GRANDE DO SUL
KASSIANO BANDEIRA CERETTA
O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS
SUPERIORES BRASILEIROS: UMA ANÁLISE A PARTIR DA SELETIVIDADE DO
SISTEMA PUNITIVO BRASILEIRO
Ijuí (RS)
2017
KASSIANO BANDEIRA CERETTA
O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS
SUPERIORES BRASILEIROS: UMA ANÁLISE A PARTIR DA SELETIVIDADE DO
SISTEMA PUNITIVO BRASILEIRO
Trabalho de Conclusão do Curso de
Graduação em Direito objetivando a
aprovação no componente curricular
Trabalho de Curso - TC.
UNIJUÍ - Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul.
DEJ- Departamento de Estudos Jurídicos.
Orientador: Dr. Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth
Ijuí (RS)
2017
Dedico este trabalho acima de tudo à
minha família, pelo incentivo, apoio, amor
e confiança em mim depositados durante
toda a minha jornada. E que mesmo não
estando mais presentes em corpo sempre
estarão em espírito pois nunca serão
esquecidos.
AGRADECIMENTOS
À minha amada mãe Ilenir Ana Bandeira Ceretta por todo o tempo, dedicação,
confiança e amor em mim depositados. Seus conselhos e ensinamentos serão
eternos, assim como a saudade e meu amor por você. Continue me olhando e
espero que se orgulhando, te amo.
Ao meu amado pai Dante Von Muhlen Ceretta por toda confiança,
determinação, carinho e amor em mim depositados. Sua felicidade e carisma serão
eternos assim como meu amor por você. Espero que esteja me olhando e torcendo
por mim a cada conquista, te amo.
À minha amada noiva Dieinifer Larisa Robeck, por seu companheirismo,
confiança e amor, a quem sempre vou ser grato pela companhia, conselhos e força
no pior momento de minha vida. São esses momentos que fazem a diferença na
vida de uma pessoa, onde ela realmente revela seu caráter, te amo.
A toda minha família, Bandeira, Ceretta e Robeck pela imensurável ajuda e
amor, e a quem sempre amarei.
Ao meu orientador Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth, com quem eu tive o
privilégio de aprender e contar com sua dedicação e disponibilidade, me guiando
pelos caminhos do conhecimento.
“Teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia
encontrares o Direito em conflito com a Justiça,
luta pela Justiça. ”
O presente trabalho aborda a aplicação do princípio da insignificância no
Direito Penal, a partir das decisões dos Tribunais Superiores brasileiros. A pesquisa
parte do seguinte problema: Em que medida a jurisprudência dos Tribunais
Superiores brasileiros permite evidenciar, a partir da aplicação do princípio da
insignificância na esfera penal, a seletividade punitiva, considerando que o princípio
não é aplicado aos casos que envolvem pequenos delitos patrimoniais - praticados
por pessoas pauperizadas e socialmente desfavorecidas - mas é aplicado para
beneficiar pessoas que pertencem a outras classes econômicas, principalmente nos
chamados “delitos fiscais”?. Nesse sentido, o trabalho procura evidenciar que, na
falta de parâmetros precisos para aplicação do referido princípio, ratifica-se a
seletividade do sistema punitivo brasileiro, quando se compara a incidência do
princípio nos julgados que envolvem pequenos delitos patrimoniais
– praticados por
pessoas pobres
– e nos delitos fiscais – praticados por pessoas pertencentes aos
estratos privilegiados da sociedade.
Palavras-Chave: Princípio da insignificância. Direito Penal. Jurisprudência.
Seletividade.
