças no Ateliê da CieBasinga com Tatiana-Mosio Bongonga.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço inicialmente a todos os parceiros artísticos que estiveram nesta jornada, aos companheiros circenses, em especial da Trupe de Argonautas, no Brasil e do Soul Circus Almada, em Portugal, com os quais dividi boa parte dos questionamentos aqui explorados. Também às incontáveis mulheres circenses que enfrentam, com seus corpos, as adversidades de um cotidiano de lutas constantes. À minha mãe Conceição e ao meu pai Paulo pelo suporte que me permitiu traçar meus próprios caminhos. Ao meu orientador Professor Doutor Rui Pina Coelho, pela direção necessária e precisa. Este processo não seria possível sem os alunos, colegas de ensino e funcionários da UnB, que estimularam a busca de novos questionamentos e à UnB-Universidade de Brasília que possibilitou a dedicação exclusiva a este estudo. Por fim agradeço ao Sérgio Oliveira que esteve ao meu lado neste processo.

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NOTA PRÉVIA

Todas as referências bibliográficas utilizadas no texto que se segue, quando não apontadas, são traduzidas por mim, a partir dos textos em inglês ou, pontualmente, em francês ou espanhol.

Esta tese foi desenvolvida em Portugal, por uma pesquisadora brasileira. Deste modo, optou-se por uma redacção seguindo o português do Brasil, com exceção da palavra género. Contudo, para melhor apreciação e compreensão dos leitores portugueses, algumas palavras grafadas de forma diferente nos dois países, serão apresentadas nos dois formatos em sua primeira ocorrência no texto.

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INTRODUÇÃO

Esta tese de doutoramento pretende, de diferentes maneiras, analisar as influências da inclusão das mulheres de forma afirmativa na narrativa circense contemporânea. A partir de uma análise crítica da história circense, e principalmente da sua visualidade e fisicalidade através de uma leitura que privilegia as questões de género (gênero em português do Brasil) e do corpo como agentes políticos de discurso, é proposto um diálogo com os Estudos da Performance. Por fim, estes questionamentos serão somados às especificidades do circo, como o risco físico, para promover um amplo estudo da performatividade feminina circense, aqui entendida como o conjunto de particularidades existente nos processos circenses realizados por mulheres.

Como um campo de debate em construção, os estudos sobre o circo abrangem diferentes meios acadêmicos de debates. Atualmente, podemos encontrar uma série de análises multidisciplinares sobre a performatividade circense. Contudo, são raros os estudos sobre as relações das mulheres circenses.

Este trabalho surge da necessidade constante de vencer meus próprios limites e da consciência de que para isso é necessário conhecê-los. Uma busca incansável e constante para um determinado objetivo, percebendo os enormes riscos e ainda assim, se aventurando – este poderia ser um breve resumo do que a atividade circense me proporcionou como experiência e que transborda para outras faces das minhas vivências, entre elas a acadêmica.

Este é um dos motivos da execução deste trabalho: a crença de que o circo é um espaço transformador para os participantes do evento performativo, capaz de engendrar mudanças individuais e coletivas que podem interferir para além da própria atividade circense, alterando a realidade de seus participantes. Podendo, assim, ser um instrumento para a emancipação das mulheres.

Este trabalho advém de inquietações que partem da aprendizagem como intérprete circense. Apesar de nunca ter abandonado os palcos, sempre atuei de forma multidisciplinar, trabalhando e lecionando em diferentes áreas do conhecimento cênico como o figurino, a cenografia, a maquiagem, a direção (encenação), além da atuação. São trabalhos artísticos desenvolvidos a par dos esforços e pesquisas como docente na UnB – Universidade de Brasília, que unem a pesquisa acadêmica à prática cênica.

Nestes processos de contínuo aprendizado, o circo entra de forma tardia, apenas ao final da graduação em artes cênicas na mesma universidade. A iniciação nos fazeres

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12 circenses, através das mãos firmes da Professora de Aéreos Ana Sofia Lamas que posteriormente virou companheira de trabalho, alterou significativamente meu corpo e a forma como encarava os obstáculos. Passaram-se mais de dezessete anos de dedicação a esta arte que inundou meu espaço cênico. Os palcos teatrais foram paulatinamente se transformando em espaços a serem preenchidos no ar. Em processos híbridos onde o teatro e a dança se uniam à fisicalidade circense.

Embora não participasse de números nas lonas tradicionais, terminei “fugindo com o circo”, na pesquisa práticas do circo aéreo, dedicando praticamente todos os esforços como performer a esta modalidade em seu encontro com outras artes cênicas com as quais habitualmente dialogava, especialmente o figurino e a maquiagem.

A necessidade crescente de aprofundamento da prática circense levou a criação coletiva da Trupe de Argonautas, em 2005, um grupo composto por artistas pesquisadores de múltiplas linguagens, voltado para a pesquisa da interface do circo, teatro, dança e música. O grupo surgiu da reunião de profissionais de diferentes áreas, gerando um espaço de investigação que promove intenso intercâmbio entre linguagens com um foco na criação de dramaturgias circenses onde a visualidade é apresentada como parte da composição colaborativa. Uma das marcas da Trupe, sempre presente em seus trabalhos, é o enfoque na visualidade da cena. Esta tendência surge da própria identidade do grupo.

O grupo soma um repertório de mais dez espetáculos, além de exposições fotográficas e materiais didáticos sobre circo, entre os quais o Manual Ilustrado de Lira Circense: Técnicas, figuras e montagens para lira acrobática redonda com um ponto de fixação (2018), de minha autoria. Além destas atividades, o grupo também promove oficinas circenses e uma aula permanente de circo, com foco nas técnicas aéreas da qual fui professora voluntária (2015 – 2018), em parceria com Luciano Czar, na sede do grupo, Espaço Pé Direito. Este espaço, concebido para abarcar as modalidades aéreas e outras linguagens cênicas, foi criado por um dos fundadores da trupe, Pedro Martins.

No que diz respeito às pesquisas práticas nos equipamentos, tive a oportunidade treinar e apresentar nos mais variados aparelhos aéreos, adquirindo um forte interesse por modalidades em duetos1 circenses. Estas técnicas, em especial, me fizeram repensar o

1 Números aéreos compostos por dois intérpretes. Durante os anos de experiência em duetos, tanto ministrando aulas quanto atuando, tive a oportunidade de participar em duetos aéreos em cinco modalidades, nomeadamente; trapézio fixo, trapézio dança, lira, mastro chinês e tecido marinho. Somente nos números de trapézio fixo houve a necessidade do uso de colchão devido à especificidade das movimentações, principalmente quedas.

