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A presença mítica do destino em Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez

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Academic year: 2022

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Licenciatura em Letras/Português Monografia em Literatura

SABRINA LEÃO RANGEL 07/51871

A PRESENÇA MÍTICA DO DESTINO EM CEM ANOS DE SOLIDÃO, DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ

MENÇÃO

Profª. Dra. Sara Almarza

Brasília- DF 1º/2011

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A PRESENÇA MÍTICA DO DESTINO EM CEM ANOS DE SOLIDÃO, DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ

Monografia apresentada ao Departamento de Teoria Literária e Literaturas do Instituto de Letras da Universidade de Brasília – UnB com vistas à obtenção de grau de bacharelado em Letras – Língua Portuguesa e respectiva literatura.

Orientador: Profª. Dra. Sara Almarza

Brasília Julho de 2011

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Ao Pedro Henrique, pelo seu sorriso.

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Agradeço a Deus, por guiar sempre o meu caminho.

Aos meus pais, Soraya e Kleber, pelo carinho e confiança, bem como a toda minha família, meu porto seguro.

Ao meu namorado, Victor, pelo incentivo, pela amizade e por me fazer feliz.

A todos os meus amigos, pelo entusiasmo e pelos momentos inesquecíveis.

À minha orientadora, Dra. Sara Almarza, pela compreensão e generosidade.

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A solidão da vida Longo ensaio Da solidão da morte Helena Kolody

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Esta monografia busca analisar a presença do destino como uma força superior e determinista na obra Cem anos de solidão (1967), de Gabriel García Márquez. Partindo da simbologia do destino na Mitologia Grega, em especial no mito de Édipo, analisam-se os diversos elementos míticos presentes no romance, tais como a presença do divino, a fatalidade, a repetição, o tempo cíclico, entre outros, relacionando-os com a questão do destino. Procura-se também apontar a pluralidade de intertextos míticos presentes na obra, destacando o mito do eterno retorno, além de relacionar o destino da família Buendía ao destino da nação latino-americana, como também da própria humanidade.

Palavras-chave: destino; Cem anos de solidão; Mitologia grega; elementos míticos; mito do eterno retorno.

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This monograph aims to analyze the presence of fate as a superior and determinist force on the book One hundred years of solitude (1967), written by Gabriel García Márquez. Starting from the symbology of destiny in Greek Mythology, especially in Oedipus myth, analyze the various mythical elements present in the novel, such as the presence of the divine, the fatality, the repetition, the cyclic time, among others things, relating them with the fate issue. It also points the plurality of mythical ‘intertexts’ present in the book, emphasizing the eternal return myth, and relates the Buendia’s family destiny to the Latin American nation destiny, as well as humanity’s.

Keywords: fate; One hundred years of solitude; Greek Mythology; mythical elements; eternal return myth.

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INTRODUÇÃO ... 9

1. MITO: UMA BREVE EXPLANAÇÃO ... 11

2. A MITOLOGIA GREGA E A FORÇA DO DESTINO ... 13

2.1. A MOIRA GREGA ... 13

2.2 O DESTINO NO MITO DE ÉDIPO ... 15

3. GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ E A LITERATURA LATINO-AMERICANA ... 17

4. O DESTINO EM CEM ANOS DE SOLIDÃO ... 19

4.1 A PRESENÇA DE ELEMENTOS MÍTICOS ... 21

4.2 A PLURALIDADE DE INTERTEXTOS MÍTICOS ... 31

4.3 O MITO DO ETERNO RETORNO ... 31

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 37

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 39

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INTRODUÇÃO

Gabriel García Márquez, em La novela en América Latina: diálogo, ressalta o caráter solitário da humanidade. Para o autor, “el hombre está completamente solo” 1, sendo a solidão uma parte essencial da natureza humana. Cem anos de solidão (1967), sua obra prima, carrega em si, por meio da história da família Buendía, a solidão de toda uma nação e vai além, representa a solidão de toda uma humanidade.

A narrativa de Gabriel García Márquez estrutura-se tendo por referência o modelo do ciclo cósmico, o qual gira em torno da criação, do desenvolvimento, da decadência e da destruição, cujo centro é a cidade de Macondo e a família Buendía. No romance, os personagens percebem o mundo como um constante ir e vir, em uma circularidade de repetições sem fim.

Assim, procuram esquecer seu passado, vivem o presente em um completo conformismo e veem o futuro como algo inflexível e já pré-determinado.

Dentro dessa perspectiva, partindo da Mitologia Grega e chegando à cidade mítica de Macondo, a presente monografia procura analisar como a ideia de destino apresenta-se em Cem anos de solidão. Portanto, o romance de García Márquez dialoga com diversos elementos míticos, tais como, a presença do divino, a repetição, o tempo cíclico, a fatalidade, a tragicidade, dentre outros, os quais remetem à força complexa e inexorável do destino.

O interesse pelo tema surgiu por meio da disciplina Literatura Estrangeira em Língua Vernácula, ministrada pela professora Dra. Sara Almarza, minha orientadora, a qual me apresentou o instigante e apaixonante mundo mágico da literatura de García Márquez. Tão complexa é a obra deste autor e tamanhas são as reflexões e análises que dela pode-se depreender que este trabalho procura apenas apresentar uma leitura, tomando como referência diversos pressupostos teóricos já existentes, sem pretensão de esgotar o tema.

Primeiramente, procurou-se fazer uma breve explanação do que seja mito, bem como da diferença entre o pensamento mítico e o lógico, para, em seguida, discorrer sobre a Mitologia Grega, ressaltando sua relação com o destino, uma vez que essa força determinista faz-se presente na vida do homem trágico, como, por exemplo, no mito de Édipo. Na sequência, procurou-se estudar a presença do destino em Cem anos de solidão a partir da análise de diversos

1 GARCÍA MÁRQUEZ; VARGAS LLOSA, 1967, p. 11.

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elementos míticos, como a repetição e a circularidade, e também a partir do mito do eterno retorno, um dos muitos intertextos míticos presentes na obra. Por fim, buscou-se analisar os personagens do romance em seus aspectos universais, os quais representam não só a América Latina, mas também o mundo inteiro.

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1. MITO: UMA BREVE EXPLANAÇÃO

A palavra mito carrega consigo diversas nuances. Na Ilíada e na Odisséia, de Homero, mito pode ser traduzido por palavra que carrega sentido, bem como por discurso, intenção, aviso, etc.

Já Platão distingue mito (mythos) de lógos, em que o mito narra o que escapa ao pensamento.

Dentro dessa perspectiva, pode-se dizer que o que escapa ao pensamento lógico é algo transcendente, ou seja, que foge ao concreto no sentido de não estar perpetuado nos limites do tempo e do espaço.

É importante notar que essa distinção entre mythos e lógos, primordialmente, não existia e, assim sendo, ainda hoje permanece um tanto sutil essa diferenciação. Segundo Gorresio (2005, p. 60) nas sociedades primitivas, o mito é percebido não como uma invenção, mas como uma realidade efetiva. Nesse sentido, ele é caracterizado como parte da vida de um povo, isto é, como algo que explica o modo de ser de determinada sociedade, dando sentido a sua existência. Além disso, o mito carrega a ideia de revelação, a qual está sempre ligada à experiência do sagrado. Por sua vez, essa experiência sagrada está intrinsecamente vinculada ao numinoso. Quando essa experiência passa a ser racionalizada, deixa de ser sagrada, visto que perde seu caráter misterioso.

O surgimento da Filosofia, na antiga Grécia, atua nesse sentido de racionalização do pensamento. Sendo assim, a partir daí, os filósofos buscam entender a origem de tudo que existe, não por explicações míticas, mas por meio do pensamento lógico e científico.