This paper deals with the application of the principle of insignificance in
Criminal Law, based on the decisions of
the Brazilian Superior Courts
. The research
part of the following problem: to what extent the law of superior courts in Brazil
makes it plain, from the application of the principle of insignificance in Criminal, the
selectivity punitive damages, whereas the principle is not applied to cases involving
petty crimes to property - practiced by people pauperizadas and socially
disadvantaged - but is applied to benefit people who belong to other classes,
especially in the so-called "tax offenses"?. In this sense, the work seeks
to demonstrate that, in the absence of precise parameters for application of that
principle, ratifies the selectivity of the punitive system in Brazil, when comparing the
incidence of principle in the trial involving petty crimes to property - practiced by poor
people - and in Tax offenses - committed by persons belonging to strata privileged
sectors of society.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...8
1 O DIREITO PENAL COMO ULTIMA RATIO NA PROTEÇÃO DE BENS
JURÍDICOS E A CONSOLIDAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
PENAL...11
1.1 O Direito Penal como ultima ratio na proteção de bens jurídicos...12
1.2 O princípio da intervenção mínima aplicado ao Direito Penal...16
1.3 O princípio da insignificância no Direito Penal: conceito e desenvolvimento
doutrinário...19
2 A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS JULGAMENTOS
DOS TRIBUNAIS SUPERIORES BRASILEIROS E A CONSOLIDAÇÃO DA
SELETIVIDADE PUNITIVA...25
2.1 A verificação da seletividade punitiva a partir da aplicação do princípio da
insignificância aos crimes fiscais e patrimoniais...25
2.2 Os critérios adotados pela jurisprudência dos Tribunais Superiores
brasileiros para a aplicação do princípio da insignificância nos delitos
fiscais...32
2.3 Os critérios adotados pela jurisprudência dos Tribunais Superiores
brasileiros para a aplicação do princípio da insignificância nos delitos
patrimoniais...40
CONCLUSÃO...59
INTRODUÇÃO
O presente trabalho apresenta um estudo acerca da aplicação do princípio da
insignificância frente aos delitos fiscais/descaminho e aos pequenos delitos
patrimoniais presentes na jurisprudência dos Tribunais Superiores brasileiros,
fazendo uma análise de diversos julgados para tentar demonstrar a seletividade
presente no sistema punitivo brasileiro. Essa pesquisa se faz necessária face à
grande homogeneização dentro do sistema carcerário brasileiro, que em regra é
formado por homens jovens, negros, pobres, e que cometeram delitos patrimoniais.
Para a realização deste trabalho foram efetuadas pesquisas bibliográficas e
por meio eletrônico, analisando principalmente diversos julgados do Supremo
Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, tribunais responsáveis por
analisar e julgar os casos mais emblemáticos envolvendo a aplicação do princípio da
insignificância. Na análise desses julgados será demonstrada a diferença de critérios
empregados pelos dois Tribunais Superiores frente aos casos de aplicação do
referido princípio.
O problema orientador da pesquisa reside na seguinte indagação: Em que
medida a jurisprudência dos Tribunais Superiores brasileiros permite evidenciar, a
partir da aplicação do princípio da insignificância na esfera penal, a seletividade
punitiva, considerando que o princípio não é aplicado aos casos que envolvem
pequenos delitos patrimoniais - praticados por pessoas pauperizadas e socialmente
desfavorecidas - mas é aplicado para beneficiar pessoas que pertencem a outras
classes econômicas, principalmente nos chamados “delitos fiscais”?
Como objetivo geral da pesquisa, buscou-se estudar os diferentes critérios
utilizados para a aplicação do princípio da insignificância aos delitos fiscais e
patrimoniais, a partir da análise de julgados dos Tribunais Superiores brasileiros,
buscando evidenciar a seletividade punitiva que permeia essas decisões.
No que diz respeito aos objetivos específicos, foram apontados os seguintes:
a) analisar o princípio da insignificância no Direito Penal (conceito, origem,
desenvolvimento e apropriação pela doutrina e jurisprudências brasileiras);
b) comparar
– a partir de julgados dos Tribunais Superiores brasileiros – os
argumentos que são utilizados para a aplicação do princípio da insignificância penal
nos “delitos fiscais” com os que rejeitam a sua incidência nos casos de pequenos
crimes patrimoniais;
c) evidenciar, a partir da análise dos julgados sobre a aplicação do princípio
da insignificância, traços de um modelo de Direito Penal seletivo, apontando para a
necessidade da criação de lei especifica e/ou Súmula vinculante (STF) que
regulamente e defina um quantum específico que norteie os juízes na utilização do
princípio da insignificância penal.
Para atingir os objetivos propostos, o trabalho encontra-se estruturado em
dois capítulos. No primeiro, foi feita uma abordagem do direito penal como ultima
ratio na proteção de bens jurídicos mais relevantes e a consolidação do princípio da
insignificância penal. Também foi feita uma breve abordagem a respeito do princípio
da intervenção mínima aplicado ao direito penal. Finalizando o capitulo, foi
demonstrado o conceito e o desenvolvimento doutrinário do princípio da
insignificância no direito penal.
No segundo capítulo foi analisada mais profundamente a aplicação do
princípio da insignificância nos julgamentos dos Tribunais Superiores brasileiros a
fim de demonstrar que os critérios utilizados consolidam a seletividade punitiva,
notadamente no que se refere à diferença de tratamento dispensado aos delitos
fiscais/descaminho e aos pequenos delitos patrimoniais.
