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Ciência e prática
Mordida aberta cirúrgica.
Tratamento multidisciplinar
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Resumo
Este artigo descreve o tratamento realizado a um paciente com mor- dida aberta esquelética com múltiplas ausências de peças dentárias, como um exemplo claro da importância do trabalho multidisciplinar para alcançar os objetivos estéticos e funcionais não somente da boca, mas da face, na sua totalidade. Participaram no tratamento as seguintes disciplinas: ortodontia, cirurgia ortognática, implantologia e reabilitação protética. Além disso, aplicou-se terapia psicológica
Elisa Tuber
: EElliissaa TTuubbeerr Médica dentista.
Especialista em ortodontia.
Docente da Gnathos, Centro de Estudos de Ortodontia (Espanha).
Diretora do Curso de Pós-graduação em Ortodontia da Universidade de Belgrano (Argentina) e da Universidade Católica do Uruguai.
AAlleejjoo EEssttrraaddaa Médico.
Especialista em cirurgia maxilofacial na Universidade Maimonides (Argentina).
Professor da Gnathos, no Centro de Pesquisa de Ortodontia (Espanha), e da Universidade Nacional do Litoral (Argentina).
M Maarriioo AArraannaa Médico dentista.
Especialista em ortodontia.
Docente da Gnathos Fundação Ensino e da Universidade Nacional Litoral (Argentina).
durante o tratamento e terapia da fala após a cirurgia, para a reabili- tação da função lingual. Estes dois últimos pontos não serão trata- dos nesta publicação.
Palavras-chave: mordida aberta cirúrgica, cirurgia ortognática, análi- se estética facial, ortodontia pré-cirúrgica, VTO cirúrgico e implantes dentários.
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Introdução
As mordidas abertas esqueléticas dificilmente podem ter uma resolução ortodôntica. Por sua vez, as tentativas de tratamen- tos ortopédicos precoces com base na intrusão dos setores posteriores para a autorrotação mandibular, a partir do uso de barras palatinas baixas, aparelhos tipo bite-blocke até a utili- zação de microimplantes como ancoragem para conseguir a intrusão posterior, são geralmente insuficientes. Portanto, a grande maioria está sujeita a uma abordagem através da com- binação de ortodontia e cirurgia ortognática no final do cres- cimento do paciente.
As características esqueléticas típicas do padrão esquelético da mordida aberta podem descrever-se, com base no cefalograma de Ricketts, com as seguintes alterações (Ricketts et al., 1982):
• Altura facial inferior aumentada.
• Arco mandibular diminuído.
• Plano mandibular muito inclinado.
• Excesso vertical posterior do maxilar superior.
• Angulo goníaco aumentado.
• Eixo facial aberto (este fator pode ser condicionado se for acompanhado por um componente sagital de classe III).
A paciente M.R, de 30 anos de idade, apresenta uma mordida aberta esquelética com todas as suas características, mas o seu motivo de consulta foi a necessidade de repor peças den- tárias ausentes. Foi submetida a tratamento no âmbito de cur- sos de pós-graduação de cirurgia e implantologia oral e orto- dontia e cirurgia ortognática, ambos da Universidade Nacional do Litoral (Santa Fé, Argentina).
Caso clínico
Na fase inicial, observamos na paciente uma oclusão e uma estética extremamente deficientes. Além disso, uma serie de componentes psicológicos e sociais negativos que a paciente relata, que resultam da alteração facial que apresenta.
Reverter estes fatores constitui para toda a equipa o objetivo máximo a conseguir, para além de todos os aspetos morfoló- gicos e funcionais que se devem harmonizar.
Análise da estética facial
Nas fotos de rosto, frente e perfil, apresenta um grande aumen- to no terço inferior da face com incompetência labial (fig. 1).
Fig. 1. Fotos extraorais da paciente nas perspetivas frontal (fecho forçado, lábios em repouso e sorriso) e de perfil.
