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O texto visual: processos de criação e fabulação nos desenhos infantis

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA

Giseli Day

O TEXTO VISUAL: PROCESSOS DE CRIAÇÃO E FABULAÇÃO

NOS DESENHOS INFANTIS

FLORIANÓPOLIS 2019

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Giseli Day

O TEXTO VISUAL: PROCESSOS DE CRIAÇÃO E FABULAÇÃO

NOS DESENHOS INFANTIS

Tese submetida ao Programa de Pós- Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina para obtenção do título de Doutora em Literatura.

Orientador: Prof. Dr. Jair Tadeu da Fonseca

Florianópolis 2019

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Giseli Day

O texto visual: processos de criação e fabulação nos desenhos infantis

O presente trabalho em nível de doutorado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros:

Profa. Ângela Maria Scalabrin Coutinho, Dra. - Examinadora Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Prof. Wladimir Antônio da Costa Garcia, Dr. - Examinador Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Profa. Júlia Terra Denis Colaço, Dra. - Examinadora Secretaria Municipal de Educação- Florianópolis

Profa. Regina Ingrid Bragagnolo, Dra. - Suplente Núcleo de Desenvolvimento Infantil (NDI – UFSC)

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de doutora em Literatura.

____________________________ Prof. Marcio Markendorf, Dr.

Coordenador do Programa

____________________________ Prof. Jair Tadeu da Fonseca, Dr.

Orientador Florianópolis 2019 Jair Tadeu da Fonseca:274186 50604

Assinado de forma digital por Jair Tadeu da Fonseca:27418650604 Dados: 2019.09.30 14:13:38 -03'00' Marcio Markendorf:9157 3483168

Assinado de forma digital por Marcio

Markendorf:91573483168 Dados: 2019.09.30 20:59:44 -03'00'

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Ao Wladimir Garcia, pela sensibilidade e respeito com os quais conduz processos de criação.

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AGRADECIMENTOS

Se nos constituímos através do outro, agradeço pela presença neste rito de passagem que me singulariza: Ao Wladimir, minha ad-miração, por trazer encantamento e potência de vida para meu processo de criação.

À Malu, gerada e nascida em meio ao processo de doutoramento, por ter me escolhido como sua mãe.

Ao André e à Doris, pela sustentação. Ao Cristian e à Natália, pelas leituras e conversas produtivas ao longo do processo de escrita.

À Iris, Cris, Carlinha, Fran, Naná, porque sou mais forte quando estamos juntas. À Juju, May, Renata, Priscila, Érica,

pela presença e incentivo. À Rosi, Julia, Angela, pela colaboração na qualificação.

À Juliete, Moema, Raquel, pela acolhida na etapa final. Ao NDI, pelos 11 meses de afastamento concedido.

Ao Reefifi e ao Vipassana, por assegurarem minha saúde.

“Mas você - eu não posso e nem quero explicar, eu agradeço.”

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“O trajeto é a minha obra.” Paulo Bruscky

(1978)

“O papel do artista não é criar uma obra, mas criar a criação.” Nicolas Schoffer

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RESUMO

DAY, Giseli. O texto visual: processos de criação e fabulação nos desenhos infantis. 2019. 256 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Literatura, Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.

A pesquisa é um estudo de fronteira entre Educação Infantil e Literatura que trata o desenho infantil pelas vias da filosofia da diferença de Deleuze e Nietszche e analisa o processo de criação e fabulação infantis. Entende o desenho como um texto visual capaz de gerar ficção e fabulação, linha de desterritorialização que se direciona para a vida e tem no desenvolvimento do próprio processo de desenhar sua potência geradora. Desenhar fabulações por meio das ficções do real seria a produção das diferenças no ato de narrar a própria vida enquanto potência. Pautado em Barthes, toma o texto como campo metodológico e os rastros, conceitos e imagens como dados para compor a análise. A tese questiona o processo de autoria e transgressão na produção dos desenhos e indica a importância dos afetos para o processo de criação, destacando o papel do professor frente aos processos de criação dos infantis. Conceitos como os de representação, simulacro, texto, tempos, arte, imagens e infância são retomados para compor a malha de sentidos que estrutura a pesquisa que encontra na possibilidade de responder questões estéticas no desenho um caminho para potencializar o papel fabulador do ato de desenhar.

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ABSTRACT

DAY, Giseli. The visual text: creation processes and fabulation in children’s drawings. 2019. 256 f. Thesis (Doctorate in Literature) – Programa de Pós-Graduação em Literatura, Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.

The research is a frontier study between Earlier Childhood Education and Literature that treats children's drawing through the philosophy of difference of Deleuze and Nietszche and analyzes the process of child's creation and children's fable. It understands drawing as a visual text capable of generate fiction and fabulation, line of deterritorialization that is directed towards life and has in the development of the process itself of design its generating power. To draw fabulation by means of the fictions of the real would be the production of differences in the act of narrating one's life as a power. Guided in Barthes, it takes the text as a methodological field and it's traces, concepts and images as data to compose analysis. The thesis questions the process of authorship and transgression in the production of the drawings and indicates the importance of the affections for the creation process, highlighting the role of the teacher in the processes of creation of the children. Concepts such as representation, simulacrum, text, times, art, images and childhood are revisited to compose the mesh of meanings that structure the research that finds in the possibility of answering aesthetic questions in drawing a way to enhance the drawing act. Keywords: Children's drawing. Fabulation. Creative process.

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Lista de Figuras

Figura 1 -René Magritte. "O Império das Luzes". Óleo sobre tela - 146x114cm 1954.

Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique, Bruxelas ... 14

Figura 2- Sala de Jantar de Magritte. Imagem arquivada pela autora em 2016 ... 16

Figura 3 - Les Promenades d’Euclide, 1955. (O passeio de Euclides). René Magritte (Belgica, 1898 – 1867). Óleo sobre tela, 162x129. The Minneapolis Institute of Art .... 19

Figura 4 - Desenho infantil e intensidade do traço. Arquivo pessoal, 2014. ... 21

Figura 5- Desenho infantil, linguagem e expressividade. Acervo pessoal, 2012. ... 23

Figura 6 - Desenho infantil: Livre? Expressão? Acervo pessoal, 2018. ... 25

Figura 7- Desenho não figurativo: texto e caos. Arquivo pessoal, 2013 ... 30

Figura 8 – O corpo em massa. Claudia Rogge, 2006. Arquivado a partir do endereço: https://ctrlbarbara.wordpress.com/tag/corpo/ ... 33

Figura 9- Claudia Rogge, 2006 arquivado a partir do endereço: https://ctrlbarbara.wordpress.com/tag/corpo/ ... 33

Figura 10 Processo de Feltragem com Agulha - https://br.pinterest.com/pin/437975132497250242 ... 45

Figura 11 - Andy Warhol e Jean-Michel Basquiat, Untitled (Dois Cães), assinados por ambos os artistas no verso, tinta acrílica e silkscreen na tela, 80 por 106 polegadas 203.2 por 269.2 cm. Executado em 1984. Est. US $ 600 / 800.000 ... 47

Figura 12- Relação entre os desenhos infantis semelhantes e os azulejos que reproduzem imagens em série – arquivado a partir do endereço: https://pentagonoblog.wordpress.com/tag/semana-do-folclore/ ... 49

Figura 13 - O outro que me constitui. Fonte: https://www.ijep.com.br/ ... 54

Figura 14 - Processo de criação e diferenciação de si. Fonte: https://paulorogeriodamotta.com.br/ ... 57

Figura 15 - Salvador Dali (1937). in Tate Modern de Londres. Óleo sobre tela. ... 60

Figura 16 - JOAN MIRÓ (1922) La Granja. Oléo sobre tela (123,8 X 141, 30). National Gallery of Art, Washington ... 64

Figura 17 - Marcel Duchamp (1917). A fonte, Milão, Coleção meu ip de Arturo Schwartz ... 67