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papel das mulheres no circo. Com o passar dos anos, pude perceber a importância das relações de género na atividade circense e como estes fatores operam desde a construção dos figurinos até às categorias de exercícios físicos propostos durante as aulas. Tudo parecia vir “filtrado” por relações de géneros; às vezes, de forma sutil como um pedido por mais feminilidade no movimento, ora mais diretamente, como em afirmações que uma mulher não seria tão boa numa determinada modalidade (a portagem2, por exemplo) como um homem. Este acumular de experiências que levantavam sempre as mesmas questões, não só em mim, mas em muitas de minhas parceiras e alunas, levou a busca por entender as influências das questões de género na atividade circense. Isto foi feito através de um estudo das ligações entre o circo aéreo, o performativo e a justaposição crítica de parte do pensamento feminista contemporâneo para buscar novas narrativas para as mulheres circenses, seus corpos e perspectivas artísticas.

Ao mesmo tempo, este trabalho indaga sobre como as contribuições da atuação feminina aérea podem interferir, através de suas interações performativas, para uma mudança de paradigma sobre como é vista a fisicalidade feminina, não apenas para as artistas circenses, mas para suas espectadoras.

Através do circo nos deparamos com a presença física de corpos de mulheres de força extrema, capazes de feitos extracotidianos que desafiam as ideias preconcebidas de feminino. A interpretação naturalizada de corporeidade feminina, geralmente posta como frágil e suave, não sobrevive ante a atuação circense. Desta forma, “reescrevemos” o circo como agente de mudanças capaz de gerar questionamentos que podem ser a base para uma transformação real na vida das mulheres, pois investe diretamente em seus corpos.

Neste sentido, a corporeidade limítrofe circense, que leva seus corpos aos extremos de força e risco físicos, pode ser usada como meio para começarmos a discutir as dicotomias existentes entre os papéis impostos ao feminino e ao masculino. Com esse objetivo em mente fica clara a necessidade de delimitação de um espaço específico de trabalho ante tantas matérias distintas e plurais quanto às análises do performativo, o género e o próprio circo, todas em constante estado de modificação.

Para melhor apreciação desses diferentes estudos que se alinham nesta tese a mesma será dividida em duas partes, sendo a primeira dedicada ao suporte teórico e a uma

2 Portagem: ato realizado pelo portô de sustentar total ou parcialmente o peso do volante em uma acrobacia aérea ou de solo. A palavra vem do francês porteau, este artista geralmente necessita de bastante força uma vez que cumpre a função de apoiar ou sustentar o volante, acrobata “voador”, responsável pelos saltos e voos.

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14 apresentação da história circense. A segunda parte servira para o aprofundamento das relações entre as questões de género e o feminino circense tanto no passado quanto no presente.

Desta forma, o primeiro capítulo da Parte I será destinado ao entendimento do suporte teórico relevante para o desenvolvimento deste estudo.

Inicialmente, delimitaremos os Estudos da Performance, instalando a atividade circense como essencialmente performativa, além de apresentar suas principais especificidades como a questão do risco, que articula toda sua fisicalidade.

Em seguida, entramos nas questões de género e sua ligação direta com os Estudos Feministas, que norteiam todo o trabalho. Neste texto o feminismo é entendido como uma pauta política e filosófica visando a emancipação de controles patriarcais, raciais e socioeconômicos que inviabilizam a descoberta de outros caminhos para a humanidade.

Propomos uma perspectiva no feminismo que respeite sua pluralidade. Este trabalho busca uma abordagem feminista, não se configurando como um texto sobre o feminismo.

Sendo, como dito, um trabalho com um norte feminista, torna-se fundamental a percepção da história, não como algo imutável, mas como uma construção que elege um lado como organizador dos discursos. Desta forma, a revisão histórica sobre o

silenciamento da contribuição feminina para o circo prefigura-se como necessária.

Em seguida, serão analisadas individualmente, no primeiro capítulo da Parte II, as histórias de artistas circenses que fizeram parte do circo tradicional entre os séculos XIX e XX, abordando suas contribuições para a construção da fisicalidade circense.

Nomeadamente: Anna Olga Albertina Brown (Miss La La), Lillian Leitzel, Laverie Vallée (Charmion) e Katie Brumbach. Cada uma destas figuras marca diferentes aspectos da performatividade circense. Os questionamentos sobre o género revelam como as construções circenses são atravessadas por relações binárias de generificadas que terminam por alterar a fisicalidade das mulheres no circo ao longo de sua história.

Propusemos chamar estas interferências de compulsoriedade feminina circense, termo que será apresentado neste capítulo.

Em seguida, no segundo capítulo da segunda parte, procuraremos perceber como o corpo circense das mulheres é experienciado pelas próprias no contemporâneo e como essas novas dinâmicas autônomas influenciam sua performatividade, desde o momento dos treinos até a cena. A afectividade, o coletivismo e outras formas de percepção de mundo são acionados a partir destes processos.

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Para além da construção da fisicalidade circense, buscamos perceber como suas dinâmicas podem ser articuladas para mover questões políticas, em especial as ligadas às disparidades de género. Tentando responder a uma pergunta: pode o circo contribuir, como agente, para os múltiplos processos de emancipação feminina?

Desta forma, este capítulo traz a análise de cenas e espetáculos circenses pontuais criados por mulheres, dentro do circo contemporâneo, incluindo trabalhos artísticos da pesquisadora. Estes exemplos servem para ajudar na visualização dos dispositivos internos que fazem do circo uma atividade capaz de contribuir para entendimentos mais plurais e igualitários.

As contribuições da performatividade das mulheres circenses para a emancipação feminina e vice-versa são as bases que norteiam esta tese. Neste sentido, propomos uma discussão dos fatores internos e externos aos processos circenses que nos levam a vislumbrar a importância da atividade circense para o empoderamento feminino.