De acordo com Gorresio (2005, p.50), a partir do Romantismo, há uma tentativa de retomar, em certo sentido, o conceito de mito como algo relacionado à realidade efetiva. Para os românticos, o Iluminismo restringiu o ser à esfera da racionalidade, perdendo, com isso, o sentido da vida, bem como a própria identidade humana. Assim, eles almejam um reencantamento do mundo, buscando a totalidade do ser, uma vez que a razão e a ciência não tiveram condições de preencher o espaço antes ocupado pelo mito. Portanto, o homem romântico é aquele que busca a integração entre luz e sombra como forças presentes e igualmente importantes na constituição do

ser.

Friedrich Schelling, em Introdução à filosofia da mitologia (1825), argumenta que o elemento obscuro e transcendente faz parte da experiência real da consciência. Para o autor, o

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mito é tautegoria, o qual exprime apenas o que em verdade ele é, opondo-se à concepção de mito como alegoria, isto é, como “expressão fantasiosa consequente de uma incapacidade e precariedade da razão” 2. Portanto, é como se a Mitologia se auto-explicasse, recusando qualquer significado que lhe fosse exterior, que expressasse uma significação traduzida.

2 SCHELLING, 1994, p. 67.

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2. A MITOLOGIA GREGA E A FORÇA DO DESTINO

Desde a Mitologia, o destino está associado a uma força superior, complexa e inflexível que detêm o domínio de todos os seres. Para os gregos, o homem é um ser que nasceu para a morte.

Essa fatalidade, presente em todas as ações humanas, carrega um sentimento de impotência e não-responsabilidade, deixando suas vidas encarregadas à força do destino.

Primordialmente, o homem arcaico não apresentava consciência do seu poder de decisão, isto é, o seu agir, sentir e pensar estavam intrinsecamente ligados à intervenção divina. Com o surgimento da Pólis grega, passa a haver uma ampliação da consciência humana, a noção de liberdade começa a ser questionada pelo homem. Sendo assim, surge, nas tragédias gregas, o conflito, a ação, bem como a “reflexão sobre a essência do agir humano” 3. O sujeito trágico, dotado de vontade própria e de poder de reflexão e decisão, passa a questionar os desígnios dos deuses e passa a querer agir segundo seus próprios atos. Ressalta-se, no entanto, que “a ação do homem na tragédia não exclui o destino, as forças divinas, as maldições arrastam o homem e, é essa questão essencial da tragédia: o equacionamento da ação humana com poderes sobre- humanos que a limitam e a invadem, vale dizer, com o destino.” 4

Portanto, há um jogo de tensão, em que, de um lado, encontra-se a intervenção divina, traduzida pela vontade dos deuses e, de outro, encontra-se a vontade dos homens:

Esta luta é, em geral, sem esperança, enredando mesmo o herói cada vez mais nas malhas do sofrimento e, muitas vezes, levando-o à morte. No entanto, combater o Destino até o fim, é o imperativo da existência humana que não se rende. O mundo dos que se resignam, dos que se esquivam à escolha decisiva constitui o fundo diante do qual se ergue o herói trágico.5

2.1. A MOIRA GREGA

A vontade dos deuses pode ser traduzida como representação de uma força sobre- humana, isto é, que está para além do domínio consciente humano, que se liga ao ordenamento

3 GORRESIO, 2005, p. 93.

4 Ibid., p. 92, grifo do autor.

5 LESKY, 1977 apud VOLPE, 1990, p. 32.

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da natureza. Essa representação, que também pode ser entendida como destino, relaciona-se ao que os gregos entendem por Moira, a qual pode ser traduzida por lote, isto é, aquilo que a cada um coube por sorte.

Nesse sentido primário, Moira seria uma força superior aos próprios deuses, uma vez que essa força também ordenou aos deuses seus domínios e limites. Por exemplo, a Zeus coube o reino do céu; a Poseidon, o mar; e a Hades, as trevas. Sendo assim, a cada deus coube seu lote delimitado que, caso transgredido, irá alterar a própria ordem do mundo. Percebe-se, então, que os homens e os deuses possuem o poder de decisão, isto é, se desejarem, podem ultrapassar seus limites predeterminados. Contudo, essa transgressão nunca será livre, visto que cada ato produz uma consequência semelhante.

De acordo com Gorresio (2005, p. 98), “a ordem e o limite dados por Moira não são uma barreira de impossibilidade cega e sem sentido: ela é um decreto ético – uma linha divisória dos limites do ser, ela é o éthos 6 imanente do próprio ser”.

Dentro dessa concepção, a Moira pode ser vista como algo presente na interioridade do próprio ser, como algo que faz parte de sua própria condição. No entanto, apesar de ser parte do ser, a Moira não é compreendida por este, sendo vista, da mesma forma, como algo numinoso e transcendente, manifestando-se, assim, como uma força paradoxal:

A Moira é o que sobrepassa, ou está além do individual, ela é tudo que provém do seu além-ser, tudo que lhe é exterior e Outro. A Moira é um complexio oppositorum, isto é, afirmação e negação, liberdade e necessidade, ao mesmo tempo em que define e delimita o ser individual pelo lote [...] como é a que guarda os limites de cada um e cria a ordem, é também criadora dos cosmos. Por isso, nenhum indivíduo pode ser pensado como um ser isolado: ele é o que é porque se constitui na medida em que é parte da Totalidade Cósmica [...] Moira, então, é a ordem do mundo, é a lei que determina os limites de cada ser humano ou divino. 7

A Moira de determinada família é herdada pelos seus descendentes, ou seja, hereditariedade e destino ligam-se mutuamente. Portanto, da mesma forma que características genéticas são passadas por diversas gerações, o mesmo ocorreria em relação às características

6 Éthos, nesse sentido, pode ser caracterizado como “condição”.

7 GORRESIO, op. cit., p. 114, grifo do autor.

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psíquicas. Nesse sentido, nascer relaciona-se a tornar-se ou vir a ser segundo seu antecedente. Em muitos mitos gregos, nota-se que um deslize ocorrido no passado é transmitido por diversas gerações, como se todos estivessem marcados por uma “mancha” irreparável, a qual só pode apagar-se com a morte da linhagem familiar. Dentro dessa perceptiva, os membros da família só encontram alívio quando aceitam, dolorosamente, a fatalidade que lhes foi traçada pelo destino.

Trata-se, portanto, de um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que o homem sente alívio por aceitar seu fado, visto que leva em consideração a efemeridade e a inconsistência da vida, ele vive com a impossibilidade de evitar a dor, uma vez que esta fatalidade não pode ser evitada.

2.2 O DESTINO NO MITO DE ÉDIPO

Édipo rei, de Sófocles, é uma das tragédias gregas que reflete bem a tragicidade a qual o homem está destinado. Nessa tragédia, Édipo, ao nascer, carrega consigo o peso de ser o mentor da maldição de seu pai Laio, rei de Tebas. Segundo a maldição, Édipo mataria seu próprio pai e desposaria sua mãe. Temendo esse acontecimento, o rei Laio manda matar seu filho. Este, no entanto, por força do destino, foi salvo por um pastor que o entregou a Políbio, rei de Corinto, que o cria, junto a sua esposa, como se fosse seu próprio filho. Tempos depois, Édipo toma conhecimento da maldição herdada e resolve fugir de sua casa para que seu destino não seja perpetuado. Durante sua fuga, depara-se com uma encruzilhada e acaba matando um homem que fazia parte de uma comitiva real. Chegando a Tebas, ele enfrenta uma terrível esfinge, como prêmio pelo ato heróico, casa-se com a rainha recém viúva, Jocasta, e vira, portanto, rei de Tebas.

Passados os anos, uma peste toma conta de seu reino, a qual só cessaria com a morte do assassino do antigo rei de Tebas. Inconformado, Édipo pede ajuda a um adivinho e acaba descobrindo que é o próprio assassino do antigo rei Laio, seu pai, e que havia casado com sua mãe, a viúva Jocasta.

Não suportando essa revelação, Édipo fura seus próprios olhos.