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Figura 18 - WASSILY KANDINSKY(1911). Impression III. Óleo sobre tela (77,5 X 100,0 CM). MUNIQUE, THE STADTISCHE GALERIA IM LENBACHHAUS ... 72 figura 19 - Joan Miró. O voo da libélula em frente ao sol (1968). oleo sobre tela (173, 9 x 243,8 cm). coleção pessoal paul mellon ... 73 Figura 20 - Dom quixote. Pablo Picasso (1955) ... 73 Figura 21 – O desenhar infantil usando tinta. Acervo pessoal, 2013 ... 74 Figura 22 - Vertical Churches, Richard Silver. Fonte: https://zupi.com.br/fotografias-panoramicas-de-igrejas-por-richard-silver/ ... 78 Figura 23- Joana Corona (2013) Biblioteca de resquícios. Fonte: https://joanacorona.wordpress.com/ ... 92

Figura 24- Rastros luminosos. Fonte:

https://college.canon.com.br/tutoriais/fotografando-rastros-luminosos-55 ... 93

Figura 25- Ballet Giselle. Fonte:

http://www.mundobailarinistico.com.br/2013/11/giselle.html ... 100 Figura 26 – O ângulo compõe a imagem. Acervo sem identificação. ... 103 Figura 27- Imagens retiradas do filme Um cão andaluz (1928), de Dali e Bunuel. Fonte: http://www.adorocinema.com/... 108 Figura 28- Desenho e palavra. Desenho infantil. Acervo pessoal, 2017. ... 110 Figura 29Arthur Bispo do Rosário e Obra. Foto: Divulgação/Festival Internacional de Artes de Tiradentes ... 127 Figura 30 - Um homem com uma câmera (Documentário). Vertov, 1929. Fonte: https://comunicacaoeartes20122.wordpress.com/2013/02/19/dziga-vertov/. Fonte do filme: https://www.youtube.com/watch?v=QZoddf7_GmQ ... 131 Figura 31- impressão de mãos feitas por caçadores-coletores há 9mil anos na "Cova das mãos", Argentina. Fonte:Sapiens: uma breve história da humanidade. (Yuval Noah Harari) ... 136 Figura 32 – Ecce Homo, de Elias Garcia Martines antes e após restauração feita por Cecilia Gimenez. ... 140 Figura 33 – Gustavo Von Ha. Não-Pintura 28 TA, 2016. Óleo sobre tela. 16 x 22 cm . 142 Figura 34 - Processo de apropriação de esquema visual para produção de imagem. . 145 Figura 35 - Jackson Pollock, One (Number 31), 1950 Óleo e esmalte sobre tela não revestida, 269,5 x 530,8 cm. ... 149

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Figura 36 – Jackson Pollock, 1950. Fonte:

https://www.recantodasletras.com.br/poesiassurrealistas/1409831 ... 150

Figura 37 - Desenho sobre Gelo - acervo pessoal, 2017 ... 152

Figura 38 - Girafas bebendo água - Revista Pátio Educação Infantil, ago/nov de 2004 ... 170

Figura 39 - Girafa bebendo água após mediações – revista Pátio Educação Infantil, ago/nov de 2004 ... 171

Figura 40 - Primeiro uso de rolinho para espalhar cola. Acervo pessoal, 2008. ... 172

Figura 41 - Desenho, figura e fundo. Acervo pessoal, 2017 ... 173

Figura 42 - Follow the colours - Os Gêmeos - Documentário Cidade Cinza ... 182

Figura 43 - JP II - 2015, Gustavo Von Ha, tinta automotiva sobre lona, cercada de cobre esmaltado e bando de ferro ... 193

Figura 44 - Descubra ideias sobre Chuva De Benção - https://br.pinterest.com/pin/641763015624305047/ ... 196

Figura 45 - https://www.soscuriosidades.com/wp-content/uploads/2017/09/nuvens-cumulonimbus.jpg ... 196

Figura 46 - Tipos de Nuvens. Fonte: Figura 46 - tipos de nuvens. Fonte: https://www.soscuriosidades.com/nuvens-tipos-caracteristicas-curiosidades ... 196

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Sumário

Lista de Figuras ... 10

Sumário ... 13

Introdução ... 14

PARTE 1 – PLANOS, PROJÉTEIS ... 37

1 - A escrita da tese como uma experiência de criação ... 38

2 - A filosofia da diferença, meu lugar de fala ... 41

3- Autoria e representação nos desenhos infantis ... 47

4 - Sujeito e individuação ... 53

5 - O processo de individuação ... 57

6- Cultura, cultivo e arte ... 62

7 - Método da Pesquisa ... 78

8 - O trato com o objeto ... 82

INTERMEZZO ... 85 PARTE 2 – TRATATIVAS ... 90 1 - Rastros ... 91 2 - Rastros e Afetos ... 97 3 – Vestígios de pesquisa ... 102 4 - Infância ... 111 5 - Imagem... 119 6 - O contemporâneo ... 127

7 – O desenho dos infantis ... 133

8 – Representação e Simulacro ... 139

9 – Gesto ... 148

10 - Texto visual e desenhações infantis ... 156

11 – Desenho infantil e problemas estéticos ... 168

12 - Professor, transgressão & autoria ... 174

13 – Processo criativo ... 185

TEXTO, TECIDO SEM FIM ... 199

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Introdução

Figura 1 -René Magritte. "O Império das Luzes". Óleo sobre tela - 146x114cm 1954. Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique, Bruxelas

Como iniciar uma produção textual por uma imagem? Como torná-la texto, ouvir o que ela nos diz? Do mesmo modo, como iniciar um texto? Como convidar o leitor a nos acompanhar numa leitura? Embora tenhamos diversas regras e receitas capazes de guiar e normatizar os modos de produzir um texto, pergunto com Barthes: por onde começar?

O início dessa escritura, resultado de um movimento formativo profundo como é considerado um doutoramento, talvez seja aquele que envolve o leitor, não exatamente em sua temática e tema, em seu objeto e dados, mas em suas ambiências e sutilezas, em seus sabores e suores, nas sensações que o cenário disponibiliza antes que se tenha acesso ao enredo. Foi mobilizada pela questão de situar o leitor neste nevoeiro que envolve, gela e nubla a paisagem de escrever uma tese que decidi iniciá-la pelo quadro intitulado “O império das luzes”, de Magritte.

Nesse sentido, recorro a Barthes que reivindica com a proposta de "saber com sabor" o prazer do texto. O olhar do Barthes-escritor que renuncia as leituras

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sistemáticas, leais às verdades linguísticas, históricas ou sociológicas, e busca em sua própria produção, um texto desejado e desejante, um texto com gosto, com o gozo sensual dos signos, toca-me. Toca porque a dor fez parte do meu processo de escrita, a dura sensação de externalizar e transformar em texto aquilo que pretendo dizer, que estava tão bem acomodado no interno, sem classe ou acordos, e que agora precisa ser socializado, expressado e codificado numa aliança entre esses domínios. Um dentro e fora que sutura limites na mesma medida em que os rasga.

Embora minha escrita distancie-se largamente daquela dos escritores, poetas e artistas, talvez ela se aproxime, ainda que timidamente, da dos sonhadores. Daqueles que são considerados “sujeitos comuns”, com sua “vida acadêmica também comum”, mas que, de algum modo, procuram sensibilizar(-se) para a presença de uma subversão do real. Criadora, uma delicada ousadia que a faz descaber nas normatizações e ampliar potências e universos.

Barthes me instiga a dar sabor à escrita acadêmica, e também a ver com prazer aquilo que está para além do esperado: o mistério, o imprevisto, o improviso. Pensar a vida não pela verdade, mas pela experiência do viver. Talvez esse seja o motivo que tenha me aproximado de artistas como Magritte e seu quadro que abre essa sessão textual. A proposta do artista é sutil e delicada, mas, na mesma medida, afrontosa. Encontra em Barthes a escritura como instigadora da pulsão da curiosidade, e é assim que compreendo a imagem, pois a considero “o império das luzes” um texto visual, capaz de disponibilizar uma narrativa pulsante. Uma narrativa própria que não precisa ser descrita ou traduzida para outra linguagem ao se buscar uma compreensão sobre ela, pois ela, por si só, diz.