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16 PARTE I: BASES E PARÂMETROS

1. PERFORMATIVIDADE: PLURALIDADE DOS DISCURSOS

1.1. Os Estudos da Performatividade

Nossa jornada a delimitar os caminhos da performatividade aérea feminina no circo, torna-se necessário que nos debrucemos sobre os Estudos de Performance delineando os processos circenses como essencialmente performativos para, em seguida, tangenciar a questão da atuação feminina neste contexto. A partir deste momento também começaremos a elencar vivências pessoais circenses que podem contribuir para a compreensão dos encaminhamentos sobre a performatividade circense, especialmente no que se refere a questões corporais.

Os Estudos de Performance vêm ganhando força em múltiplas áreas do conhecimento, justamente por conseguirem englobar aspectos menos palpáveis da realidade e que, em simultâneo, constituem a sua materialidade. Pensar o mundo através do filtro da performatividade é escolher como foco o corpo e suas inter-relações com o espaço e tempo, permitindo-se navegar por diferentes aspectos das incontáveis trocas que podem surgir. As disciplinas reconhecidas como Estudos de Performance são constituídas pelos esforços de diferentes áreas, teorias e processos em sua maioria agenciados através do corpo.

Se considerarmos as bases do que pode ser interpretado como um acontecimento performativo, o circo sempre se encontrou nesta esfera, embora seu estudo tenha sido negligenciado até o início do século passado, notadamente por ter sido mapeado pela academia como um entretenimento em oposição ao teatro.

Esse muro que deixava o circo como uma categoria fora dos processos ditos como artísticos, notadamente elitizados, só foi questionado junto a redefinição da noção de performance que promoveu o resgate de outras performatividades, antes inseridas apenas nos campos antropológicos sem atribuição de seus valores artísticos.

No campo artístico a performance cresce multidisciplinarmente e em uma de suas principais vertentes a performance art desconstrói as fronteiras entre as artes ditas visuais e as artes corporais. Trazendo o corpo para o foco do objeto artístico.

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Apesar de ser um conceito fluido e de difícil definição, nesta tese o entendimento de performativo3 proposto por Josette Féral (2008), será elencado. Nele a performatividade é percebida como um ato ou ação executado num espaço e tempo específicos entre atores e público. Nesse sentido, as trocas entre o público e a obra constam como uma parte crucial da produção artística contemporânea. Erika Fischer- Lichte (2019 [2004]) aponta algumas características básicas do performativo que serão mais aprofundadas junto aos exemplos circenses. Entre elas temos: a necessidade da co- presença física entre os participantes, mais especificamente entre atores e espectadores; a efemeridade do acontecimento performativo experienciada de forma única e singular por cada participante — pelo seu encontro e interação; além da não necessidade da transmissão de um significado unilateral e predeterminado, sendo os significados criados pelo próprio instante performativo.

Os limites do que pode ser descrito como artes do corpo e da performatividade incluem uma narrativa que agrega como parte integrante dos seus processos, o tempo, o espaço e a presença de seus participantes. Desta forma, observamos o entendimento expandido da performatividade caminhando num sentido mais amplo, social e politicamente inserido em contextos específicos.

O pensamento sobre o corpo e sua construção sociocultural, com foco nas interações biológicas e políticas, impulsionam as noções de género. O reconhecimento de novos géneros coincide com o surgimento de outras possibilidades de pensar e entender a atualidade. Michel Foucault é um dos teóricos que ajuda na desmistificação de verdades definitivas, principalmente no que diz respeito à corporeidade. O autor discute como os saberes atuam de forma disciplinar na sociedade, regulando suas normas, enquanto produzem corpos adequados a estes padrões naturalizados pelas ciências biológicas.

Segundo o autor:

Parece-me que vivemos em uma sociedade de poder disciplinar, ou seja, dotada de aparatos cuja forma é a sequestração, cuja finalidade é a constituição de uma força de trabalho e cujo instrumento é a aquisição de disciplinas e hábitos. Parece-me que desde o século XVIII se multiplicaram, refinaram e especificaram incessantemente mais aparatos para fabricar

3 O conceito de performativo é fluido, transpassando múltiplos entendimentos que não fazem parte do foco desta pesquisa, para outras discussões em curso sobre o tema consultar; Schechner (2002) Performance Studies – an Introduction, Auslander (1999) Liveness: Performance in a Mediatized Culture, Carlson (1996). Performance: A Critical Introduction, entre outros.

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18 disciplinas, impor coerções, fazer contrair hábitos, a arqueologia dos aparatos de poder que servem de base à aquisição dos hábitos como normais sociais. (FOUCAULT, 2005 [1978]: 215).

Ainda para o autor, a intenção primeira do poder é a de regulação dos corpos, através do controle rigoroso de gestos e comportamentos coletivos e individuais, mirando efeitos de utilidade.

Embasadas nestes pensamentos, a naturalização dos acontecimentos cotidianos como processos espontâneos ligados a uma verdade biológica é confrontada com as diferenciações entre os géneros. A inclusão da ideia de um género performado postulada inicialmente por Judith Butler reinscreve as relações entre corpo, género e sociedade.

Estes caminhos do performativo aponta que as ações corporais não seriam uma essência pré-estabelecida, mas uma performatividade produzida a posteriori, reinscrevendo a noção de identidade, agora vista como uma complexa construção em relação a um grupo cultural que se dá por atos performativos corporais.

Desta forma, os Estudos de Género subscrevem outro capítulo sobre a performatividade, ampliando seu alcance. As interfaces entre as pesquisas de trabalhos artísticos performativos com as teorias dos Estudos de Género servem, neste contexto, como ponto de ligação para delinear a performatividade feminina aérea, entendida como o conjunto de especificidades físicas relacionadas à atividade aérea feminina.

Por enquanto, focaremos em perceber como o circo se encaixa no contexto do performativo. A diluição das barreiras entre os diferentes fazeres artísticos especialmente a partir da década de sessenta, na chamada viragem performativa (FÉRAL, 2008) potencializou as trocas circenses abrindo espaço para novos atores e discursos.

A partir dos anos 1980, também surgem novas tentativas de reinscrever a arte para seus domínios políticos, reafirmando sua influência no cotidiano, tentando erodir suas fronteiras e “atacar a separação radical entre a cultura de elite e cultura popular, entre a cultura nobre e cultura de massa” (FÉRAL, 2015 [2004]: 116). Essas rupturas também são impulsionadas pelo entendimento da performatividade como uma atividade humana de crucial importância para a análise dos mecanismos que gerem a sociedade.

