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A RELAÇÃO ENTRE SUJEITO E MÚSICA NA PERSPECTIVA DA COMPLEXIDADE

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A RELAÇÃO ENTRE SUJEITO

E MÚSICA NA PERSPECTIVA

DA COMPLEXIDADE*

JOSÉ REINALDO FELIPE MARTINS FILHO**

Resumo: este trabalho discute a relação entre sujeito e música a partir da perspectiva da teoria da complexidade, inaugurada por Edgar Morin em meados da segunda metade do século XX. Para tal, pretende percorrer o ambiente no qual foi instaurada a concepção moderna de subjetividade, a fim de apontar os seus limites em face do que compreendemos serem os desafios da época contemporânea. Como objetivo maior, estará a eleição da música como via alternativa de integração das diferentes esferas que constituem o ser humano.

Palavras-chave: Sujeito. Música. Complexidade.

* Recebido em: 24.10.2018. Aprovado em: 27.11.2018.

** Doutorando em Ciências da Religião na PUC Goiás. Doutorando em Filosofia na UFG. Mestre em Filosofia e em Música, ambos pela UFG. Especialista em Docência do Ensino Superior pela Faculdade Brasileira de Educação e Cultura e em Sociologia pelo Centro Universitário Claretiano. Licenciado em Filosofia pela Faculdade Católica de Anápolis e Bacharel em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz.

A

fim de abordar a crise do sujeito moderno, esta investigação se posiciona no ponto de confluência entre duas abordagens que, vistas por determinado aspecto, estão articuladas. A primeira tem em vista o fenômeno musical como um forte opositor ao modelo racionalizante imposto pela modernidade do século XVI-XVII, de quem a nos-sa época é a herdeira direta. A segunda possui como lócus o pennos-samento contemporâneo, para o qual os limites do sujeito metafísico se tornaram irrecusáveis. Mais especificamente, trata-se do que ficou conhecido como a teoria da complexidade, aceita por uma amplitude de correntes advindas das mais variadas áreas do conhecimento: da física à filosofia, da biologia à antropologia, da história à sociologia e à psicologia. Nesse sentido, temos a opor-tunidade de aprofundar e novamente pôr à baila um tema já esboçado quando da primeira apresentação pública desta reflexão, no XIV Seminário Nacional de Pesquisa em Música da Universidade Federal de Goiás, em setembro de 2014. Por ora, contudo, tentamos dar maior

DOI 110.18224/frag.v28i4.6861

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profundidade às intuições prestadas, dando, assim, nossa própria parcela de contribuição ao universo das discussões mais recentes sobre o fenômeno musical.

Em linhas gerais, o movimento iniciado pelo francês Edgar Morin teve como objeti-vo estabelecer um confronto direto com o pensamento cartesiano, até então concebido como o máximo expoente da filosofia francesa. Haja vista neste aspecto, o título dado por Morin (2002) à sua obra de maior envergadura não pode ser tomado como banal. Ao contrário, os seis volumes de O Método pretendem realizar uma detalhada desmontagem dos pressupostos modernos, sinalizados pela instituição da consciência e do sujeito racional como patentes de representação para todo o âmbito objetivo. Se, noutrora, René Descartes ficara conhecido como o filósofo do método, caminho possível para se extrair a certeza inabalável do penso,

logo, sou, a teoria da complexidade, por sua vez, acabaria por se afirmar como um dos maiores

contrapontos de nossa época em relação à época moderna. Isso, no entanto, não sem abalar o seio das humanidades e das artes, mas, não apenas. De fato, é possível dizer que as maiores contribuições da teoria da complexidade para estas searas concentra-se na possibilidade de se beneficiarem de pressupostos antes restringidos ao fulcro das chamadas ciências duras, isto é, a física, a matemática, a biologia, entre outras. Não se trata, porém, de puro cientificismo, como na utopia positivista do século XIX, mas de efetivamente pensar um conhecimento que apenas pode ser construído numa zona de interface entre visões aparentemente paradoxais e, até, impassíveis de conjugação. De maneira particular as artes, nesse sentido, granjeariam um espaço antes não demonstrado, o que tentaremos mencionar ao longo do texto que segue. SUJEITO E CONHECIMENTO: UMA DIGRESSÃO À LEITURA CLÁSSICA