Penso que muito já foi dito sobre as imagens, seus comos e porquês estão disponibilizados por toda a parte. Convido a senti-las, então. Sentir, aqui, como um verbo intransitivo, que envolve a capacidade de percepção, consciência, sensibilização dos sentidos. Sentir a imagem perpassa pela fruição, contudo não se limita a ela, pois não se resume a contemplar e sorver, tendo em vista que pressupõe as inferências, as experiências, a subjetividade, a possibilidade de individuação de cada sujeito que a acessa.

Quando se trata de imagem, literatura e demais linguagens artísticas, as inferências, muitas vezes, resumem-se a contextualizar o que é visto. Citam-se,

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(algumas vezes com certa ostentação intelectual) autores, épocas, situações sócio-históricas. Descreve-se o plano visual como quem mata uma charada, no entanto, concordo com Magritte: “desfazer o mistério da imagem produzida por um artista utilizando-se de descrições ou interpretações é matar não bem a charada, mas a própria imagem”. Para o artista a pintura deve ser poesia e a poesia, diria Heidegger, faz apelo ao mistério. Mistério, essência da verdade. Mistério que sugere experienciar a leitura do texto visual e não apenas de seu contexto. Embora os elementos que circunstanciam uma imagem sejam importantes para sua compreensão como fenômeno e objeto, nem sempre dão conta de estabelecer um diálogo que aponte para as conexões com o mundo, o real, os olhares, a rede de forças da qual faz parte, a intensidade como toca o expectador, a relação que o expectador produz, que o artista desejou.

Magritte, “sujeito comum” incomum. Ambíguo até em sua personalidade: vanguardista e popular. Um dos maiores nomes do surrealismo sem considerar-se surrealista. Os quadros altamente subversivos para a época foram criados por um morador de um bairro residencial de classe média que produzia suas obras em sua pequena sala de jantar.

Pintava objetos do cotidiano, a maioria disponibilizada em seu próprio entorno: pente, chapéu, pão, maçã. O que diferenciava suas produções? Não era apenas a técnica ou a perspectiva com a qual os olhava, mas o modo como traduzia em imagens um real ficcionalizado. “Quero mudar como vemos as coisas comuns a nossa volta” dizia. Suas obras nos desafiam porque não são condicionadas à realidade, elas a criam.

O movimento estético, artístico e literário da década de 20 nomeado surrealismo foi influenciado por teorias psicanalíticas freudianas que enfatizavam o inconsciente no processo criativo e tinham como objetivo, se podemos assim afirmar, a desconstrução do pensamento racional, operacional, cartesiano, lógico. O artista, entretanto, não se considerava encaixado nessa escola porque

Figura 2- Sala de Jantar de Magritte. Imagem arquivada pela autora em 2016

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não tomava o inconsciente como chave interpretativa: “eu odeio quando meus quadros são interpretados em termos do inconsciente ou em termos freudianos”. Não simpatizava com a psicologia porque, em sua opinião, ela tentava explicar o mistério, mas assim fazendo, destruía-o. Para o pintor, “o único mistério é o mundo”.

Sinto que muitas formas de ver e entender o desenho infantil destroem não apenas seu mistério como objeto produzido por um estrangeiro, um infantil, mas, principalmente, destroem porque produzem recortes de compreensão que não permitem tomadas por outros ângulos. Desenhar é desenvolver-se graficamente. Ponto. Perdem-se estéticas, olhares, entre-lugares. Retira-se a possibilidade de restaurar os poderes da imaginação por meio do processo criativo de visualidades. Talvez por isso haja aproximação entre minha perspectiva de compreender o desenho infantil e as propostas magrittianas que buscavam romper com a lógica, ir para além do que a psicologia disponibilizava como conhecimento consolidado e utilizar-se do cotidiano para renovar as possibilidades de compreensão e criação do real, com suas potências linguísticas e imaginativas. Acessar a magia presente no real, o mistério. Ver, desver, rever, criar. Superar a contradição entre sujeito e objeto, principalmente quando tratamos de uma pesquisa acadêmica é, de certo modo, subversivo e extra-ordinário. Talvez seja preciso repensar as explicações, representações e interpretações sobre o mundo. Outros modos de produzir teoria, fazer pesquisa. Deleuze nos indicou possibilidades importantes nesse sentido; Magritte também.

“O Império das luzes” é um exemplo da sua obra, insólita, que me toca: à primeira vista o quadro parece simples, talvez até simplista. Assim como o autor, que poderia passar despercebido se considerarmos sua vida dentro de um padrão cotidiano esperado. Havia no entanto, o que ser dito, padrões a serem quebrados, vida para além da norma, para além do realismo artístico. O que busco no meio acadêmico é isto: vida. Não suas explicações, mas sua presença. Fica fácil apaixonar-se por Deleuze, Nietzsche, Barthes. Autores da vida.

Quanto ao quadro, como acessá-lo? Primeiro, vendo-o. O que precisa ser visto? Como devemos ver? Magritte, assim como muitos outros artistas, responderia: “Como uma criança”. E o que há de tão maravilhoso no olhar infantil? O que há nesse modo de ser humano que seduz os artistas e autores envolvidos em processos criativos? Não posso explicar, para não matar a

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charada e, com ela, o que encanta nesta reflexão. Posso, todavia, disponibilizar uma imagem que permite passear com meu olhar por uma possibilidade de resposta. Trago a imagem, descrita por Magritte, para ser imaginada: aquela em que o olhar infantil se ilumina na “primeira vez que encontra uma realidade fora de si mesma. Eu tenho o mesmo estado de inocência que uma criança que acha que, do berço, consegue pegar um pássaro no céu”. Ah, os artistas! Ah, os poetas! Mostram-nos a realidade com tanta presença que nos tocam, como fazem as experiências.

Magritte questionava a diferença entre o real e sua representação, o usual e um novo significado para os objetos familiares, mas não se considerava surrealista porque, em sua opinião, pintava um “realismo mágico”. Um realismo mágico é o que encontro quando me preencho de vida, quando descubro ou crio o prazer no texto. Ter acesso ao dia e à noite na mesma imagem está, não no plano do possível, mas no plano do real, mágico, misterioso, e muitas vezes morto pelo método e conteúdos a serem ensinados, pela verdade acadêmica.

Magritte jogava com suas imagens para traduzir a ideia de que a linguagem não é confiável, mas escorregadia, traidora, fugidia. Não é possível confiar no que se vê, nem no que se lê. “C´est non a pipe”. Sem qualquer arrogância teórica, sua arte indaga a tal “lógica da representação”. O questionamento linguístico, talvez amparado pelo seu interesse por filosofia, coaduna a ideia de que “a poesia existe na medida em que há meditação sobre a linguagem e, a cada passo, reinvenção desta linguagem” (D’ELSA, 1942, p. 14 apud ARBEX, 2007, p. 147).

