• Nenhum resultado encontrado

A Escultura como Experiência Estética:

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2022

Share "A Escultura como Experiência Estética:"

Copied!
92
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES

A Escultura como Experiência Estética:

Rui Chafes e Alberto Carneiro

Maria João Pereira de Vasconcelos

Dissertação

Mestrado em Crítica, Curadoria e Teorias da Arte

Dissertação orientada pelo Prof. Doutor José Carlos Pereira

2020

(2)

DECLARAÇÃO DE AUTORIA

Eu Maria João Pereira de Vasconcelos, declaro que a presente dissertação intitulada

“A Escultura como Experiência Estética: Rui Chafes e Alberto Carneiro”, é o resultado da minha investigação pessoal e independente. O conteúdo é original e todas as fontes consultadas estão devidamente mencionadas na bibliografia ou outras listagens de fontes documentais, tal como todas as citações diretas ou indiretas têm devida indicação ao longo do trabalho segundo as normas académicas.

O Candidato

Lisboa, 6 de fevereiro de 2020

(3)

RESUMO

O panorama artístico do século XX foi profundamente marcado pela criação de novas linguagens plásticas, onde inúmeros artistas enveredaram por novos caminhos, procurando desta maneira criar discursos e propostas artísticas inovadoras. Com Marcel Duchamp, deu-se início a um diálogo sobre a natureza da arte, os seus ready-made proporcionaram uma reinvenção do panorama artístico, e criaram uma rutura com toda a tradição escultórica até então. A sua abordagem pioneira abriu caminho a novas linguagens e consequentemente a uma maior liberdade artística, onde a escultura se afirma enquanto experiência estética e o papel do observador ganhou cada vez mais importância na composição e na relação com o objeto artístico. As práticas escultóricas de Rui Chafes e Alberto Carneiro surgem como herdeiras deste legado artístico iniciado por Duchamp, neste sentido, e no contexto da história da arte, os artistas aparecem como duas figuras singulares, de grande relevo e importância no campo da escultura portuguesa contemporânea.

A presente dissertação tem como objetivo principal explorar e aprofundar as diferentes linguagens artísticas dos dois escultores, procurando de compreender a sua abordagem face à produção escultórica e, posteriormente, a relação estabelecida pela mesma com os seus observadores.

Apesar de, formalmente, as suas obras numa primeira impressão não possuírem semelhanças, as duas práticas escultóricas assentam sobre princípios idênticos, procurando atingir um único objetivo, o de proporcionar uma experiência estética única aos seus observadores.

Rui Chafes defende que a escultura deve ser tocada com o olhar, no sentido em que com a sua arte, pretende estimular a emoção mas também o intelecto do observador, provocando uma transformação de dimensão espiritual. Alberto Carneiro pretendia que os seus

“envolvimentos” constituíssem uma experiência profundamente sensorial, ao acreditar que a escultura deveria ser “vista” com as mãos, apelando não apenas ao toque como a todos os sentidos de quem a experienciasse.

Deste modo, as esculturas dos dois artistas assumem-se como elementos potenciadores da experiência estética, na qual o observador ocupa um lugar de relevo, e pois, no limite é na experiência estética que se realiza plenamente a existência e o sentido da escultura.

Palavras-Chave:

Escultura; Experiência Estética; Rui Chafes; Alberto Carneiro

(4)

ABSTRACT

The 20th century artistic panorama was deeply marked by the creation of new plastic languages, where countless artists took new paths, seeking in this way to create discourses and innovative artistic proposals. With Marcel Duchamp, a dialogue on the nature of art began, its ready-made provided a reinvention of the artistic panorama, and created a rupture with all the sculptural tradition until then. His pioneering approach opened the way to new languages and consequently to greater artistic freedom, where sculpture asserts itself as an aesthetic experience and the role of the observer gained more importance in the composition and the relationship with the artistic object. The sculptural practices of Rui Chafes and Alberto Carneiro appear as heirs of this artistic legacy initiated by Duchamp, in this sense, and in the context of the history of art, the artists appear as two singular figures, of great importance in the field of contemporary Portuguese sculpture.

This dissertation aims to explore and deepen the different artistic languages of the two sculptors, seeking to understand their approach to sculptural production and, subsequently, the relationship established by it with its viewers.

Although formally their works at first impression have no similarities, the two sculptural practices are based on identical principles, seeking to achieve a single objective, to provide a unique aesthetic experience to their observers.

Rui Chafes defends that sculpture should be touched with the eyes, in the sense that with his art, he intends to stimulate the emotion but also the intellect of the viewer, provoking a transformation of spiritual dimension. Alberto Carneiro wanted his "involvements" to constitute a deeply sensorial experience, believing that sculpture should be "seen" with the hands, appealing not only to the touch but also to all the senses of those who experienced it.

In this way, the sculptures of the two artists assume themselves as potentiating elements of the aesthetic experience, in which the observer occupies a prominent place, and therefore, in the limit it is in the aesthetic experience that the existence and meaning of sculpture is fully accomplished.

Keywords:

Sculpture; Aesthetic Experience; Rui Chafes; Alberto Carneiro

(5)

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais e ao meu irmão, pelo carinho e apoio incondicional desde sempre.

Ao professor José Carlos Pereira, pela disponibilidade, orientação e clareza.

Aos meus amigos pela paciência, as longas conversas e a vida boémia.

(6)

ÍNDICE

INTRODUÇÃO ... 01

I - A DIMENSÃO EXISTENCIAL NA ESCULTURA DE RUI CHAFES 1. A Verdadeira Biografia ... 04

1.2 A Lição dos Mestres ... 08

1.2.1 Tilman Riemenschneider - A Espiritualidade Medieval ... 08

1.2.2 Alberto Giacometti – A Redução ... 11

1.2.3 David Smith – A Experiência Artística do Ferro ... 15

1.2.4 Richard Serra – A Leveza e o Peso ... 17

1.2.5 Ad Reinhardt – A Absorção da Luz ... 19

2. A Condição Existencial ... 21

2.1 A Queda do Objeto ... 21

2.2 A Suspensão do Tempo ... 27

II - A DIMENSÃO ENERGÉTICA NA ESCULTURA DE ALBERTO CARNEIRO 1. A Aprendizagem: da Infância ao Ofício ... 42

1.2 A Espiritualidade Oriental ... 45

2. A Condição Vivencial do Corpo ... 51

2.1 A Escultura como Energia ... 51

2.2 A Escultura como Experiência ... 59

CONCLUSÃO ... 67

BIBLIOGRAFIA ... 71

ANEXO ... 77

(7)

INTRODUÇÃO

Escultura, “palavra oriunda do latim sculptura, etimologicamente significa talhar, gravar em função da realização de obras tridimensionais, obtidas a partir duma matéria preexistente a que vulgarmente se chama bloco, sobretudo quando se trata de pedra.

A estas características, outras se podem juntar, definindo aquilo que a escultura procurou e afiançou ser, até à modernidade novecentista, quando outros valores e objectos se afirmaram de modo inusitado, senão mesmo em ruptura com o conceito tradicional”.1 Sendo considerada uma das expressões artísticas, a escultura ocupa desde os seus primórdios um lugar de grande importância e relevo na história da arte. Em relação ao seu conceito associa-se qualquer representação realizada em três dimensões, na qual os materiais utilizados são transformados em obras de arte, tendo em consideração a organização de volumes, contornos, texturas e contrastes de luz e sombra. Neste sentido, pode-se afirmar que a escultura é uma arte do espaço, capaz de o moldar, construir, ocupar mas também uma arte relacional, na medida em que tem a capacidade de se relacionar com o lugar onde se insere, e a sua envolvência pré-existente, potenciando-a.

Atualmente, muitos dos princípios teóricos e estéticos relacionados com a produção escultórica não possuem o significado de épocas anteriores, pois a definição de escultura expandiu os seus limites. Com o aparecimento e desenvolvimento de novas linguagens artísticas iniciou-se um processo de alteração, do conceito de obra de arte provocando também uma alteração nos temas escultóricos, nas formas de representação e nos materiais por si utilizados.

