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A Palavra Mitificada na poesia de Dora Ferreira Da Silva

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ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 1

A Palavra Mitificada na poesia de Dora Ferreira Da Silva

Jamille Rabelo de Freitas

Resumo: Desde os tempos remotos, os poetas utiliza m a mitolog ia para delinear seus temas. Co mo a firma Mircea Eliade, “Conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas.” Com u ma escrita influenciada por elementos mít icos, a obra de Dora Ferreira da Silva tem presença assegurada no cenário poético brasileiro. De descendência grega, a poeta, escritora e tradutora, que dedicou mais de 50 anos à arte poética, intensifica sua relação com a temática mítica e m sua última obra lançada em vida: o liv ro

Hídrias. Através da sua marcante construção simbólica e da utilização dos mitos enquanto atualizadores

das verdades presentes nos seres humanos, a poeta demonstra a sacralidade da tradição mítica, ao te mpo em que advoga a importância de se faze r u ma poesia atemporal, aprec iada e m qualquer época ou lugar. Tomando como suporte bibliográfico as teorias de Mirc ea Eliade e Ana Maria Lisboa de Mello, e xplicitare mos alguns aspectos referentes à relação entre mito e poesia na obra de Dora Ferreira da Silva. Co m isto, buscaremos compreender a influência do pensamento mít ico na obra da poeta refe rida e investigar, através do poema Narciso (II), presente na obra Hídrias, a re lação entre os ele mentos míticos e a condição humana, demonstrando como esse tipo de poesia pode simbolizar a vida humana e m qualquer época ou lugar.

Palavras-chave: Mito, Poesia, Imaginário, Dora Fe rre ira da Silva

Introdução

Dora Ferreira da Silva (1918-2006), tradutora, escritora e poeta paulista, revela em sua obra um imaginário repleto de configurações simbólicas e envolto pelos elementos clássicos do mundo grego: os mitos. Apresentando uma lírica mitificada, a poeta resgata a noção de sacralidade e demonstra como a arte poética tem consangüinidade com a mitologia.

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ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 2 Dei o no me de arquétipos a esses padrões, valendo -me de uma e xpressão de Santo Agostinho: Arquétipo significa u m “Typos” (impressão, marca-impressão), um agrupamento defin ido de caracteres arcaicos, que, e m forma e significado, encerra mot ivos mitológicos, os quais surgem e m forma pura nos contos de fadas, nos mitos, nas lendas e no folclore.

Esse conceito de arquétipos, elaborado por Jung, teve influência significativa no aprofundamento do estudo da mitologia moderna. Dotados de universalidade e imutabilidade, eles funcionariam como a base de todos os pensamentos, sentimentos e atitudes humanas, sendo exteriorizados e/ou expressados através dos símbolos. Em suma, os mitos seriam as representações dos arquétipos, conforme aponta a pesquisadora Enivalda Nunes Freitas e Souza (2009, p. 65):

O mito será u ma tradução do arquétipo, u ma image m apta a ser resposta ou traduzida por outra. [...] Desta forma , o ho me m de todos os tempos e espaços, (...) e de todas as culturas, comunga das mesmas “grandes imagens” (arquétipos), e utiliza o mito para traduzí-las, o que faz da literatura u m discurso mítico por e xcelênc ia.

Com isso, podemos dizer que o mito é um símbolo e sendo ele um símbolo, deve ter seu sentido decifrado. Todavia, essa decodificação não se torna possível se não houver um breve entendimento da concepção simbólica que envolve os mitos. Para tanto, o estudo do imaginário é imprescindível, pois é através dele que alcançamos a compreensão dos recursos imagéticos apresentados na escrita.

“Conjunto de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens,”1 o imaginário é pedra angular no estudo da mitologia. Composto essencialmente por imagens mentais, ele é a representação da totalidade criativa do pensamento humano, que se efetivaria através dos símbolos, tendo em vista sua natureza mediadora de complementação entre a manifestação e a realização do sentido.

Esse conteúdo imagístico e simbólico habita os pensamentos compartilhados pela humanidade – o inconsciente coletivo proposto por Jung - e é através dessas imagens mentais que a atemporalidade se manifesta. É, também, somente através delas que compreendemos o porquê da recorrência de alguns temas. Essa recorrência ganha explicação através dos escritos de Ana Maria Lisboa de Mello, estudiosa do imaginário. Segundo Mello (2002, p. 10), as imagens “traduzem as relações do homem com o plano transcendente, os mistérios da vida e da morte, a busca de contato e o desvelamento de verdades metafísicas que fundamentam o existir.” Assim, é através dessa expressão de realidade simbólica que se explica a ressurgência dos mitos.