A metodologia empregada na pesquisa foi do tipo exploratória. Utilizando no
seu delineamento a coleta de dados em fontes bibliográficas disponíveis em meios
físicos e na rede de computadores. Na sua realização foi utilizado o método de
abordagem hipotético-dedutivo, observando os seguintes procedimentos:
a) seleção de bibliografia e documentos afins à temática e em meios físicos e
na Internet, interdisciplinares, capazes e suficientes para que o pesquisador
construa um referencial teórico coerente sobre o tema em estudo, responda o
problema proposto, corrobore ou refute as hipóteses levantadas e atinja os objetivos
propostos na pesquisa;
b) leitura e fichamento do material selecionado;
c) reflexão crítica sobre o material selecionado;
d) exposição dos resultados obtidos através de um texto escrito monográfico.
Diante disso, restam demonstrados todos os passos que serão dados na
busca de expor a seletividade punitiva que permeia os julgados dos Tribunais
Superiores a partir da aplicação do princípio da insignificância.
1 O DIREITO PENAL COMO ULTIMA RATIO NA PROTEÇÃO DE BENS
JURÍDICOS E A CONSOLIDAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PENAL
O direito penal deve ser visto como o último recurso a ser utilizado para a
proteção de bens jurídicos, pois seu principal intuito é proteger o cidadão e não o
punir, como nos mostra André Lozano Andrade (2014, p. 15, grifo do autor):
Tendo em vista que em um Estado Democrático de Direito o que se busca é, entre outros, garantir ao cidadão sua liberdade individual e que a pessoa possa atuar desde que não cause prejuízos a outros, deve o Estado evitar o uso de sua força, principalmente do Direito Penal, que é por demasiado violento e estigmatizante para o indivíduo. Para que a sociedade seja regulada devem antes ser utilizados outros instrumentos, como o Direito Administrativo ou o Direito Civil, a isso se dá o nome de subsidiariedade do Direito Penal. Quando baste a aplicação de normas não penais deve o Estado aplicá-las, recorrendo ao Direito Penal como ultima ratio, como último recurso, para a proteção da sociedade e do indivíduo.
Porém, isso não significa que o direito penal sirva apenas como protetor de
direitos, pois quando essa proteção não surte efeito passamos para seu efeito
punitivo, que deve ser utilizado com extrema cautela para não se tornar mais
abusiva que o próprio delito.
Como salienta Cesare Beccaria (1764, p. 10), em sua lição clássica acerca da
necessidade de humanização das penas,
as penas que excedem a necessidade de conservar o depósito da saúde pública são injustas por sua natureza; e tanto mais justas são as penas quanto mais sagrada e inviolável seja a sua segurança e maior a liberdade que o soberano conserva para os súditos.
A partir desta citação, pode-se perceber que Beccaria se baseia no princípio
da proporcionalidade, na medida em que não nega que deve haver punição, mas
quer assegurar que ela não seja abusiva (ESSADO, 2008). Associado à ideia de
proporcionalidade está o princípio da insignificância, que se aplica nos casos em que
o bem jurídico prejudicado é tão ínfimo que a aplicação de uma pena será mais
prejudicial do que o próprio ilícito praticado.
Feitas essas primeiras colocações, o presente capítulo tem por objetivo
analisar o princípio da insignificância no direito penal, ou seja, seu conceito e
desenvolvimento doutrinário, além de outros subprincípios, assim como o direito
penal visto como ultima ratio na proteção de bens jurídicos, nos subitens que
seguem.
1.1 O Direito Penal como ultima ratio na proteção de bens jurídicos
Muitos nem ao menos conhecem o significado da expressão “direito penal
como ultima ratio”, que, a grosso modo, significa
“última razão” ou “último recurso”.
Significa que o direito penal, em regra, deveria entrar em ação apenas após
exauridos todos os outros mecanismos de tutela disponíveis nos demais ramos do
direito, como salienta Santiago citado por
Andrade (2014, p. 106):
o Direito Penal deixa de ser necessário para proteger a sociedade quando isso puder ser obtido por outros meios, que serão preferíveis enquanto sejam menos lesivos aos direitos individuais. Trata-se de uma exigência de economia social coerente com a lógica do estado social, que deve buscar o maior benefício possível com o menor custo social. O princípio da ‘máxima utilidade possível’ para as eventuais vítimas deve ser combinado com o ‘mínimo sofrimento necessário’ para os criminosos. Isso conduz a uma fundamentação utilitarista do Direito penal que não tende à maior prevenção possível, mas ao mínimo de prevenção imprescindível. Entra em jogo, assim, o ‘princípio da subsidiariedade’, segundo o qual o Direito penal deve ser a ultima ratio, o último recurso a ser utilizado, à falta de outros meios menos lesivos.