O princípio do século XX foi marcado por reações ao academismo onde inúmeros artistas enveredaram por novos caminhos, procurando, deste modo, criar novos discursos, novas propostas artísticas, e dar início a uma reflexão sobre a natureza da arte.

Na escultura, a diminuição da sua escala, uma nova linguagem plástica mais dinâmica e inovadora, a ausência de plinto, uma orientação espacial tendo por base a horizontalidade, a utilização de outros materiais, que não o mármore, proporcionaram uma maior aproximação do observador.

1 PEREIRA, José Fernandes – Escultura in Dicionário de Escultura Portuguesa. Lisboa: Caminho, 2005,

(8)

Foi com Marcel Duchamp que se deu início ao diálogo entre a natureza da arte e a possibilidade do objeto artístico; os seus ready-made proporcionaram uma reinvenção da arte ao apropriar-se de objetos da vida quotidiana, industriais ou comerciais, colocando-os em determinado contexto, ou, ao denominá-los como arte foi capaz de lhes conferir uma outra natureza. A sua Fonte, datada de 1917, assumiu-se como uma atitude radical, e representa um corte com a tradição escultória e artística até à época, inaugurando deste modo um discurso sobre as barreiras entre o que é “arte” e “não-arte”, a função e condição da própria arte, permitindo a sua abordagem colocar no mesmo patamar artístico o observador e o criador.

A abordagem pioneira de Duchamp abriu caminho a novas linguagens e, consequentemente, a uma maior liberdade artística, fornecendo a base teórica e estética para a arte conceptual que se estende até à contemporaneidade. Perante o objeto, surgiu um mundo de possibilidades, uma nova forma de fazer arte onde esta se afirma como experiência estética, reforçando o papel do observador na sua relação com o objeto.

A partir do momento em que é considerado arte, o objeto artístico transforma-se num instrumento produtor de ideias, em que a sua transformação só pode ser realizada pelo observador.

Ao focar-se na ideia e atribuindo grande importância ao conceito a arte conceptual foi capaz de reduzir um objeto a um conceito, permitindo desta maneira que se transformasse a relação com o espectador, a partir da ativação da dimensão inteligível, confirmando o papel ativo do observador na experiência estética. Deste modo, o objeto artístico exige mais do observador, constituindo-se um elemento potenciador da experiência estética o que contribui para a reconfiguração da prática escultórica.

Neste contexto, à medida que o tempo foi passando, tornou-se cada vez mais difícil aplicar o conceito tradicional de escultura, por esta exceder os limites da tridimensionalidade. De forma a abranger as novas formas das práticas escultóricas, Rosalind Krauss no seu artigo, Sculpture in the Expanded Field, datado de 1979, cria o conceito de campo expandido para englobar o espectro das possibilidades formais da escultura.

As obras de Rui Chafes e Alberto Carneiro são herdeiras deste vasto legado escultório, encontrando-se também inscritas na definição de campo expandido. No contexto da

(9)

história da arte portuguesa, os dois surgem como duas figuras singulares na escultura portuguesa contemporânea.

A presente dissertação tem como objetivo abordar as diferentes linguagens artísticas dos dois escultores, mais precisamente no sentido de compreender a sua abordagem face à produção escultórica e posteriormente a relação estabelecida com o espectador.

Deste modo, encontra-se dividida em duas grandes partes, a saber, a dimensão existencial na escultura de Rui Chafes procura caraterizar a obra deste escultor, dividindo-se em dois capítulos; no primeiro, aborda-se a sua verdadeira biografia artística, as lições dos mestres, as suas influências e, no segundo, a sua prática escultórica, nomeadamente os conceitos de queda e de suspensão do tempo presente.

Na segunda parte, teremos os estudo da dimensão energética na escultura de Alberto Carneiro, dividindo-se, também, em dois capítulos: no primeiro é abordado o seu percurso de vida e a relação singular que mantinha com a espiritualidade oriental; o segundo capítulo centra-se na linguagem artística do escultor, no modo como perceciona a escultura, a abordagem perante o seu material primordial a energia, e, nos modos como a escultura se consubstancia numa experiência estética.

Numa época em constante transformação, marcada por um universo cada vez mais digital e pela aceleração de tempo, as obras de Rui Chafes e de Alberto Carneiro surgem como

“lugares” proporcionadores de um abrandamento e reencontro com essas experiências sensoriais perdidas e com a própria existência do observador.

(10)

I

A DIMENSÃO EXISTENCIAL NA ESCULTURA DE RUI CHAFES

1. A Verdadeira Biografia

Rui Chafes nasceu em Lisboa no ano de 1966. Estudou Escultura entre 1984 e 1989 na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, após terminar o curso ingressou em 1990 na Kunstakademie em Düsseldorf, na Alemanha, onde durante dois anos frequentou a classe do escultor Gerhard Merz. Enquanto jovem artista à procura do seu caminho demonstrou, desde cedo, interesse pela cultura alemã, sobretudo “pela cultura do período romântico alemão, séculos XVIII e XIX, e pela língua alemã”.2 Foi durante o tempo em Düsseldorf que o artista teve a oportunidade de enriquecer a sua formulação teórica e aprofundar o seu interesse pela cultura germânica, centrando-se sobre o romantismo alemão e em autores como Friedrich Hölderlin, Heinrich Von Kleist, Friedrich Schlegel e, especialmente, Novalis.

Numa fase inicial do seu percurso artístico o escultor começou por trabalhar em pedra, mas, devido às limitações próprias deste material, “o seu peso quase fúnebre”3, como refere o escultor e o simbolismo associado, decidiu abandoná-lo para realizar com materiais diversos, “nomeadamente materiais naturais em confronto com materiais artificiais”4, instalações efémeras de grandes dimensões, que ocupavam por completo o espaço a si destinado, sendo que, a partir do ano de 1988, se dedica a trabalhar exclusivamente com ferro e a pintá-lo de negro.

Apesar da contemporaneidade da sua obra, Rui Chafes assume-se, enquanto escultor, como uma força do passado; em A História da Minha Vida,5 a sua autobiografia artística, refere que nasceu em 1266 “numa pequena aldeia, que já não existe, na Francónia, na Baviera”.6 Esta frase marca o início do seu verdadeiro percurso de vida, e por toda a sua longa tradição escultórica, que começou aos vinte anos com a sua colaboração nas

2 Entrevista por Sílvia Gonçalves, no jornal Público, em Dezembro de 2008.

3 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio&Alvim, 2006, p. 112.

4 Ibid., p. 112.

5 CHAFES, Rui – Entre o Céu e a Terra. Lisboa : Documenta, 2014.

6 Ibid., p. 11.

(11)

esculturas para a ala oeste dos patronos fundadores da Catedral de Naumburg, Uta e Ekkehard II.

Despertado pela curiosidade em relação à produção artística realizada nessa época noutros locais da Europa, e devido à necessidade de trabalho, começou um extenso e árduo caminho que duraria vários anos, sendo conduzido a diferentes paragens o que se traduziu numa aprendizagem decisiva para a realização da sua obra atual.