A história de Édipo é permeada, portanto, de lutas, maldições, ambigüidades e predestinações que se ligam em uma cadeia cíclica que parece ser infinita. Assim, todos os acontecimentos parecem estar ligados a um elo, em que os fatos se explicam por uma força sobre- humana, neste caso, traduzida pela vontade dos deuses. Dessa forma, Édipo, a todo instante, procura lutar contra seu destino e conduzir sua própria vida. No entanto, ao final descobre que

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“conduzindo o jogo do começo ao fim, foi um joguete sem o saber, é o descobridor e também aquele que é descoberto” 8, isto é, buscando o assassino do rei, encontra-se a si mesmo. Logo, a sua Moira não é mero acaso, antes, uma consequência de seus atos.

Percebe-se que, no mito de Édipo, há uma circularidade de acontecimentos que são encadeados por ações herdadas:

[...] herdeiro da maldição proferida contra Laio, Édipo já nasce marcado por um miasma que, por sua vez, é comunicado aos descendentes, os quais estarão lutando sempre com fantasmas, injunções e desejos que escapam a seu controle e transcendem sua existência como um todo. E sua vida será uma contínua tentativa para reerguer destas “mutilações”.9

Ressalta-se que a questão do incesto está sempre ligada, desde a Mitologia, à fatalidade.

Édipo, mesmo não tendo a intenção, acaba cometendo o incesto e vê, portanto, sua vida transformada em uma catástrofe. O personagem se auto pune, cegando-se para que não visse mais a desgraça cometida. A trama trágica relaciona-se sempre com a cadeia familiar, por isso o incesto é um tema recorrente.

Diante do exposto, o herói trágico vive em uma constante relação contraditória e ambígua, uma vez que, por um lado, possui a consciência que o torna livre e responsável por seus atos, mas, por outro lado, vê-se preso ao destino, ato concreto e pré-estabelecido no transcorrer de gerações.

8 VOLPE, op. cit., p. 57.

9 Ibid., p. 54.

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3. GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ E A LITERATURA LATINO-AMERICANA

Uma obra não é feita do nada, mas sim da própria realidade do autor, daquilo que ele tem conhecimento e carrega na memória. A produção literária, portanto, nasce da transfiguração dessas ideias para o papel. Assim, a criação de um produto inclui, dentro de si, muitos aspectos do próprio criador.

Gabriel García Márquez é um desses autores cuja obra está permeada de relatos autobiográficos. O escritor nasceu no dia 6 de março de 1928, na pequena cidade de Aracataca, na Colômbia. Foi criado pelos seus avós que muito o influenciaram com as histórias que contavam na sua infância. Assim, a memória que García Márquez tem de sua infância, principalmente em relação aos relatos de seu avô sobre guerras e aventuras militares e às superstições, lendas e fábulas repletas de magia narradas por sua avó, proporciona uma fusão entre o vivido e o imaginado. Suas obras retratam essa realidade popular presente nas histórias contadas em que não há uma nítida fronteira entre o comum e o extraordinário.

A literatura latino-americana da segunda metade do século XX busca reagir contra a lógica racionalista e cartesiana européia do século XIX. Segundo García Márquez (apud COUTINHO, 2003, p. 15), “o continente latino-americano não podia ser moldado por parâmetros próprios da visão de mundo do conquistador europeu, uma vez que era formado por componentes distintos do ponto de vista histórico, cultural, étnico, social, político, religioso etc” 10.

Assim sendo, essa corrente literária busca fundir a realidade da narrativa tradicional com elementos mágicos e maravilhosos, o que proporciona um encontro entre o racional e o mítico, resultando na instauração de um novo mundo, isto é, de uma nova realidade inusitada e um tanto ambivalente.

Desse modo, há uma dissolução entre o natural e o sobrenatural; o racional e o irracional;

o real e o mágico, em que qualquer acontecimento sobrenatural é visto como parte de uma realidade que é naturalmente mágica:

10 Entrevista com o Prof. Dr. Eduardo F. Coutinho presente na Revista do Instituto Humanitas Unisinos.

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Ao contrário da “poética da incerteza”, calculada para obter o estranhamento do leitor, o realismo maravilhoso desaloja qualquer efeito emotivo de calafrio, medo ou terror sobre o evento insólito. No seu lugar coloca o encantamento [...].

O insólito, em óptica racional, deixa de ser o “outro lado”, o desconhecido, para incorporar-se ao real: a maravilha é (está) (n)a realidade. Os objetos, seres ou eventos que no fantástico exigem a projeção lúdica de suas probabilidades externas e inatingíveis de explicação, são no realismo maravilhoso destituídos de mistério, não duvidosos quanto ao universo de sentido a que pertence.11

Desse modo, é importante ressaltar que não se trata de uma Literatura Fantástica, uma vez que, nessa forma literária, o sobrenatural não faz parte da realidade, pois é visto como algo que transgride essa realidade tradicional. Assim, na Literatura Fantástica, há uma realidade “realista”

preestabelecida que, em algum momento, sofre uma transgressão, ocorrendo uma ruptura e ocasionando um acontecimento fantástico e sobrenatural que não pode ser explicado objetivamente.

O universo cultural latino-americano da segunda metade do século XX explora um modelo literário em que se misturam Mitologia, História e memória popular, valorizando-se, portanto, o imaginário humano. Além disso, discorre sobre características marcantes do povo latino- americano, principalmente de sua cultura popular, como a solidão, a cultura mística e folclórica, a superstição, a representação da morte, a convivência com a guerra e a violência política, etc.

11 CHAMPI, 1980, p.50.

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4. O DESTINO EM CEM ANOS DE SOLIDÃO

Cem anos de solidão (1967), de Gabriel García Márquez, é o objeto de análise desta monografia. Esse romance discorre sobre a saga da família Buendía, em que realidade, fantasia e mito apresentam-se reunidos em um mesmo mundo.

A obra aborda temas relativos à história social, política e econômica da Colômbia e da América Latina em geral. No entanto, García Márquez não se limita à descrição exaustiva desses fatos, ou seja, não se trata de um romance histórico, muito pelo contrário, o autor, por meio da simplicidade, camufla sua denuncia e sua crítica através do cotidiano da família Buendía.

Portanto, abordagens históricas misturam-se com elementos míticos e mágicos que dão graça e originalidade ao enredo. Assim, ao mesmo tempo em que o romance retrata a guerra entre conservadores e liberais, bem como a dominação estrangeira em terra nacional, em que são levantados temas sérios e pertinentes, como a incorporação da violência ao cotidiano, a exploração humana, a corrupção, a ganância, a política ligada ao interesse pessoal, dentre outros, são narrados também episódios fantásticos, encarados com total naturalidade, como os tapetes mágicos voadores dos ciganos, a ascensão da personagem Remédios aos céus, as borboletas amarelas que acompanhavam Maurício Babilônia por aonde ele ia, a reprodução múltipla e célere dos animais provocada pelo amor dilacerante de Aureliano Segundo e Petra Cotes, etc.

Além disso, questões de índole social e política são descritas, na narrativa, por meio de passagens irônicas e de caráter grotesco, representadas principalmente pelo recurso do exagero, como, por exemplo, na cena em que os advogados da companhia bananeira conseguem desvirtuar as acusações contra o senhor Brown, proprietário da empresa, com “chicanas que pareciam coisa de magia” 12. Assim, após o senhor Brown recusar-se a assinar a petição dos trabalhadores, os quais reivindicavam diversos direitos trabalhistas, os “ilusionistas do direito” 13 fizeram com que ele desaparecesse, sem que deixasse nenhum rastro. Embora, os trabalhadores da companhia tivessem visto o senhor Brown vagando por diversos lugares, os advogados conseguiam, por meio de truques simplistas, enganar os funcionários com uma facilidade que impressiona:

12 GARCÍA MÁRQUEZ, 2011, p. 335.

13Ibid., p. 336.

