Estudos de Defesa e Teorias de Relações Internacionais
José Cauby Soares Monteiro E-mail: caubymonteiro@uol.com.br UFPA – IFCH – FCS Versão 29/06/2008
INTRODUCÃO
As teorias acerca da segurança internacional vis-à-vis às teorias de rela- ções internacionais podem proporcionar aos estudos de defesa uma perspec- tiva analítica que dialogue com os modos de uma dada “disciplina vertical” ou de “espaço interdisciplinar ou multidisciplinar” ou a proposta de uma “disci- plina horizontal” como adequadamente proposto na ementa desta sessão te- mática. No Brasil, autores como Buzan, Waever, Kolodziej, têm exercido in- fluência desigual e diferenciada. A proposta de uma “estrutura da segurança internacional” através de tipos ou modelos tais como: padrão, centrado (su- perpotência, grande potência, potência regional e institucional), grande po- tência e supercomplexos, nos quais a dinâmica da regionalização da securiti- zação exerce uma influência ponderável na medida em que este arcabouço analítico constituiria uma “teoria de segurança regional” centrada em “com- plexos de segurança” e por isto tem sido adotada por alguns pesquisadores da área de estudos de defesa. Kolodziej identifica quatro níveis de análise: inte- restatal, sistêmico, de atores transnacionais e doméstico. As teorias substanti- vas (realismo, neo-realismo, institucionalismo liberal, liberalismo clássico e neo-marxismo) são testadas nos quatro níveis precedentes de análise pelas teorias de segurança de críticas metodológica e social (comportamentalismo e construtivismo). Este autor tem sido menos utilizado ou quase nunca. Tanto em Buzan e Waever (2003) quanto em Kolodziej (2005), entretanto, os para- digmas apresentados ainda deixam em aberto a questão crucial de qual teoria para cada pesquisa ou até que ponto teorias limitam o escopo da investigação ou pelo contrário resultados alcançados testam e limitam ou recriam novas abordagens.
Vamos adotar inicialmente o conceito de segurança que nos é fornecido por Robinson:
“Segurança implica em ausência de ameaça. Tal afirmação tanto pode ser
vista como uma noção absoluta – ou se está seguro ou não se está, ameaças
existem ou não existem – ou como uma condição relativa – variando-se os
graus de segurança, mais ou menos proteção das ameaças. Pode-se também
ver a segurança em termos objetivos e subjetivos, isto é, como uma avaliação de quantas ameaças pessoas e instituições efetivamente se deparam e qual o grau de proteção elas realmente possuem contra estas ameaças em contra- posição ao quanto elas se sentem seguras” (2008: 1).
Inspirado na noção de Gallie, Steve Smith enfatiza que segurança é ine- rentemente um conceito contestado (e contestável) onde “nenhuma definição neutra é possível”. Este autor também não vislumbra “nenhum significado neutro do conceito” (2005: 27). Mas a partir daí teríamos que discutir os dois passos de Booth (o segundo é corolário do primeiro): o aprofundamento e a ampliação do conceito de segurança assim como a “politização da segurança”
e a “securitização da política” (2005: 14) o que não é o objetivo deste texto.
Securitização, por sua vez, é o movimento que direciona a política para além das regras do jogo estabelecidas e constitui os temas num tipo especial de política ou acima da política e “é um ato de discurso [speech act]”, isto é, “o processo de securitização é o que em teoria da linguagem chamamos de ato de discurso” (Buzan, Wæver & Wilde, 1998: 23, 26; Robinson, 2008, 187). Para ser bem sucedida a securitização exige três componentes (ou passos): 1) ame- aças existenciais, 2) ação emergente e 3) efeitos sobre as relações interunitá- rias da quebra voluntária de regras (Buzan, Wæver & Wilde, 1998: 26).
I - SECURITIZAÇÃO EM DIFERENTES NÍVEIS DE ANÁLISE
No livro de 1998, Buzan, Wæver e Wilde (p 165) apresentam quatro possibilidades (dominante, subdominante, insignificante e não-securitização) de securitização dos setores (militar, ambiental, econômico, societal e políti- co) em quatro dinâmicas espaciais (global, não-regional/subsistêmica, regio- nal e local).