No estudo sagital é muito explícita a observação da vertical de subnasal, cujas normas são:
• Lábio superior: + 2 mm.
• Lábio inferior: 0 mm.
• Pogônio cutâneo: - 2 mm.
A posição do lábio superior está normal em relação às suas medidas, mas deve-se considerar que se encontra invertido pela falta de fechamento bucal. O lábio inferior está muito protruído em relação à posição do mento, que está ligeiramente recuado.
Isto implica planificar o avanço do mento e tirar projeção ao lábio inferior, que se deverá ter em conta na hora de planificar a cirurgia com recursos como a rotação anti-horária mandi- bular e/ou a mentoplastia de avanço.
Em boca, observa-se uma grande mordida aberta anterior e a ausência de múltiplas peças dentárias (fig. 3). A paciente refere que foram extraídas por cárie e falta de tratamento odontológico oportuno. Isto é bastante comum de observar em pacientes com estas características, que têm um descuido pessoal que afeta também a higiene oral. Há algumas rotações e mau posiciona- mento em setores anteriores, mas as discrepâncias dentárias são leves. Em ambas as arcadas as curvas de Spee estão inver- tidas, com uma evidente extrusão dos setores dos pré-molares.
Os únicos molares inferiores presentes são os terceiros, que se encontram mésio-inclinados. Na arcada superior, além dos ter- ceiros molares, encontramos o segundo molar esquerdo com uma marcada rotação mesial.
No protocolo de diagnóstico (Gregoret et al., 2008) trabalham- -se as mordidas abertas traçando um plano oclusal superior e um inferior, e estudam-se as inclinações dos incisivos superio-
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As áreas paranasais são planas e é muito evidente o plano mandibular inclinado, resultado de uma forma obtusa e da rotação horária da mandíbula. Esta forma e posição mandibu- lar geraram a retrusão que apresenta o mento, e a escassa pro- fundidade do pescoço.
Em repouso, o lábio inferior encontra-se invertido pela deficien- te função de fechamento e por falta de suporte mentoniano. O fecho bucal faz-se com esforço com a contração exagerada da musculatura perioral. No estudo frontal da face, evi dencia-se uma ligeira assimetria mandibular com o desvio do mento para a direita.
Estas observações contam com o suporte das medidas do estudo vertical e sagital do perfil da figura 2 (Epker & Fish, 1985; Arnett & McLaughlin, 2005).
No estudo vertical, observa-se um aumento de 17 mm no ter- ço inferior com respeito ao terço médio, estando o espaço interlabial muito aumentado. No entanto, pela desproporção do lábio superior com respeito ao terço médio (norma A = 3C), pode-se inferir que o terço médio é curto, de modo que o obje- tivo será diminuir o terço inferior, mas sem chegar a igualá-lo com o terço médio.
O fechamento da mordida irá reduzir o espaço interlabial, e poderá diminuir a altura do mento 3-4 mm, mas não mais, porque ao fazê-lo se desproporcionaria a relação lábio supe- rior/lábio inferior e mento (norma: D = 2C).
Fig. 2. Estudo vertical e sagital do perfil.
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Fig. 4. Inclinações iniciais dos incisivos, medidas em relação ao plano oclusal.
res em relação ao plano oclusal (fig. 4). Neste caso, o incisivo superior tem 64º(norma 57º) e o inferior 73º(norma 64º), o que indica que estão ligeiramente retroinclinados. Planifica- -se então solucionar os leves apinhamentos com pro-inclina- ção dos incisivos.
Além disso, o tratamento ortodôntico pré-cirúrgico tem como objetivo nivelar as curvas de ambos os arcos dentários e me - lhorar as inclinações e rotações dos molares presentes. As li - nhas médias estão centradas em cada uma das arcadas, mas não coincidem entre si por causa da assimetria mandibular, que desvia a linha média inferior à direita em relação à superior. Não há a fazer nenhuma modificação nas linhas médias dentárias.