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Figura 3 - Les Promenades d’Euclide, 1955. (O passeio de Euclides). René Magritte (Belgica, 1898 – 1867). Óleo sobre tela, 162x129. The Minneapolis Institute of Art

Tomemos “Les promenades d’Euclide“, uma das telas fundamentais de Magritte, versão aperfeiçoada de uma outra anterior, “La

condition humaine“. A cortina pesada alude a um cenário onde algo

vai ser “representado”. São estas as dramatis personae: em primeiro plano além da cortina o cavalete e a larga vidraça. O cavalete é posto em grande destaque no conjunto: sujeito e protagonista em função do qual o ambiente — inclusive a paisagem — subsiste; um dos objetos-símbolos capitais do ofício de Magritte pictor. Este o secciona para sobrepor à tela original uma segunda, ao mesmo tempo libertada dele e integrada na parte inferior da vidraça, que corresponde à janela dividindo o espaço nos quadros dos antigos pintores flamengos. Em segundo plano a torre, o arvoredo, o casario, duas minúsculas figuras isolando-se numa avenida deserta; e a linha do horizonte demarcada com rigor. Domina a tela um céu nuvioso. Todos esses elementos reunidos em absoluta consciência criam uma profundidade especial a que o espírito adere: texto de poesia ótica, não-literária. O seccionamento de duas partes do cavalete, a rarefação da segunda tela, a infinitude da perspectiva da alameda, que poderia remontar a Van Eyck ou Memling; a sobriedade da linguagem cromática em suas dominantes marrom, verde, branco e cinza, a justeza do desenho paciente, tudo isso forma uma atmosfera poética onde a mais alta fantasia se submete à planificação. O astro subterrâneo levanta-se, e, para maior segurança do seu itinerário, assume a ordem, a régua

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e o compasso, determinando relações de surpresa num contexto lógico de objetos familiares. Ajunte-se a isto, também de acordo com a linha dos antigos flamengos, a notação do silêncio, do respiro, da pausa funcionando como dramatis personae.

O modo com que lidava com palavra e imagem (sem relacioná-las diretamente) indica uma associação não hierárquica ou resumida a traduzir uma linguagem para outra. Pensando a partir de Barthes, o significado da imagem produzida estaria mais próximo da representação psicológica de uma coisa e não da coisa em si. O artista afirmava que não pintava a mesa, ou a representação de uma mesa, por exemplo, mas sim a sensação que ela lhe causava. O tratamento realista que disponibilizava às imagens permitia o uso de processos de ilusão que contrastavam a representação realista e a atmosfera irreal contida nos conjuntos produzidos, como vemos no quadro apresentado por Murilo Mendes. Suas obras são consideradas metáforas apresentadas como representações realistas através da justaposição de objetos comuns, porém de um modo impossível de ser encontrado na vida real, como o dia e a noite presentes concomitantemente em “O Império das Luzes”. Criar a própria realidade por meio de suas pinturas, ao invés de copiá-la, nos interessa na medida em que entendemos a arte como resistência simbólica.

Nesse sentido, utilizar uma imagem como texto perpassa a ideia de não hierarquizá-la frente à palavra. O intuito não é o de utilizar-se de outra linguagem para expressar o mesmo pensamento, mas acessar a ideia disponibilizada pela imagem, lendo-a, produzindo inferências, sem retirar-lhe totalmente o mistério. Assim, não pretendo descrever as imagens apresentadas nesse texto nem ilustrar o que está escrito e sim beber nas fontes imagéticas para que tenhamos nossos olhares hidratados por uma maneira não habitual (porém real) de acessar o mundo. Incomum, no sentido de se opor às normas, às regras, à tradição, não no sentido de negá-las, mas de buscar outros caminhos de acesso para o conhecimento e para a vida.

Para pensar as imagens, envolvo-me com os desenhos produzidos por infantis, por crianças muitas vezes sem fala, por imagens muitas vezes sem figuração.

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Figura 4 - Desenho infantil e intensidade do traço. Arquivo pessoal, 2014.

O desenho infantil produzido em instituições educativas por crianças pequenas e bem pequenas tem se mostrado como uma proposta recorrente no processo educativo institucionalizado1 das infâncias. Em muitos

estabelecimentos voltados para a educação infantil, o desenho converte-se em uma prática pedagógica diária, torna-se central e, até mesmo, obrigatório, no dia-a-dia dos pequenos. Considerado pelas professoras e demais adultos2 como

um documento capaz de dar visualidade ao processo educativo dos infantis, com certa constância, mede-se – mesmo que veladamente – o desempenho de professoras e crianças pelos registros desenhados. Ele desponta quando o conhecimento historicamente acumulado e disponibilizado para os infantis3

1 Sem ignorar o movimento de desescolarização que tem tomado corpo nos últimos anos, esta

tese pretende ter o objeto nas ações pedagógicas que acontecem no interior das instituições educativas que visam a educação coletiva das crianças de 0 a 5 anos.

2 Neste trabalho o termo “adulto” refere-se aos adultos que estão relacionados (in)diretamente

à ação educativa da professora, como os responsáveis pela direção e coordenação, demais professoras do estabelecimento de ensino, familiares das crianças que compõe o grupo de regência. O termo “professora” refere-se ao adulto com formação específica para produzir o ato educativo nas instituições para a infância.

3 Tratar as crianças como infantis indica uma compreensão de criança não em si mesma, sem,

no entanto, ser descolada de si. Conceituar a criança, mesmo a que está inserida num contexto institucional de educação ou família, como aluno ou filho por exemplo (criança-função/função-criança), enfatiza sua relação com o outro (o professor, os familiares) e lhe torna dependente deste para a compreensão adequada, ou seja, o foco fica dentre os sujeitos, não nos próprios sujeitos. Quando trato apenas como “criança”, posso correr o risco de tomá-la abstratamente e compreendê-la fora de um coletivo temporal, espacial e corporal que contribui para constituir. Por isso, pensar a criança como infantil, coloca esses seres humanos recém-chegados numa perspectiva de inserção que sugere aproximações universais e singulares com seus pares.

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precisa ser de algum modo, mensurado, visto que documenta tanto a ação pedagógica quanto aquilo que a criança alcançou do conteúdo disponibilizado pela professora. O desenho serve também para isso, mas seria esse o alvo a ser atingido quando se desenha na infância? Que processos criativos poderiam se apresentar aí? Que força ativa e intensidade de vida estaria ali disponível para ser acessado pelos adultos? Que mistério estamos deixando de vislumbrar?

Desenhar tornou-se uma ação deveras naturalizada pela sociedade ocidental. Parece factual (e natural) que toda criança desenhe. E que o faça nas instituições educativas. Se toda criança “naturalmente” desenha, porque ensinar desenho na Educação Infantil? O que precisa ser ensinado/aprendido? Em última análise, o desenho como lócus expressivo pode ser ensinado? Essas e tantas outras perguntas poderiam ser realizadas a fim de corroborar na discussão acerca da importância do desenho na educação infantil e da necessidade de a professora aprender a ler o texto visual desenhado por crianças. Além disso, trazem à tona outras questões: que máquina de leitura a-significante instala-se aí? O que nos força a pensar esse corpo/corpus caótico? Que relação do desenho dos infantis com a ficção e com a literatura é possível estabelecermos? Qual forma de narratividade está aquém e além da experiência do in-fans? Pensa-se a problemática a partir não mais de um olhar que procura evidenciar o que a criança ainda não faz, ou tece comparativos indicando o que deve ser considerado uma criança “normal”, e sim a partir das múltiplas possibilidades humanas.

A educação infantil, oficializada há mais de 20 anos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) como a primeira etapa da educação básica4, tem

sido um dos objetos de estudo da Pedagogia da Infância, área que tem se consolidado como um campo de conhecimento voltado para o saber sobre, para e com as crianças, infâncias e suas conjunturas. Alguns termos utilizados nesse campo, embora muito discutidos, ainda se encontram num terreno de disputa na educação da infância: ensino/educação, criança/aluno, escola/instituição educativa. Até os dias atuais afirmativas feitas há quase 20 anos, como as de Rocha (1999, p. 61-62), incitam reflexão sobre as delimitações desse campo:

4 O documento define como objetivo da educação infantil “o desenvolvimento integral da

criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade” (BRASIL, 1996).

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enquanto a escola se coloca como espaço privilegiado para o domínio dos conhecimentos básicos, as instituições de Educação Infantil se põem, sobretudo com fins de complementariedade à educação da família. Portanto, enquanto a escola tem como sujeito o aluno, e como objeto fundamental o ensino nas diferentes áreas, através da aula; a creche e a pré-escola tem como objeto as relações educativas travadas num espaço de convívio que tem como sujeito a criança de 0 a 6 anos de idade [grifos da autora].