Uma vez arrogada como único ponto de partida seguro para o conhecimento, cabe-ria à racionalidade dar cabo da tarefa de desmistificação de um domínio que antes pertencia unicamente à religião, o que certamente significava lhe retirar qualquer concepção tripartida do homem (corpo/alma/espírito) herdada de uma antropologia teísta. Pela primeira vez na história do pensamento ocidental, o discurso do saber se voltava para o agente do saber, per-mitindo tomá-lo, ele próprio, como questão. Pela primeira vez não se tratava apenas de situar os seres, de pensá-los através de uma metafísica, mas de colocar em xeque o próprio pensa-mento sobre o ser, que se tornava, assim, também pensável (ELIA, 2010, p. 13).

Voltados unicamente para a estrutura e o conteúdo do intelecto – que, por sua vez passou a ser o foco de definição do ser humano de maneira geral – os audaciosos pensadores modernos (e aqui efetivamente pensamos os séculos XVII e XVIII) acabaram por ratificar a difusão de uma compreensão dicotômica de mundo, na qual o ser do indivíduo independia absolutamente do ser das demais criaturas existentes, inclusive do ser dos outros sujeitos. Como se não bastasse, embora povoado por inúmeras incompatibilidades conceituais, o pen-samento subsequente apenas se responsabilizou pela manutenção de tal entendimento, mo-derno em seus princípios mais radicais – e isso ao ponto de, ainda hoje, percebermos os seus resquícios entre nós, seja pelo modelo arbólico adotado pelo sistema educacional vigente, em que, a partir dos conceitos as disciplinas curriculares se estendem isoladamente umas das ou-tras, seja pela cisão entre ordem acadêmica (o âmbito da escola e/ou da faculdade) e realidade (a vida concreta, com seus saberes, experiências, significados).

Como um dos principais expoentes da modernidade, René Descartes é apontado como o autor de um paradigma voltado para o racional; uma racionalidade pretensamente

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in-falível, baseada nos rigorosos princípios formais da matemática. Desde o século XVII este tem sido o modelo eleito para mediar a relação entre sujeitos e objetos. Pouco a pouco, contudo, perderam-se os limites entre o racional e o razoável, embora, como demonstra Jean Ladrière (2001), há um enorme abismo semântico entre as noções de racionalidade e razoabilidade. Poderíamos até dizer que Adolf Hitler, por exemplo, fora racional, e não há discordância quanto a isso. Não obstante, seus comportamentos não foram de forma alguma razoáveis. Isso ocorre porque, no que se refere ao sujeito contemporâneo, razoabilidade e racionalidade não comparecem sempre conjuntamente: enquanto esta se refere apenas à condição do ente dotado de razão, aquela se dirige à capacidade de articulação dos demais elementos que inte-gram o todo psicofísico ao qual denominamos humano. Quem sabe, mais que nunca, nossa época seja a maior vítima de uma identificação como esta e, para isso, basta que nos voltemos para o âmbito das discussões atualmente travadas no cenário da vida pública, marcada por extremismos que, uma vez mais, acentuam a dicotomia – ou seja, a instauração de opostos absolutos – como a única via possível, sem que um extremo possa se beneficiar do outro. PELA CONCILIAÇÃO DAS DICOTOMIAS

Se, por um lado, os problemas enfrentados pela teoria da complexidade nos reme-tem à origem do pensamento moderno, que também é, simultaneamente, o berço natalício do sujeito racional, por outro devemos admitir que Edgar Morin (2002) não foi o único na contemporaneidade a tratar este assunto sob o ponto de vista da crise dos paradigmas. A crise do sujeito racional e manipulador consiste num dos temas centrais do pensamento contem-porâneo, frente ao qual, a partir de diferentes enfoques, as ciências humanas não permanece-ram em silêncio. O que talvez tenha marcado a novidade de um pensamento que se invente a partir de uma leitura de complexidade quiçá seja a sua capacidade de articulação e, mais que isso, de integração dos diferentes âmbitos do conhecimento sistêmico, nos quais se vêem inclusas desde a física e a biologia até a psicologia e a história, a sociologia e a filosofia, as artes, e assim por diante. A esse respeito destaca Morin (2002, p. 108-9), em seu livro Ciência com

consciência, publicado pela primeira vez em 1982:

Até a época recente, o domínio da natureza identificava-se com o desabrochar do hu-mano. Verificou-se, entretanto, uma tomada de consciência nos últimos decênios: o de-senvolvimento da técnica não provoca somente processos de emancipação, mas também novos processos de manipulação do homem pelo homem ou dos indivíduos humanos pelas entidades sociais.