Criados pelos gregos como forma de expressão daquilo que sentiam e vivenciavam, e, sobretudo, para explicar fenômenos e sentimentos que não compreendiam, os mitos existem desde épocas imemoriais e são utilizados com o propósito de compreender e explicar o mundo e o homem. Sendo vistos como uma espécie de verdade socialmente aceita, por sua contribuição na manutenção das instituições sociais, os mitos referiam-se a acontecimentos que precisavam ser preservados na memória de um povo.

Através de fabulações míticas, as relações humanas vão sendo des veladas. Assim, os elementos mitológicos se tornam fonte de significação, motivo de reiteração e perpetuadores de padrões comportamentais, pois como já dizia Mircea Eliade, um dos

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fundadores da história moderna das religiões e grande estudioso dos mitos: “Assim fizeram os deuses, assim fazem os homens.2

A intenção moral por trás dessas fabulações nos leva de volta ao princípio, à origem das experiências e de todo o comportamento humano e o que nutre o pensamento mítico é exatamente essa intencionalidade; é através dela que os padrões de comportamento se personificam e se tornam referenciais para a nossa caminhada existencial.

Tal como os mitos, a poesia põe em foco a condição humana; ambos são formas representativas e metafóricas de dizer a linguagem. Co nforme diria Souza (2009, p. 65): “Confundindo-se com o mito, uma vez que este é sua matriz, a literatura também tenta compreender as situações embaraçosas da condição humana.”.

A presença do mito numa obra literária tem a função de revelar uma visão de mundo e assim como os mitos, o poema é a tradução do sentimento em palavras, é a revelação do real, e sendo a poesia uma revelação, ela brota, flui com a suspensão, com a ruptura do tempo, promovendo um compromisso com o perene, o eterno. E aí reside a relação entre os mitos e a poesia: a compreensão da condição humana e a perpetuação de símbolos arquetípicos.

Essa afinidade entre mito e poesia pode ser ratificada pela poesia de Dora Ferreira da Silva. Como a própria poeta diria: “Eu não saberia definir o mito, o seu sentido. Toda vez que você tenta dizer o que é o mito, ou o que é a poesia, você acaba ferindo um e outro.”3

A poeta e os mitos

Nascida em Conchas, em 1º de julho de 1918 e falecendo em São Paulo no dia 6 de abril de 2006, Dora dedicou mais de 50 anos a arte poética. Contemplada por três vezes pelo Prêmio Jabuti – em 1970, 1996 e 2005 – e reconhecida pela Academia Brasileira de Letras, através da conquista do Prêmio Machado de Assis, no ano de 1999, DFS4 assegurou sua presença no cenário poético brasileiro com suas obras marcadas pela presença de simbologia e recursos míticos, conforme aponta Souza (2011, p. 123):

A poeta Dora Ferreira da Silva [...] encontrou nas formas simbólicas e arquetípicas a expressão exata para transferir à poesia os estratos mais profundos da psique humana, alçando a uma dimensão transcendente e religiosa a vida e a morte, sensações cotidianas, pressentimentos, afetos, mistérios, pequenas delicadezas – coisas, enfim, que resume m o encanto e o mistério de e xistir. É, na maioria das vezes, aos mitos da relig iosidade pagã que a poeta recorre para materia liza r esses conteúdos primordia is e vivos do ser humano, por aquilo que o mito tem de linguagem simbólica sempre atual e inesgotável.

Defensora de uma poesia atemporal, Dora reelabora os mitos antigos, de

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ELIADE, 2006, p. 12 3

Dora Ferre ira da Silva e m entrevista concedida a Hermes Rodrigues Nery. Disponível em: <http://medei.sites.uol.co m.br/penazul/gera l/entrevis/dora.htm>

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maneira a construir uma poesia eterna, tradutora da plenitude e perpetuadora dos elementos míticos. O universo do mundo clássico está presente em toda a sua obra e a sua relação com a temática mítica é tão intensa que a própria Dora, em entrevista a Hermes Rodrigues Nery, discorre acerca da relação existente entre a sua poesia e os mitos:

HRN - Há que m diga que o verdadeiro objeto do mito não são os deuses, nem os ancestrais, mas um conjunto de ocorrências fabulosas co m que se procurou dar sentido ao mundo. Qual é o sentido do mito?