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Mais tarde, o senhor Brown foi surpreendido viajando incógnito num vagão de terceira classe, e fizeram com que assinasse outra cópia do documento de petições. No dia seguinte compareceu diante dos juízes com cabelos pintados de negro e falando um castelhano sem tropeços. Os advogados demonstraram que não era o senhor Jack Brown, superintendente da companhia e nascido em Prattville, Alabama, e sim um inofensivo vendedor de plantas medicinais, nascido em Macondo e ali mesmo batizado com o nome de Dagoberto Fonseca. 14

Cem anos de Solidão narra a história das sete gerações da família Buendía, começando pela relação entre o patriarca José Arcádio Buendía e sua mulher Úrsula Iguarán. Por se tratar de uma relação incestuosa, Úrsula teme que o assombro familiar herdado por aqueles que comentem esse deslize se perpetue: o de seus filhos nascerem com rabo de porco. Por isso, ela resolve se resguardar, não consumando o matrimônio. Essa atitude faz com que José Arcádio Buendía seja tachado de impotente, o que o leva a assassinar seu amigo Prudêncio Aguilar após este fazer alusão à sua suposta impotência. O casal não conseguindo conviver com a sombra do morto e o peso da culpa decide se mudar para outro lugar, em que, tempos depois, após uma cansativa viagem, iriam fundar Macondo.

Portanto, com a fundação da cidade mítica de Macondo, situada no meio de um pântano e à margem “de um rio pedregoso cujas águas pareciam uma torrente de vidro gelado” 15, irá desenvolver-se a saga da família Buendía.

Com os primeiros descendentes da estirpe, José Arcádio, Aureliano e Amaranta, e depois com a chegada de Rebeca, filha de criação, as gerações seguintes vão se sobrepondo juntamente com inúmeros acontecimentos ao longo do tempo, como a chegada de Melquíades e dos ciganos com sua magia e invenções inusitadas; a peste da insônia, que move a cidade toda ao esquecimento; a guerra entre conservadores e liberais, que irá conduzir o Coronel Aureliano desde ao seu ápice até a sua decadência; o advento do trem na cidade; a chegada dos estrangeiros e a instalação da companhia bananeira em Macondo, levando ao massacre de mais de três mil trabalhadores que reivindicavam seus direitos.

14 GARCÍA MÁRQUEZ, op. cit., p. 336.

15 Ibid., p. 65.

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4.1 A PRESENÇA DE ELEMENTOS MÍTICOS

Conforme já referenciado e como se pode depreender do título do livro, ao longo de inúmeros episódios e acontecimentos, a solidão é a essência herdada e carregada por todos os personagens da trama, inclusive àqueles que, embora não façam parte da família biologicamente, estão intimamente ligados a ela.

Desse modo, os laços da hereditariedade são tão enraizados, que cada geração encontra-se presa a anterior por meio por meio de características físicas e psicológicas herdadas que se ligam também aos nomes dos personagens e aos seus destinos. Damázio (2007, p. 41) ressalta que:

A profusão de contos e episódios que se sucedem nos faz lembrar a narrativa mitológica, como se cada passo seguisse o fado, e os destinos dos personagens e da comunidade estivessem traçados em alguma cartilha ancestral, por mais surpreendente que possam parecer certos desdobramentos.

Dessa forma, percebe-se a semelhança da narrativa de Cem anos de solidão com diversos elementos míticos, principalmente em relação aos processos cíclicos que remetem ao universo fatalista do destino, uma vez que “as estirpes condenadas a cem anos de solidão não [tiveram]

uma segunda oportunidade sobre a terra” 16.

Do mesmo modo que na Mitologia Grega, vemos que, no romance, as ações humanas estão intrinsecamente vinculadas à força da Moira, força esta paradoxalmente imanente e transcendente ao próprio ser. Logo, essa força sobrenatural e dominante parece predeterminar todos os acontecimentos vivenciados pela família Buendía.

Na história dos Buendía, semelhante ao que ocorre no mito de Édipo, o incesto será o fator transgressor de um decreto ético invisível, representando “a linha divisória dos limites do ser” 17, que irá permear toda a trama, passando por todas as gerações em uma cadeia cíclica que parece não ter fim. Assim, a linhagem familiar dos Buendía provém de uma relação incestuosa entre José Arcádio Buendía e Úrsula Iguarán, sendo vista como um deslize, uma transgressão que será herdada pelos descendentes da família, bem como será o fato propulsor de uma vida marcada pela solidão latente.

16 GARCÍA MÁRQUEZ, op. cit., p. 447.

17 GORRESIO, op. cit., p. 98.

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Em um suceder cíclico, o incesto que deu origem à família irá se repetir ao final, pela relação endogâmica entre os últimos descendentes da estirpe, Amaranta Úrsula e Aureliano Babilônia, em que será consumado o terrível assombro ancestral, isto é, o filho desse casal nascerá com o rabo de porco tão temido por Úrsula e por todas as mulheres da família que cometeram o incesto, como Amaranta e Rebeca.

Tal como no mito de Édipo, os personagens da família Buendía procuram uma fuga, uma forma de escape a essa vida já condenada da qual não há nada a se fazer, senão esperar. Essa constatação obriga a família, de maneira geral, a viver uma vida de conformismo e paralisia.

Mesmo os personagens mais ativos, que agem segundo seus atos e possuem um aguçado poder de reflexão e decisão, chegam à conclusão, na decrepidez da vida e no auge de sua solidão, que tudo foi em vão, uma vez que não há como ir de encontro a essa força impassível e superior que detém o destino da estirpe.

A matriarca da família, Úrsula, vendo a resignação e a alienação ignorante, como também o total descaso com que seus descendentes levavam as suas vidas, se permite um momento de revolta, em que parece que irá tomar uma atitude drástica, mas que se traduz apenas pelo repelir de um palavrão:

Úrsula se perguntava se não era preferível deitar de uma vez na sepultura e que jogassem terra em cima, e perguntava a Deus, sem medo, se de verdade achava que as pessoas eram feitas de ferro para suportar tantos padecimentos e mortificações, e perguntando e perguntando ia atiçando sua própria confusão, e sentia uns desejos irreprimíveis de desandar a dizer palavrões e xingamentos como se fosse um daqueles forasteiros, e de se permitir enfim um instante de rebeldia, o instante tantas vezes ansiado e tantas vezes adiado de mandar a resignação à merda, e cagar de vez para tudo, e arrancar do coração os infinitos montões de palavrões que tinha precisado engolir num século inteiro de conformismo.

– Caralho! – gritou.18

O coronel Aureliano Buendía é o personagem mais marcado pela solidão. Sua mãe, Úrsula, na clarividência da velhice, compreende que o choro de Aureliano, ainda quando este estava dentro do ventre, era um prenúncio de sua incapacidade de amar:

18 GARCÍA MÁRQUEZ, op. cit., p. 288.

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Certa noite, quando o tinha no ventre, ouviu-o chorar. Foi um lamento tão definido que José Arcádio Buendía despertou ao seu lado e alegrou-se com a ideia de que o menino seria ventríloquo. Outras pessoas prognosticaram que seria adivinho. Ela, porém, estremeceu com a certeza de que aquele bramido profundo era um primeiro indício do temível rabo de porco, e rogou a Deus que deixasse a criatura morrer em seu ventre. Mas a lucidez da decrepitude permitiu-lhe ver, e assim repetiu muitas vezes, que o pranto das crianças no ventre da mãe não é um anúncio de ventriloquia ou de faculdade adivinhatória, e sim um sinal inequívoco de incapacidade para o amor. 19

Mesmo depois de viver uma vida de aventuras, se tornando um dos revolucionários mais respeitados e um dos homens mais poderosos de toda América Latina, ele não conseguiu encontrar o seu rumo, já velho, viu-se cada vez mais solitário e perdido na incerteza “do círculo vicioso daquela guerra eterna que sempre o encontrava no mesmo lugar” 20:

Seus únicos instantes felizes, desde a tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo, haviam transcorrido na oficina de ourivesaria, onde o tempo se esvaía enquanto ele armava peixinhos de ouro. Tinha precisado promover 32 guerras, e havia precisado violar todos os seus pactos com a morte e se revirar feito porco na pocilga da glória, para descobrir com quase quarenta anos de atraso os privilégios da simplicidade21.