No mesmo sentido temos o entendimento de Ferré Olivé e Roxin citados por
Andrade (2014, p. 107, grifo do autor):
O princípio da ultima ratio (também chamado subsidiariedade) indica-nos que a pena é o último recurso de que dispõe o Estado para resolver os conflitos sociais. Em outras palavras, que somente pode recorrer ao Direito Penal quando fracassado as outras instâncias de controle social que tenham capacidade para resolver o conflito é cada vez mais frequente a denúncia de utilização do direito penal, não como ultima ratio senão como sola ou prima ratio para solucionar os conflitos sociais.
Podemos perceber que o Direito penal deve perder esse caráter quase que
estritamente punitivo, deixando outros ramos do direito competentes lidarem com o
caso concreto. Na opinião de Essado (2008, p. 29) “o direito penal não tem como
função regulamentar todas as condutas humanas. Muito pelo contrário, somente
deve intervir quando estritamente necessário”.
Nesse contexto, um sistema penal que visa principalmente à penalização do
indivíduo é decorrente de um Estado igualmente punitivo, que na maioria das vezes
deixa-se levar pelo clamor de uma sociedade induzida pelos meios de comunicação,
indução que reflete diretamente em nossa legislação, demonstrando a parcialidade
do legislador assim como o anseio por punição travestido de justiça, como nos
mostra o professor Aury Lopes Junior (2005, p. 206, grifo do autor):
Também a ordem pública, ao ser confundida com o tal “clamor público”, corre o risco da manipulação pelos meios de comunicação de massas, fazendo com que a dita opinião pública não passe de mera opinião publicada, com evidentes prejuízos para todos.
Nesse sentido, também temos o entendimento de Adalberto Narciso
Hommerding e José Francisco Dias da Costa Lyra (2014, p. 3-4, grifo dos autores):
Dito de outro modo, a produção da lei (em especial, a produção da lei penal) em terrae brasilis caracteriza-se por ser o “mais do mesmo”: uma produção legislativa que, praticamente, não atende a níveis adequados de racionalidade legislativa, sendo direcionada tão-somente à elaboração de leis com forte cunho populista, com forte apelo midiático, que tendem a colonização do Direito pelos imperativos sistêmicos da economia de mercado. Ainda, noutras palavras: elaborar leis penais no Brasil é sinônimo de produzir legislação simbólica, sem resultados quanto a concretização normativa dos textos legais.
A opinião de Guilherme De Souza Nucci (2014, p. 70-71, grifo do autor)
também ratifica essa perspectiva:
O Estado deve respeitar a esfera íntima do cidadão. Se o fizer, haveria respeito à intervenção mínima e, como consequência, ao princípio da ofensividade. Em outras palavras, não é todo bem jurídico protegido que merece proteção do Direito Penal. Há outros
ramos do direito para isso. Portanto, podemos encontrar situações
ofensivas a determinados bens, mas inofensivas em matéria penal.
Nesta mesma linha de raciocínio argumenta Mercedes García Arán, citada
por Nucci (2014, p. 66), ao referir que “o direito penal deve conseguir a tutela da paz
social obtendo o respeito à lei e aos direitos dos demais, mas sem prejudicar a
dignidade, o livre desenvolvimento da personalidade ou a igualdade e restringindo
ao mínimo a liberdade”.
Por esse motivo o direito penal deve ser a ultima ratio na proteção de bens
jurídicos, pois atualmente seu elevado índice de punição se revela como uma
afronta aos princípios fundamentais, e a Constituição Federal em seu Art. 5º, caput,
dispõe: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. (BRASIL,
2016).
A respeito disso temos a ideia de Luís Paulo Sirvinskas (2003, p. 72, grifo
nosso):
O juiz criminal – ao interpretar a norma penal – deverá observar os valores constitucionais protetores do garantismo, geralmente não expressos na norma fundamental, mas encontráveis nos direitos e garantias individuais.
São os princípios norteadores do estado democrático de direito e, em especial, o princípio da dignidade da pessoa humana, que deverão servir de supedâneo para o juiz criminal interpretar a norma incriminadora com o objetivo de realizar um ato de justiça social.