As artes cênicas se realinham com sua corporeidade buscando o reencontro sensorial com as forças que podem emergir destas interações. Neste contexto, o circo surge como catalisador desse potencial performativo justamente por ter sua matriz primordial no corpo, mais especificamente um corpo em uma situação limítrofe de risco, no caso do circo aéreo.

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1.1.1. Performatividade circense

Seguindo as linhas que balizam o entendimento dos processos performativos buscaremos as finas fronteiras que demarcam os acontecimentos circenses. Contudo, vale ressaltar que a própria multiplicidade circense dificulta este processo à medida que investe constantemente em novas inter-relações. Mesmo assim, torna-se necessário um debruçar sobre a performatividade circense de modo a identificar suas especificidades, pelo menos as que são consideradas decisivas para o andamento deste estudo e suas interações com o feminino no circo.

Se considerarmos as linhas que traçam os caminhos dos processos performativos, especialmente em seu âmbito artístico, o circo pode, sem dúvida, ser considerado uma arte performativa por excelência, pois possui no corpo seu principal elemento constitutivo (BOLOGNESI, 2001).

Por sua construção plurifacetada não existe um único modelo circense, visto que suas constituições flutuam conforme suas relações com o mundo em que está inserido (DUARTE, 1993; BOLOGNESI, 2001; SILVA, E, 1996). Portanto, pensaremos o circo, mais especificamente o circo aéreo, a partir dos seus elementos mais basilares.

O circo aéreo, diferente de outras modalidades circenses como a acrobacia de solo, que pode ou não utilizar aparelhos para alcançar seus objetivos, necessita de suporte para sua execução. Geralmente um aparelho aéreo como um trapézio4, um tecido5 ou corda6 garantem que o performer possa manter-se afastado do solo, contudo qualquer aparato que permita a suspensão do intérprete pode ser usado nas modalidades aéreas.

O outro fator que delimita esta atividade artística é o próprio intérprete e as ligações que cria com o aparelho, sem os quais o acontecimento circense não se realizaria.

A ação circense, deste modo é instaurado pelo corpo do acrobata aéreo em suspensão, ligado ao resto do mundo apenas por um aparelho circense ou outro suporte alternativo, desde que seguro, em que possa se pendurar. Estes mecanismos de suporte, mais que um

4 Criado especificamente para a atividade circense, é um equipamento usado para acrobacias aéreas, constituído por uma barra suspensa por duas cordas. Possui diferentes modelos e formatos conforme o tipo de movimentação a ser executada.

5 O tecido, tecido aéreo ou tecido acrobático é uma modalidade aérea circense realizada com dois longos tecidos (geralmente de malha), presos numa estrutura a uma altura que permita que o intérprete se afaste do solo.

6 Também chamada de corda lisa ou corda indiana, quando usada para giros em seu próprio eixo, é uma corda presa em uma estrutura ou teto, preferencialmente alto, uma vez que os truques são executados ao longo de toda a sua extensão. Eram originalmente de material náutico, ou sisal, mas atualmente são feitas de algodão ou revestidas de tecido para reduzir o atrito.

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20 mero auxílio, também fazem parte de sua constituição, alterando o corpo e a movimentação do aerialista7, fundindo-se com ele.

A performatividade aérea, além da necessidade de suporte para sua execução, só se realiza por completo através da presença do outro, do olhar de um observador que prestigia o acontecimento. Apesar da importância de diferentes agenciamentos cênicos, não existe efetivamente a necessidade de um conjunto arquitetônico como uma lona circense, um teatro ou outros aparatos cênicos como iluminação e sonoplastia para sustentarem a ação aérea. É no corpo do performer aéreo em suspensão, nos riscos que sua fisicalidade impõe que reside a performatividade aérea do circo.

O circo é uma linguagem múltipla, esta característica inscreve-se em sua formação multidisciplinar e muitos dos seus elementos também são característicos de outras artes performativas como a dança e o teatro que perpassam toda a atividade circense.

O acontecimento circense, assim como nestas outras áreas artísticas performativas, somente se realiza no instante de interação com o público e nas trocas que este encontro proporciona. Dentro desta perspectiva a noção de coautoria pode ser empregada ao processo circense. O espetáculo circense aéreo poderia ser também percebido, neste contexto, da seguinte maneira:

Os espectadores são vistos como co-autores, os quais, através da sua participação no jogo, isto é, da sua presença física, da sua percepção, das suas reações, co-produzem o espetáculo. O espetáculo nasce em resultado da interação entre actores e espectadores. As regras segundo as quais ele se desenrola devem ser interpretadas como as regras de um jogo que podem ser acordadas entre todos os participantes, actores e espectadores, e bem assim seguidas ou violadas por todos. Isto significa que o espetáculo acontece entre actores e espectadores e é produzido por eles em conjunto. (FISCHER-LICHTE, 2019 [2004]: 60).

O conjunto produzido no acontecimento circense, em particular o aéreo, implica, inicialmente corpos extremamente distintos, num jogo arriscado; para os performers fisicamente, mas também em outra proporção para o espectador. Suas interações não são diretas, mas agenciadas pela expectativa e pelo medo infligido pela sensação de risco físico. Uma das partes essenciais deste intercâmbio está na relação de cumplicidade por parte do espectador que compactua com este jogo potencialmente mortal, sempre com a esperança de um final benevolente. O espectador necessita confiar no trabalho do

7 Esta palavra, na bibliografia especializada, aparece também grafada como ‘aerealista’. Optamos por grafar aqui como aerialista por ser a forma mais frequente.

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intérprete aéreo para que ambos saiam ilesos deste jogo, onde quanto mais extraordinária é a fisicalidade do aerialista, maior o nível de expectativa e o risco. Essa expectativa é nutrida pela noção de corpo construída pelos espectadores e seu encontro com a fisicalidade extracotidiana criada nos corpos circenses. O espectador precisa deslocar suas noções sobre o que pode um corpo humano, tendo de acreditar no artista, na sua técnica, na certeza do sucesso. Este processo empático estaria constantemente confrontando os próprios limites físicos do público. Neste jogo de equilíbrios entre o esperado e o inesperado, entre o medo e a fé é que se encontra o acontecimento circense.