Conjuntamente, planifica-se o trabalho de reabilitação implan- to-suportada. Para poder repor as peças dentárias em falta, sobretudo em ambos os setores postero-inferiores, realiza- ram-se diferentes estudos complementares, entre eles, o ence- ramento de diagnóstico, as guias cirúrgicas e os estudos tomográficos multislicecom reconstrução DentaScan. Na mesma pode observar-se a falta de osso na zona correspon- dente às peças 36 e 37 (fig. 5). Devido às condições desfavo- ráveis realizou-se nesta zona uma regeneração óssea guiada com um enxerto de osso autólogo particulado desde a linha oblíqua externa distal à zona recetora, fixou-se o enxerto com uma malha de titânio de 1 mm de espessura (Mondial) com um conjunto de parafusos monocorticais. Passados quatro meses, tempo biológico mínimo para permitir a osteointegra- ção deste tipo de enxertos, procedeu-se à colocação de dois implantes Nobel Biocare Groovy 4,3 x 13 mm CI. No momen- to da fixação da malha de titânio com um parafuso, lesionou- -se a cara mesial da raiz da peça 35 que se manteve assinto- mática até à reabilitação do implante. Como resultado desta lesão, realizou-se a extração da mesma (fig. 6).
Fig. 3. Fotos intraorais.
Na zona correspondente à peça 46 encontrou-se uma anato- mia óssea muito mais favorável e não foi necessário realizar um enxerto prévio. Na área das peças 15 e 16 colocaram-se dois implantes Biolock de 4,1 x 10 mm CE.
Nas imagens da figura 7, observa-se o resultado da ortodontia pré-cirúrgica. Alinharam-se e nivelaram-se as arcadas dentá-
rias, diminuindo a magnitude da mordida aberta. A aparência facial modificou-se ligeiramente com a diminuição da mordida aberta, produzida pela rotação mandibular antes da nivelação por intrusão dos setores laterais e também uma ligeira extrusão dos incisivos, principalmente na arcada superior, onde se obser- va que, ao finalizar a ortodontia pré-cirúrgica, a exposição dos incisivos aumentou 1,5 mm.
Fig. 5. Imagem tomográfica da zona correspondente à peça 36, onde se observa a escassa altura do rebordo e da proximidade do conduto do nervo dentário.
Fig. 6. Radiografia periapical depois do enxerto e posterior à colocação do implante nas zonas dos 36 e 37.
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Fig. 7. Fotos intermédias e finais da ortodontia pré-cirúrgica.
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Realizou-se o VTO cirúrgico (Quevedo Rojas, 2004; Gregoret et al., 2008) com a seguinte proposta (figs. 8 e 9):
• Avanço de 4 mm do maxilar superior, para projetar as áreas paranasais que se encontram deprimidas.
• Impactação de 3 mm do maxilar superior, para diminuir a exposição do incisivo e o sorriso gengival, visto que este último aspeto preocupava muito a paciente.
• Retrocesso mandibular, de aproximadamente 5 mm, com rotação anti-horária.
• Mentoplastia de diminuição vertical (5 mm) e avanço (5 mm).
Ao finalizar, o VTO cirúrgico mostra que neste caso terão lugar todos os procedimentos para o encerramento das mordidas abertas que apresentem planos oclusais retos:
• Avanço do maxilar superior.
• Autorrotação mandibular (por impactação do maxilar).
• Rotação anti-horária (ocorre quando num procedimento sagital da mandibula, se planifica uma subida do segmento distal. Isto manifesta-se com separação da cortical vestibu- lar osteotomizada que é maior na parte inferior do que na parte superior).
Também se visualiza que o terço inferior diminuirá em aproxi- madamente 10 mm, sendo muito percetível o encerramento do espaço interlabial, e também será encurtada a altura do mento, mas sem chegar a desproporcioná-lo em relação à longitude do lábio superior.