O que, segundo Morin (2002), forjou-se como método da ciência moderna, cujo processo de atuação, distribuído em dois níveis elementares, previu a verificação em função da manipulação, igualmente passou a se dirigir ao espaço das relações entre os homens, de tal modo que a sujeição do homem pelo homem não se limitou aos domínios do contato intersubjetivo, chegando uma esfera que poderíamos chamar de espiritual – que, a princípio, nada tem de religiosa. Por este outro nível de manipulação nos referimos àquele exercido pelas esferas comunitárias de poder, pelo crivo da maioria ou da opinião dominante. Uma domi-nação que não chega a ser efetivamente material, mas simbólica, incutindo fardos e limites cujo alcance é ainda mais profundo e cujo farto é implacavelmente determinante. Trata-se,

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por ora, de uma sujeição social, na qual, como assinala Heidegger, o sujeito não pode mais ser “si-mesmo, os outros lhe retiram o ser. Os outros dispõem a seu bel-prazer sobre as coti-dianas possibilidades de ser do homem. [...] Decidido é somente o domínio dos outros, não surpreendente, despercebido e já assumido” (HEIDEGGER, 2012, p. 363). Nessa ausência de surpresas, o impessoal desenvolve uma verdadeira ditadura entre os homens, o que Heide-gger define no famoso § 27 de Ser e Tempo, obra capital de sua primeira fase de pensamento:

Gozamos e nos satisfazemos como a-gente goza; lemos, vemos e julgamos sobre literatura e arte como a-gente vê e julga; mas nos afastamos também da ‘grande massa’ como a-gente se afasta; achamos escandaloso o que a-gente acha escandaloso. A-gente, que não é ninguém determinado e que todos são, não como uma soma, porém, prescreve o modo de ser da cotidianidade (HEIDEGGER, 2012, p. 365).

Em tal processo de sujeição, somos progressivamente impelidos ao abandono da autonomia em prol do nivelamento do senso comum – aqui entendido como o pensamento predominante. Qualquer discurso que destoe da determinação do impessoal recebe o rótulo de reacionário, de perigoso. A maioria não é reativa, ao contrário, é redil, é ordeira e, por fim, manipulável. Um forte exemplo de sujeição social pode ser descrito pelo modo como os acontecimentos nos afetam: cada vez mais as notícias nos chegam “enlatadas”, prontas para o “consumo”. Curiosamente, quase trinta anos depois, o mesmo Heidegger (2) diria algo relati-vo a este tema, por ocasião do discurso Gelassenheit, publicado no verão de 1955:

Não nos iludamos. Todos nós, incluindo aqueles que, por assim dizer, são profissionais do pensar, todos somos, com muita frequência, pobres de pensamento (gedanken-arm); estamos todos facilmente ausentes de pensamento (gedanken-los). A falta de pensamento é um hóspede inquietante que no mundo de hoje entra e sai de todas as partes. Talvez porque hoje em dia tomemos notícia de tudo pelo caminho mais rápido e econômico e duvidemos no mesmo instante, com a mesma rapidez. Assim, um ato público segue a outro. As celebrações comemorativas são cada vez mais pobres de pensamento. Celebração comemorativa (Gedenkfeier) e falta de pensamento (Gedankenlosigkeit) se encontram e concordam perfeitamente (HEIDEGGER, 1994; 1959, p. 2, tradução nossa).