Apesar do corpo do espectador circense não correr, em geral, nenhum risco direto, ele assume a responsabilidade nessa coautoria pelos acontecimentos infligidos ao corpo do intérprete. Ele agora faz parte desse jogo onde se comprometeu a buscar através da corporeidade circense a travessia do impossível. Seu coração bate forte como se no fio do arame do funambulista8 estivesse também ele. Toda a sua atenção também se desdobra, a cada passo, um suspiro no arame. O espectador está ali, está presente, está “ao lado” do performer a todo instante, mesmo que seu corpo esteja confortavelmente sentado em uma poltrona, ele vive o acontecimento performativo também e através deste. A respiração de todos os envolvidos só volta ao normal ao final do número.

Provavelmente vem dessa ligação existente entre os circenses em cena e o espectador o profundo interesse desenvolvido pela vanguarda teatral nomeadamente, Gordon Craig e Meyerhold, futuristas e dadaístas entre outros em eleger o circo como um modelo em comparação com o teatro literário da época justamente por sua fisicalidade extrema. O interesse não em produzir sentidos, mas na “produção de algo sensorial e material” (MEYERHOLD apud FISCHER-LICHTE, 2019 [2004]: 333), faz parte da ação no circo.

O entendimento da performatividade como um caminho que valoriza a ação mais que seu valor representativo, para Féral (2015 [2004]), colocaria o circo e seu foco nas ações corporais como referências para novas performatividades. De fato, as contribuições da fisicalidade circense para uma nova perspectiva no teatro ocidental continuam presentes até hoje e vice-versa, provando mais uma vez a capacidade circense modificar e modificar-se em sua trajetória nômada.

É muito difícil ficar indiferente ao acontecimento circense aéreo quando este envolve o risco direto do intérprete. Mesmo sem a consciência profunda dessa ligação a

8 Artista circense responsável por números de equilíbrio em arame ou corda bamba, na horizontal.

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22 coautoria no evento performativo interfere nas afecções dos espectadores. Ainda que uma pessoa da plateia não possua nenhum interesse particular pela encenação circense, ou pelo modelo de variedades predominante no circo tradicional, provavelmente ainda terá uma reação física ante a expectativa de um salto mortal. O corpo do intérprete circense move o corpo do espectador, alterando sua fisiologia, sua pulsação.

O receio de que algo possa acontecer a cada movimento, a expectativa diante da possibilidade do fracasso gera um ambiente uníssono e complexo onde a cumplicidade entre público e artista ganha as dimensões de partilha. Existe um corpo que se coloca em risco, “o risco daquele corpo que não é nosso, mas que se poderia ser nosso, e que se faz nosso ao mostrar-nos do que é capaz” (GUZZO, 2009: 48). Essa ligação íntima faz com que a potência do corpo circense trespasse os espectadores e dependendo da proposta do espetáculo, pode dar início a uma série de questionamentos sobre sua própria corporeidade; sobre o que os impede de deixar o solo.

Dentre as principais características da performance estaria a predileção do sentido da ação, a execução de atos palpáveis não representacionais, de modo que o acontecimento não visaria um sentido, ela o faz (FÉRAL, 2004). Essa sensorialidade na percepção performativa é também geradora de sentidos, “o tipo de sentido de que me torno consciente através de impressões sensoriais específicas” (FISCHER-LICHTE, 2019 [2004]: 340), geradas através de associações:

Tais associações reportam-se — enquanto recordações — ao que foi vivido, aprendido, experienciado, a experiências subjetivas específicas e irrepetíveis, assim como a códigos culturais intersubjectivamente válidos. Além disso, as associações podem surgir como intuições repentinas, como ideias novas nunca antes consideradas, capazes, por isso, de surpreender mais intensamente o sujeito percipiente. (FISCHER-LICHTE, 2019 [2004]: 342).

Estando desta forma diretamente ligados às experiências corporais, os sentidos produzidos nestas dinâmicas diferem dos processos interpretativos que dependem de seus ajustes em determinados critérios pré-estabelecidos. Em contrapartida, os sentidos obtidos por associação surgem do processo performativo, independente da vontade ou do esforço interpretativo, podendo ser considerados “emergências”. Então podemos considerar que esta ordem de sentidos pulsa da “urgência” criada entre os corpos na performance, sendo com isso capaz de gerar novos agenciamentos.

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A marca de urgência gerada pelos processos associativos tende a articular-se de forma física, ficando perceptíveis através de “tremores, de soluços ou, na maioria das vezes, agitação motora” (FISCHER-LICHTE, 2019 [2004]: 343). Esta categoria de recepção, onde a fisicalidade do espectador é diretamente afetada pelo acontecimento performativo é comumente experienciado pelo público à medida que estes são confrontados com a performatividade circense, em particular a aérea, pois esta já parte de um local inusitado para ser habitado por um corpo humano: o ar.

Fischer-Lichte em A estética do performativo de 2004 entende que a demanda estética nas obras performativas visa não somente uma delimitação de suas fronteiras, mas também sua dissolução, evocando o corpo e a ação como espaço dessas mudanças:

A estética do performativo visa, prioritariamente, todos os processos artísticos em relação aos quais os conceitos de <obra>,

<produção> e <recepção> se revelariam inadequados e que, por conseguinte, no âmbito das estéticas da obra, da produção e da recepção, foram objeto, se é que foram, de alguma análise muitíssimo insuficiente e que quase sempre distorcida como é o caso dos espetáculos. (FISCHER-LICHTE, 2019 [2004]: 436).

Nessa estética do performativo as performances estariam no campo das ações, sendo estas, a concretização de uma obra artística.

Corroborando com este entendimento, a espetacularidade circense contemporânea, em sua complexidade, alinha-se com estes processos à medida que seus deslocamentos dos espaços do circo tradicional a arrastam para as bordas dos novos géneros de espetáculos que mesclam elementos pré-existente em sua performatividade (o corpo em situação de risco extracotidiano no caso do circo) com as de outras linguagens artísticas como a arte da performance (performance art).

Essa mistura não homogênea de elementos, inerente a obra circense da atualidade, a deixa num local de redefinição não somente de suas fronteiras, mas de suas características. No entremês dessas interações e diluições, a própria tentativa de definição destes objetos performativos circenses é dificultada. A única certeza na performatividade circense continua sendo sua fisicalidade limítrofe, realçada pelas suas mesclas contemporâneas em direção ao incerto e ao risco no contato mais visceral com o público e a acentuação do risco como elemento prioritário.