DFS – Há formu lações da vida, das grandes configurações da vida que são os mitos. A história é aparentemente u ma dessacralização do mito. O ho me m anota o que vê, de forma c riteriosa, acontecimentos, guerras, fatos observados, tentando interpretá-los à sua maneira, cria a filosofia da história, mas o mito... ele é mu ito mais parente da poesia, de algo que não passa pelo crivo da consciência intelectiva, ele não é um saber codificado que nós vamos encontrar definido na estante, ele vem do mais profundo da psique, é uma e manação do nosso pensamento não codificado. Nós o encontramos, por e xe mplo, quando dormimos e sonhamos, o artista vai buscá-lo na dimensão do onírico motivos para a sua poesia; é como um tomar posse daquilo que foi e xteriorizado, partindo de si próprio, buscando lá dentro, nestes depósitos secretos que temos em nosso interior...

(http://medei.sites.uol.co m.br/penazul/gera l/entrevis/dora.htm)

Inspirada pela Grécia e pelo mundo helênico (sua avó materna – Marieta Locchi - era grega e seu marido - Vicente Ferreira da Silva - filósofo), Dora escreve Hídrias, que seria sua última obra lançada em vida e responsável pelo seu terceiro Prêmio Jabuti. Na obra, composta por 25 poemas que louvam a beleza dos principais mitos gregos, a poeta vai recontando os mitos e apontando como se dá a relação entre os elementos míticos e a realidade da condição humana, demo nstrando, com isso, a atemporalidade mitológica, símbolo da vida humana em qualquer época ou lugar.

O poema seguinte é uma mostra de como a essência do mito é revelada na poesia de DFS. Nele, a poeta discorre acerca do mito de Narciso e da sua complexidade, representado a singularidade da condição humana.

Folhas incandescentes fize ra m da fonte vale de fulgores. Bebia Narc iso sobre a onda quando uma face v iu de tal be le za

que a luz mais viva se tornou.

E A mo r – cujas setas jama is puderam a lcançar seu coração esquivo – nele reinou e ja ma is do jovem se apartava, que a seu chamado às águas acorria. Insidiosa veio a Morte para o levar consigo, deixando numa flor a fo rma de Narc iso.

(Na rciso II, Hídrias, p.39)

Narciso e sua incompletude

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ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 5 todas elas a essência do mito é mantida, me deterei na versão celebrizada na obra As metamorfoses (Liv ro III), escrita pelo poeta latino Ov ídio, considerado o mais antigo narrador do referido mito.

De acordo com Ovídio, quando Narciso nasceu, sua mãe, a ninfa Liríope, aturdida com sua e xtraordinária bele za, fo i ao encontro do sapiente Tirésias para interrogá -lo acerca do destino de seu filho. Naquela época, a beleza fora do comum em mortais era algo censurável e passível de punição, pois essa característica só era permitida às divindades, conforme afirma Junito Brandão (1998, p. 175):

É que també m a be le za era u ma outorga do divino: constituía, portanto, uma "démesure", a ultrapassagem do métron, ufanando-se alguém de um dom que não lhe pertencia. Némesis, a justiça distributiva e, por isso mesmo, a vingadora da injustiça praticada, estava sempre atenta e pronta para punir os culpados.

A resposta de Tirésias aturdiu ainda mais a ninfa mãe. “O vidente, interrogado se o menino veria os longos anos de madura velhice, fatídico declarou: Sim, se não se conhecer.”5

E assim Na rciso cresceu, sempre formoso. Jovem e de extre ma bele za, muitas moças e ninfas queriam o seu amor, mas o rapaz desprezava a todas, até que o seu destino se entrelaça com a figura de Eco. Cabe aqui uma pausa para explicação da mitologia em torno de tal

divindade.

Conta a lenda que Eco era u ma linda ninfa que aco mpanhava a deusa Ártemis em suas caçadas, e seu único defeito era fala r de mais. Um belo d ia, Eco encontra a deusa Juno, que desconfiada de que seu ma rido, Júpiter, estivesse a se divertir co m as ninfas da floresta, estava a procurá -lo. Eco, sabendo do perigo corrido por Júpiter, e acima de tudo, pelas ninfas, tenta distrair a deusa até que Júpiter possa se liv rar do flagrante e as ninfas fujam. Juno, porém, percebe a manobra e condena Eco pela “traição”, sentenciando: “Confiscarei o uso de tua língua, essa com a qual me entretiveste, exceto para um único propósito de que tanto gostas: o de responder. Terás ainda a última palavra, mas não terás o poder de iniciar uma conversa.”6