Portanto, o Coronel Aureliano Buendía, pelo cansaço de sua velhice, mostra-se conformado com o seu destino, pois sabe que não há como remediar o que já está estabelecido. Como forma de fazer passar o tempo que lhe resta, ele procura sua paz de espírito como um artesão, em que seu “único sonho era morrer de cansaço no esquecimento e na miséria de seus peixinhos de ouro”

22.

Por seu destino fatalista, o Coronel Aureliano encontra-se preso em um eterno ciclo de repetição, fabricando dois peixinhos por dia até completar vinte e cinco, para depois fundi-los numa caldeirinha e tornar a fazê-los novamente. Muitos outros personagens também caem nesse mesmo vício de fazer para desfazer, como a própria personagem Fernanda Del Carpio constata:

19 GARCÍA MÁRQUEZ, op. cit., p. 287.

20 Ibid., p. 205.

21 Ibid., p. 208.

22 Ibid., p. 252.

(24)

Vendo como Aureliano Segundo montava fechaduras de porta e desmontava relógios, Fernanda se perguntou se não estaria incorrendo também no vício de fazer para desfazer, como o Coronel Aureliano Buendía com os peixinhos, Amaranta com os botões e a mortalha, José Arcádio Segundo com os pergaminhos e Úrsula com as recordações23.

Percebe-se, então, que o recurso da repetição, constante em toda obra, está intrinsecamente ligado à solidão e à frustração que permeia todo o romance.

A repetição de nomes de personagens, principalmente de nomes masculinos, é também uma constante na obra, em que eles parecem carregar os destinos dos personagens. Úrsula chega à conclusão que, pela tenaz repetição de nomes na longa história da família, “os Aurelianos eram retraídos, mas de mentalidade lúcida, [já] os José Arcádio eram impulsivos e empreendedores, mas estavam marcados por um destino trágico 24.

Os únicos que não fizeram parte dessa classificação foram os gêmeos José Arcádio Segundo e Aureliano Segundo. No entanto, como eram muito parecidos na infância, eles acabavam sendo sempre confundidos e assim permaneceu a dúvida de que seus nomes poderiam ter ficado trocados para sempre. Úrsula chega à conclusão que houve mesmo uma confusão de identidades, uma vez que as características físicas e psicológicas de cada um não condiziam com o nome que apresentavam:

Aquele que na brincadeira das confusões acabou com o nome de Aureliano Segundo ficou monumental como o avô, e o que ficou com o nome de José Arcádio Segundo tornou-se ósseo como o coronel, e a única coisa que conservaram em comum foi o ar solitário da família. Talvez fosse esse entrelaçado de estaturas, nomes e gênios que fez Úrsula suspeitar que estavam desbaratados desde a infância25.

Úrsula mostra-se sempre como a personagem mais equilibrada, a ponto de conseguir enxergar, já na velhice, que todos aqueles “loucos de nascença” 26 estavam condenados a uma sina solitária e frustrante, sendo a constante repetição de Arcádios e Aurelianos não um mero acaso, mas obra do destino. Dessa forma, em determinado momento, decide que ninguém

23 GARCÍA MÁRQUEZ, op. cit., p. 349-350.

24 Ibid., p. 220.

25 Ibid., p. 211.

26 Ibid., p. 221.

(25)

tornaria a se chamar Aureliano ou José Arcádio. A própria Úrsula, mesmo contra o último desejo de seu neto Arcádio, decide batizar sua bisneta com o nome de Remédios e não de Úrsula, pois, segundo ela, “sofre-se demais com esse nome” 27.

Apesar de seu dom de perceptibilidade e sua clareza de domínio, Úrsula ainda se vê presa a uma força transcendente e superior, em que suas perspicazes reflexões não passam de pensamentos velados, não se transformando, portanto, em ações decisivas capazes de alterar o curso traçado pelo destino. Assim, mesmo decidindo que ninguém mais de sua família iria se chamar Aureliano ou José Arcádio, isso não acontece, isto é, os seus descendentes, por diversos motivos, acabam tendo os mesmos nomes, não por uma escolha casual, mas pela força do destino contido nesses nomes.

Da mesma forma que os nomes possuem uma força transcendental e determinam o destino dos personagens, o pensamento obstinado, na narrativa, também se apresenta como uma força poderosa de caráter premonitório, em que o desejo é tanto e se mostra tão convicto que, muitas vezes, acaba por realizar-se.

Aureliano, em uma visita com seu pai ao Dom Apolinar Moscote, apaixona-se pela filha deste, uma menina de apenas nove anos chamada Remédios. Fascinado pela sua beleza e não conseguindo tirá-la de sua lembrança invoca por ela em pensamento:

Tantas vezes repetiu, e com tamanha convicção, que numa tarde em que armava na oficina um peixinho de ouro teve a certeza de que ela havia respondido ao se chamado. Pouco depois, ouviu a vozinha infantil, e ao levantar os olhos com o coração gelado de pavor viu a menina na porta com um vestido de organdi cor- de-rosa e botinhas brancas. 28

Amaranta estava tão decidida a arruinar o casamento de Rebeca, sua irmã de criação, com Pietro Crespi, pelo qual também demonstrava ser apaixonada, que teve a certeza de que se não houvesse nenhum obstáculo que pudesse impedir, de fato, o casamento, ela mesma seria capaz de matar Rebeca. Assim, decide, friamente, envenenar sua irmã com um jorro de láudano no seu café na última sexta-feira antes do casamento. No entanto, o tão suplicado obstáculo manifestou- se:

27 GARCÍA MÁRQUEZ, op. cit., p. 170.

28 Ibid., p. 106.

(26)

Uma semana antes da data marcada para a boda, a pequena Remédios despertou à meia-noite empapada num caldo quente que explodiu em suas entranhas com uma espécie de arroto dilacerante, e morreu três dias depois envenenada pelo próprio sangue e com um par de gêmeos atravessados no ventre. Amaranta sofreu uma crise de consciência. Havia suplicado a Deus com tanto fervor para que acontecesse alguma coisa e ela não precisasse envenenar Rebeca, que sentiu- se culpada pela morte de Remédios. 29

A repetição de nomes, hábitos, a circularidade de acontecimentos, bem como o vaivém de episódios confirmam a ideia de uma narrativa reiterada em forma de espiral. Úrsula, em diversas passagens do livro, ressalta essa impressão: “Isso aí eu sei de cor [...] É como se o tempo desse voltas redondas e tivéssemos voltado ao princípio” 30. Mesmo presumindo a circularidade do tempo, não a nada que Úrsula possa fazer para reverter essa circunstância, só lhe resta entregar- se ao vício eterno das recordações.

De acordo com a matriarca, havia “quatro calamidades” 31 que se repetiam, persistentemente, durante todas as gerações e determinavam a decadência de sua estirpe, a saber: a guerra, os galos de briga, as mulheres de vida fácil e os empreendimentos delirantes.

Assim, todos os homens da família Buendía, de uma maneira ou de outra, viam-se condenados a um desses “vícios”, os quais sempre os levavam à frustração, à decadência e à solidão.

A estrutura circular apresentada em Cem anos de solidão relaciona-se com a estrutura dos mitos, uma vez que “toda Mitologia se baseia em processos cíclicos da vida humana e da natureza” 32. De acordo com Josefina Ludmer (1989, p. 23), a obra pode ser dividida em duas metades, em que a narrativa realiza-se em espelho. Ou seja, os dez primeiros capítulos narram uma história e os outros dez voltam a narrá-la inversamente. Dessa forma, em um suceder cíclico, tem-se o caos, o princípio da criação, o desenvolvimento, a decadência e a destruição que levará a um novo caos, isto é, Macondo nasce do caos e ao caos retorna. No entanto, esse modelo do ciclo cósmico só não se perpetua eternamente pelo desgaste irremediável da roda do tempo, ou seja, a história de Macondo e da família Buendía termina no caos, sem que um novo princípio seja estabelecido.