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24 1.1.2. O imprevisível do risco

A questão do inesperado está presente na ideia de performatividade. Por mais planejado que seja um espetáculo não se pode, de fato, prever por completo o que acontecerá nesse encontro. No caso da espetacularidade circense, o risco exacerba a sensação de imprevisibilidade, pois dentro desta casualidade onde tudo pode acontecer está incluída a probabilidade de danos físicos para os performers.

O risco, essa camada extra, da performatividade circense, termina sendo decisivo para seu entendimento. A co-presença também inclui o inesperado e de certa forma o risco. A sensação de imprevisibilidade que o risco articula também acentua a potência da performatividade circense tanto para o público quanto para o intérprete.

Jogar com a ideia do risco está presente desde os primórdios do circo, quando este ainda não era sequer nomeado. Apesar do risco físico para o performer também está presente em outros processos performativos como em muitas ações da virada performativa, contudo é no circo que encontram suas primeiras relações, fazendo assim parte de seus alicerces corporais e estéticos.

As origens dos eventos que levaram a formação circense, remontam às feiras e outros eventos públicos onde estes primeiros artistas realizavam proezas corporais extracotidianas que incluíam o risco físico. Essas atividades estariam também entre as bases do estudo sobre a estética do performativo, enquanto suscitam na audiência

“assombro e admiração” ou ainda:

Por um lado, certas habilidades que “normalmente” causariam ferimentos graves, parecem como milagre, não magoar os artistas – engolir fogo e engolir espadas, ou perfurar a língua com uma agulha, só para referir três. Por outro, os artistas executam ações extremamente arriscadas, expondo-se a perigos reais, inclusive pondo em perigo a própria vida. A sua mestria reside, precisamente, na sua capacidade de desafiar esse perigo.

(FISCHER-LICHTE, 2019 [2004]: 16).

Antes de continuarmos a perceber a importância do risco para a atividade no circo, torna-se importante a delimitação do conceito de risco utilizado e sua relação com o universo aéreo. O risco, sua noção e sua interpretação assumem diferentes formatos e protagonismos conforme os períodos históricos e relações socioculturais. Para os fins deste trabalho o risco será visto como a possibilidade de algo acontecer, uma suspensão, algo que pode ou não se concretizar (GUZZO, 2009), um salto para a incerteza que dialoga profundamente com os processos performativos. Mais especificamente a noção

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de risco físico, inerente à atividade circense pode ser entendida como “a possibilidade de um indivíduo, na prática de certa atividade, sofrer lesões mais ou menos sérias, inclusive a possibilidade de uma fatalidade” (VEIGA, 2008: 133). Um risco assumido, conscientemente pelos praticantes da atividade artística, no caso a acrobacia aérea.

A noção de risco, o cálculo das probabilidades de um determinado evento ter êxito, aparece cada vez mais forte na construção e aparelhamento das sociedades fixas, uma organização social ocupada com sentir-se segura e estável. O circo nômade (nómada), neste contexto, já andava na contramão dos anseios por controle e segurança das sociedades sedentárias, mostrando que até nessa esfera o circo sempre dialogou com o risco.

Seguindo este caminho sobre o risco e sua influência na composição social, Guilherme Veiga (2008) aponta que no início do século XXI a sociedade ocidental preocupa-se com um “controle de riscos”, que interfere nos mais variados campos da vida cotidiana, indo da medicina às estatísticas de violência.

Para Marina Souza Guzzo (2009) o conceito de risco é dinâmico e vai se modificando ao longo dos tempos a depender das relações que articulam com as sociedades e seus corpos. As perdas, ganhos e o valor incluído no risco estariam inicialmente ligados às probabilidades de controle, bem como ao cálculo de perdas aceitáveis ou não, passando com o tempo, a se relacionar também com a sorte ou o azar e a incerteza sobre os resultados. Após o século XIX o risco começa a ser associado à economia e a política. Passa-se a evitar ao máximo os riscos, agora calculados de forma matemática. Este pensamento também abrange a esfera corporal norteando a disciplina do corpo social.

Esta nova influência das ciências, e principalmente da política sobre o conceito de risco, termina por aproximá-lo do perigo, algo a ser evitado, pois iria colidir com os interesses de controle e planejamento do futuro. Tentando encontrar as relações entre o risco e a performatividade do circo, Guzzo, no seu livro Risco como estética, corpo como espetáculo (2009), promove o risco como elemento estético, construído no corpo do acrobata circense. Um espetáculo do risco, que investe em todo o conjunto do circo para além do intérprete, incluindo a cenografia, a iluminação e outros elementos cênicos que juntos criam uma estética do risco. Durante o processo discute o lugar do risco na sociedade como agente de controle.

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26 Duas esferas acerca do risco parecem impor-s: a primeira mais abrangente, relacionada com medidas coletivas de controle de risco, principalmente ligada a ideia de saúde e bem-estar que organiza os corpos numa sociedade. Tais medidas vão desde questões de higiene pessoal, controle de pragas a campanhas antitabagistas (GUZZO, 2009). Esta categoria de controle de risco acaba por incidir fortemente nos corpos das mulheres, como veremos mais adiante. A segunda noção de risco para Guzzo (2009) estaria diretamente relacionada ao risco como aventura, um risco deliberado e consciente como forma de superação de limites e de aproximação com mitos de heróis, que desde os tempos antigos conseguiam domar a natureza através da destreza corporal. Esta seria uma das bases das primeiras interações de corporeidade circense ligado ao desejo de provar-se explorando os próprios limites. Desta forma, a noção de risco com a qual dialogamos não está diretamente ligada aos riscos cotidianos impostos no dia a dia, como de um acidente de carro ou um assalto, mas um risco extracotidiano numa busca por “experimentar o extraordinário” (VEIGA, 2008: 135).

Para Foucault, o poder que baliza essas sociedades de segurança a partir do século XVII é um poder de controle discreto escondido no desejo por segurança. Uma busca por evitar a inocorrência de qualquer risco, não se limitando a questão do medo de ser agredido na rua, mas controlando os aspectos relacionados a saúde e construção do próprio corpo. Para o autor, em Microfísica do poder:

O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma estratégia bio-política. (FOUCAULT, 2005 [1978]: 80).

O agenciamento do comportamento cotidiano, que iriam da saúde e bem-estar até a naturalização de comportamentos adquiridos perpassam a ideia de risco. Foucault em A história da sexualidade, de 1976, investiga a influência dos discursos médicos e científicos para organização e manutenção regulatórias, do corpo e da sexualidade. Agindo diretamente na construção dos corpos, não necessariamente através da proibição, mas da imposição de riscos aos que se recusassem a obedecer à conduta considerada aceitável.

