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A interpretação em Lacan

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Academic year: 2021

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Texto

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Celso Rennó Lima

Várias são as possibilidades de se abordar tema tão extenso. Escolho a clínica como ponto de partida para, em seguida, tentar formalizar alguns aspectos da interpretação.

Tereza procura análise trazendo, na sua bagagem um ponto de certeza: “Eu não consigo concluir nada que começo”. Sua vida tem se estruturado em torno deste ponto: são cursos interrompidos, relações afetivas mal resolvida, dívidas financeiras e, - a razão última de sua demanda de tratamento - uma tese universitária que já se prolonga por anos, colocando em risco sua sobrevivência profissional.

Lacan, em seu Seminário XI vai nos dizer que, se por um lado os pacientes se satisfazem com o seu sintoma, é por isso mesmo que eles, aí, se dão muito mal. È, exatamente, este muito mal (ou um “mal-a-mais”, se preferirem traduzir assim o “trop de mal” do texto) que vai autorizar nossa intervenção, como analistas, para que uma retificação possa ser feita ao nível da pulsão1.

Assim, autorizado pelo movimento feito por Tereza ao buscar um lugar onde endereçar o seu sintoma para que ele pudesse ser decifrado, foi possível ir construindo sua história: fruto de um amor proibido, Tereza, aos dois anos de idade, teve seu pai assassinado por seu avó materno, como conseqüência deste não respeitar suas ordens para não mais se encontrar com a mãe de Tereza. Como conseqüência, ela ficou sem o pai e sem o avó que, até então, desempenhava as funções paternas, pois este passou vários anos na cadeia.

A partir daí, sua história veio sendo constituída por pontos inconclusos. Estes pontos eram repetidos, insistentemente, a cada sessão, mas com uma particularidade para a qual logo me alertei: a cada vez que ela os repetia, eram usados significantes diferentes: “Eu não consigo terminar...”, “Eu não consigo concluir...”, “Eu não consigo encerrar...”, até que um dia, tendo chegado bastante angustiada, deitou-se no divã e exclamou: “Não adianta! Eu

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não consigo arrematar nada!”. Era a primeira vez que ela utilizava este significante . Antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa eu intervi dizendo: “Como? Não consegue a-ré-matar?”

Quando Lacan, em 1953 com o texto “Função e Campo da Fala e da Linguagem”2,

resgata para a psicanálise o poder da palavra, redesenhando a função do simbólico diante do enlouquecimento imaginário dos autores pós-freudianos, deu-se o início de um longo caminho: repensar a interpretação analítica, tanto no que diz respeito à sua forma, sua eficácia, como, também, à função do analista.

Num primeiro momento, que podemos definir com J.A.Miller de fase “hegeliana”, se opunham palavra plena e palavra vazia. O que sustentava a interpretação, nesta época,

era a possibilidade de um encontro com uma “verdade feita de completude”3. A partir desta

idéia acreditava-se que as lacunas da história de um sujeito pudessem ser preenchidas e este sujeito seria, então, “incluído no seio da razão universal”4.

A palavra plena era colocada como aquela que “constitui o sujeito na sua verdade”5

em oposição à palavra vazia, onde o sujeito “se perde no discurso da convicção, em razão

das miragens narcísicas que dominam a relação ao outro de seu eu”6. Neste contexto ficou

estabelecido que era na medida em que o analista fazia calar nele o discurso intermediário para se abrir à cadeia das palavras verdadeiras, que ele poderia, aí, colocar sua interpretação reveladora”7.

A partir da própria clínica, no entanto, esta construção “hegeliana” vai sofrer um corte. Será no texto “A instância da letra...”, que a primeira concepção de “interpretação reconciliadora” vai ser substituída pela “concepção de um sujeito definido não pela fala, mas pelo escrito: entre metonímia e metáfora se constitui um sujeito estritamente

determinado pela sua relação à escritura ... e reduzido a um vazio, a um corte fundamental”8

Este passo foi importantíssimo para que se abrisse um espaço às elaborações futuras da

2 Lacan ,J.- Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse. Écrits, pags.237-322. 3 Laurent, E.- Interprétation et vérité. La lettre mensuelle, 137