Fig. 9. Traçado pré-cirúrgico e VTO cirúrgico. Definiu-se um novo plano A-Po, traçado desde o ponto A, planificando (neste caso, 4 mm em frente ao ponto A original) uma perpendicular da horizontal verdadeira.
Fig. 8. Radiografias pré-cirúrgicas.
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A cirurgia inicia-se com o procedimento Le-Fort I, com o uso de um splintintermédio para fixar o maxilar superior, utilizan- do quatro placas em L de 15-22 mm. Espessura 0,6 mm CP titânio de grau 2 (fig. 10).
Realizou-se a cirurgia sagital da mandíbula numa segunda etapa e trabalhou-se com um splintfinal para a fixação man- dibular, porque apesar de terem sido colocados alguns
implantes, ainda não estavam reabilitados com as suas coroas provisórias de acrílico, e não se garantia uma boa estabilidade intra-cirúrgica.
A fixação mandibular realizou-se com duas placas retas BBSO.
Espessura de 1,1 mm e CP titânio de grau dois Os teo med (fig.11), ao passo que o mento fez-se com placas pré-molda- das para genioplastia de 6 mm. Espessura de 0,6 mm, CP titâ- nio de grau três (fig. 12). Após a cirurgia, deu-se continuidade à reabilitação.
Fig. 10. Cirurgia de Le-Fort I e fixação do maxilar superior utilizando um splintintermédio.
Fig. 11. Cirurgia mandibular e fixação utilizando um splintfinal.
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A oportunidade de colocação de implantes dentários em pacientes que devem realizar uma cirurgia ortognática é um tema com muitas controvérsias (Reyneke, 2010). Preferimos colocar os implantes no final do tratamento ortodôntico, por- que no seu percurso recebem movimentos dentários que modificam os espaços biológicos que são necessários ter bem definidos para obter resultados protéticos ótimos. Neste caso, realizaram-se antes na zona dos 36 e 37, porque foi necessá- rio efetuar um enxerto ósseo, intervenção cirúrgica que se recomenda realizar previamente à cirurgia ortognática, já que a vascularização do tecido medular em fragmentos terminais às osteotomias tende a diminuir, pelo que este tipo de cirur- gias seriam um fator de risco para o sucesso do enxerto.
Também se colocaram, antes da cirurgia, implantes na zona 15 e 16 porque a ortodontia não previa a modificação das posições dentárias, uma vez que estas tinham sido alinhadas na primeira fase do tratamento. Desta maneira aumenta-se a estabilidade oclusal intra-cirúrgica e pós-cirúrgica imediata,
muito importante para a correta ossificação das fraturas cau- sadas pela cirurgia.
A colocação dos implantes na zona inferior direita foi adiada para observar na finalização da ortodontia como se recuperou a inclinação da peça 47. O espaço resultante deu lugar à colo- cação de um só implante. Colocou-se um implante Nobel Bio- care Groovy de 4,3 x 10 mm CI. Todos os implantes reabilita- ram-se proteticamente com coroas de zircónio e cerâmica da Cerec Vita Mark II, ambas da Sirona. Os resultados do trata- mento são os que se observam nas figuras 14 a 16.
Depois de retirada a aparatologia ortodôntica, colocou-se uma férula de arame trançado 0.17,5 de canino a canino inferior, em forma de contenção.
O setor anterior reabilitou-se com facetas Cerec Vita Mark II (Sirona) de 1,5 mm de espessura. Posteriormente, confecionou- -se uma placa termoestampada superior para uso noturno, tam- bém como contenção ortodôntica.
Realizou-se um controlo de 24 meses depois da cirurgia (fig. 17), onde se observa a estabilidade dos resultados alcançados.
Fig. 12. Mentoplastia de redução vertical e avanço.
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Fig. 15. Oclusão final.
Fig. 13. Fotos pré-cirúrgicas.
Fig. 14. Fotos pós-cirúrgicas.
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Fig. 16. Radiografias finais.
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Fig. 17. Controlo aos 24 meses após a cirurgia.