Esse controle através do corporal, do biopoder (FOUCAULT, 1993 [1976]), seria amplamente utilizado no gerenciamento dos riscos na sociedade atual. O corpo é o local

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das grandes disputas contemporâneas, a noção de risco associada a perda nortearia grande parte das relações, servindo de base para este controle. O risco como parte da construção dos controles corporais impostos na construção social, limitando nossas ações: até onde estamos dispostos a ir? Qual o objetivo de arriscar-se? Que riscos valeriam a pena?

Deste modo, com o tempo, na sociedade ocidental, a noção de risco antes vista como uma probabilidade, entre vencer ou perder foi alterada e agora estaria diretamente ligada a ideia de perda (GUZZO, 2009), o que faz com que os cálculos feitos incluam toda uma organização do futuro. Esse amplo entendimento do risco e de suas inter- relações socioculturais são de fundamental importância para validarmos as possíveis influências das performatividades de risco como a circense, justamente porque trabalham não com um risco abstrato, mas com o risco físico direto e imediato, a acontecer diante da plateia.

Contudo, a mesma sociedade que cria normas para minimizar os riscos também, em determinados contextos de controle, produz espaços artísticos para que estes controles sejam ignorados e superados:

Na segunda noção referente ao risco como aventura, as práticas de risco são necessárias para a obtenção de certos ganhos.

“Correr riscos”, em todos os sentidos, aparece como uma forma de abordar a condição contemporânea: coragem, adrenalina, medo, movimento. (GUZZO, 2009: 49).

Estes riscos controlados e amplamente monitorados também perpassam o circo, contudo, os equipamentos de segurança, em sua função total, poucas vezes chegam à cena, sendo mais utilizados no treino e criação dos números. Quanto mais treinos e técnicas menores as chances de um acidente, apesar disso, os fatores de risco circense, mesmo que calculados, nunca deixam de existir.

Por exemplo, em minhas experiências com duetos aéreos, em espetáculos ou aulas, por mais segura que se esteja na montagem de um dueto, muitas ‘nuances’ devem ser consideradas para a utilização ou não em cena de equipamentos de segurança como o colchão de queda9. O controle do risco em um número varia conforme as sequências de movimentos ou escolha do aparelho aéreo.

9 Equipamento de segurança colocado abaixo do equipamento, indicado para o amortecimento na aterrissagem de atividades com risco de queda como a circense, geralmente feito de uma espuma mais densa suavizando o impacto. O equipamento é de uso quase obrigatório em aulas e treinos aéreos.

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28 Desta forma, cada modalidade gera um tipo de risco diferente, podemos citar como exemplo o dueto no trapézio (ou duo) em duas modalidades distintas, o trapézio fixo e o trapézio dança. Apesar de ambos fazerem parte da mesma família de equipamentos, os diferenciais em suas movimentações influenciam na segurança aplicada, justaposto a especificidade do trabalho em dupla que implica um aumento da probabilidade de acidentes envolvendo dois ou mais intérpretes. Esses fatores aumentam também a necessidade de diálogo, treino e confiança entre os intérpretes.

O dueto de trapézio possui ações que dependem de um controle do tempo e do ritmo muito forte, como no caso de movimentos de trocas rápidas como os movimentos de "mão a mão”10, ou "pé-mão", giros ou quedas onde o volante fica por alguns segundos totalmente suspenso no ar. Especialmente em modalidades de dupla, alguns equipamentos e movimentações geralmente necessitam de uma altura mínima para ocorrer. É o caso do trapézio fixo, em geral, executado em relação a soma das alturas dos dois intérpretes.

Neste tipo de caso, por exemplo, pode-se usar equipamentos de segurança como lonjas11 ou colchão, mesmo que para isso sua existência tenha de ser resolvida cenicamente a depender da proposta de encenação.

Já o trapézio dança em geral, por ser uma modalidade que se utiliza geralmente do solo para ganhar giro no próprio eixo ou circundando o palco, é comumente apresentado em uma altura mais baixa. A exceção está em números que utilizam momentos de suspensão do próprio equipamento por um motor ou rolamentos manuais.

Mesmo neste caso, onde a suspensão do equipamento, momentaneamente, pode chegar facilmente a mais de oito metros de altura, ainda não é usual a colocação de colchões pela necessidade constante de contato com o chão.

Embora os artistas sejam suspensos a uma altura maior que a usual no trapézio fixo, a movimentação entre os parceiros tende a não incluir grandes momentos de suspensão total do volante (voador) no ar sem contato nem com o equipamento, nem com o portô (sustentador), como no trapézio fixo. O jogo entre os intérpretes do trapézio dança está mais relacionado à fluidez de suas movimentações e às portagens de força, onde o portô sustenta o peso do volante total ou parcialmente. Contudo, vale lembrar que em

10 Movimentos rápidos de trocas entre as mãos do portô e as mãos ou pés do volante que podem incluir giros completos (360º) no próprio eixo por parte do volante.

11 Palavra utilizada no circo para se referir ao sistema de segurança geralmente feito por uma corda, roldanas e um lonjeiro, pessoa que assegura a corda.

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ambos os casos, existe um aumento do peso corporal do volante pelas energias cinéticas envolvidas, elemento que também potencializa o risco.

A cada equipamento e modalidade, um agenciamento diferente e especializado dos riscos que inclui o treinamento individual de cada aerialista. Por mais que se treine, que se recorra a todo um universo particular circense de dispositivos de segurança, existe sempre no circo aéreo a possibilidade de se lidar com a “perda”.

Nesta exemplificação podemos observar que para além dos esportes e do risco de aventura a estética do risco (GUZZO, 2009), aproxima o risco circense ao seu conteúdo artístico, priorizando a cena enquanto agenciam a questão do perigo físico. Esse controle de riscos imposto pela performatividade circense aérea difere, em parte, de outras formas de domínio corporal.

Isso não impede, contudo, o ambiente circense de criar seus próprios padrões, de controle sobre as questões de género, especialmente sobre as mulheres. O circo, muitas vezes se utilizando das expectativas de um padrão de beleza física como algo positivo a ser alcançado. Este dilema do corpo circense e suas implicações na construção e visualização das corporeidades femininas serão tratados mais diretamente quando estivermos nos debruçando sobre o corpo circense e seu flerte com os ideais de beleza.