O setor militar é dominantemente securitizado no plano regional e têm uma securitização subdominante no âmbito local, já nos níveis global e sub- sistêmico a securitização não é significativa. A questão ambiental sofre securi- tização dominante nas dinâmicas global e local, mas no plano regional o pro- cesso é subdominante e no nível sistêmico não é significante. O setor econô- mico é dominantemente securitizado no âmbito global, mas é subdominante no nível regional e insignificantemente securitizado nos níveis sistêmico e lo- cal. Questões societais ganham uma securitização dominante no nível regio- nal, subdominante no plano global, não-significativa no espaço local e não são securitizadas no nível subsistêmico. O setor político é dominantemente secu- ritizado no plano regional, de forma subdominante no âmbito global, não- significante no nível local e não é securitizado no espaço subsistêmico.
Deste modo, no plano global, questões econômicas e ambientais ga-
nham destaque, em segundo lugar questões políticas, em terceiro militares e
societais. Na dinâmica não-regional/subsistêmica todos os setores são securi-
tizados de forma subdominante, com exceção do setor político que não é secu-
ritizado, o que significa dizer que o grau de securitização é baixo. De todas as dinâmicas o espaço regional é o mais securitizado (três dos cinco setores são securitizados); na dinâmica regional questões militares, societais e políticas são dominantemente securitizadas e as questões ambientais e econômicas o são de forma subdominante, o que corrobora a tese dos autores da regionali- zação da segurança/securitização. Na dinâmica local apenas a questão ambi- ental é dominantemente securitizada, os setores militar e societal são securiti- zados de forma subdominante e nos setores econômico e político a securitiza- ção não é significante.
TABELA 1- SECURITIZAÇÃO EM DIFERENTES NÍVEIS DE ANÁLISE Dinâmicas/
Setores Militar Ambiental Econômico Societal Político
Global ** **** **** ** ***
Não-regional subsistêmica
** ** ** ** *
Regional **** *** *** **** ****
Local *** **** ** *** **
**** - securitização dominante; *** - securitização subdominante; ** - securitização insignificante; * - não- securitização
Fonte: Tradução da figura 8.1 de Buzan, Wæver & Wilde, 1989: 165.
II - TIPOS DE COMPLEXOS DE SEGURANCA
Existem quatro tipos de complexos de segurança: padrão, centrado, grande potência e supercomplexos. O complexo de segurança centrado apresenta quatro formas: superpotência, grande potência, potência regional e a institu- cional.
No tipo padrão a polaridade é determinada por potências regionais. O Oriente Médio, a América do Sul, o Sudeste Asiático, o Chifre e o Sul da África seriam exemplos do tipo padrão de complexo de segurança.
O tipo centrado possui quatro formas:
“Superpotência” com unipolaridade centrado em uma superpotência, no caso, os Estados Unidos, o exemplo obviamente é a América do Norte.
“Grande Potência” também unipolar centrado em uma grande potência, o e- xemplo é o CEI, e potencialmente o Sul Asiático
A terceira forma é inexistente (Potência regional) que também seria unipolar centrado numa potência regional.
Na forma institucional a região adquire institucionalmente a qualidade de a- tor o exemplo é a UE.
O tipo “Grande Potência” com bi- ou multipolaridade com as grandes potên- cias como pólos regionais, tem como exemplo a Europa pré-1945 e o Leste A- siático.
O tipo “Supercomplexos” possui nível inter-regional forte de dinâmicas de se-
gurança decorrentes do transbordamento (spillover) de grandes potências em
direção a regiões adjacentes e apresenta como exemplo o Leste e o Sul Asiáti- co.
TABELA 2 - RESUMO DOS TIPOS DE COMPLEXOS DE SEGURANCA
Tipo Principais característi-
cas
Exemplo(s)
Padrão Polaridade determinada por
potências regionais
Oriente Médio, América do Sul, Sudeste Asiático, Chifre e Sul da África
Centrado
Superpotência Unipolar centrado em su- perpotência
América do Norte Grande potência Unipolar centrado numa
grande potência
CIS, potencial- mente o Sul Asiá- tico
(Potência regional) Unipolar centrado numa potência regional
Inexistente Institucional A região adquire institucio-
nalmente a qualidade de ator
UE
Grande Potên- cia
Bi- ou multipolar com gran- des potências como pólos regionais
Europa pré-1945, leste asiático Supercomple-
xos
Níveis inter-regionais fortes de dinâmicas de segurança decorrentes do spillover de grandes potências em dire- ção a regiões adjacentes
Leste e Sul Asiáti- co
Fonte: Tradução da tabela 1de Buzan & Wæver, 2003: 62.