Cada concepção e modo de definir/nomear o conhecimento produzido sobre a infância e sua educação traz em si e consigo um meio de compreender e lidar com a expressividade e o desenho infantil. Principalmente nos últimos 30 anos, após a nova constituição brasileira ser promulgada – e com ela, a educação convertida em direito isonômico – a liberdade de expressão e a democracia passaram a ser evidenciadas, tanto nos documentos oficiais quanto em projetos educativos. É possível perceber uma ampliação significativa nas pesquisas sobre a infância a partir desse período bem como o interesse pelas

expressões singulares das crianças. Os modos de expressividade infantil

passam a assumir o papel de objeto de pesquisa em várias universidades brasileiras e diferentes linhas teóricas.

Figura 5- Desenho infantil, linguagem e expressividade. Acervo pessoal, 2012.

Os estudos pedagógicos contemporâneos sobre a infância e suas instituições educativas passam, então, a realçar o desenho como campo

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expressivo na medida em que se intensificam também os estudos sobre Reggio Emilia e as múltiplas linguagens infantis (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 1999)5. Até então, a maior parte do conhecimento adquirido acerca do desenho

advinha da psicologia tradicional e, em menor medida, embora semelhante importância, dos estudos da arte.

A Escola Nova foi um movimento que influenciou teóricos da educação e da infância que buscavam alternativas para superar o ensino de desenho tradicional. O escolanovismo de Rui Barbosa, Dewey, Mario de Andrade, Cizek, inaugura um modo de olhar: pelo viés da expressividade. O novo ângulo de compreensão sobre o desenho infantil retirava o foco da técnica fria que educava apenas o traço, no ensino tradicional, e passava a dar ênfase à expressão:

Ela [a criança] não pode ser submetida a um rígido curso de educação técnica externo. Fiquem os adultos para um lado e não imponham a nenhuma criança suas ideias e métodos exclusivos para marmanjos. À criança deve ser deixada a possibilidade de escolher o material com que exprimir-se. A experiência com o material escolhido deve ser levada até o amadurecimento de acordo com o ritmo próprio de seu desenvolvimento. Nada de acelerar esse processo artificialmente, ou alterá-lo para satisfazer os adultos. E nunca, insistia Cizek, se louvem a destreza, a perícia, em detrimento ou à custa de ideias criadoras. (PEDROSA apud CAMPELLO, 2001, p. 34)

5Afora os modismos que vieram com tal ênfase, uma das maiores contribuições para

educação infantil, talvez tenha sido a possibilidade de ouvir as crianças no sentido de

auscultá-las. Desta forma, abre-se a possibilidade de considerar este outro do homem – o infantil e sua

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Figura 6 - Desenho infantil: Livre? Expressão? Acervo pessoal, 2018.

A ênfase à livre expressão infantil trouxe um espectro de possibilidades para o trabalho de criação em desenho com os infantis, uma quebra importante e fundamental para que as crianças pudessem ser valorizadas ainda na infância (e não em seu vir-a-ser adulto). Em contrapartida, essa nova ordem passou a influenciar profissionais a compreender que tudo deveria partir (e tão somente) da criança. O mistério presente na produção visual infantil passou a ter uma conotação quase mística. A livre expressão tornou-se, na prática pedagógica, um conceito não só esvaziado, mas distorcido: se a criança tem tudo dentro de si e precisa apenas de liberdade para externalizar seu eu por meio de um ethos expressivo, então, o papel do professor seria, apenas, deixar que ela o faça.

Nesse sentido, posturas pedagógicas passaram a limitar recursos externos: era importante evitar influências advindas de outros âmbitos para que não “maculassem” a expressão do seu interno. “Cada um olha pra sua folha, não é pra copiar do amiguinho”, ainda que a cópia pudesse ser ressignificada sob novo arranjo, modelos, exemplos, sugestões, disponibilizada como uma base para o processo criativo, as possibilidades a partir da cópia foram destituídas das

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mediações possíveis durante o ato desenhativo (ação específica que faz com que o gesto produza o traço e por meio desse processo utilize de suas referências individuantes) dos infantis, pois - acreditava-se - retirava da criança sua “castidade criativa”.

A psicologia do desenvolvimento tradicional também influenciou as práticas pedagógicas sobre o desenho dos infantis. A consequência para a pedagogia, ao apropriar-se de tais estudos, foi a tendência ao enquadramento infantil em fases do desenvolvimento de um lado e, de outro, acreditar que desenhar é expressar o que há no interior, como se tudo estivesse dentro da criança, uma criação latente que deve ser externalizada. Dessa primeira tendência vê-se, ainda hoje, profissionais da educação infantil que concebem o desenho da criança sob um olhar desenvolvimentista padrão. Olhar este que rotula as crianças de acordo com uma expectativa de desempenho também padrão, inclusive em relação à fase ou etapa em que seu grafismo é “enquadrado”.

Os desenhos também são utilizados como um instrumento ou ainda recurso para se ensinar um conteúdo, assim como ocorre com as demais linguagens artísticas na educação. Embora as professoras não tenham formação para tal, os desenhos aparecem também atrelados a diagnósticos e representações fidedignas do que as crianças pensam, sentem ou dão conta cognitivamente. Muitas vezes a preocupação em identificar etapas gráficas no desenho infantil faz com que as professoras deixem de promover ações pedagógicas que aprofundariam os processos criativos em uma determinada etapa gráfica para acelerar o processo de aquisição de nova etapa e, “finalmente”, desenvolver o grafismo para aquisição da escrita. As crianças desenham todos os dias, mas desenhar não tem importância a não ser como caminho para alcançar um outro lugar cognitivo.

Não discuto aqui a possibilidade de conhecermos por meio do desenho um pouco do seu desenhista ou os caminhos percorridos por seu grafismo, suas características cognitivas, mas interrogo professoras que tecem avaliações/diagnósticos das crianças-desenhistas por meio dos seus desenhos sem que tenham uma formação específica que assessore suas conclusões. As produções pictóricas das crianças apresentam-se para esses como uma ferramenta de observação com caráter mais terapêutico que pedagógico,

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embora exercidos por profissionais sem formação ou habilitação desse gênero. Nesse sentido, o questionamento a que me refiro não se relaciona à legitimidade dos estudos psicológicos acerca do desenvolvimento do desenho infantil, ou mesmo a utilização dos desenhos como uma ferramenta para compreender o processo de desenvolvimento dos infantis; mas à forma a qual a Pedagogia passou a se apropriar de tais conhecimentos ao longo de sua história, tendo como núcleo de suas ações a intenção psicológica em detrimento da pedagógica.

A Pedagogia há mais de três séculos tem sido considerada a ciência que objetiva criar e viabilizar conjuntos (ou agremiações?) de princípios e métodos educativos. Em seu processo de inventar-se, cada vez mais tem bebido em outras fontes para determinar objetos e objetivos, interesses e intenções, potências e limites, relacionados à Educação. Mas, como todo estudo que relaciona diferentes áreas, é preciso voltar à área de origem para estabelecer as relações. Esta tese é um desses estudos de fronteira que visam, para além de trazer vigor à consolidação do campo de conhecimento sobre a infância e seu universo expressivo dentro da Pedagogia, destacar as potências existentes nos próprios estudos de fronteira, bem como ampliar o conhecimento sobre os processos de criação e ficção realizados por crianças pequenas e bem pequenas, via desenho, nas instituições educativas, inspirando-se nas fontes da teoria literária.

Dada a complexidade das relações pedagógicas que constituem a educação da infância institucionalizada, percebe-se a necessidade de um saber que vá para além de áreas fixas e disciplinas estanques. Antes de definir esta pesquisa como inter ou multidisciplinar, faz-se interessante compreender que, aqui, os estudos que envolvem diferentes áreas de conhecimento aproximam-se mais de um ecossistema que, de fato, de uma associação de disciplinas fechadas em si mesmas em prol de determinado objetivo. Nesse sentido, perceber um conjunto de características carregadas de energia potencial que interagem ou se relacionam (sejam elas biológicas, psicológicas, sociais, históricas, imanentes) influencia a existência de uma espécie ou indivíduo de modo que essa relação se apresente como um sistema metaestável, aproxima-se mais do modo como esta teaproxima-se foi balizada e interposta no diálogo entre áreas.