4 Idem.

5 Lacan, J.- Variantes de la cure-type. Écrits, pag. 353 6 Idem,- pag. 352

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interpretação, na medida que , “como técnica do escrito, ... reenvia a operações que são

compatíveis com o silêncio”.9

Num texto contemporâneo a este, e que pode ser considerado o texto sobre a interpretação: “ A direção da cura...”, Lacan vai introduzir um a mais quando se trata da interpretação. Esta não se resumirá mais “apenas ao preenchimento de lacunas produzidas pelo recalque mas, para decifrar a diacronia das repetições inconscientes, (a interpretação) deverá introduzir na sincronia dos significantes que aí se compõem, alguma coisa que, de súbito, tornará a tradução possível”.10

Do que se trata portanto é de possibilitar a tradução de algo que, pelo mecanismo do recalque, permanece como um estranho à seqüência significante e que, devido a estar envolvido pela vestimenta significante, se infiltra e se alimenta do sentido que desliza sob esta cadeia de tal forma que só vão existir duas possibilidades para este estranho: ou vai se proliferar indefinidamente, ou vai reinventar, a cada instante, uma nova aparição. A possibilidade desta tradução só vai existir se a interpretação do analista se ativer à condição de que ela “não faz senão recobrir o fato de que o inconsciente já procedeu, nas suas

formações - sonhos, lapsos, chistes ou mesmo o sintoma - à suas interpretações.”11 É a

função do Outro que aí se apresenta enquanto receptáculo do código. Sendo a propósito dele que podemos detectar o elemento faltante, o estranho.

Em 1964 Lacan vai dar um passo a mais na sua teorização da interpretação ao dizer que “a interpretação é uma significação que não importa qual. Ela vem aqui no lugar do s (S/s) e reverte a relação que faz com que o significante tenha por efeito, na linguagem, o significado. Ela tem por efeito fazer surgir um significante irredutível. (...) Por isso a interpretação não está aberta a todos os sentidos. Ela é uma interpretação significativa ... e o que é essencial é que o sujeito veja, para além desta significação,a qual significante - sem sentido, irredutível, traumático - ele está, como sujeito, assujeitado”12

Em 1969, no seminário sobre o Avesso da psicanálise, Lacan vai dizer que a

interpretação, sendo “um saber entanto verdade”13 se situa entre enigma e citação, onde o

9 Idem.

10 Lacan, J.- La direction de la cure... Écrits, pag. 593 11 Idem.- Le Séminaire, XI, pag, 118

12 Idem,- pag. 226

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enigma é a presença de uma enunciação que não é de ninguém e que não vai corresponder a

nenhum enunciado de saber. Seria uma verdade sem saber.14 Quanto à citação, ela é mais

um enunciado de saber que se sustenta num saber afirmado, com nome de autor, etc. Desta forma ela vai introduzir a dimensão de uma enunciação latente, que ela mesma faz vir à luz.15

Finalmente, em L´Étourdit, a interpretação vai ser inscrita pelo viés do equívoco, ao nível da homofonia onde a ambigüidade homofônica torna possível o que a ortografia impossibilita. É nesta passagem que Lacan vai mencionar que a interpretação joga com o “cristal” lingüístico, com as difrações das significações.

Do lado da gramática, C. Soler16, também se referindo ao L’Etourdit, nos lembra a

intervenção mínima: “eu não te faço dizer”deixando a própria ambigüidade agir: aquele que ouve não saberá se o que se diz é um “eu disse”, ou um “eu não te soprei”, já que os dois foram ditos.

Finalmente, no plano da lógica vamos ver agir aquilo sem o qual a interpretação será imbecil. Um exemplo pode ser dado com a formalização freudiana de que o inconsciente é insensível à contradição.17

No dia seguinte à minha interpretação, Tereza retorna, como eu havia lhe demandado, deita-se no divã e diz: “não entendi nada do que aconteceu ontem. Não vá me dizer que aquela estória de ‘matar a ré’ tem a ver com a morte de meu pai...”.

Algo operou pois, no a posteriori, foi possível darmos conta de que houve uma mudança subjetiva. Todas as intervenções anteriores, mesmo que tenham feito alusões, direta ou indiretamente, a esta passagem de sua vida, nunca haviam sido escutadas. Foi necessário um corte para fazer surgir o sujeito das significações preestabelecidas na demanda do Outro.

Penso que podemos formalizar o que se passou naquele momento, utilizando o grafo do desejo e a topologia das bandas.