Donaldo Schuller, na obra Narciso Errante, justifica a punição de Eco. De acordo com o autor:

Eco se põe no caminho de Juno, insegura da fidelidade do marido. Eco falava por falar, falava para d istrair, enquanto Júpiter se desembaraçava de presenças comprometedoras. A ninfa cult ivou fala envolvente, fala só fa la, fala de não dize r nada. Eco dessacralizou a fala , fo i esse o erro dela. Tratou Juno como mulher c iu menta e não como deusa. Juno, ofendida, pune a insolente. (SCHULLER, 1994, p. 39)

Ao se depararcom a beleza de Narc iso, a ninfa se apaixonou porele. Impotente para se declarar ao seu amado, ela se põe a segui-lo, ansiando um mo mento e m que pudesse revelar ao jove m mancebo todo seu amor e ad miração.

Um belo dia , estava Narciso a caçar quando se viu perdido dos companheiros de caça. Na tentativa de reencontrá-los, o belo jovem d iz: “Alguém está?” Eco vê, então, a oportunidade de dialogar com o ser a mado. Rap ida mente, a ninfa responde: “Está”. Narc iso, atônito, põe-se a procurar o dono daquela voz. O que se passa a seguir é narrado por Ov ídio e tradu zido por Schuler (1994, p.18):

Estupefato, Narciso, percorrendo os arredores com o olhar, cla ma à plena voz: Ve m! E e la, a que m cha ma, cha ma .

Repõe o olhar. Co mo ninguém ve m, outra vez: Por que – disse – foges? Palavras vão e vêm.

Persiste, e, iludido pelo vulto da voz a lterna:

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SCHULLER, 1994, p. 16

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ESTUDOS | A MARgem, Uberlândia, n. 9, ano 5, Abr. 2015 6 - Ve m, encontre mo-nos – diz. Nunca a nenhuma voz com gosto maior Eco retrucou: - Encontre mo-nos.

Dócil ao apelo de suas próprias palavras, egressa da selva, vinha para lançar os braços em torno do pescoço esperado.

Ele foge, e ao fugir: Baixa os braços! Nada de a mple xos! Antes morre r – e xcla ma - do que confiar-te meus tesouros!

Desprezada e envergonhada por ser repelida por Narciso, Eco se escondeu nos bosques com o rosto coberto de folhagens. O a mor não correspondido a foi consumindo pouco a pouco, até que, depois de reduzida a pe le e osso, ela se petrifica.

Assim como Eco, muitas jovens e ninfas se apaixo naram por Narciso, mas ele desprezava a todas. Um dia, uma das muitas jovens desdenhadas por Narciso, cansada de tanto desprezo, ergueu as mãos para o céu e disse: — Que Narciso ame também com a mesma intensidade sem poder possuir a pessoa amada! Nêmesis, a divindade punidora do crime e das más ações, escutou esse pedido e o satisfez.

Havia u ma fonte límp ida, de águas prateadas e cristalinas, de que ja ma is home m, animal ou pássaro algum se tinha m apro ximado. Durante u ma de suas caçadas, Narciso, cansado p elo esforço, foi descansar por ali. Ao se inclinar para beber da água da fonte viu, de repente, sua imagem refletida na água e encantou-se com a visão. Fascinado, apaixonou-se por si mes mo, sem saber que aquela image m era asua, refletida no espelho das águas.

Nada conseguia arrancar Narc iso da contemplação, ne m fo me , nem sede, nem sono. Várias vezes lançou os braços dentro da água para tentar inutilmente reter co m u m abraço aquele serencantador. Desesperado e quase semforças, fora m estas suas últimas palavras: — Ah!, Meu rapaz amado em

vão. Adeus!

As ninfas, juntamente com Eco, chorara mtristemente pela mo rte de Na rciso. Já preparava mpara o seu corpo uma pira quando notaram que desaparecera. No seu lugar, havia apenas uma flor a mare la, com pétalas brancas no centro, a qual deram o nome de narciso.

O reflexo de Narciso

Tal como as diferentes versões do mito de Narciso, o poema de DFS mantém a tônica do mito: a paixão pelo reflexo de si mesmo. Os versos, que não obedecem a rimas fixas, trazem uma lírica repleta de sonoridade, de maneira a demonstrar como a poesia pode dialogar com a música e a dança. E a poeta parece mesmo dialogar com as artes, porque apresenta seu próprio poema em estrutura dupla, em módulos, tal como se faz com a música. É assim, repleto de mimetismo, que o poema se origina.