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Por conseguinte, ainda que a psicologia do desenvolvimento seja cardinal para compreender alguns processos educativos - e dentre eles o processo de aquisição do grafismo que possibilita a produção de traçados imagéticos - limitar-se especificamente a um arranjo de conhecimento exclusivo para justificar as ações pedagógicas relacionadas ao desenhar infantil seria diminuir as potências e compreensões acerca dos processos de criação que se dão na infância. O desenho infantil precisa ser necessariamente compreendido pelas vias da psicologia do desenvolvimento? O que há para ser dito sobre o desenho que não se resuma ou se limite às suas fases de desenvolvimento gráfico ou pré-requisito para a aquisição da escrita? A tensão não está em negar tal área ou ficar de fora desta tradição pois, como afirma Corazza (2009, p. 11-12):

Agora... nós não podemos negar e destruir totalmente essa tradição. Mesmo quando nos opomos a ela, mesmo quando a acusamos por seus efeitos negativos, quando criticamos os seus equívocos, quando dizemos que, dela, nada queremos, nem esperamos, ainda é dela que estamos nos ocupando. Porque este é um jeito – o crítico ou desconstrutor – de também ser filiado àquela tradição. E nós, que somos filhos reais, simbólicos, imaginários, de tantos pais, mestres, guias, autores, crenças, sabemos que é assim que esta coisa da filiação funciona.

Sob essa perspectiva, busquei, então, explorar outras circunferências e conexões capazes de produzir a dilatação do conhecimento já estabilizado sobre o desenho das crianças no sentido de oferecer novas miradas sobre os mecanismos da imaginação traduzidos em traços pelos infantis. Para tanto, optei por acessar o campo6 da literatura, via teoria da arte, pela potência e abertura

da linguagem literária: das forças do desenho infantil enquanto texto visual transbordam sua capacidade de oferecer informações (que podem referir-se, por exemplo, à etapa gráfica, disponibilidade e variação de materiais utilizados, tipo de proposta sugerida pela professora, relação entre a imagem produzida e o conteúdo ministrado etc.) e aufere a condição de espaço (s) caótico disponível para o processo de criação infantil: o caos7, muitas vezes entendido como

6 Campo no sentido advindo do latim: campu, planície, campina. Tem-se campo como um

espaço mais ou menos aplainado, estável e substancial em que se manifestam forças perceptíveis capazes de produzir e cultivar significação. O vocábulo diverge da imagem de campo de conhecimento como uma concepção legítima do saber, em que luta-se pelo conhecimento verdadeiro, um termo de natureza bélica: campo de guerra.

7 Bergson contribui nesse sentido quando indica como caos um arranjo não esperado de uma

ordem pré-estabelecida pela inteligência: ao olhar para algo em que não se vê um modo determinado e habitual de arranjar, toma-se como caos. Nietzsche também trata do caos quando indica que ele constitui o fundo da realidade e pode ser considerado como puro

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desordem e confusão, aqui é tomado em seu sentido mitológico, o informe e indefinido vazio primordial, utilizado por Demiurgo para modelar o Universo.

Para Deleuze e Guattari, todo o pensamento é relação com o caos. O pensamento é o resultado de uma operação que se faz ao caos, é a própria composição do caos. Pensar, é dar consistência ao caos. Deleuze e Guattari definem o caos como um virtual que, enquanto velocidade absoluta, é nascimento e esvaziamento de todas as formas possíveis. «Definimos o caos menos pela sua desordem do que pela velocidade infinita com que se dissipa toda a forma que nele se esboça. É um vazio que não é um nada, mas um virtual, contendo todas as partículas possíveis e adquirindo todas as formas possíveis que surgem para de imediato desaparecerem, sem consistência nem referência, sem consequência» O caos não é o nada, mas um virtual na medida em que contém todas as formas possíveis. No entanto, em vez de ser um simples momento de actualização dessas formas, é também o momento da sua dissipação (NAVAIS, 2010, p. 319).

Nesse sentido, o caos não é o nada, mas um virtual na medida em que contém todas as formas possíveis. Não é uma relação de exclusão e sim de inclusão. Pensa-se contra o caos, mas também com o caos, uma vez que para Deleuze, pensar e ser são uma e mesma coisa. Desde o ser vivo à obra de arte, há uma autoposição do criado. Por isso, recortar o caos, torná-lo consistente, é conferir-lhe uma realidade própria, uma objetividade e uma autoposição. Ao partir dessa perspectiva, o desenho infantil tem em si a possibilidade caótica de ser registro e texto (de onde extraímos informações, tanto do desenho quanto do contexto em que foi desenhado), mas sem resumir-se em tais características.

encontro de forças. Forças essas que aparentemente nada significam, mas que são os elementos capazes de produzir interpretação sobre aquilo que valoramos.

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Figura 7- Desenho não figurativo: texto e caos. Arquivo pessoal, 2013

Pesquisar desenho na literatura é um viés pouco analisado no diálogo com a educação: o desenho infantil como texto visual (que comunica justamente o que não pode ser dito) pode ser assim compreendido e enriquecido pela professora na prática pedagógica com crianças pequenas. Há perspectiva artística, estética, literária no desenho das crianças pequenas? E das crianças bem pequenas? As crianças bem pequenas também produzem marcas de materiais sobre suportes. Essas formas visuais compostas de linhas, emaranhados, relevos, furos, rasgos e rabiscos aleatórios também dizem mas, para quem dizem? Elas podem ser consideradas desenhos? Como lidarmos com estas formas que escapam à lógica da representação que as instituições de ensino vão, inevitavelmente, tornar hegemônica? No meu caminho de pesquisadora constatei a necessidade de a professora ir adiante do ensino de formas gráficas, representação ou mesmo a visualidade do desenho, ainda que todos esses elementos sejam importantes para comunicar‐se visualmente. Ao transbordar em suas possibilidades linguísticas, temos o desenho como um adensado de materialidade capaz de presentificar criações e ficções infantis. Ao

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dizer aquilo que não sabe, o desenho aproxima-se da linguagem do inconsciente e do realismo mágico magrittiano.

Nesse sentido, selecionar e organizar as informações do ecossistema que relaciona educação infantil e literatura exige delicada afinação, pois, ao mesmo tempo em que dar corpo à tese se torna uma rica expedição pela oportunidade de associação dos termos influxos em várias áreas, a mesma escritura pode tornar-se superficial no sentido de não produzir inferências por quem a acessa, afinal, expandir fronteiras teóricas exige transitar por caminhos onde conceitos, teoremas e terminologias não são de domínio comum. A temática dessa pesquisa entre áreas converge nos processos de criação dos infantis: tanto na literatura quanto na educação infantil percebemos que as pesquisas acerca desta problemática são ainda superficiais e difíceis de alcançar efetivamente a professora que atua na prática efetiva e cotidiana.

É fundamental que os conhecimentos produzidos nas instituições de educação superior sejam, de fato, acessados por aqueles que poderão repensar e refazer as ações pedagógicas em seu contexto prático, no “chão de sala”8.

Sabemos que o tempo da pesquisa e o tempo da política nem sempre coincidem com a consolidação da prática, justamente por isso torna-se imprescindível uma elaboração teórica que permita inferências e produção de sentido não apenas para os pesquisadores, teóricos da área, mas também para as professoras, as responsivas e responsáveis pelas práticas no cotidiano educativo da infância: eis a delicadeza na escrita desta tese.