A primeira paragem fora do seu país natal foi em França, onde durante um breve período de tempo trabalhou nas esculturas na Catedral de Reims, tendo-se especializado na representação de sorrisos de anjos, porém o desejo de conhecer o que estava a acontecer no outro lado dos Alpes, o chamado berço do ocidente, fez com que se dirigisse a Itália onde, em Lucca, entre 1406 e 1407, teve a oportunidade de trabalhar na execução do Túmulo de Ilaria del Carreto com o mestre Mestre Jacopo Della Quercia, cuja “escultura possuía uma qualidade formal irrepreensível aliada a uma serenidade e sentido de beleza inultrapassável”.7

Os anos vividos em Itália transformaram por completo a visão artística do escultor e a decisão de retornar à sua origem na Francónia foi tomada com o objetivo de retomar o seu caminho na procura ardente não só de um trabalho vantajoso, mas também de um mestre, alguém que fosse capaz de lhe mostrar o sentido da sua procura “para ela não ser apenas uma demanda errática”.8

Segundo o escultor há muito que admirava com grande fervor um dos grandes nomes dessa época, Tilman Riemenscheider, o mestre de Würzburg; na altura surgiu a oportunidade de trabalhar com ele, o que para o artista foram “dias inesquecíveis em que a honra e o privilégio de trabalhar com aquele que eu considerava o maior Mestre- Escultor de toda a Alemanha me encheram da maior alegria que se pode ter: saber que se está a tomar parte, mesmo que ínfima, na criação de um momento de eternidade”.9 Segundo refere o escultor, foi com Tilman Riemenscheider que aprendeu a lidar com os seus próprios limites, com os limites da matéria, e a transformar esses mesmos limites

“numa marca da passagem de um sopro capaz de transformar o peso da matéria na leveza

7 CHAFES, Rui – Entre o Céu e a Terra. Lisboa : Documenta, 2014., p.16.

8 Ibid., p.19.

(12)

do espírito”.10 Enquanto seu aprendiz entre 1497 e 1510, trabalhou nas esculturas para o Túmulo do Imperador Heinrich II e Imperatriz Kunigunde, na Catedral de Bamberg, no Altar do Sangue Sagrado, em Rothemburg Ob der Tauber e, por fim, no Altar de Maria, em Creglingen.

Após esse período considerado por si maravilhoso, regressou em 1530 a França onde, decorriam obras de extrema relevância arquitetónica e escultórica, e foi aceite para trabalhar com Jean Juste (Giovanni di Giusto Betti) na concretização do túmulo de Louis XII e de Anne de Bretagne que, segundo o escultor, a “obra representou a passagem maravilhosa que se possa imaginar do hieratismo e rigidez das representações arcaicas e góticas da morte para assunção da imagem da morte”.11 Finalizada a encomenda, teve ainda a honra de trabalhar com o grande mestre francês Germain Pilon na elaboração do primeiro túmulo de Henri II e Catarina de Médicis, onde lhe foi atribuída a árdua tarefa de executar a mão da rainha.

A necessidade de “regressar à luz que transforma tudo o que é real numa hipérbole da realidade”12 fez com que, depois da longa estadia em França, se dirigisse a Roma onde conheceu e trabalhou com Stefano Maderno, um dos primeiros mestres do período de transição que se vivia na elaboração do retrato fúnebre de Santa Cecília na Chiesa di Santa Cecilia, em Trastevere, finalizado em 1600, cabendo-lhe a responsabilidade de esculpir a ferida aberta no pescoço degolado da Santa.

Quis o destino que o seu caminho se cruzasse com o de Gian Lorenzo Bernini no começo da sua brilhante carreira, trabalhando na sua oficina, entre 1622 e 1623, na produção da escultura Apolo e Dafne, tendo a aprendizagem anterior com o mestre de Würzburg atingido a perfeição por via da transformação do mármore em carne. A força e a energia que emanava do génio criativo de Gian Lorenzo Bernini deixaram-no à beira de um esgotamento, pondo em causa tudo o que tinha realizado até então e, exausto, sentiu-se obrigado a regressar ao seu país natal, a Alemanha, que era o “local da alma, o local onde o nevoeiro, a falta de luz e a pele branca dos seus habitantes nos prometem a existência de um mundo interior, não apenas um mundo virado para fora como no sul”.13

10 CHAFES, Rui – Entre o Céu e a Terra. Lisboa : Documenta, 2014, p.19.

11 Ibid.,p.21.

12 Ibid.,p.24.

13 Ibid.,p.21.

(13)

Viveu durante esta época principalmente de dinheiro acumulado enquanto assistente do famoso escultor italiano e de alguns trabalhos realizados de pouca relevância. Habitava em si um sentimento de tristeza, um mal-estar e acima de tudo o sentimento de traição a todos os grandes Mestres que havia venerado no passado, especialmente em relação a Tilman Rimenschneider, que lhe tinham ensinado a espiritualidade da Escultura.

Com o início da revolução romântica, por volta do ano de 1795, o escultor reencontrou o rumo que havia perdido anos antes; a visão do mundo apresentada por um grupo de filósofos, artistas e pensadores interessava-o de tal forma que se tornou amigo de um deles, Georg Philipp Friedrich von Hardenberg, mais conhecido por Novalis; foi neste poeta-filósofo que finalmente encontrou alguém que dava sentido à sua corrente de pensamentos. A sua relação foi de um crescente envolvimento, de tal forma que o artista sentiu a necessidade de traduzir para português uma seleção de palavras e fragmentos do escritor romântico, que lhe tocavam profundamente a alma. Após a morte repentina, em 1802, de Novalis, com apenas 29 anos de idade, decidiu permanecer na Alemanha, onde no ano de 1808 trabalhou com Philip Otto Runge na elaboração das gravuras do seu projeto As Horas do Dia; este trabalho constituiu a escola de desenho tardia do escultor.

Com a morte de Philip Otto Runge, no ano de 1810, sentiu-se mais uma vez desamparado, mas, acima de tudo grato, pela sua existência, e à de Novalis no seu percurso pois, graças a eles conseguiu reconciliar-se com o seu passado e sobretudo com a sua natureza mais íntima.

Todo este trajeto percorrido pelo escultor, ao longo dos séculos, tornaram possível a criação do seu próprio caminho nos dias de hoje, onde graças à aprendizagem com os mestres e pensadores do passado pode dedicar-se exclusivamente à sua própria obra na esperança de conseguir criar “um dia alguma escultura válida”.14

(14)

1.2 A Lição dos Mestres

1.2.1 Tilman Riemenschneider - A Espiritualidade Medieval

O trabalho do escultor português encontra ressonâncias em inúmeros artistas ao longo de uma vasta e diversa cronologia. Apesar da história da arte compreender diferentes momentos, para Rui Chafes, assume-se como uma continuidade e é por esta razão que elege o escultor alemão Tilman Riemenschneider, como o seu grande mestre e exemplo.

Segundo o artista, a obra deste artista do Gótico Tardio foi “uma grande revelação na arte.

Tive então o sentimento real de que algo tremendo poderia ser criado pela forma. Aquelas eram as esculturas que eu queria ver. Um artista tem de fazer a arte que ele próprio quer ver, não é verdade?”15

Tilman Riemenschneider nasceu no ano de 1460 em Heiligenstadt, Estado da Turíngia, na Alemanha central. Em 1483, instalou-se na cidade de Würzburg, onde se juntou à Irmandade de São Lucas, e deu início ao seu percurso artístico enquanto aprendiz numa oficina local. O seu casamento com Anna Schimdt, no ano de 1485, permitiu-lhe ocupar um lugar de relevo na classe burguesa da cidade, adquirir o título de mestre e posteriormente constituir a sua própria oficina.

A virtuosidade dos seus trabalhos iniciais e o seu estatuto social fizeram com que rapidamente a sua oficina de escultura se tornasse uma das mais prolíferas e importantes da região da Francónia, tendo recebido comissões eclesiásticas e municipais da cidade de Würzburg e também de outras cidades como Bamberg e Wittenberg, situadas nos arredores e fora do território diocesano. O escultor empregava cerca de quarenta assistentes, o que na época correspondia a uma equipa de trabalho sólida e fértil, e enquanto mestre liderou e procurou manter a excelência da sua produção durante mais de quatro décadas.

Em 1505, foi eleito vereador municipal, cargo que viria a desempenhar durante duas décadas o que contribuiu para que conseguisse obter encomendas de grande valor e importância. Entre os anos de 1520 e 1524, ocupou o lugar de Presidente da Câmara, no entanto durante a revolta dos camponeses alemães, por se recusar a seguir ordens

15 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 156.