A descrição do sujeito, da interioridade psíquica de Narciso é o ponto de partida do poema e o uso dos verbos no pretérito demonstra essa descrição psíquica de Narciso: “bebia”, “viu”, “reinou”. A folhagem incandescente, a luminosidade excessiva, tudo é índice do brilho extraordinário proveniente do reflexo de Narciso: “Folhas incandescentes fizeram da fonte / vale de fulgores.” A pureza daquelas águas, o bucolismo do ambiente; tudo é metaforizado na figura de Narciso, na sua pureza, na irradiação daquela beleza vista nas águas intocáveis da fonte de Téspias.

Bebendo, ele vê sua face, e ao se ver, ele se extasia com tanta beleza. Radiante e extasiado, toda essa luminância é intensificada; a luz, já incandesce nte, brilha ainda mais e mais. “Bebia Narciso sobre a onda / quando uma face viu de tal beleza / que a luz mais viva se tornou.”

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figuram no elenco das obrigações sagradas. Vida solitária só se consente a deuses e animais.”

Amaldiçoado de Amor, ele vai de encontro às águas, para cumprir sua moira, para satisfazer o chamado da sua descendência. Essas águas que foram fonte de vida para ele, e que agora serão causa de morte. E dalí não consegue se mover; não consegue se ausentar da sua própria presença. Não consegue se afastar e, com isso, acaba permanecendo diante da imagem que é, ao mesmo tempo, sua salvação e seu carrasco. Narciso torna-se aí a personificação do duplo, e com a permanência em si mesmo não se deixa desfazer da sua unidade.

O êxtase e a inércia de Narciso são tamanhos que ele se descuida, e durante o descuido ele é acertado pelas flechas de Eros. E sente o deus do amor em toda a sua personificação. Aquele ser apaixonante, que dantes ignorava todo e qualquer olhar amoroso, agora sucumbe através das setas do Cupido: “E Amor – cujas setas jamais puderam alcançar / seu coração esquivo – nele reinou”

Ao ver a si mesmo, ele se apaixona. Aquele jovem arredio, individualista, inerte a qualquer apelo emocional, agora se mostra suscetível: “Narciso, filho de um rio, símbolo de passagem, ficou preso no meio da corrente.”7

Ao visualizar sua descendência, o jovem se deixa capturar pela própria beleza. Veja:

Filho de uma d ivindade aquática abraçada por um rio, Narc iso move o olhar rumo às origens. Vê-se imerso nas águas primordia is, uterinas. Mas as mãos estendidas não vencem o te mpo que o separa da orige m. [...] Narc iso, escravo do olhar, arde inteiro. [...] Narc iso já não sabe se quem contemp la é ele , ou se de contemplador foi ligado às eminências da image m engrandecida pelo sonho. (SCHULLER, 1994, p.p. 33-34)

Apaixonado pela própria imagem, ele fica imobilizado ali, cumprindo a sua moira; condenado a amar um amor impossível que “jamais do jovem se apartava”. Por amor ao seu próprio reflexo, à sua própria sombra, Narciso já não pode abandonar aquelas águas paradas. Somente ali seu amor se satisfaz.

Vem então o desolamento de amar aquele ser que nunca toma forma, nunca se materializa, nunca pode ser tocado; esse desolamento que traz a desilusão. E com a desilusão vem o seu suicídio. E pensar que tamanho sofrimento é imposto a Narciso pelo seu próprio destino. Mas o mundo das sombras espera por ele e Tânatos virá satisfazer o luto daqueles que esperam pela condenação do belo mancebo: “Insidiosa veio a Morte para o levar consigo”. Quem não se abre ao outro, marca um encontro com a morte e Narciso não pode fugir do seu destino; seu próprio nome está ligado à morte:

nárk e, como fonte de narcose (sono produzido por meio de narcótico), a juda

a compreender a relação da flor narciso com as divindades ctônias e com as cerimônias de inic iação, sobretudo as atinentes ao culto de Deméter e Perséfone. Narcisos plantados sobre os túmulos, o que era um hábito, simbolizava m o sorvedouro da morte, mas de uma mo rte que era apenas um sono. Às Erínias, consideradas como entorpecedoras dos réprobos, oferecia m-se guirlandas de narcisos. Uma ve z que o narciso floresce na primavera, e m lugares úmidos, ele se prende à simbólica das águas e do ritmo das estações e, por conseguinte, da fecundidade, o que caracteriza sua amb ivalência mo rte (sono) – renascimento. (BRA NDÃ O, 2005, P. 174)