Sob essa perspectiva, a interface entre literatura e educação infantil que proponho exige metodologicamente a recuperação de alguns termos que, embora não sejam novos, trazem em sua retomada novo arranjo, o que demanda processo de criação e apropriação. Unir educação infantil e literatura, tendo como compilação o desenho da criança e não, necessariamente, o livro de literatura infantil, oferece novos recortes e traçados para ambos domínios. Para tanto, utilizar-se dos termos educativos já banalizados e recuperá-los no intuito de repensar os processos criativos das crianças tendo, ainda, a produção textual

8 Essa expressão pode ser entendida como o lócus mais íntimo e direto onde o ato pedagógico

na educação infantil acontece, onde o contemporâneo é experienciado, relacionado e tecido nas e pelas ações educativas, um ambiente potencialmente favorável para produção da diferença.

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da própria tese, memórias e rastros da autora, como campo metodológico seria, então, o recorte elencado para realizar a discussão a que se pretende essa pesquisa.

A Filosofia Ocidental ao longo da história privilegiou determinados modos de pensar em detrimento de outros e assim, o sócius (processo de individuação coletiva) foi se constituindo e constituindo nosso estilo de pensamento. A subordinação da diferença à identidade, presente na lógica aristotélica da representação, aproxima do conceito de diferença à oposição, contrariedade. A lógica da representação esquadrinha essência, padrão, norma, modelo, identidade. O diferente, o que não cabe, as sobras e desvios são excluídos, higienizados.

Nesse sentido, recorro à Deleuze, conhecido como o filósofo da diferença, tendo em vista que o autor toma o diferente como simulacro e sustenta a relação da diferença não com o conceito de identidade, mas de repetição.

Quando determinamos a repetição como diferença sem conceito, acreditamos ser possível concluir pelo caráter apenas extrínseco da diferença na repetição; julgamos, então, que toda "novidade" interna fosse suficiente para nos distanciar da letra e que só fosse conciliável com uma repetição aproximativa, dita por analogia. [...] Talvez o engano da filosofia da diferença, de Aristóteles a Hegel passando por Leibniz, tenha sido o de confundir o conceito da diferença com uma diferença simplesmente conceitual, contentando-se com inscrever a diferença no conceito em geral. Na realidade, enquanto se inscreve a diferença no conceito em geral, não se tem nenhuma Ideia singular da diferença, permanecendo-se apenas no elemento de uma diferença já mediatizada pela

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Figura 8 – O corpo em massa. Claudia Rogge, 2006. Arquivado a partir do endereço: https://ctrlbarbara.wordpress.com/tag/corpo/

Figura 9- Claudia Rogge, 2006 arquivado a partir do endereço: https://ctrlbarbara.wordpress.com/tag/corpo/

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A autora dessas fotografias, a alemã Claudia Rogge, desenvolve em suas produções artísticas o conceito de diferença e repetição quando permite que nossos olhares busquem na visualidade dos corpos fotografados as similaridades e singularidades humanas. As formas orgânicas enfatizadas na primeira fotografia dialogam com a repetição estruturada na segunda imagem e nos incitam a pensar no diferente não mais de modo hierárquico, mas como uma composição do ser, do sermos. Assim, “subverter a filosofia da representação significa afirmar os direitos dos simulacros, reconhecendo neles uma potência positiva, dionísiaca, capaz de destruir as categorias de original e cópia” (MACHADO, 2010, p. 48).

Ao tomar a filosofia da diferença como base ontológica do desenhar, o desenho é concebido para além das etapas gráficas, sem o intuito de domar os simulacros ou enquadrar as possibilidades criativas dos infantis. Esta é ainda, de certa forma, uma lacuna nos estudos da Educação e, talvez em maior medida, da Literatura. O campo da literatura e, mais especificamente da teoria literária lida, em seu consenso, com o desenho infantil como um caminho para alcançar o grafismo que, por sua vez, levará à escrita. Pouco se estuda o desenho infantil como uma linguagem expressiva e potente em suas possibilidades criativas como texto, capaz de oferecer respostas sim, mas também narrativas e fabulações.

E os desenhos informes das crianças bem pequenas? Poderiam ser consideradas fabulações abstratas? Certamente muito há a ser investigado sobre a relação entre expressão infantil e abstração; entre as linguagens da criança e as ficções. Com o intuito de ampliar a compreensão sobre o desenho na área da literatura para além de um recurso intermediário à linguagem escrita, o desenho pode ser considerado como lócus expressivo capaz de gerar ficção e, por consequência, fabulação, abstração. Ou seja, beber nas fontes da literatura, com seus truques e tramas, permite enfatizar não apenas o lado diretivo e técnico do processo de criação via ação pedagógica do professor, mas, também, a potência criativa que existe no ato ficcional de desenhar, suas fabulações.

A interlocução com a literatura trabalhada sem seu artefato físico mais comum – o livro – é ainda tímida, mas também desafiadora. No levantamento

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bibliográfico que auxiliou o processo de delimitação/recorte/abertura desta pesquisa, raros foram os trabalhos que se enquadravam na proposta de pensar a relação da literatura com a educação infantil para além dos livros. Em sua maioria, as pesquisas extra-livro tratavam desenhos animados e filmes. Nenhuma pesquisa utilizava-se dos desenhos produzidos por crianças para compreender as possibilidades de pensar literatura e infância de modo concomitante.

Ao considerar a continuidade da pesquisa de mestrado, percebi que, para pensar o desenho no interior da creche, era fundamental pensar também no responsável por a-presentar, tornar presente, o trabalho educativo do grupo de crianças: a professora. Ela pode provocar a ampliação dos horizontes culturais e imagéticos das crianças. Ao ampliar seus próprios horizontes é capaz de levar as crianças adiante do ponto onde ela mesma alcançou em seu processo criativo e formativo. Então, a formação das professoras me interessa na medida em que pode suscitar deslocamentos e rupturas no desenhar infantil. Cabe lembrar que a formação não se restringe à acadêmica; enquanto tramado, tecido que se faz, abrange também a formação pessoal e artístico‐cultural.

Se o ofício do professor é ensinar, o ensino aqui é compreendido (verbo latino ensignare) literalmente como marcar com um sinal. Essas marcas sócio-individuantes são acessadas pelas crianças no cotidiano dos mais diferentes modos. Que ações pedagógicas precisam ser priorizadas para que o cotidiano educativo dos infantis tenham ações intencionais, planejadas, pensadas no sentido de priorizar a potência criativa dos infantis em seus atos de expressão em convívio? Que marcas estamos deixando nos infantis que se afetam por nossas ações pedagógicas? Que (des)limites oferecemos para que as crianças compreendam os contornos e bordas existenciais ao invés de apenas serem controladas? Que espaço para inferências deixamos aos infantis? Que interesse temos por seus textos visuais no sentido de compreender as intensidades que afetam seus traços?

A tese aqui escrita, lançada, inventada, buscou uma abertura linguística despretensiosa, dançante, que pudesse deslizar pelas imagens apresentadas, experienciando-as com o leitor; que proporcionasse acesso teórico e artístico - já que a presença da arte como corpus textual, de certo modo comum à área

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literária, ainda está sendo alcançada e consolidada nos estudos voltados à educação infantil.

Para tanto, componho a tese em duas partes divididas por um intermezzo. Cada parte é associada por diferentes platôs que podem ser interpretados na sua sequência, mas também admitindo que sejam experimentados em ordem distintas. A obrigação em realizar uma tese que cumpra pressupostos canônicos de começo, metade e final, não me impediram de promover experimentações com os temas dos platôs de forma a serem abordados em continuidade ou num exercício criativo de troca com os temas propostos.

Na primeira parte, que intitulei de “Planos, Projéteis” abro caminho para abordagens acerca de temáticas relevantes a esta tese de forma cognoscente ao que concebo como potência para continuação da obra – quando começo a abordar os desenhos das crianças. Se, enquanto planos, são organizativos do trabalho, são também projéteis por “viajarem” e irem longe sem a limitação de um pragmatismo ou ordenação planificada.

Em tratativas, a segunda parte deste trabalho, busco analisar os vestígios e rastros como potência de encontro para tratar de arte, de desenhos produzidos por infantis, processos de criação e fabulação que promovem a criação do real por meio da imagem produzida nos desenhos.