(15)

superiores, foi preso, torturado e perdeu não só grande parte das suas propriedades como também o seu estatuto de artista e cidadão de respeito. Este acontecimento fez com que a sua carreira artística terminasse de forma repentina e trágica. Tilman Riemenschneider faleceu a 7 de julho de 1531 na cidade que o acolheu e permaneceu maior parte da sua vida, tendo deixado um importante legado artístico, com obras dispersas por várias catedrais e igrejas da região da Francónia e Alta Baviera.

O escultor alemão ganhou notoriedade pela forma precisa como trabalhava diversos materiais, entre os quais a pedra, o alabastro, o mármore avermelhado, o calcário amarelo e a madeira. A sua obra caracterizada por linhas cortantes, com contornos de grande precisão e rigor, pelo modo notável de tratamento das figuras que lhes conferia uma expressividade emotiva interior ímpar, demonstrou ser capaz de transcender as limitações da escultura da época. Sobre o escultor alemão, Rui Chafes afirma: “esta exatidão no Tilman Riemenschneider, esta sobriedade que para mim é exemplar. O que também muito admiro nele é a linha. Ele trabalha com contornos precisos, a partir de linhas claras e cortantes e, quando consigo eu próprio isso, fico feliz.”16

A exaltação de jogos de luz, a minúcia e a intensidade expressiva das suas obras criam uma arte direcionada a cativar não apenas o olhar do devoto mas também fazer com que este eleve o seu espírito, convidando-o a abandonar o seu próprio corpo e ascender perante Deus. Uma arte destinada a alcançar o espírito através da emoção, elemento também valorizado pelo escultor português no seu trabalho, pois defende que “o mais importante na arte é a emoção. Só a emoção pode tocar as pessoas”.17

Na referida autobiografia artística , o escultor português reitera o que verdadeiramente aprendeu com aquele que considerava na época o maior Mestre-escultor de toda a Alemanha:

Com ele, com as suas sábias e experientes palavras, aprendi como o vento passa pelos cabelos e pelas roupagens de pedra dos santos, se for soprado pelos olhos visionários de quem acredita nos limites intemporais e permanentes da Escultura. Com esse grande mestre aprendi a lidar com os meus limites, com os limites da matéria, e a transformar esses limites numa marca da passagem do sopro que transforma o peso da matéria na leveza do espírito. Não há magia aqui, apenas o trabalho, a sabedoria e a experiência. Só a certeza e a crença de que, apesar de os objectos não existirem, de não ser possível acreditar na sua existência, de apenas

16 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 156.

(16)

serem uma possibilidade e não uma certeza definitiva, eles são a única maneira, que temos ao nosso alcance, de mostrar um pensamento no espaço.18

Se, com Tilman Riemenschneider, Rui Chafes aprendeu lições de extrema importância, foi neste período de transição do Gótico tardio assim como na Arte Medieval que encontrou muitos dos valores que enformam o seu pensamento e obra.

Nestes destacam-se a sabedoria, a experiência, a espiritualidade mas, acima de tudo, o despojamento do ego, o trabalho de oficina e a ética do artista. Para o escultor português é lhe inconcebível não existir uma ética de trabalho, é nela que reside a diferença entre os artistas. Ao mesmo tempo interessa-lhe na escultura medieval “a ideia de prescindir do ego...De facto é um luxo; mas ao mesmo tempo o mais difícil é abdicar e prescindir do ego; e ao abdicar do ego, todas as portas estão abertas”.19 Rui Chafes afirma ainda que só acredita “na obra dos artistas individualistas, dos que são inclassificáveis, dos que fazem tropeçar a máquina, dos que são uma pedra no sapato ou um acidente na história : os lobos loucos, os casos diferentes, os casos raros, não me interesso por artistas de grupo ou de gaveta”.20

Ao escultor português sempre lhe interessou refletir sobre o lugar da escultura no mundo, como refere, pois existe uma grande diferença em a expor no local a si destinado, a igreja e o museu um espaço inerte e neutro. Segundo Rui Chafes, “os museus preparam a morte cuidadosamente, encenam a morte sob a forma de tédio e de vigilantes adormecidos. A igreja é o local onde estes trabalhos iniciaram o seu questionamento do mundo é o inicio dos seus problemas; porque antes de serem arte no museu, foram instrumentos de fé numa igreja”.21 Para o escultor português, “a arte sempre foi religiosa. No fundo, não era necessário conhecer a verdade, era preciso amar e acreditar: a fé era o conhecimento. Sem esse espaço de silêncio e sem essa sacralização das palavras e gestos torna-se difícil acontecer a sublime mentira da arte. E assim será sempre, desde do principio do mundo até ao fim do mundo.”22 Esta ideia fundamental expressa na sua obra liga-o a Tilman Riemenschneider e à espiritualidade medieval.

18 CHAFES, Rui – Entre o Céu e a Terra. Lisboa : Documenta, 2014, p.19.

19 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p.95.

20 Ibid., p.94.

21 Ibid., p.95.

22 CHAFES, Rui – Entre o Céu e a Terra. Lisboa : Documenta, 2014, p.48.

(17)

1.2.2 Alberto Giacometti – A Redução

No contexto europeu pós-segunda guerra mundial, Alberto Giacometti, juntamente com Joseph Beuys são considerados por Rui Chafes como possivelmente os grandes escultores desse período; segundo o artista “os dois são, à distância que o tempo nos permite, os que conseguem instaurar uma linguagem de resistência válida e sólida, capaz de ser confrontada com a vitalidade, a radicalidade, a inovação e a capacidade de afirmação (e de teorização das próprias práticas artísticas) da escultura americana”.23

Alberto Giacometti nasceu a 10 de Outubro de 1901 em Borgonovo, na região dos Alpes Suíços. Em 1922, mudou-se para Paris, onde ingressou na Académie de la Grande Chaumière, e frequentou as aulas do escultor Antoine Bourdelle.

Nos primeiros anos na cidade visitou inúmeros museus, dedicou-se ao estudo e à cópia de obras egípcias, medievais, desenvolveu um interesse pela escultura africana e pela arte oceânica. Descobriu também o Surrealismo, e algumas das suas esculturas iniciais como a Tête qui regarde, de 1929, ou a Boule suspendue, de 1930-31 demonstram uma clara influência do movimento nos seus traços e formas. A convite de André Breton, a partir de 1931, o escultor suíço colaborou em manifestos, publicações, exposições e atividades realizadas pelos Surrealistas, antes de abandonar o grupo no ano de 1935.

Ao longo deste período Giacometti, intensificou as suas experiências estilísticas através da combinação de formas cubistas com elementos egípcios e alguns traços de influência primitivista, numa tentativa de representar o movimento e elaborar esculturas afetivas.

Durante a Segunda Guerra Mundial regressou à sua localidade natal onde conheceu a futura mulher, Annette Arm, que, juntamente com a sua mãe e o irmão Diego serviu de modelo para as suas obras posteriores. Em 1946, voltou a Paris e ao trabalho no seu pequeno atelier, na rua Hippolyte-Maindron conservado, no decurso da sua ausência pelo irmão também artista e seu assistente.

23 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio&Alvim, 2006, p. 60.

(18)

Num período marcado pela tentativa de reencontro com valores humanos, considerados esquecidos, e pela constante memória dos horrores vividos durante a guerra, abriu-se à luz da época o debate sobre a condição humana. Ao encontrar a cidade completamente transformada e diferente daquilo que conhecera, Alberto Giacometti começou a frequentar novos locais, a aumentar os seus círculos de amizade e a participar em discussões de carácter filosófico na companhia de Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre.

Este último filósofo e escritor viria a escrever dois textos, que se tornariam importantes para a receção do trabalho do escultor não só no meio artístico como na sociedade da altura.

Enquanto no panorama artístico predominava maioritariamente uma arte de carácter abstrato, as esculturas do artista restabeleceram a figura humana como temática principal, sendo que a partir deste momento Giacometti iniciou uma busca obsessiva pela sua representação e desmaterialização através da redução, característica que viria marcar a sua obra até ao final dos seus dias.