E é em respeito aos direitos e garantias individuais que devemos utilizar o
direito penal como ultima ratio na resolução de conflitos, ainda mais enquanto
houver outros ramos do direito disponíveis para resolverem a lide.
Outro problema que decorre da utilização do direito penal como prima ratio,
além da afronta aos direitos e garantias individuais, é a banalização da norma penal,
fazendo com que ela perca seu caráter preventivo em decorrência do descrédito
dado pela população, resultado de pedidos impossíveis que são negados
diariamente por serem mais lesivos que o próprio ilícito praticado.
Neste sentido temos o entendimento de Nucci (2014, p.66):
Caso o bem jurídico possa ser protegido de outro modo, deve-se abrir mão da opção legislativa penal, justamente para não banalizar a punição, tornando-a, por vezes, ineficaz, porque não cumprida pelos destinatários da norma e não aplicada pelos órgãos estatais encarregados da segurança pública. Podemos anotar que a vulgarização do direito penal, como norma solucionadora de qualquer conflito, pode levar ao seu descrédito e, consequentemente, à ineficiência de seus dispositivos.
Ainda nas palavras de Nucci (2014, p. 66):
Há outros ramos do Direito preparados a solucionar as desavenças e lides surgidas na comunidade, compondo-as sem maiores traumas. O direito penal é considerado a ultima ratio, isto é, a última cartada do sistema legislativo, quando se entende que outra solução não pode haver senão a criação de lei penal incriminadora, impondo sanção penal ao infrator.
Porém, de nada adianta a criação de uma lei penal incriminadora se essa não
respeitar sua função como ultima ratio e ser utilizada como primeira opção para
resolver os conflitos mais ínfimos. Neste sentido, temos o entendimento de
Hommerding e Lyra (2014, p. 18):
Sem uma Dogmática Jurídica atenta aos problemas da racionalidade da produção da lei e das políticas legislativas, e as possíveis dificuldades de aplicação da lei, e, portanto, sem uma Teoria do Direito que incorpore preocupações com a Teoria da Legislação e com a problemática do Direito como moral institucionalizada, a Ciência do Direito corre o risco de continuar “capenga” no que diz respeito à adequada aplicação do Direito.
Uma ótima analogia sobre a intervenção penal como ultima ratio é construída
por Luiz Flávio Gomes (s.d, p. 16):
Toda preocupação prevencionista, fundada na mera infração da norma imperativa, deve ser disciplinada em outros ramos do Direito
(administrativo, civil, tributário, comercial, trabalhista etc.). O Direito penal deve sempre ser enfocado como soldado de reserva. Se os outros sistemas normativos extrapenais falharem, então entra em ação o Direito penal, como ultima ratio.
Com isso, ficam demonstrados os problemas decorrentes da utilização do
direito penal como prima ratio, o que na maioria das vezes é reflexo de um Estado
punitivo que, no caso brasileiro, atualmente possui a quarta maior população
carcerária do mundo, conforme dados do Ministério da Justiça e Cidadania (2016).
Nesse sentido, resta demonstrado que deve ser utilizado o direito penal apenas nos
últimos casos, quando outras medidas já não servem mais (NUCCI, 2014, p.66).
Desse modo, revela-se a importância da utilização do direito penal como
ultima ratio na resolução de conflitos, permitindo, na sequência, a análise do
princípio da intervenção mínima: seu conceito e características, assim como sua
aplicação na esfera penal.
1.2 O princípio da intervenção mínima aplicado ao Direito Penal
O princípio da intervenção mínima nada mais é que a aplicação da esfera
penal apenas nos últimos casos (mais graves, contundentes), servindo como ultima
ratio e limitando, com isso, os poderes do jus puniendi do Estado, assim como nos
ensina Cezar Roberto Bitencourt (1997, p. 37), ao asseverar que
“o princípio da
intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder
incriminador do Estado”.
A ideia de intervenção mínima já se encontra presente na Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a qual prevê em seu art. 8º, que “a lei
apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e ninguém
pode ser punido senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes do
delito e legalmente aplicada”. (FRANÇA, 2016).
A intervenção mínima demanda a instituição de lei penal incriminadora somente em ultima ratio, quando nada mais resta ao Estado senão criminalizar determinada conduta. Por isso, leis intermitentes não se coadunam com o texto constitucional de 1988, reputando-se não recepcionado o art. 3.º do Código Penal.
Sobre o tema, Maurício Antônio Ribeiro Lopes (1997, p. 75) salienta que
só se legitima a criminalização de um fato se a mesma constitui meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social se revelem suficientes para a tutela desse bem, a criminalização é incorreta. Somente se a sanção penal for instrumento indispensável de proteção jurídica é que a mesma se legitima.