No circo a inerência da queda, a própria altura e a incerteza são catalisadoras para sua execução e necessários para sua performatividade. O circo atua como um ponto de fuga para corpos que em sua vida cotidiana evitam arriscarem-se. Para além do divertimento e da aventura individual, o circo aéreo contemporâneo consegue trazer a fisicalidade do risco como ponto focal de sua atuação. O risco é matéria palpável e componente estético, estando desta forma, em conformidade com o que Fischer-Lichte elenca como estética do performativo potencializado pelas particularidades apontadas por Guzzo (2009) como risco estético no circo aéreo.

O risco está, assim, presente na estética do circo e é vivenciado em todos os seus aspectos, no dia a dia dos aerialistas. É evidente que todos nós corremos, em menor ou em maior grau, riscos no nosso dia a dia, mas o risco que inclui uma escolha deliberada e uma tentativa de perceber e ultrapassar os próprios limites ronda o cotidiano circense.

Falando a partir da perspectiva dos intérpretes, é quase certo que em algum momento do seu dia o circense aéreo vai se deparar com um instante de risco físico em decorrência da sua atividade artística. Os treinos constantes, em geral diários, trazem o componente do risco, mesmo que minimizado por dispositivos de segurança. Mesmo nos

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30 treinos de chão, o aerialista estará invertido, de cabeça para baixo; em um pino (parada de mão) ou cambalhota num treino de acrobacia de solo, considerados fundamentais12 para um corpo que edifica em seu cotidiano, ações extracotidianas. Desta forma, para além dos treinos nas alturas, o aerialista tente a experienciar o risco de alterar sua posição corporal também no solo; modificar e inverter as perspectivas ao seu redor faz parte do seu entendimento do mundo. O circo aéreo termina por exigir uma ampla compreensão, por parte dos intérpretes, dos fatores de risco e desafios envolvidos na sua construção.

Amplamente calculado e minimizado por dispositivos de segurança, o risco nunca é totalmente eliminado. Para que este difícil equilíbrio seja alcançado, nenhum aspecto deve escapar à criação de um número aéreo.

Da estrutura arquitetônica, que deve estar apta a suportar o peso do equipamento e dos intérpretes em movimentos dinâmicos, aos materiais dos figurinos, até a montagem da luz, para que a iluminação não incida abruptamente em um momento de risco como uma queda livre. Todos os fatores cênicos utilizados envolvem-se na redução ou ampliação do risco circense aéreo. As cordas e amarrações devem corresponder aos padrões de segurança estabelecidos. O montador ou rigger13 deve ser certificado por um órgão de controle, além de todos os equipamentos de segurança como colchões ou lonjas a serem utilizados. Além disso, verifica-se constantemente se os mesmos estão corretamente posicionados. O espaço cênico circense aéreo gira em torno da minimização de riscos.

Contudo, a segurança dos aerialistas também dependente de seu treinamento corporal especializado, aumentando ou diminuindo o grau de risco através deste (GUZZO, 2009). Para uma única apresentação o circense carece de um amplo e prolongado treinamento, conseguido através de anos de tentativa e erro, de repetição e de atividades físicas complementares. Desta forma, um acrobata aéreo precisa dominar profundamente o aparelho, não só os movimentos inclusos no número, conseguindo, por exemplo, resolver algum problema que aconteça em cena, sem perder o controle da apresentação.

12 Dentro da corporeidade circense, mesmo para os aerialistas, as acrobacias de solo são consideradas parte fundamental (Veiga, Duprat e Bortoleto) da técnica corporal, uma vez que habituam e organizam o corpo em relação aos equilíbrios, forças e destreza necessários para que o corpo se coloque em posições não convencionais como esta de ponta cabeça.

13 Responsável técnico pela montagem de equipamentos circenses.

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Como intérprete circense, existe a necessidade repassar o número incontáveis vezes, limando e revisando todos os pormenores, revendo os itens de segurança, fazendo ensaios com todos ou o máximo possível dos elementos cênicos engajados na apresentação.

Ainda assim, o risco físico nos impinge um enorme grau de respeito na apresentação. Necessitamos que alguém nos olhe, mesmo enquanto treinamos. O medo da falha, tanto no sentido de prejudicar a narrativa cênica, unida ao temor de uma possível fratura ou acidente, levam a um grau de atenção profundo durante a performance. Após algum momento de clímax circense, onde a aposta no risco é acentuada como numa queda no tecido aéreo finalizada nas mãos, sem que o corpo esteja preso sobre um nó no próprio tecido, fazem com que o intérprete experiencie uma sensação de profundo alívio.

Assegurada a continuidade da dramaturgia que depende do número aéreo, nosso corpo também está novamente resguardado, pronto para um próximo desafio.

Um risco moldado pelo rigor da formação circense, mas ainda assim mortal. Essa lida diária com os componentes de risco termina por colocar o circo como um acontecimento fronteiriço, gerando um instante de ruptura que pode alterar os participantes do processo artístico.

Em relação ao receptor da obra e, também, seu coautor o risco palpável do circo aéreo, diretamente relacionado a ideia de perda, transporta o corpo do espectador junto ao corpo que se arrisca: o momento performativo faz com que as interações entre público e performer se intensifiquem. Neste sentido, muitas linhas de espetáculos terminam por acentuar essa relação aumentando cenicamente o risco físico real. Esse simulacro de risco para Guzzo (2009) seria uma exacerbação da sensação de risco previamente existente conseguida através de outros elementos da encenação. Em especial a iluminação pode ser usada, por exemplo, para fazer parecer que a altura em que se dá o número seja maior.

Essa amplificação dos riscos aumenta a interação entre atuantes e público. Embora muitas linhas circenses no contemporâneo evitem estes subterfúgios, outras terminam por trabalhar com uma enorme gama de dispositivos para acentuar a sensação de risco:

Da mesma forma, podemos perceber a presença do risco nos trabalhos dos mais diversos artistas e grupos da contemporaneidade. Dos processos de criação até os resultados finais das obras, podemos verificar a adoção de atitudes e estéticas de risco em seus trabalhos. Podemos observar o risco presente em obras de grupos teatrais circenses, como os brasileiros, Intrépida Trupe (RJ), Nau de Ícaros (SP), La Mínima (SP), Cia. Cênico Circense ParaladosanjoS (SP), Pia Fraus (SP),

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