Daí a legitimidade daquele que provoca: “estamos numa sociedade obesa de infor-mação e anoréxica de reflexão”. Esta incapacidade de refletir não está, de modo algum, disso-ciada de uma igual incapacidade de integração. Os conhecimentos se difundem sob o prisma da unilateralidade: constitui-se um exército de “especialistas” altamente capacitados para o trato com o seu pequeno compartimento do saber, a sua gaveta encantada, ao mesmo tempo em que estão alheios a todo o restante universo do conhecimento. Tudo isso tem a ver com o movimento de uma sujeição camuflada. Tal sujeição, segundo Morin, significa que “o sujeito sempre julga que trabalha para seus próprios fins, desconhecendo que, na realidade, trabalha para os fins daquele que o sujeita”. E continua: “assim, efetivamente, o carneiro-chefe do re-banho julga que continua a comandar seu rere-banho, quando, na realidade, obedece ao pastor e, finalmente, à lógica do matadouro” (MORIN, 2002, p. 109).

Enquanto a modernidade pretendia cegamente abarcar o conhecimento da totali-dade, tornou-se refém de uma visão estanque de mundo. Daí o surgimento de perspectivas,

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mesmo no seio das ciências, capazes de aceitar a previsibilidade ou a reversibilidade dos acon-tecimentos – hoje enxergadas como um absurdo. Não é difícil refutarmos tal constatação e, para isso, basta que tomemos o exemplo da ação. Antes de tudo, agir significa iniciar um novo movimento. Toda ação, por sua vez, está inserida dentro de um contexto mais amplo, capaz de provocar reações em cadeia cuja previsibilidade também está fora do alcance dos sujeitos. Será sempre ação em conjunto, mediada pela constante interferência dos outros. A partir desta perspectiva, a ação faz com que a história esteja repleta de eventos e interrupções de processos. Isso representa a iniciativa humana. Cada ação afirma a singularidade do agente, mas, ao mes-mo tempo, reafirma as condições humanas, sobretudo os seus limites frente à irreversibilidade dos atos. O mesmo já era atestado pela sabedoria romana através da expressão: alea jacta est (a

sorte está lançada). Longe de significar qualquer apego ao âmbito do místico ou do

supersti-cioso, este postulado nos dá margens para entendermos a vida sob o foco de uma abordagem que também eles herdaram de outro povo, nesse caso, dos gregos, qual seja: o caráter trágico da ação.

A própria teoria da complexidade entra em diálogo com esta perspectiva quando trata a questão da reforma do pensamento. Morin parece chamar atenção para o fato de que, a partir do século XVII, instituiu-se no Ocidente certa ideia de ruptura entre a noção de racio-nalidade e os demais aspectos que constituem o ser humano. Desde então, o homem passou a ser entendido como o animal simplesmente racional, o homo sapiens sapiens, conforme a no-menclatura científica. Este discurso, contudo, viu-se amplamente fragilizado, nomeadamente após o advento do século XIX e a expansão das denominadas “teorias da suspeita”, entre as quais ganhou destaque o trabalho da psicanálise, com Freud e os seus sucessores, a obra filo-sófica de Nietzsche e a produção intelectual-reacionária do alemão Karl Marx.

A grande contribuição de Freud talvez tenha sido a “descoberta” do inconsciente como instância determinante na constituição do ser humano. Herdeiro direto de Freud, La-can daria continuidade no incremento da psiLa-canálise, chegando a afirmar a existência do in-consciente como um eu (je) que não apenas é anterior à própria consciência, mas que lhe dita o comportamento – embora este eu anterior não possa ser apreendido, senão pelo engano, pelo chiste, pelo ato falho e assim por diante. Entretanto, apesar de já constituir importante distanciamento da noção moderna de sujeito como patente dominante em todas as relações, Freud incide num erro, senão igual, ao menos semelhante ao de Descartes. Ora, se, para Descartes, este homem – que canta, que ama, que chora, que sorri – passou a ser considerado como o unicamente dotado de razão e, portanto, reduzido às suas estruturas racionais, ao

intellectus, o mesmo ocorre em Freud, de modo que apenas precisaríamos alterar o foco da

“racionalidade” para a “sexualidade”. O sujeito freudiano estaria novamente limitado ao âm-bito de uma abordagem cindidae unilateral, supervalorizando o biologicismo caracterizado pela instintividade.