14 Soler, C.-Artigos clínicos. pag. 76 15 Idem.

16 Idem.- pag. 77

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Em primeiro lugar, vamos esclarecer que não há interpretação sem transferência . A ordenação que Lacan apresenta na “Direção da Cura...” deixa isto muito claro: “retificação subjetiva ... transferência... interpretação...”18

A claudicação do saber, da certeza do sintoma, quando Tereza se viu ameaçada pela falta financeira, abriu um espaço para que um endereçamento pudesse ser feito a um Outro lugar, na esperança de que o estranho pudesse ser decifrado. Sim, decifrado, por que o sintoma, sendo a primeira mensagem cifrada, pleno de sentido, traz em si o ciframento do gozo, que se apresenta como um ponto sem sentido, como um estranho, como um x no caminho do sujeito. Este é o momento em que se instala, no ponto de inconsistência do Outro, um Sujeito a quem se supõe um saber sobre o que seria a sua verdade . Para que isto pudesse acontecer, uma escolha, forçada sem dúvida, foi feita e um significante qualquer se alojou aí, onde o saber falhou, para ser, ele mesmo, integrante do sintoma. É a trans­ ferência que, agora, pode sustentar, estrategicamente, a direção do tratamento, enquanto signo de um amor que possibilitará um giro de quarto de volta no discurso.

No entanto, para que as coisas pudessem continuar caminhando em função da política do tratamento, foi fundamental que este lugar, primeiramente imaginário, fosse

“cadaverizado”, para usar uma expressão de Lacan em “A coisa freudiana”19, e que fosse

anulada a própria resistência do analista, o que equivale dizer que ele não vai simplesmente matraquear a significação que o paciente tenta fazer valer nas suas proposições.20

Se tomarmos o Grafo do Desejo e colocarmos a claudicação do sintoma em s(A) faremos do vetor que daí parte um endereçamento ao (A), enquanto lugar. Se a posição do analista não é “cadaverizada”, deixando-se levar pelo sentido que lhe é proposto, ele vai exaltar o Sq, o traço que lhe foi atribuído, favorecendo a instalação da identificação e esvaziando sua palavra num discurso do convencimento que só vai se prestar a abrir caminho para a circulação no chamado andar inferior: s(A) --- (A) --- i(a) --- (m). Podemos também dizer do que se passa neste nível, utilizando a topologia da banda circular, com suas duas bordas e suas duas faces, para mostrar que aí vão existir dois

18 Idem.- Lacan direction de la cure... , in Écrits, pag. 598 19 Idem.- Écrits. pag. 430

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sujeitos em questão e, portanto dois sentidos sem que nenhum, nunca, possa intervir sobre o outro.

Mas, como nos lembra Lacan desde o seu Discurso de Roma, a interpretação por alusão é uma forma de se evitar este confronto narcísico próprio de um debate sustentado no eixo a ---- a’. A interpretação deverá, assim como o dedo de São João, apontar para o vazio.

Quando Tereza, enunciou o verbo arrematar, a escanção feita desarticulou o binário S1- S2 e abriu um buraco no sentido até então estabelecido, ou melhor até então restabelecido pelo sintoma analítico. Foi o “dizer” do analista que produziu seus efeitos

sobre os “ditos” de Tereza. Este vazio, produzido a partir do deslocamento da letra (21),

criou um estado de desamparo (hilflösigkeit) não deixando a ela outra saída senão bem-dizer pois, deslocando-se do eixo do enunciado para o da enunciação, pode deparar-se com a verdade que circula entre o gozo e a castração e se elabora como uma relação do sujeito à pulsão,na medida em que só aí é que o sujeito poderá saber da causa de seu desejo22 pois, pela via do fantasma, esta causa está dissimulada pelos benefícios

secundários.

Esta é a possibilidade de fazer com que a “experiência do fantasma se torne a pulsão”23

Quanto à topologia das superfícies, o silêncio do analista em ‘A’ fez com que a demanda que lhe era dirigida sofresse uma meia torção, criando uma banda de Möebius e, retornando ao sujeito pela via do desejo indo de($ <> D) a S(A) atravessa ($<>a) para se encontrar, um novo sujeito em s(A). Esta é a maneira de dizer que só há um sujeito em questão na análise, o analisando, e que é somente a partir de um ponto fora da linha que se

torna possível sustentar o corte de uma linha sem pontos.24

21 “O significante estando integralmente definido por seu lugar,é impossível de deslocá-lo; mas é

possível deslocar uma letra.O significante advém somente da instância simbólica; mas a letra enlaça R,S e I, que são mutualmente heterogêneos”. Milner, J.C.,- J. Lacan , Penseé et savoir, in Con­ naissez-vous Lacan , pag 195

22 Miller, J.A.- Le vrai, le faux et le rest, in Revue de Psychanalyse, nº 28 23 Lacan, J.- Le Séminaire XI, pag. 245

Referências

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