III - AS DIMENSÕES DA SEGURANÇA E A SEGURANÇA IN- TERNACIONAL VISTA A PARTIR DO ESTADO
Quais são os limites e as possibilidades de uma análise estatocêntrica?
Kolodziej relaciona quatro níveis de análise com os atores e os escopos de su- as conexões.
No âmbito interestatal os atores principais são e organizações intergo- vernamentais (OIGs). Os Estados estabelecem relações bilaterais e multilate- rais objetivando alcançar as funções de segurança e bem-estar entre eles. A ONU e OTAN são exemplos dessas OIGs. As permutas entre os atores são co- ercitivas.
No nível sistêmico o Estado é o ator principal e o alcance das relações entre os atores é de expectativa de violência ou ameaças coercitivas para solu- cionar diferenças interestatais; as permutas dos atores também são coerciti- vas.
Há um terceiro nível de análise caracterizado pelas dimensões sociopolí-
ticas e econômicas da atuação de atores transnacionais e pelos seus papéis na
sociedade civil internacional. Nesta esfera temos dois tipos de atores: econô-
micos e sociopolítico-culturais. O primeiro é formado pelos Estados, atores econômicos, incluindo corporações multinacionais, OIGs e organizações não- governamentais (ONGs) e o alcance das relações entre os atores inclui merca- dos globalizantes e difusão de tecnologia e inovação, as permutas dos atores são voluntárias e não-coercitivas. O segundo tipo é constituído por Estados, OIGs, ONGs, grupos e indivíduos e seus escopos de relações incluem progra- mas humanitários: intercâmbios educacionais e culturais, ataques terroristas, etc.
O quarto nível de análise é o âmbito doméstico formado por Estados, indivíduos, grupos, associações, corporações e atores transnacionais e seus escopos de relações incluem quatro campos de atuação: 1) O Estado como ameaça às liberdades civis e aos direitos humanos; 2) o Estado como protetor;
3) regimes e seus impactos nos interesses de segurança de outros estados; e 4) regimes e segurança internacional. As trocas entre atores é um mix de coerção e não-coerção.
Em todos estes níveis os Estados desempenham papéis diferenciados
com maior ou menor importância e sofrem graus de contestação também dis-
tintos. Por maior ou menor que seja a presença do Estado ela é sentida por
todos os demais atores que atuam nas diversas dimensões da segurança e da
segurança internacional.
Tabela 3 - As Dimensões da Segurança e a Segurança Internacional vista a partir do Estado Níveis de análise Atores principais Alcance das relações dos atores
Interestatal Estados e organizações intergover- namentais (OIGs)
Relações bilaterais e multila- terais entre os estados: fun- ções de segurança e bem- estar entre os estados; Nações Unidas, OTAN, as permutas dos atores são coercitivas
Sistêmico Estados Expectativa de violência ou
ameaças coercitivas para so- lucionar diferenças interesta- tais; as permutas dos atores são coercitivas
Atores transna- cionais e seus papéis na socie- dade civil inter- nacional, dimen- sões sociopolíti- cas e econômicas
1. Econômicos: Estados, atores econô- micos, incluindo corporações multina- cionais, OIGs e organizações não- governamentais (ONGs)
1. Mercados globalizantes e difusão de tecnologia e inovação, as permutas dos atores são voluntárias e não-coercitivas
2. Sociopolítico-culturais: Estados, OIGs, ONGs, grupos e indivíduos
2. Programas humanitários:
permutas educacionais e culturais, ataques terro- ristas, etc.
Doméstico Estados, indivíduos, grupos, associa- ções, corporações e atores transnacio- nais
1. O estado como ameaça às liberdades civis e aos di- reitos humanos
2. O estado como protetor 3. Regimes e seus impactos
nos interesses de segu- rança de outros estados 4. Regimes e segurança in-
ternacional
Trocas entre atores é um mix de coerção e não- coerção
Fonte: Tradução da tabela 1.1 de Kolodziej: 2005: 37.