29 GARCÍA MÁRQUEZ, op. cit., p. 127-128.

30 Ibid., p. 232.

31 Ibid., p. 227.

32 PALENCIA-ROTH, 1983 apud SOUSA, 2003, p. 274.

(27)

Pilar Ternera, a mulher que acompanha a saga da família Buendía do começo ao fim, prevendo seus destinos por meio das cartas, ressalta, em uma passagem do livro, essa postura do tempo como uma roda giratória:

Não havia nenhum mistério no coração de um Buendía que fosse impenetrável para ela, porque um século de baralho e de experiência tinha ensinado que a história da família era uma engrenagem de repetições irreparáveis, uma roda giratória que teria continuado dando voltas até a eternidade, se não fosse o desgaste progressivo e irremediável do eixo. 33

Úrsula demonstra, a todo o momento, sua intimidade com o tempo, sendo talvez a única personagem lúcida o suficiente para compreender a magnitude da força do destino que os leva sempre ao mesmo lugar. Contudo, na agudeza de espírito de sua decrepitude, observa que até mesmo esse tempo cíclico estava se esvaindo em um progressivo desgaste, visto que, segundo a matriarca, “o mundo [ia] se acabando pouco a pouco” 34 e “os anos de agora já não [chegavam]

como os de antes” 35.

Da mesma forma que no plano mitológico, a dualidade humana encontra-se presente em Cem anos de solidão. Na Mitologia Grega, o homem, em sua origem, teria sido um ser uno. No entanto, após confrontar os deuses, o homem é punido, sendo dividido em dois. Essa cisão resulta num enfraquecimento, numa insuficiência do ser, condicionando este a uma constante busca pela sua outra metade.

Gabriel García Márquez, em Cem anos de solidão, utiliza-se da imagem, dos reflexos e da miragem dos espelhos para compor sua narrativa. Preso ao tronco de uma castanheira, o patriarca da família, José Arcádio Buendía, mergulhado em um abismo de inconsciência, sonha constantemente que vaga por quartos infinitos:

Quando estava sozinho, José Arcádio Buendía se consolava com o sonho dos quartos infinitos. Sonhava que se levantava da cama, abria a porta e passava para outro quarto igual [...] Desse quarto passava a outro exatamente igual, cuja porta abria para passar a outro, exatamente igual, e depois a outro exatamente igual, até o infinito. Gostava de ir de quarto em quarto, como numa varanda de

33 GARCÍA MÁRQUEZ, op. cit., p. 428, grifo nosso.

34 Ibid., p. 222.

35 Ibid., p. 282.

(28)

espelhos paralelos, até que Prudêncio Aguilar tocava seu ombro. Então regressava de quarto em quarto, como numa varanda de espelhos paralelos, despertando para trás, percorrendo o caminho inverso, e encontrava Prudêncio Aguilar no quarto da realidade. 36

A imagem dos espelhos, nessa passagem, é utilizada para reforçar a eternidade e a infinitude da própria solidão de José Arcádio, uma vez que, despido de qualquer senso da realidade, este só mantinha contato com o fantasma de Prudêncio Aguilar. Estava preso ao tronco da castanheira não por causa das cordas que o amarravam, estas eram desnecessárias, mas por

“um domínio superior a qualquer amarra visível [que] o mantinha atado ao tronco da castanheira”

37. Então, resignado ao seu destino solitário, sem nenhum sinal de resistência, pode-se dizer que José Arcádio não passava de uma miragem, uma mera projeção de si mesmo.

Os personagens da família apresentam-se como miragens especulares, revelando sua identidade difusa e testemunhando a insuficiência de seu ser, pois sem buscar a metade perdida que lhes falta, sem buscar o outro, eles só encontram a solidão, como bem define o escritor mexicano, Octávio Paz (1984, p. 175):

A solidão é o poço mais profundo da condição humana. O homem é o único ser que se sente só e o único que é busca do outro. [...] O homem é nostalgia e busca da comunhão. Por isso cada vez que se sente a si mesmo se sente como carência do outro, como solidão.

A imagem do espelho também é mencionada ao final da narrativa, quando Aureliano, o último descendente da estirpe, começa a decifrar os pergaminhos de Melquíades, nos quais estava escrito todo o destino da família Buendía, e, ao decifrar o instante em que estava vivendo, sente como se “estivesse se vendo num espelho falado”, assim ia “decifrando conforme vivia esse instante, profetizando a si mesmo no ato de decifrar” 38. Ainda ao final da narrativa, a própria cidade de Macondo é referida como sendo a “cidade dos espelhos (ou das miragens)” 39, ressaltando o caráter mítico e sobrenatural da cidade, propícia a duplicações da realidade e onde os reflexos da fantasia e do realismo se entrelaçam de modo que se torna quase impossível enxergar as suas linhas divisórias.

36 GARCÍA MÁRQUEZ, op. cit., p. 179, grifo nosso.

37 Ibid., p. 147.

38 Ibid., p. 447.

39 Ibid., p. 447.

(29)

Como a própria imagem especular sugere, há, em Cem anos de solidão, uma multiplicidade de tempos, em que prevalece o tempo subjetivo, visto que são raros os detalhamentos cronológicos e datais. No romance, o tempo é relativo e instável, apresentando-se, conforme já mencionado acima, em processos cíclicos, em que se intercalam passado, presente e futuro.

Esse caráter múltiplo do tempo é percebido na primorosa e complexa prolepse que inaugura a narrativa: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo” 40. Essa forma de enunciação utiliza como recurso narrativo a antecipação de um elemento futuro, sendo que, no caso de Cem anos de solidão, trata-se de recordações que são antecipadas, em que, a partir de lembranças passadas, narra-se o futuro.

Também pela falta de referência cronológica e histórica, torna-se difícil encaixar Macondo nos limites do tempo e do espaço. O distanciamento de Macondo em relação ao restante do mundo é tão grande, que, logo no começo da narrativa, consegue-se perceber seu isolamento, uma vez que os habitantes da cidade desconheciam o fato de que a terra era redonda, verdade esta já comprovada cientificamente há muitos anos. Nesse sentido, quando José Arcádio Buendía descobre, depois de muito tempo imerso em suas reflexões e teorias, que “a terra é redonda feito uma laranja” 41, todos da aldeia acreditam que ele havia perdido o juízo.

A alegoria da condição da América Latina é revelada por meio da história da família Buendía, em que é retratado o inexorável determinismo que rege a vida da família e a impotência dos personagens ante as forças inomináveis da natureza e do instinto do homem.

Em diversas passagens do livro, percebe-se o conformismo e o imobilismo social da coletividade, como quando os soldados chegam a Macondo, “aldeia onde não existiam paixões políticas” 42, para organizar as eleições e confiscam todo o tipo de arma, até as facas de cozinha, para que não ocorresse nenhum incidente. Apesar de a eleição ter sido nitidamente fraudada pelo delegado Dom Apolinar Moscote, “o que na verdade causou indignação no povoado não foi o

40 GARCÍA MÁRQUEZ, op. cit., p. 43.

41 Ibid., p. 46.

42 Ibid., p. 137.

(30)

resultado da eleição, mas o fato de que os soldados não tivessem devolvido suas armas e facas de cozinha” 43.

O conformismo da população de Macondo é tamanho que quando a cidade é invadida pelos estrangeiros, o povo, mesmo incomodado, mantém-se inerte aos fatos. No episódio em que houve o massacre de mais de três mil trabalhadores da companhia bananeira, é retratada a total alienação e ingenuidade dos habitantes, os quais, mesmo contra todos os fatos evidenciados, acreditaram na versão oficialmente forjada, que dizia que não houve mortes e “os trabalhadores tinham voltado satisfeitos para suas famílias” 44:

[...] os militares negavam tudo aos próprios parentes de suas vítimas que lotavam o escritório dos comandantes à procura de notícias. “Com certeza foi um sonho”, insistiam os oficiais. “Em Macondo não aconteceu nada, nem está acontecendo, nem nunca acontecerá. Este é um povo feliz”. 45

Desse modo, Macondo e seus habitantes alegorizam o espaço e a sociedade latino- americana, em que o conformismo, a alienação, a falta de atitude coletiva e de identidade são características que envolvem toda a nação.