As suas esculturas ascendem a uma dimensão espiritual, Giacometti representa figuras esguias maioritariamente do sexo feminino, em andamento, alongadas, assemelhando-se a sombras assentes sobre um bloco quadrangular, primeiramente moldadas em gesso, e finalizadas depois em bronze. Na época, Jean Paul-Sartre referiu a razão desta escolha;

segundo o filósofo, Giacometti “não gosta da resistência da pedra, que trava os seus movimentos. Escolheu para si uma matéria sem peso, a mais dúctil, a mais perecível, a mais espiritual: o gesso. Mal o sente na ponta dos dedos, o gesso é a contrapartida impalpável de seus movimentos”.24

A obra do escultor suíço pretende ser uma tentativa de representação da condição frágil do ser humano, da sua efemeridade, através da anulação e redução da matéria, reduzindo a escultura à sua essência, ao seu núcleo confrontando, o observador com a sua própria existência, a sua fragilidade e vulnerabilidade. Com Giacometti, segundo o juízo de Sartre, “jamais a matéria foi menos eterna, mais frágil, mais próxima de ser humana”.25 Na realidade as suas esculturas acabam por ser versões de apenas uma única escultura, numa obsessão constante por parte de Giacometti de tentar representar o invisível através

24 SARTRE, Jean-Paul – Textos de Giacometti. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 20.

25 Ibid., p.22.

(19)

do visível, reduzindo a escultura à sua essencialidade, neste caso a um traço, um movimento.

Na verdade, e de acordo com Rui Chafes:

O caminho da negação, da redução, da austeridade e ascetismo, da discriminação, tomado por Giacometti, conduziu-o à criação de um espaço calcinado. O espaço é a matéria da sua escultura: mais do que invólucros vazios, as suas figuras são espaços ou impossibilidades de ocupar o espaço. Aqui se apresenta um testemunho do homem desprovido de qualidades individuais, o Homem tornado local, lugar, espaço. O Homem destruído, esburacado, dissecado, exaurido. A secura, a rarefação radical dos propósitos figurativos e a redução da figura à sua própria tortura abriram o caminho para a moderna escultura: a escultura da consciência. Aliás a enorme grandeza de Giacometti reside na sua extrema e radical consciência, que o levou sempre a tentar e a falhar e a considerar sempre a arte como uma tentativa votada ao fracasso. 26

A ideia de redução é também para Rui Chafes indispensável; o escultor acredita que a

“redução é uma transcendência e essa ideia de transcendência associada à redução, é uma ideia que é fundamental para o meu trabalho”.27

Apesar da distância temporal existente entre os dois escultores, ambos apresentam grandes afinidades entre si, o abrandamento, a sua forma de trabalhar isolada e persistentemente, o aparente distanciamento entre a sua obra e uma suposta estética homogénea contemporânea, o regresso à solidão e ao trabalho de oficina como elementos essenciais na construção da obra de arte e a assunção da impossibilidade do objeto.

Em relação a este aspeto, o artista português afirma que Alberto Giacometti é “um escultor de quem me sinto próximo por trabalhar na desmaterialização do objecto e na sua apresentação enquanto impossibilidade.”28 Em relação à obra do escultor suíço, Jean Paul Sartre chegou também a afirmar na época que “se para esculpir, é preciso talhar e recoser nesse meio incompreensível, então a escultura é impossível.”29

Segundo Rui Chafes a memória no trabalho de Giacometti é uma memória não histórica e como afirmam as palavras de Jean Genet;

Nunca, nunca, a obra de arte se destina às novas gerações. Ela é a oferenda ao inúmero povo dos mortos. Que a acolhem ou rejeitam [...] Embora presentes, onde pertencem essas figuras de Giacometti, senão à morte? De onde voltam ao mínimo apelo dos nossos olhos, direito a

26 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 59.

27 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p. 93.

28 CHAFES, Rui in MATOS, Sara Antónia – Espaço ( Arte Contemporânea). Montemor-o-Novo: Oficinas do Convento, 2009, p.94.

(20)

nós. [...] A obra de Giacometti transmite ao povo dos mortos o conhecimento da solidão de todos os seres e de todas as coisas; solidão, nossa mais certa glória! [...] Giacometti não trabalha para os contemporâneos nem para as gerações futuras: ele esculpe estátuas que arrebatam enfim os mortos.30

Semelhante ao pensamento do escritor francês a arte para o escultor português é também para os mortos, pertence ao considerado território da morte. A escultura de Rui Chafes procura assim como a de Alberto Giacometti ser uma “arte muito dura capaz de se infiltrar pelas paredes porosas do reino das sombras.”31

Alberto Giacometti, faleceu em 1966, em Chur, Suiça, curiosamente no mesmo ano em que nasceu o escultor português.

30 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio&Alvim, 2006, p.61.

31 Ibidem.

(21)

1.2.3 David Smith – A Experiência Artística do Ferro

David Smith assume-se como uma das figuras mais importantes no contexto do modernismo e da escultura em ferro, partilhando com Rui Chafes uma relação de proximidade, no sentido em que os dois escultores pertencem à tradição milenar do trabalho com o ferro.

Numa das suas primeiras exposições individuais, em 1995, no Centro de Arte Moderna intitulada de Würzburg Bolton Landing o escultor português criou uma proximidade com David Smith e Tilman Riemenschneider, fundindo duas obras escultóricas temporais distintas, enfatizando desta maneira, a sua ideia de uma arte involutiva e o próprio posicionamento na história da escultura da sua obra.

David Smith nasceu a 9 de março de 1906, em Decatur, no estado do Indiana, Estados Unidos da América. Durante um ano frequentou a Universidade de Ohio, tendo desistido para trabalhar em 1925 na Studebaker Automobile Factory South Bend numa linha de montagem de automóveis. Neste período aprendeu a soldar e outras técnicas associadas a este processo que viria depois recuperar e utilizar ao longo da sua carreira artística.

Em 1926 mudou-se para Nova Iorque, onde estudou pintura e desenho na The Arts Students League, durante cinco anos.

Iniciou a sua carreira artística como pintor, tendo sido assistente de Arshile Gorky e Willem de Kooning, porém, no ano de 1930, trocou de forma definitiva este papel para se dedicar apenas à escultura, após tomar conhecimento do trabalho escultórico de Pablo Picasso e de Júlio Gonzalez através da revista Cahiers d’Art. Este momento demonstrou ser fulcral para o seu trajeto, pois percebeu naquele instante que as técnicas aprendidas na fábrica de automóveis se podiam aplicar à arte, mais precisamente à prática escultórica.

Em 1940, decidiu trocar Nova Iorque definitivamente por Bolton Landing, local onde tinha instalado um estúdio para se dedicar à escultura livremente, sem restrições de espaço e afastar-se do panorama artístico vivido mais intensamente nos ambientes urbanos.

As suas primeiras esculturas em madeira apareceram como um prolongamento das suas telas, seguindo a tradição pictórica do expressionismo abstrato, assemelhando-se a desenhos no espaço, foi só entre 1930 e 1933 que começou a introduzir linhas, formas realizadas em metal e a utilizar materiais não convencionais nas suas obras.

(22)

Como assinala Rosalind Krauss, a influência do Surrealismo em “David Smith nas décadas de 30 e 40 voltou a atenção do artista para uma escultura imbuída de uma estratégia de confrontação e para temas envolvendo objetos mágicos como fetiches e totens”.32 Foi também a partir desta época, e com a ajuda de uma bolsa da Fundação Guggenheim que o escultor conseguiu obter as condições necessárias para ampliar a dimensão das suas obras, a sua série Totem situa-se em um estranho limiar, a meio caminho entre a figura humana e o signo abstrato”.33 O totem não era para Smith, um objeto arcaico, mas uma expressão poderosa de desejos e sentimentos que sentia atuar sobre ele e na sociedade como um todo.