A despeito do caminho percorrido por Freud, o século XX sofreu um ainda maior impacto na medida em que temas como a intersubjetividade, o papel e a limitação da lingua-gem e, é claro, a pseudo onipotência da ciência, cuja imparcialidade se firmara apenas como um mito, tornaram-se cada vez mais patentes, de modo particular numa Europa recém aba-lada pelo fenômeno da II Guerra Mundial. Nesse contexto, a crise da noção de sujeito gerou como consequência a acentuada tensão dos saberes, de tal modo que o próprio pensamento, outrora cultivado sobre as bases pretensamente sólidas da matemática cartesiana, viu-se em absoluta ruína.

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Aqui estaria inserida a “reforma do pensamento” idealizada por Morin (2002), que se dirigia não apenas à estrutura formal/conceitual da educação, mas à revitalização de toda “máquina” do conhecimento – o que envolve, notadamente, a maneira de se conceber o ato de educar na contemporaneidade, a relação ensino e aprendizagem, o modelo de trans-missão dos conhecimentos universalmente aceitos, etc. Reformar o pensamento significa, portanto, não tomar nada de pronto como sendo verdadeiro, desconfiar do óbvio e antepor o questionamento à resposta. Significa, ainda, a instauração de um novo paradigma, no qual a educação deva ser pensada como um processo autotransformador e, por isso, contrário a no-ções como a previsibilidade ou a reversibilidade dos atos humanos. Uma educação nova, que demanda a construção de autonomia, de uma individualidade aberta à relação com o outro, incerta, ambígua e, por fim, complexa.

A MÚSICA COMO ELEMENTO DE UMA NOVA INSTAURATIO MAGNA

A proposta de Morin (2003), nesse sentido, não é de forma alguma menos desafia-dora do que o próprio projeto cartesiano, ao seu modo, uma nova instauratio magna. Daí que, a partir daqui, a própria noção de sujeito deveria ser restaurada, como sugere o autor em seu artigo A noção de sujeito, publicado no volume Cabeça bem feita, livro de 1999:

O sujeito não é uma essência, não é uma substância, mas não é uma ilusão. [...] O reco-nhecimento do sujeito exige uma reorganização conceitual que rompa com o princípio determinista clássico [...]. É preciso conceber o sujeito como aquele que dá unidade e invariância a uma pluralidade de personagens, de caracteres, de potencialidades (MO-RIN, 2003, p. 128).

Como temos insistido, a compreensão de ser humano não deve mais estar restringi-da à concepção de racionalirestringi-dade vigente desde a modernirestringi-dade. Com o advento restringi-da psicologia, outros âmbitos da razão humana foram descobertos, como, por exemplo, a emoção, a afetivi-dade e a criativiafetivi-dade (GOLEMAN, 2001). Mas isso, simultaneamente, também não significa permitir que possamos reduzir a noção de subjetividade ou de sujeito ao nível do sentimental ou do particular, como se o subjetivo fosse, de algum modo, uma esfera dotada de menor va-lor em relação ao que constitui objetividade. Ao dizer de um sujeito plural e potencial Morin pretende destituí-lo daquela centralidade solitária na qual estava inserido:

A subjetividade individual, embora se considere o centro do universo, é efêmera, periférica, pontual. Mas é nesse “ponto” que interferem os processos organizadores e que emergem as qualidades da vida. Nesse sentido, o ponto pode ser mais rico do que os conjuntos que nele interferem, visto que é o foco das emergências. É nos indivíduos-sujeitos e por indivíduos-sujeitos que se operam todos os processos de reprodução. Portanto, o conceito de sujeito não deve ser considerado epifenômeno, mas sim ser inscrito ontologicamente em nossa noção de ‘vida’ (MORIN, 2002, p. 320).