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PARTE 1 – PLANOS, PROJÉTEIS

O Menino Que Carregava Água Na Peneira Tenho um livro sobre águas e meninos. Gostei mais de um menino que carregava água na peneira. A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos. A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água O mesmo que criar peixes no bolso. O menino era ligado em despropósitos. Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos. A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio. Falava que os vazios são maiores e até infinitos. Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito porque gostava de carregar água na peneira Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira. No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo. O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens. Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando ponto final na frase. Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela. O menino fazia prodígios. Até fez uma pedra dar flor! A mãe reparava o menino com ternura. A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta. Você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos. (Manoel de Barros)

“Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas.”

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1 - A escrita da tese como uma experiência de criação

Escrever uma tese é, em si, uma experiência: transformamo-nos em meio à escrita, criamos e somos criados. Tal transformação não advém com a conclusão do exposto, mas (principalmente) no meio, no durante, nas entrelinhas. É no através, nas idas e vindas, nos (re)cortes, intensões e intenções, (re)elaborações que perpassam o processo de criação de um texto que fica claro: criar é movimento. As mudanças de cursos e fluxos nos dão indicativos de que escrever, dar existência ao texto, procriá-lo, gerá-lo e nascê-lo é, também, uma produção individuante de “si”, é expressar(-se) por um discurso que multiplica um si e um seu, disponibiliza compostos e elementos que recorrem ao real para serem iluminados. Assim, sujeitei-me na busca de uma escrita viva, que registrasse os elementos com os quais mais interatuei nos anos de formação como professora e pesquisadora, nas escolhas pessoais e, mais especificamente, no processo de doutoramento, para o trato do objeto.

A experiência pede tempo. Como afirma Rilke, tudo quanto é velocidade

não será mais do que passado, porque só aquilo que demora nos inicia. Tempo

para pensar, olhar, escutar, sentir e silenciar. Tempo para exercitar cada molécula do corpo no ato de transformar(-se), de ser tocado, afinal, “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca” como afirma Larrosa, (2002, p.21) tantas vezes citado quando o interesse está em caracterizar o que seja

experiência num sentido mais de movimento que de evolução. Ainda que não

nos pareçam novidades as afirmativas de Larrosa, elas coadunam no sentido de enfatizar que escrever é acontecimento: não tem como objetivo representar pela linguagem escrita aquilo que está dado, não é apreender a realidade ou mesmo explicá-la cartesianamente, mas parir o que não existe, criar o real a partir do real, tecer agenciamentos, minorias, devires.

Manoel de Barros, sempre citado por seu olhar romântico quando pensamos no encantamento das infâncias, nos incita não apenas a admirar, mas também a questionar: como fazer caber no texto acadêmico uma escrita maquinada por afetos e encontros, por despropósitos? Como deixar presente os pontos finais que limitam os vôos dos pássaros? O ponto por onde a obra

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escapa? A intenção não é negar a escrita formal, ao contrário, é povoá-la de pulsão, vibração. Afinal, a escrita menor9 não nega ou imobiliza a maior, mas a

ela resiste. Estão entrelaçadas, envolvidas, labirintadas. Não pretendo escapar à formatação ou ao intento da escrita dominante, mas talvez ampliar sua possibilidade de alcance ao fazê-la abrir espaço para as (in)verdades (linguagem como poder), ficções, e buscar outros movimentos para a constituição do homem, de si, do conhecer.

Para Deleuze e sua anti-dialética não é possível uma síntese capaz de unificar o mundo ou a realidade, pois o real é plural e tem como característica a tendência à dispersão. Nesse sentido, trazer o disperso ao texto, as águas trazidas nas peneiras, o resto, a sobra, a dobra, os peixes colocados no bolso, foi uma escolha metodológica encontrada para acessar os restos formativos que me produziram para a escrita dessa tese e mediaram meu processo criativo, existencial. Para pensar as narrativas visuais desenhadas por infantis como um

encontro entre o imagético e o literário na Educação Infantil foi preciso

apresentar e definir, ainda que infinitamente, os conceitos e o lugar em movimento de onde falo, meu ato escritivo10. A escrita afirmadora da vida

modifica a relação conosco, com a língua, com o texto. Por isso, entendê-la como experiência demanda estar com-ciente de que criar é buscar as rupturas, o desconhecido, o novo. “Todo criador é, ao mesmo tempo, aquele que tenta o outro e que experimenta (tenta) em si mesmo e no outro alguma coisa para criar aquilo que ainda não existe: um conjunto de forças capazes de agir e modificar aquilo que existe. (KLOSSOWSKI, 2000, p. 149). Criar é o instrumento do homem para a produção e continuidade de sua existência. Criar é viver.

A organização estrutural do texto permite influência (fluir para dentro) de categorias e classificações do pensamento, mas sem fixar-se ou submeter-se a elas ou a qualquer força reativa, representativa, mimética: aqui a categorização é entendida e apresentada como um processo de geometria infinito. Assim, o presente capítulo visa elucidar os alicerces desta pesquisa, os aliados teóricos que guiam as análises e discussões aqui presentes, que encontram na literatura

9 A ideia de escrita menor, parte do conceito de literatura menor, que “não é a de uma língua

menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior” (DELEUZE; GUATARRI, 1997, p. 25).

10 Assim como o ato desdenhativo, no ato escritivo codifica-se nas possibilidades da linguagem

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um modo de entender o desenho em sua abertura para a produção de sentidos (desenho como lócus expressivo) e, em Barthes e Deleuze os principais

intercessores capazes de apontar não só um discurso, mas também uma atitude

para produção de conhecimento.

Selecionar e (es)colher, textos, olhares, teorias (escrito em minúsculo e no plural) que compõem o sumo acadêmico deste trabalho convoca não a renunciar aporias, mas utilizar-se delas para resistir ao autoritarismo dos discursos teóricos e abrir-se para os que se contrapõem ao senso-comum e ao não-científico como o lugar do não-verdadeiro, porquanto, acredito, a verdade está sempre no entrelugar. Teorias e fatos misturam-se, estão juntos: narrar-teorizar, papel da tese. Por isso, o ato de escrever a tese será retomado em alguns momentos como possibilidade para pensar o processo de criação.

1 – Conhecimento

O conhecimento teórico possuía, pra mim, a aura sagrada: grandes pensadores, gênios da ciência... O conhecimento era a verdade, a meta. No início da graduação, acesso algumas liberdades: Pedagogia Libertária e sua anarquia sedutora, método Freinet... Discursos que faziam os olhos brilharem, que mostravam a possibilidade de extrapolar os padrões educativos, que acolhiam mais que presumiam. Ao longo da trajetória acadêmica, ênfase na possibilidade de uma educação onde coubesse o inusitado, o infinito, a vida.

Ao acessar o mercado de trabalho, recém-chegar ao novo papel social que demanda atuar como professora, percebo que, na prática, a liberdade e as escolhas teóricas tornam-se limitadas e limitadoras: precisam ser disciplinadas. Nem tudo cabe, nem tudo é coerente, é preciso selecionar o que se encaixa no método, nos documentos oficiais, no Sistema. Começo a tentar organizar meu pensar em linhas mais lógicas, fixas, um planejamento “bem fechado” para “garantir a intencionalidade”.

A liberdade, o incerto, a diferença e a alegria, o improviso, procuram seu espaço no meu ato pedagógico, mas, quando se espera um padrão, esvai-se espaço, potência e vida. O doutorado me permite novas fontes teóricas, olhares ousados, retomada de discussões que outrora me faziam vibrar... A arte se apresenta como caminho de expansão, o planejamento pede movimento, desconstrução. Acessar as fissuras, dobras, entrelinhas e entretantos, traçar novos limites para minha existência: quando cabe a diferença, parece que também eu tenho um lugar. Assim, o conhecimento passa a ser o caminho, não mais o ponto de chegada. (Repositório de Reminiscências, s/d)

Referências

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