A sua série mais conhecida Cubi, iniciada em 1962 e finalizada no ano de 1965 consistia em dezoito esculturas de dimensões monumentais, realizadas em aço inoxidável polido, num estilo mais abstrato espaços vazios intercalados com figuras geométricas equilibradas através de uma composição imutável, demonstrando uma qualidade instável e dinâmica, características presentes no seu trabalho mais maduro, e reflexo também de uma civilização tecnológica. Ao invés de disfarçar as características do material industrial como a durabilidade, Smith optou sempre por exalta-las nas suas esculturas, tornando-se assim um dos artistas que mais contribuiu para a utilização do metal no meio artístico.

A obra de David Smith foi capaz de se libertar das convenções escultóricas americanas da época, apesar das formas maciças e dos materiais pesados por si utilizados, assim como das técnicas que empregava o que lhe permitiu trabalhar com grande liberdade e acima de tudo rapidez, assemelhando-se neste aspeto à prática artística de Rui Chafes e do seu trabalho escultórico.

Para o escultor americano o uso da cor nas suas obras funciona não como componente da experiência estética do observador mas como material da escultura per se em contrapartida para o artista português este elemento é utilizado como forma de apagar a sua presença, o seu toque, a matéria e esconder o material por si utilizado.

David Smith faleceu no ano 1965 tendo deixado para além de um grande legado artístico, o testemunho do seu trabalho presente na sua propriedade de Bolton Landing, Nova Iorque.

32 KRAUSS, E.Rosalind – Caminhos da Escultura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.184.

33 Ibid., p.175.

(23)

1.2.4 Richard Serra – A Leveza e o Peso

No contexto artístico norte-americano pós segunda guerra mundial, a obra de Richard Serra surge como uma referência estética associada principalmente ao minimalismo e ao pós-minimalismo continuando a trabalhar nos dias de hoje. Nasceu em São Francisco, nos Estados Unidos da América em 1938, vivendo e trabalhando atualmente entre Nova Iorque e North Fork of Long Island. Estudou literatura inglesa entre 1957 e 1961 na University of California at Berkeley e Santa Barbara antes de ingressar na Universidade de Yale para estudar pintura durante os anos de 1961 e 1964.

Ao terminar o curso foi lhe atribuída a Yale Travel Fellowship, uma bolsa destinada a viajar, com ela o artista aproveitou para passar o ano a visitar inúmeros locais da Europa e do norte de África. Durante este período, o jovem artista foi ainda convidado a realizar a sua primeira exposição individual na Galleria La Salita, em Roma.

Em 1966, ao regressar aos Estados Unidos, mudou-se para Nova Iorque, convivendo com Eva Hesse, Carl Andre , Sol LeWitt, Robert Smithson e Walter De Maria. Durante esse ano, realizou também as suas primeiras experiências escultóricas com materiais não convencionais, como a fibra de vidro, a borracha, as lâmpadas de néon e, posteriormente, o aço. A este material podemos associar uma vasta parte da sua obra, ao decidir usá-lo de uma forma exclusiva, demonstra uma tentativa de explorar todas as possibilidades associadas ao aço, evitando o risco de se esgotar as suas potencialidades.

O método e os processos de trabalho de Serra, apresentam-se como uma clara herança da revolução industrial, através da criação de uma linguagem muito própria assente em princípios como o peso, o equilíbrio e a densidade os quais fizeram com que o escultor tivesse de trocar o seu atelier pela fábrica, tornando-se dependente de estruturas de produção industriais. Neste sentido, pode afirmar-se que a fábrica funciona como uma oficina, onde cada pessoa possui uma função especifica e importante na elaboração da escultura, desde do engenheiro ao responsável pelo transporte da mesma.

Na obra de Rui Chafes, podemos encontrar diversas afinidades com a de Richard Serra, nomeadamente na dicotomia leveza-peso, existente no modo como os dois escultores utilizam e manipulam o aço e o ferro, respetivamente. Apesar de trabalharem um material e objetos extremamente pesados a sensação que transmitem é a de uma leveza ímpar como

(24)

se através dos processos utilizados fossem capazes de eliminar o peso inerente ao material, numa espécie de busca da transcendência da forma.

Rui Chafes e Richard Serra foram capazes de superar a questão de self-expression, ao criar uma arte sem referências autobiográficas diretas, de universos interiores intangíveis ou das suas próprias sensibilidades. Na sua obra, o escultor americano procura deixar as marcas de todo o processo oficinal, numa tentativa de envolver o observador no seu processo criativo e exploratório; por outro lado o artista, português pretende eliminar qualquer tipo de vestígio associado à sua presença, à conceção e ao excesso do objeto, revelando apenas o essencial, o que considera ser, no limite, a sua inexistência.

As esculturas de Serra envolvem o espectador, possibilitando uma experiência espácio-temporal, na qual o corpo e objeto se confrontam enquanto que as esculturas de Chafes são realizadas para serem experienciadas com o olhar mas acima de tudo com o espírito e o pensamento. Se ao escultor americano interessam maioritariamente os percursos e a espacialidade da sua escultura, o artista português parece buscar um único caminho, abrindo “espaço” ao espírito e à transcendência.

(25)

1.2.5 Ad Reinhardt – A Absorção da Luz

Adolph Frederick Reinhardt, mais conhecido por Ad Reinhardt, nasceu no ano de 1913 em Buffalo, estado de Nova Iorque, no seio de uma família de imigrantes. Desde uma tenra idade, manifestou um grande interesse pelo universo artístico, mais precisamente pelo desenho e pela pintura. Estudou história da arte e filosofia na Columbia University antes de ingressar na American Artists School no ano de 1936 para estudar pintura, onde foi colega de Carl Holty e Francis Criss. Trabalhou como professor grande parte da sua vida, dedicou-se à leitura e à escrita de documentos que se tornariam importantes para o panorama artístico do seu e do nosso tempo. Foi membro do movimento American Abstract Artists e fundador do Artist’s Club. Tendo falecido a 30 de Agosto de 1967, em Nova Iorque.

Sob influência do Cubismo, do construtivismo e das composições austeras de Piet Mondrian, Ad Reinhardt deu início à sua carreira artística como pintor no ano de 1936, tendo sido associado neste período ao expressionismo abstrato, as suas obras assumem-se maioritariamente de carácter abstrato com colagens de jornais e representações geométricas planas de cores vivas.

A partir da década de 1940 a sua pintura tornou-se mais expressionista, e o seu interesse recaiu sobre o estudo cromático, tendo-se dedicado à expressão pictórica através do uso de apenas uma cor com variações sobre a mesma. Durante a década de 1950 e seguintes aprofundou, radicalizou e centrou a sua obra em variações cromáticas sobre três cores distintas: o azul, o vermelho e o preto.

A sua obra gradualmente foi-se simplificando através do jogo de formas geométricas, diminuição das cores utilizadas, e o pintor passou a integrar um movimento apelidado de Hard Edge; nesta fase, pintou faixas de cor pura com contornos claramente separados sobre a tela. Entre 1953 e 1967, levando ao extremo o abstracionismo realizou a série que viria a tornar-se mais conhecida, Black Paintings, consistiam em pinturas monocromáticas onde o artista, através do uso total do preto ou de variações cromáticas do mesmo, pretendia eliminar o caráter simbólico na sua totalidade. Constituindo-se o preto uma não-cor, ou a ausência de cor, conceito presente e importante na obra de Rui Chafes.

(26)

Defensor de uma arte pela arte – art as art , Ad Reinhardt conseguiu superar a questão da self-expression, quando escolheu centrar a sua obra nas possibilidades de variações cromáticas, fê-lo por estas transmitirem o seu conhecimento sobre a sua função e possibilidades, não por causa do simbolismo a si associado. Com as suas obras pretendia alcançar uma experiência rigorosamente estética, onde as sensações provocadas no observador advinham da experiência perante a pintura e não através de referências ou experiências meramente evocativas. Deste modo, queria atingir um objeto auto consciente, transcendente, puro que não refletisse o ambiente onde se inseria.