Ora, diz Morin (2002), no que se refere à perspectiva do complexus, tudo ocorre de forma diferente: “reconhece-se que não há ciência pura, que há em suspensão história, política, ética, embora não se possa reduzir a ciência a essas noções. Mas, sobretudo, [...] a

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possibilidade de uma teoria crítica do sujeito” (MORIN, 2002, p. 340). Daí nos perguntar-mos: de que modo a música pode se relacionar com a real necessidade de construirmos uma teoria crítica sobre o sujeito? De que modo podemos enxergar alguma relação entre música e subjetividade na perspectiva do complexus? É neste ponto que um conceito se tornará signifi-cativo, como aponta Morin:

[...] o ser-sujeito nasceu num universo físico, que ignora a subjetividade que fez brotar, que abriga e, ao mesmo tempo, ameaça. O indivíduo vivo vive e morre neste universo onde só o reconhecem como sujeito alguns congêneres vizinhos e simpáticos. É, portanto, na ‘comunicação amável’ que podemos encontrar o sentido de nossas vidas subjetivas (MORIN, 2002, p. 327-8, grifo nosso).

Eis, pois, a resposta para nossas questões: no conceito de comunicação amável pro-curaremos encontrar o nexo irrecusável entre a construção contemporânea de um novo sujei-to, marcado pela interferência de instâncias que não se limitam ao simplesmente racional, e a música como este discurso que foge ao âmbito de qualquer estabilidade lógica. Se o espírito moderno de uma subjetividade racionalizada pairou sobre as ciências humanas e exatas ao longo dos últimos quatro séculos, o mesmo não ocorreu de forma tão determinante sobre as artes (aqui certamente devemos excetuar algumas das vanguardas do século XX, fatalmente influenciadas pelo paradigma racionalista, e mesmo alguns métodos de análise musical de viés estruturalista, ou que tomam por empréstimo o ideal positivista). Dentre elas elege-mos a música como exemplo por excelência. Apesar de, por várias vezes, ter se aproximado dos ideais reformadores com presença tão marcante nalguns movimentos e escolas, a música jamais se deixou sucumbir ao monopólio de um sujeito majoritariamente racional. Com raras exceções, a linguagem musical sempre procurou integrar criatividade e emoção, razão e sentimento, num movimento dialógico de ajustamento destes extremos. Não é vã, portanto, a afirmação segundo a qual a música “é uma forma arquetípica no inconsciente humano, imagem primordial e criadora, energia e configuração de traços que predispõem as pessoas a certas experiências, sentimentos e pensamentos” (ZUMTHOR, 1985, p. 7).

A partir desta capacidade de integração podemos aproximar aquilo que é próprio da linguagem musical e o esforço da teoria da complexidade por meio de sua proposta de reforma do pensamento; reforma que, aliás, prevê a reconstrução da antiga concepção de sujeito. Recor-dando a expressão de Morin, a música é capaz de construir uma autêntica e amável comunicação, esse espaço intermediador nas relações intersubjetivas, expandidas, por sua vez, ao encontro da natureza toda. Daí que, em meio aos elementos que possibilitam a interface comunicativa entre os humanos, sem nenhum medo podemos apresentar a música e seu papel tão pertinente. Neste fragmento, Hoy Hart consegue definir com maior propriedade o que entendemos pelo conceito de música: “[...] a música é o primeiro movimento de expressão do ser humano. Atrás da linguagem ou do canto há uma multiplicidade de expressões e evocações sonoras, das mais puras e sofisticadas às mais estranhas e primitivas” (HART, 2004, p. 98).

ACENOS À GUISA DE CONCLUSÃO

Com base em tudo o que dissemos, queremos justificar a tese de que a música, à semelhança das outras artes, mas, ainda, de maneira mais específica que as demais, com

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es-merado esforço resistiu a se sujeitar à primazia do modelo equacionador da subjetividade mo-derna, permanecendo como a “válvula de escape”, o ponto de insurgência contra o constante movimento de domínio da razão sobre os outros aspectos que constituem o ser humano – e nisso certamente encontra um ponto em comum com a religião. Em suas teses contra o racio-nalismo absoluto, o romântico filósofo Arthur Schopenhauer já havia aludido que a música é capaz de exprimir a mais alta reflexão numa linguagem que a própria razão não compreen-de plenamente, sendo que “todos os esforços, emoções da vontacompreen-de, tudo aquilo que se passa no interior do homem, e que a razão lança no amplo conceito negativo de sentimento, pode exprimir-se pelas infinitas melodias possíveis” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 236). Ainda segundo o mesmo autor, a música supera o conceito e o precede. Esta proposta, por si só, já conseguiria demonstrar a anterioridade da expressão humana em relação aos estaques modos de operação da racionalidade: “enquanto os conceitos contêm somente as primeiras formas abstraídas da intuição, como que a casca exterior tirada das coisas, e, portanto são, bem propriamente, abstrações, a música por sua vez dá o mais íntimo núcleo que precede toda formação” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 250).