O romance também pode ser caracterizado como uma alegoria da condição humana, em que a história de Macondo e da família Buendía, desde sua origem até sua extinção, é também a história da terra e dos homens. Para Moreno (1979, p. 194), Cem anos de solidão é:

[...] um romance de uma terra e de uma família, da terra e dos homens, dos ciclos progressivamente infernais que levam do paraíso e da inocência à morte. A magia predomina no romance; magia feita de terra e sonho que é também mito e lenda mais do que história. Talvez o mais extraordinário de Cien años de soledad seja a capacidade de narrar com realismo preciso e, às vezes, descarnado até transformar a realidade em lenda sem que a lenda perca a aparência de realidade.

No romance, há o cruzamento entre história e mito, formando-se uma narrativa de estrutura complexa, em que se encontram presentes e entrelaçadas a alegoria da realidade histórica latino-americana, bem como a alegoria da própria condição humana. A solidão é a essência presente em toda a narrativa, solidão não só do povo latino-americano e de seu passado

43 GARCÍA MÁRQUEZ, op. cit., p. 138.

44 Ibid., p. 344.

45 Ibid., p. 345.

(31)

colonial, opressivo e atrasado, mas também solidão inerente ao ser humano, retratando a sua suscetibilidade em ser solitário.

4.2 A PLURALIDADE DE INTERTEXTOS MÍTICOS

Nas narrativas contemporâneas, especificamente na literatura latino-americana do século XX, há um constante diálogo com mitos clássicos e bíblicos. Essa analogia se faz não na prevalência de um único mito, mas na pluralidade de elementos míticos. Dessa forma, em Cem anos de solidão, há uma articulação com diversos mitos, como: o mito de Édipo (conforme já referenciado no início da análise), relacionando incesto, fatalidade e hereditariedade; o mito do Minotauro, relacionando o labirinto ao destino da família Buendía; o mito de Penélope e o eterno fazer para desfazer, representado constantemente nos atos dos personagens do romance, como no de Amaranta com sua mortalha; o mito de origem, em que a fundação de Macondo faz alusão ao paraíso bíblico de Adão e Eva.

Além disso, encontra-se presente também, em Cem anos de solidão, o mito do eterno retorno, dentre o qual se fará uma análise mais detalhada.

4.3 O MITO DO ETERNO RETORNO

Cem anos de solidão dialoga com o mito do eterno retorno, em que há a concepção do mundo como algo em que tudo o que acontece volta a acontecer em um processo cíclico e infinito. Assim, há a presença, em toda obra, de um tempo mítico, cujas principais características são: a repetição, a circularidade e a suspensão temporal.

Há, em Cem anos de solidão, a noção de um tempo histórico, representado pelos acontecimentos históricos, como a guerra civil entre conservadores e liberais e a luta dos trabalhadores contra o imperialismo da companhia bananeira, mas esse tempo é percebido como um agente externo, prevalecendo o tempo sagrado, uma vez que o romance não se reduz a uma leitura de determinado tempo histórico, nem somente narra a história de determinada família. A obra vai muito além, representa a alegoria de toda a condição humana.

(32)

O mitólogo Mircea Eliade, em seu livro Mito do Eterno Retorno (1949), faz uma análise primorosa dos conceitos fundamentais das sociedades arcaicas, sociedades estas que desprezam o tempo histórico. Nessas sociedades primitivas e mitológicas, vive-se num presente contínuo, em que há uma recusa ao tempo concreto, uma vez que, para esses povos, a história não possui valor, ou seja, os acontecimentos não são irreversíveis. Mircea Eliade (1992, p. 13) explica que:

Nos elementos particulares de seu comportamento consciente, o homem

“primitivo”, arcaico, não reconhece qualquer ato que não tenha sido previamente praticado e vivido por outra pessoa, algum outro ser que não tivesse sido homem.

Tudo o que ele faz já foi feito antes. Sua vida representa a incessante repetição dos gestos iniciados por outros.

Assim, a vida apresenta-se como uma repetição de gestos já estabelecidos por outros, em que o próprio tempo regenera-se, numa repetição infinita que acaba por provocar uma suspensão do tempo.

Essa suspensão temporal pode ser percebida em alguns personagens, os quais parecem desprender-se de qualquer convencionalismo temporal. José Arcádio Buendía é um desses personagens, que imerso em suas reflexões e quase perdendo o senso da realidade, constata que

“a máquina do tempo destrambelhou” 46, pois, ao analisar o aspecto dos dias, percebe que eles em nada se alteravam. O céu, as paredes, o ar, o zumbido do sol, tudo continuava sempre igual, todo dia era segunda-feira. Muitos anos depois, José Arcádio Segundo e seu neto Aureliano reafirmam o postulado pelo patriarca:

Ambos descobriram ao mesmo tempo que ali sempre era março e sempre era segunda feira, e então compreenderam que José Arcádio Buendía não estava tão louco como contava a família e sim que era o único que dispusera de lucidez para vislumbrar a verdade de que também o tempo sofria tropeços e acidentes e podia, portanto, se estilhaçar e deixar num quarto uma fração eternizada. 47 Na passagem descrita acima, José Arcádio Buendía e Aureliano referiam-se ao quarto de Melquíades, o qual pode ser visto como o centro de toda narrativa, onde estão situados os pergaminhos secretos escritos pelo cigano alquimista e que guardavam, em suas letras indecifráveis, o destino de toda a família. O quarto, por ser o templo onde está situada a chave da

46 GARCÍA MÁRQUEZ, op. cit., p. 120.

47 Ibid., p. 383.

(33)

profecia, manifesta-se como um ambiente transcendental e enigmático, em que o tempo é subjetivo e encontra-se suspenso em um eterno presente. Assim, nada se modifica nem se deteriora, uma vez que o tempo, nesse ambiente, não parece passar:

[...] Quando Aureliano Segundo abriu as janelas entrou uma luz familiar que parecia acostumada a iluminar o quarto todos os dias, e não havia o menor rastro de poeira ou teias de aranha, e tudo estava varrido e limpo, mais bem varrido e limpo que no dia do enterro [de Melquíades], e a tinta não havia secado no tinteiro nem o azinhavre havia alterado o brilho dos metais [...] Apesar de trancado por anos, o ar parecia mais puro que no resto da casa. Tudo era tão recente que várias semanas depois, quando Úrsula entrou no quarto com um balde de água e uma vassoura para lavar o chão, não teve nada para fazer.48

O cigano Melquíades representa uma figura lendária na narrativa, visto como um ser mítico, ele apresenta um caráter imortal, em que em determinado momento aparece envelhecido com uma rapidez assombrosa, e em outro momento posterior, reaparece juvenil novamente.