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Resta então a flor de Narciso. Essa flor que é a representação da sua efemeridade, da beleza que se esvai com o tempo, da associação entre a morte e a vida. Narciso permanece vivo entre e em nós, quer seja na melancolia, no sofrimento, na beleza, na juventude e no desejo de alca nçar a imagem duplicada, mas a imagem não pode ser duplicada sem riscos. Aí está a relação desse mito com a condição humana, pois como diria Schuller (p. 36): “Causa da morte de Narciso? Falsa concepção do belo. Quis imóvel o que todos os dias se constrói. ”

Narciso, que nasceu da água, morre agora por ela. Passa agora a procurar o ser amado nas escuras águas do rio Estige, no reino sombrio de Hades, “deixando numa flor a forma de Narciso”. A forma dessa flor que metaforiza o sono da morte. Uma flor que já nasce efêmera: floresce na primavera, mas fenece após essa breve vida. Narciso enfim encontra a morte!

CONCLUSÕES

Após esse breve estudo acerca da relação entre mitologia e poesia na obra de Dora Ferreira da Silva, verificamos que a presença dos mitos na obra da poeta tem valor único. Falar de Narciso é falar do homem contemporâneo, uma vez que o referido mito serve de demonstração da superficialidade em que vive o ser humano. É isso que Dora Ferreira da Silva vem nos mostrar através da sua poesia: de q ue modo os elementos míticos, assim como Narciso, se relacionam com o homem e o mundo em que habita.

Dora consegue alcançar, por meio de sua poesia, a concepção de mito exposta pelo poeta Octávio Paz (1990, p. 12): “O mito, através de suas brumas e metáforas, introduz uma luz dentro de nós: no lugar de adormecermos com a fantasia, nos aviva, nos revela, isto é, nos dá a consciência do destino.”Os poemas de DFS refletem acerca do sentido da existência humana e assim a poeta consegue transpor os mitos para a vida cotidiana, demonstrando a atemporalidade que lhes é peculiar. Essa atemporalidade mitológica é que permite o encantamento e a perpetuação desses mitos, e é na literatura que eles buscam amparo para alcançar sua continuidade.

Explorando os símbolos, mitos e imagens arquetípicas em sua poesia, Dora fala do homem contemporâneo e de suas recorrentes inquietações. Com isso, sua obra se torna um retrato da condição humana. É assim, com essa lírica imagética e simbólica, que a poeta – mestre no manuseio de elementos clássicos – constrói uma poesia eterna, tradutora da plenitude e perpetuadora dos elementos míticos.

REFERÊNCIAS

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BULFINCH, Thomas. O livro da mitologia: história de deuses e heróis. 4ª ed. Tradução de Luciano Alves Meira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. 467 p.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Tradução de Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 552 p.

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2006. 182 p.

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MELLO, Ana Maria Lisboa de. Poesia e imaginário. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. 60 p.

OVÍDIO. Metamorfoses. Trad. Manuel M. B. Bocage. São Paulo: Hedra, 2007. 135 p.

PAZ, Octávio. Primeiras Letras. 2ª ed. Barcelona: Seix Barral, 1990.

RIBEIRO JR, João. As perspectivas do mito. São Paulo: Pancast Editorial, 1992. 86 p. SCHULER, Donaldo. Narciso errante. Rio de Janeiro: Vozes, 1994. 161 p.

SILVA, Dora Ferreira da. Hídrias. São Paulo: Odysseus, 2004. 62 p.

SILVA, Dora Ferreira da. Entrevista de Dora Ferreira da Silva: A fascinação do mito. [Dezembro de 1989]. São Paulo: Revista PenAzul. Entrevista concedida a Hermes Rodrigues Nery. [Online]. Disponível em: <

http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/dora.htm> Acesso em: 02 abr 2011.

SOUZA, Enivalda Nunes Freitas e. Narciso e seu reino de sombra em Cantares, de Hilda Hilst. Revista Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 44, p. 65-74, out. 2009.

SOUZA, Enivalda Nunes Freitas e. A poesia do illud tempus: introdução a arquétipos de Dora Ferreira da Silva. Trabalho a ser publicado pelo GT da ANPOLL Teoria do Texto Poético.

Referências

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