Driblando o debate sobre a noção de significação em música, um debate que, aliás, reúne opiniões de diferentes vertentes, recordamos o que salienta o filósofo contemporâneo Vladimir Jankélévitch: “a música significa alguma coisa em geral sem jamais querer dizer algo em particular. [...] Tem isso em comum com a poesia e o amor e, até mesmo, com o dever: ela não é feita para que dela se fale, ela é feita para que se faça [...]” (JANKÉLÉVITCH apud NATTIEZ, 2005, p. 6). Trata-se de um assunto realmente polêmico. De nossa parte, contu-do, apenas gostaríamos de sinalizar a anteposição da linguagem musical em relação à lingua-gem formal do conceito e, desse modo, também em relação a todo o modelo consagrado pela filosofia do século XVII: a idade do primado da razão.

Tanto não queremos dizer que a música prescinda ao crivo da razão, quanto que dele se aproprie como único parâmetro de validade. Conforme assevera Silmara Marton (2005), a música torna possível ao homem adentrar no seu universo interior como ser de reconhecimento do seu próprio choro, do seu riso, de sua “fome”. Suas formas estruturais se movem de modo a provocar na escuta um jogo entre o real e o imaginário, fazendo com que o ouvinte projete imagens, crie e recrie personagens, através de um alargamento de sua sensibilidade estética. A experiência estética, mediada pela música, permite ao ser humano o confronto consigo mesmo, com seu ser mais próprio, um verdadeiro mergulho para dentro de si, sua constituição, seus valores. Nos termos de Albano (2007, p. 21), “a exploração desse universo é uma aventura que reconcilia o ser humano consigo mesmo”.

Este sujeito novo, por ora descoberto, mostra-se como o vasto horizonte de con-frontos que se integram no interior do próprio ser humano, em sua constituição psicofísica e em suas vivências. Dessa forma, a transcendência necessária à sua emancipação implica numa constante descoberta de si mesmo e, por conseguinte, dos outros com os quais convive e compartilha o mundo.

Ao lado de outras correntes, a teoria da complexidade propôs resgatar o caráter integrador das relações, bem como a compreensão de um sujeito que não está simplesmente limitado ao âmbito da razão, mas que, ao contrário, é capaz de equacioná-la às suas demais dimensões. Pautado unicamente pelo crivo da razão, o homem se torna refém de si mesmo, de uma crença imponderada que o faz escravizar a todos com os quais venha a se relacionar. Daí a necessidade de repensarmos os paradigmas e as estruturas que determinam o comportamento

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de nossa época, em nada diferente da lógica materialista e “objetificante” que pairava sobre o século XVII, tornando-o tão obscuro quanto a Idade Média. Partindo do exemplo da música, o sujeito novo do século XXI deve estar aberto à integração de suas diferentes instâncias – a criatividade, a emoção, a razão, a fé – de modo a tomá-las como subestruturas que compõem o todo complexus ao qual denominamos ser humano:

homo-sapiens-faber-politicus-simbolicus-demens-complexus. Este é o caminho para o qual nosso breve texto procurou apontar.

MUSICO, ERGO SUM: CONCERNING THE RELATIONSHIP BETWEEN THE SUBJECT AND MUSIC IN THE PERSPECTIVE OF COMPLEXITY

Abstract: this study discusses the relationship between music and the subject from the perspective

of complexity theory, coined by Edgar Morin in the late 20th century. Thus, this work intends to

investigate the environment in which will constitute the modern conception of subjectivity, aiming at point out its limits in face of what we think are the challenges of contemporary times. As a larger objective, music will be elected as an alternative route of integration in the different spheres that constitutes the human-being.

Keywords: Subject. Music. Complexity. Referências

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Referências

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