Após várias tentativas e anos de pesquisa, acreditava no fim da sua vida ter atingido aquilo que considerava ser o fim da pintura, a sua pureza máxima atingida nos seus Ultimate Paintings, Nestas obras de grandes dimensões, as diferentes tonalidades do preto eram impercetíveis, Ad Reinhardt pretendia alcançar uma pintura ausente de textura onde a sua pincelada simplesmente não era visível e a sua assinatura inexistente.

Desta forma as suas séries de cor negra exigem mais por parte do observador, “todas as pinturas negras procuram a intemporalidade estática da forma e todas procuram absorver- nos no insondável mistério das sombras que adivinhamos querer envolver-nos, fechar- nos os olhos. Por vezes é uma experiência religiosa de esvaziamento e recomeço.”34 Muitas das características do trabalho de Reinhardt podem ser observadas na escultura de Rui Chafes nomeadamente a ausência de self-expression, a utilização da cor negra como forma de apagamento, ausência não apenas da sua presença como a do objeto, para anular o uso da matéria e a ausência da sua assinatura nas obras, enfatizando desta forma o seu anonimato.

No seus escritos o escultor português referiu a razão pela qual nas suas esculturas utiliza a cor negra, segundo ele: “as minhas esculturas são negras mas sem brilho. Não quero que a sua presença reflicta a luz, quero que a absorva. Tal como as pinturas de Ad Reinhardt, a presença vem do negativo, da absorção da luz, não da sua reflexão. São sombras, são negativos. São negativos de esculturas, sombras de esculturas, um contra-mundo, anti-esculturas”.35

34 CHAFES, Rui – Entre o Céu e a Terra. Lisboa : Documenta, 2014, p.52.

35 SERRA, Rui – Esferas Suspensas, entrevista a Rui Chafes in Revista:Estúdio, Vol.5, 2014, p.182.

(27)

2. A Condição Existencial

2.1 A Queda do Objeto

Por considerar que o mundo é feito de impurezas, corrompido pela sua própria materialidade, Rui Chafes recusa a matéria e não acredita na existência dos objetos.

Neste sentido, e numa tentativa de superar esta problema, atribui grande importância à elevação destes a um estatuto de pensamento, com a crença de que apenas deste modo é possível a sua validade e existência. Apesar de nunca referir explicitamente Platão, esta linha de pensamento, recorrentemente defendida pelo escultor, atribui à sua obra uma dimensão quase neoplatónica, aproximando-a à conceção do mundo apresentada pelo pensador grego.

Platão foi dos primeiros filósofos da antiguidade clássica a reconhecer a espiritualidade da alma e a existência de um ser superior, um demiurgo, responsável pela criação e organização do universo; de uma forma clara, o pensador concebeu ainda a distinção de dois mundos, o mundo sensível e o mundo inteligível, neste residindo a verdade.

O primeiro corresponderia ao mundo da corporeidade, material, físico, e o segundo ao mundo das Ideias, necessárias, invisíveis e eternas. Para o filósofo, as Ideias são realidades objetivas, puras, imutáveis e perfeitas.

Segundo também Platão, o mundo sensível é uma fonte de ilusões, a sua realidade é

“emprestada”, pois o princípio da sua existência encontra-se no mundo verdadeiro das Ideias, o inteligível, os objetos sensíveis são apenas uma cópia imperfeita deste mundo, uma mera aparência da verdadeira realidade. O mundo é criado a partir de paradigmas e através de modelos; como afirmou no diálogo Timeu, as coisas existem apenas por imitação, e a sua existência é o resultado da operação realizada pelo demiurgo que deu à matéria uma forma, ela própria incriada e eterna.

Desta forma, a nossa realidade objetiva, a do mundo sensível, é apenas uma cópia imperfeita daquela que é a verdadeira realidade, a do mundo inteligível. O filósofo acredita que as coisas que habitam o mundo sensível são corruptas no sentido em que são cópias de algo muito anterior à sua própria existência. Segundo Platão, para além do mundo sensível e do mundo inteligível, existe ainda um “espaço”, lugar, que apelidou de

(28)

Chora, e que repousa entre dois mundos, onde tudo passa e nada é retido. A Chora possui características do inteligível e do sensível, é invisível e amorfa, ao mesmo tempo que é tangível. Este espaço é responsável por receber e moldar as cópias sensíveis das Ideias, tornando assim possível a sua existência no mundo sensível.

Neste sentido, e como afirma Raymond Bayer, “a metafísica platónica é uma estética formada pelas Ideias que [...] verificamos, no termo da dialética, por um salto, por uma espécie de intuição intelectual, temos a visão das Ideias. Logo, a exerção suprema excede o intelectual e pertence à intuição da inteligência, domínio próprio da estética”.36 As Ideias são apreendidas pelo raciocínio e o intelecto, não pela opinião que, por sua vez, é associada à subjetividade individual e, acima de tudo, à sensação. As obras de Rui Chafes, ao requisitarem também uma inteligibilidade, dirigem-se inicialmente aos sentidos pare se consumar uma experiência de feição espiritual.

Anterior ao nascimento do nosso corpo e da nossa materialidade, Platão acredita que foi gerada a alma; esta foi gerada de maneira a cumprir uma única finalidade, a de conceder vida, desígnio e movimento ao corpo. A alma é anterior à criação do mundo sensível, feito a partir do mundo inteligível; é justamente no mundo sensível, criado pelo Demiurgo, que opera uma duplicação material do mundo ideal que a alma vai cair por efeito de uma degradação que Platão nunca explica, a passagem da alma pelo mundo do tempo e do espaço é considerada uma queda.

A prisão da alma é a materialidade do corpo, quando ela se depara com a Beleza, anseia, libertar-se e regressar ao mundo anterior à sua queda; Platão define a alma como eterna e imortal, sendo que a Beleza reside essencialmente nas almas, por estas participarem daquele que é o mundo das Ideias.

No diálogo Fedro, o filósofo explica a queda da alma humana, que após ter vivido no mundo superior, o inteligível, caiu no mundo sensível, onde se uniu a um corpo, materializando desta forma a sua existência. Platão refere também neste diálogo que, durante a sua vida terreste, os filósofos e os homens nunca conhecerão nada a não ser através da anamnese.

36 BAYER, Raymond – História da Estética. Lisboa: Editorial Estampa, 1978, p.37.

(29)

Em grego, anamnese significa reminiscência, é um ato de recordação da alma, à semelhança de uma memória esquecida, associada a um estado prévio da sua existência, ao período anterior à queda. Através da anamnese, o indivíduo reencontra a Verdade dentro de si, ascendendo a alma ao mundo inteligível, recordando, deste modo, o lugar onde viveu antes de habitar o mundo sensível. Ao ver as coisas sensíveis, a alma é capaz de reencontrar, pela semelhança entre a forma física dos objetos e as ideias que lhes serviram de modelo, a essência inteligível, isto é, a Verdade. Para Platão, a perceção da Beleza desencadeia um processo anamnésico no qual se atualiza a recordação de um conhecimento prévio ou seja do verdadeiro real.

O único ser capaz de conseguir transformar objetos em Ideia é o Homem, o seu conhecer é, deste modo, um recordar de algo que se encontra no interior da alma humana; esta, através dos sentidos, desloca-se até ao seu cerne, onde confronta os dados da experiência vivenciada com as ideias que originalmente nela residem, tornando possível atingir o conhecimento, através da recordação de arquétipos. O conhecimento reside no re-conhecimento que a alma faz da Ideia, quando, nos objetos, re-conhece a semelhança que estes mantêm com o mundo inteligível, que foi o modelo da sua conceção, como já referimos.