Além disso, escapa da morte diversas vezes e até retorna dela por não suportar a solidão:

[...] a morte o seguia por todos os lugares, pisando seus calcanhares, mas sem se decidir a dar o golpe final. Era um fugitivo de todas as pragas e catástrofes que haviam flagelado o gênero humano. Sobrevivera à pelagra em Pérsia, ao escorbuto no arquipélago da Malásia, à lepra em Alexandria, ao beribéri no Japão, à peste bubônica em Madagascar, ao terremoto da Sicília e a um naufrágio multitudinário no estreito de Magalhães. Aquele ser prodigioso, que dizia possuir o código de Nostradamus, era um ser lúgubre, envolto numa aura triste, com um olhar asiático que parecia conhecer o outro lado das coisas.49

A imagem de Melquíades, isto é, do homem que “usava um chapéu grande e preto, como as asas esticadas de um corvo, e um colete de veludo patinado pelo limo dos séculos” 50 apresenta-se onipresente em toda a narrativa, sua figura é transmitida e permanece viva na memória de todos os descendentes da família, inclusive daqueles que nasceram depois de sua morte física. Assim, Aureliano Segundo, no dia em que inicia a tentativa de decifrar os manuscritos, recebe a visita de Melquíades e o reconhece de imediato, mesmo sem nunca o ter visto:

48 GARCÍA MÁRQUEZ, op. cit., p. 221-222.

49 Ibid., p. 47.

50 Ibid., p. 47.

(34)

Usava o mesmo colete anacrônico e o chapéu de asas de corvo, e por suas têmporas pálidas escorria a gordura dos cabelos derretida pelo calor, como Aureliano e José Arcádio haviam visto quando eram meninos. Aureliano Segundo o reconheceu de imediato, porque aquela recordação hereditária tinha sido transmitida de geração em geração, e havia chegado a ele vinda lá da memória do avô. 51

Tanto como a imagem de Melquíades, os pergaminhos podem ser vistos como uma espécie de herança, em que, após a morte do cigano alquimista, pelo menos um determinado descendente de cada geração irá procurar decifrá-los. No entanto, como “ninguém deve conhecer o seu sentido antes que eles tenham cem anos” 52, o único capaz de desvendar o mistério foi Aureliano Babilônia, o quarto e último Buendía a se empenhar na tradução dos manuscritos, depois de Arcádio, Aureliano Segundo e José Arcádio Segundo.

Pela vergonha que sua avó, Fernanda Del Carpio, sente de sua bastardia, Aureliano Babilônia passa quase sua vida inteira preso na casa da família, sendo a decodificação dos pergaminhos a sua única distração. Assim, ele dedica-se exaustivamente e consegue, rapidamente, avançar nos estudos, percebe que os manuscritos estavam escritos em sânscrito, e passa, então, a aprender essa língua.

Como parte de um processo cíclico, o incesto que deu origem à família se repete ao final da narrativa. Portanto, Aureliano, mesmo sem ter conhecimento, apaixona-se por sua tia Amaranta Úrsula e dessa relação incestuosa nasce, com o tão temido rabo de porco, o último descendente da família, cumprindo-se, finalmente, a profecia tão fatalmente pronunciada hereditariamente.

Como já premeditado cem anos antes, seu filho é devorado por uma vastidão de formigas, é nesse instante que Aureliano Babilônia começa a compreender seu destino e consegue, sem balbuciar, ler o que estava escrito nos pergaminhos de Melquíades:

Aureliano não conseguiu se mexer. E não porque estivesse paralisado pelo estupor, mas porque naquele instante prodigioso as chaves definitivas de Melquíades se revelaram, e viu a epígrafe dos pergaminhos perfeitamente ordenada no tempo e no espaço dos homens: O primeiro da estirpe está amarrado a uma árvore e o último está sendo comido pelas formigas 53.

51 GARCÍA MÁRQUEZ, op. cit., p. 223.

52 Ibid., p. 223.

53 Ibid., p. 445.

(35)

Segundo Marcea Eliade (1992, p. 65), outra característica das sociedades míticas consiste no constante diálogo com os mortos, principalmente nos rituais iniciáticos, uma vez que, para essas sociedades, não há barreiras entre os vivos e os mortos. Dessa forma, a invasão dos mortos representa uma paradoxal coexistência entre passado e presente, em que há, portanto, uma anulação da lei do tempo.

Em Cem anos de solidão, há também um constante diálogo com os mortos, reafirmando a imobilidade do tempo histórico e a prevalência do tempo mítico. A presença do morto Prudêncio Aguilar acentua o peso da consciência de José Arcádio Buendía e Úrsula por tal morte. É do peso dessa culpa que nasce Macondo, como uma tentativa de fugir da presença do morto. No entanto, o morto não desiste, continua na procura incessante por José Arcádio até que um dia descobre o seu paradeiro:

“Prudêncio – exclamou – como é que você veio parar tão longe!” Depois de tantos anos de morte, era tão intensa a saudade dos vivos, tão urgente a necessidade de companhia, tão aterradora a proximidade da outra morte que existia dentro da morte, que Prudêncio Aguilar havia terminado por gostar do pior de seus inimigos. Levava muito tempo procurando por ele. Perguntava aos mortos de Riohacha, aos mortos que chegavam do Vale de Upar, aos que chegavam do pantanal, e ninguém sabia dar com ele, porque Macondo era um povoado desconhecido para os mortos até que chegou Melquíades e apontou um pontinho negro nos coloridos mapas da morte. 54

Dessa primeira aparição nasce uma amizade entre os antigos inimigos. Na velhice, quando já estava pulverizado pela profunda decrepitude da morte, José Arcádio Buendía encontra, em Prudêncio Aguilar, o refúgio do tédio e da solidão:

Prudêncio Aguilar ia duas vezes por dia conversar com ele. Falavam de galos de briga. Prometiam um ao outro montar uma criação de animais magníficos, não tanto para desfrutar de vitórias que já não lhes fariam falta, mas para terem alguma coisa com que se distrair nos tediosos domingos da morte. 55

Aureliano Babilônia e Amaranta Úrsula, o casal da última geração Buendía, também convivem com a presença constante de todos os mortos da família:

Muitas vezes foram despertados pelo flanar dos mortos. Ouviram Úrsula lutando com as leis da criação para preservar estirpe, e José Arcádio Buendía buscando a

54 GARCÍA MÁRQUEZ, op. cit., p. 118-119.

55 Ibid., p. 179.

(36)

verdade quimérica dos grandes inventos, e Fernanda rezando, e o coronel Aureliano Buendía embrutecendo-se com enganos de guerras e peixinhos de ouro, e Aureliano Segundo agonizando de solidão no aturdimento das farras, e então aprenderam que as obsessões dominantes prevalecem contra a morte, e tornaram a ser felizes com a certeza de que eles continuariam se amando com suas naturezas de assombrações muito depois que outras espécies de animais futuros arrebatassem dos insetos o paraíso da miséria que os insetos estavam acabando de arrebatar dos homens. 56

Conforme já referido no início deste trabalho, na Mitologia Grega, o homem é visto como um ser que nasceu para morte, uma vez que é o destino que dita as regras da vida. Essa mesma fatalidade pode ser percebida em Cem anos de solidão. Por mais que seja temida, a morte não é vista como algo a ser combatido. Assim, todos, na trama, conformam-se com o seu derradeiro final.

A morte, “uma mulher vestida de azul e com os cabelos longos, de aspecto um pouco antiquado” 57, aparece para Amaranta e ordena que esta comece a tecer sua própria mortalha. Ao invés de sentir medo, Amaranta sente-se privilegiada pelo fato da morte se anunciar para ela com vários anos de antecipação. Durante o período em que tece sua mortalha, Amaranta encontra a sua paz de espírito e, então, compreende o círculo vicioso da vida e aceita a frustração de seu destino:

[...] era de tal maneira profundo o conformismo com o seu destino que sequer se inquietou com a certeza de que estavam fechadas todas as possibilidades de corrigir aquele rumo. Seu único objetivo foi terminar a mortalha. Em vez de atrasá-los com preciosismos inúteis, como fez no começo, apressou os trabalhos.

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Úrsula também percebe que está perto de sua morte, sente que irá morrer quando passasse o dilúvio que se instaurou em Macondo durante quatro anos, onze meses e dois dias.

Assim, viveu por volta de cento e quinze e cento e vinte e dois anos e, quando morreu, “fez tanto calor que os pássaros desorientados se esfacelavam feito perdigotos contra as paredes e rompiam as telas metálicas das janelas para morrer nos quartos” 59.

56 GARCÍA MÁRQUEZ, op. cit., p. 441-442.

57 Ibid., p. 314.

58 Ibid., p. 315.

59 Ibid., p. 377.

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