IV - COMPARANDO PARADIGMAS DE SEGURANÇA
Sem levar em conta os estudos críticos de segurança (em inglês CSS), Kolodziej apresenta dois conjuntos de escolas de pensamento: um primeiro que ele chama de “teorias substantivas” e um segundo que denomina de “crí- ticas sociais e metodológicas às teorias de segurança” onde a ausência dos CSS se constitui numa lacuna evidente já que o(a)s autore(a)s da escola critica conjuntamente com as perspectivas feministas foram os que mais contribuí- ram para uma apreciação critica e muitas vezes radical das teorias de segu- rança, aliás, o próprio Kolodziej é avaliado positivamente no estudo de Steve Smith (2005: 56) por defender um conceito mais ampliado de governança do que aquele existente à época da Guerra Fria para tratar as questões variadas de segurança assim como situá-la no contexto dos seus fundamentos sociais e políticos (Smith, 2005: 56). Ambas as obras, a coletânea de Booth onde se en- contra o capítulo de Smith e o livro de Kolodziej, foram publicados em 2005, talvez diálogo tenha sido retomado em alguma publicação mais recente.
Kolodziej identifica quatro níveis de análise: interestatal, sistêmico, de atores transnacionais e doméstico. As teorias substantivas (realismo, neo- realismo, institucionalismo liberal, liberalismo clássico e neo-marxismo) são testadas nos quatro níveis precedentes de análise pelas teorias de segurança de críticas metodológica e social (comportamentalismo e construtivismo).
O autor identifica em cada teoria estudada seis características: 1) atores
principais; 2) variáveis principais; 3) expectativas de comportamento dos ato-
res; 4) principais níveis de análise; 5) métodos selecionados e 6) implicações
normativas (todas relacionadas a conflitos armados). Mas o teste fundamen-
tal das teorias é explicar a ascensão e o fim da Guerra Fria, porém este não é
um teste simples já que, como o próprio autor reconhece, “não há explicação
simples para a inesperada destruição de uma superpotência e o abrupto fim
da Guerra Fria” (Kolodziej, 2005:104).
TABELA 4 - COMPARANDO PARADIGMAS DE SEGURANÇA
Escolas de pensamen- to
Principais atores
Principais variáveis
Expectativas de com por- tamento dos atores
Principais níveis de análise
Métodos preferidos
Implicações normati- vas
Teorias substantivas
Realismo Estados Violência/força militar
Conflito/ coo- peração com rivais possíveis
Estado para Estado
Histórico/
analítico
Conflitos armados en- dêmicos, mas adminis- tráveis pela balanças de poder e por comedimen- tos mútuos
Neo- realismo
Sistema de Estados
Violência/força militar
Conflito/ coo- peração possí- vel, mas não provável
sistema Histórico/
analítico
Conflitos armados en- dêmicos, mas adminis- tráveis pelas balanças de poder
Institucio- nalismo liberal
Estado limi- tado por outros auto- res
Violência/força militar idéias econômi- cas/valores mar- ginalizados
Cooperação Estado para Estado/
transnacional doméstico
Histórico/
científico/
analítico/
comportamen- tal
Cooperação é provável, mas os com-flitos arma- dos são possíveis Liberalis-
mo clássi- co
Indivíduos (pessoal /associado)
Tecnológicas/
econômicas
Cooperação Indivíduo Individualismo metodológico
Conflitos armados são potencialmente solucio- náveis
Neo- marxismo
Corporações Tecnológicas/
econômicas
Conflito Sistemas/
mercados
Histórico/
analítico
Conflitos armados são eliminados com o fim do capitalismo
Críticas sociais e metodológicas às teorias de segurança Construti-
vista
Ator como construto social
Idéias/valores Cooperação/
(Conflito?)
Trocas soci- almente construídas
Social e sócio- psicológico
Conflitos armados po- dem ser eliminados pela vontade
Compor- tamenta- lista
Pesquisa dependente
Pesquisa depen- dente
Conflito/ coo- peração
Todos os níveis/ Pes- quisa depen- dente
Viés científico para modelar e mensurar
Pretensamente livre de valores
Fonte: Tradução da tabela 3.2 de Kolodziej, 2005: 121.