Numa sociedade materialista e presa à sua condição mundana, as obras de Rui Chafes surgem como sombras, negativos que se tornam presenças enigmáticas em colisão com o mundo onde se encontram, ansiando pelo lugar imaterial de onde vieram e para onde

“regressarão”, por via da experiência estética. Na realidade a única escultura que interessa ao artista é precisamente a “não escultura”, aquela que “é apenas uma sombra, que existe entre, que é um negativo, um negativo do mundo, a escultura fugitiva, que não quer pertencer ao mundo”.37

O artista acredita que a humanidade se encontra prisioneira daquele que é o seu próprio corpo; na realidade os seus corpos são “apenas resquícios que habitam um mundo mal feito, incorrecto, mal construído, desconfortável, errado”.38 Enquanto matéria também a escultura é impura, suja e errada, Chafes defende que a nossa única esperança recai nos objetos que tenham um estatuto de pensamento, só estes poderão ser uma “uma criação

37 CHAFES, Rui in MATOS, Sara Antónia – Rui Chafes - Sob a Pele. Lisboa: Documenta, 2018, p.124.

(30)

que ignore o erro, o peso, a sujidade, a impureza”.39 Para o escultor, todos os objetos que não advêm de uma ideia, são sujos e errados, como refere.

Ao considerar a própria matéria impura, suja e errada, surge na sua prática escultórica uma contradição, pois apesar de o artista a elevar a um estatuto de pensamento, não é possível impedir que esta seja um objeto, sujeitando-se ela própria à materialidade que a prende. Neste sentido, resta-lhe apenas a “esperança do objeto”, onde a palavra aparece como a única salvação possível, da redução do objeto à ideia, por via da transcendência.

O objeto apenas é necessário para provar a sua não-existência, a “escultura é apenas uma hipótese; não é um momento absoluto, é apenas um exemplo. Um objeto é apenas uma ausência não se pode acreditar nele”.40

A verdadeira dificuldade do escultor reside na impossibilidade de fugir à matéria, fato que o leva a afirmar: “construo objectos em ferro sem acreditar na existência de objectos, sem acreditar em matérias. Por isso todos estes objectos têm de ter um estatuto de ideia.

É essa a dificuldade, o eterno paradoxo: criar objectos de matéria para provar que eles não existem. Não acredito em objectos, mas sei que só posso demonstrar a sua ideia por meio de objectos. É tudo que me é possível fazer”.41 É necessário que o objeto tenha o estatuto de ideia, já que o objeto artístico é apenas uma possibilidade, nunca uma certeza, só uma tentativa:

A distância angustiante entre a matéria e o nome, entre a nossa vontade perceptiva e o estado real do objecto, testemunha a fuga do objecto: deixa de ser para querer ser. Rigorosamente, os objetos tornam-se discursos de ausência, de deslocação. Não há objecto, há a todos os níveis a esperança do objecto. Ele é a especificação da fuga. A ausência é a forma de consciencializar uma afeição. Os objectos estão na sua deslocação. Não são produtos mas estados de movimento: existências em fuga. A ausência torna-se válida como forma criada.

No entanto, a falta de realidade sofrida pelo objecto nunca nos faz aproximar dele. Pelo contrário, é sempre a aparência de realidade que nos faz desconfiar dele. Mas, realmente o que amamos é a deslocação, a ausência, a esperança do objecto.42

Quando Rui Chafes constrói os seus objetos não o faz com o intuito destes serem admirados ou contemplados, mas, antes para serem pensados e transformados por parte do observador elevando-os a um estatuto de Ideia, numa tentativa de re-encontro com a

39 CHAFES, Rui – A Vocação do Medo. Porto: Galeria Atlântica, 1990.

40 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p.41.

41 Ibid., p.119.

42 CHAFES, Rui – A Vocação do Medo. Porto: Galeria Atlântica, 1990.

(31)

Verdade, a Bondade e a Beleza desaparecida, intangível e absoluta. Com as suas esculturas, oferece ao espectador a possibilidade de se transformar e, por alguns momentos, evadir-se deste nosso mundo corrompido, proporcionando-lhe assim uma experiência estética ímpar. Os transcendentais da Verdade, da Bondade e da Beleza surgem então como universais que condicionam e tornam possível a experiência estética.

Fora deste contexto da experiência purificadora através da Arte, o objeto acaba por se tornar matéria, pois sem a existência de um observador o fim estético do objeto não é completado nem cumprido. Este facto revela a importância determinante da necessidade de ativação da escultura pelo espectador.

Para habitar este mundo, onde existe matéria os seus objetos assumem formas, as quais, apesar da sua estranheza acabam por demonstrar uma certa familiaridade com o espectador, acabando por captar a sua atenção. Acontece que quando tentaram evadir-se durante a queda, para regressarem ao lugar onde pertencem, um lugar onde não existe a corporeidade, ou seja o lugar do Espírito, da Beleza, onde reside apenas a Verdade, os objetos ficaram encarceradas neste mundo, cobertos de cinza.

O escultor fere-nos, desperta-nos, confronta-nos com a nossa queda, e acima de tudo com a nossa finitude. As suas esculturas transmitem também uma sensação de fragilidade e leveza, encontram-se em situações limite, de um grande risco, na iminência da sua permanente queda, num estado de equilíbrio instável entre a presença e a ausência.

Ansiando para que sejam reconhecidas, o encontro com o observador dá inicio e desencadeia aquele que é considerado como um processo analogamente anamnésico. Ao depararmo-nos com as esculturas de Rui Chafes, constatamos que estas funcionam como uma espécie de catalisadores que parecem relembrar o processo gnosiológico platónico, e o lugar no qual a alma residia antes da queda; de modo análogo, o espectador, parece lembrar-se da verdadeira identidade dos objetos artísticos, das ideias, do pensamento que lhes deu origem.

Através deste processo, o espectador “relembra-se”, reencontra a verdadeira Beleza, transformando assim o objeto em ideia, libertando também a alma, que pretende reencontrar o mundo anterior à queda, e escapar, assim, à prisão que é o mundo material e impuro que a acolheu. Na verdade, o trabalho do escultor “é um trabalho de recusa e de ocultação do individuo e (do individual) através da única e mais nobre demonstração

(32)

do espírito: a forma pura. Só a forma pura guarda em si a força suficiente para superar o individual e tender para o universal”.43

Rui Chafes acredita que a salvação do homem se encontra na Arte, como forma da sua purificação e transformação: aqueles que recusam aceitar estes fatores estão condenados a ver a escultura como uma forma material e a continuarem presos a um mundo contaminado e corrupto. A Arte é um enigma, provoca um apelo ao pensamento, é um meio que nos liga ao espírito, não é explicável, só afeta quem realmente se encontra disponível para receber essa transformação. “A arte será sempre a fricção entre o mundo interior e o mundo exterior. A capacidade de transformar esse conflito numa forma possível é o trabalho dos artistas e dos poetas”.44

43 CHAFES, Rui – O Silêncio de... Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p.39.

44 CHAFES, Rui – Entre o Céu e a Terra. Lisboa: Documenta, 2014, p.42.

Referências

Documentos relacionados

62 daquele instrumento internacional”, verifica-se que não restam dúvidas quanto à vinculação do Estado Brasileiro à jurisdição da Corte Interamericana, no que diz respeito a

1- Opções - Somente 1 equipamento: Quando for selecionada esta opção, a consulta do relatório será somente do equipamento selecionado no campo de

de lôbo-guará (Chrysocyon brachyurus), a partir do cérebro e da glândula submaxilar em face das ino- culações em camundongos, cobaios e coelho e, também, pela presença

the operational approach to generalized Laguerre polynomials as well as to Laguerre-type exponentials based on our results from [ 3 ] and [ 4 ] about a special Appell sequence

As etapas que indicam o processo de produção do milho moído são: recebimento da matéria prima pela empresa, transporte manual, armazenamento, elevação mecanizada do produto,

Não existe nenhuma “Realidade Quântica” concreta, os objetos e suas propriedades não têm valores definidos (não existem!) antes de serem medidos. • O ato de medir cria

Desta forma, concluímos que o método de extração, utilizando ruptor ultrassônico (frequência de 20KHz e potência máxima de 150 W) com ponteira intermediária (70%

Finally,  we  can  conclude  several  findings  from  our  research.  First,  productivity  is  the  most  important  determinant  for  internationalization  that