Com isso, fica claro o conceito do princípio da intervenção mínima, que nada
mais é que a utilização de todos os recursos e meios necessários para a resolução
de conflitos, recorrendo para a esfera penal e criminalizando determinada conduta
apenas em casos extremos, quando nenhum outro meio deu resultados e não há
outra opção. Desse modo, o Estado não apenas não deve, como nem pode interferir
nos conflitos como prima ratio.
Logo, também o legislador não pode considerar qualquer comportamento
como criminoso. Isso evidencia a posição que deve tomar o legislador no momento
de criminalizar uma conduta, devendo observar acima de tudo os princípios
fundamentais, de modo a não ser autoritário nem parcial em suas decisões.
Dessa forma, o legislador, baseando-se nos princípios fundamentais e
tutelando apenas os bens jurídicos mais relevantes, permite a consolidação do
princípio da intervenção mínima, que nada mais é que a missão do direito penal,
assim como nos mostra Masson, citado por Gustavo Henrique Comparim Gomes
(2011) a respeito de uma decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça:
A missão do Direito Penal moderno consiste em tutelar os bens jurídicos mais relevantes. Em decorrência disso, a intervenção penal deve ter o caráter fragmentário, protegendo apenas os bens mais importantes e em casos de lesões de maior gravidade.
Caso não seja observada essa regra, como já demonstrado no subtítulo
anterior, teremos o problema da banalização da lei penal pelo seu mal-uso, pois
muitas vezes um conflito que poderia ser resolvido na esfera civil ou administrativa é
levado diretamente para a seara penal, sem atentar para o fato de que, muitas
vezes, o indivíduo tem mais receio das penalizações que sofreria nas outras searas
do que na penal.
Para exemplificar o dito anteriormente temos o exemplo citado por Nucci
(2014, p. 67):
Atualmente, somente para exemplificar, determinadas infrações administrativas de trânsito possuem punições mais temidas pelos motoristas, diante das elevadas multas e do ganho de pontos no prontuário, que podem levar à perda da carteira de habilitação – tudo isso, sem o devido processo legal – do que a aplicação de uma multa penal, sensivelmente menor. Enfim, o direito penal deve ser visto como subsidiário aos demais ramos do Direito. Fracassando outras formas de punição e de composição de conflitos, lança-se mão da lei penal para coibir comportamentos desregrados, que possam lesionar bens jurídicos tutelados.
Ainda, nas palavras de Nucci (2014, p. 51, grifo nosso) temos a explicação do
porque não se deve utilizar a seara penal como prima ratio:
Quando o ordenamento jurídico opta pela tutela de um determinado bem, não necessariamente a proteção deve dar-se no âmbito penal. A este, segundo o princípio da intervenção mínima, são reservados os mais relevantes bens jurídicos, focando-se as mais arriscadas condutas, que possam, efetivamente, gerar dano ou perda ao bem tutelado.
Dito isso, concluímos que o Estado deve intervir o mínimo possível no dia a
dia do indivíduo, e caso ocorra algum conflito deve deixar os outros ramos do direito
agirem, como nos mostra Claus Roxin (1998, p. 28): “onde bastem os meios do
direito civil ou do direito administrativo, o Direito Penal deve retirar-se”. Em síntese: o
direito penal deve ser utilizado apenas como ultima ratio.
Uma vez analisado o princípio da intervenção mínima, passa-se na sequência
a observar o princípio da insignificância no campo do direito penal, buscando
delinear o seu conceito e o seu desenvolvimento doutrinário.
1.3 O princípio da insignificância no Direito Penal: conceito e desenvolvimento
doutrinário
Para a grande maioria dos estudiosos, o princípio da insignificância – também
conhecido como princípio da bagatela
– surgiu no direito romano, onde era
representado pelo brocardo minimis non curat praetor, ou seja, o pretor não deve se
preocupar com coisas insignificantes (CAPEZ, 2011, p. 29).
Como leciona José Henrique Guaracy Rebêlo (2000, p. 31):
A mencionada máxima jurídica, anônima, da Idade Média, eventualmente usada na forma mínimis non curat praetor, significa que um magistrado (sentido de praetor em latim medieval) deve desprezar os casos insignificantes para cuidar das questões realmente inadiáveis.
Esse entendimento a respeito do princípio da insignificância é resultado das
pesquisas de Claus Roxin no ano de 1964, conforme diz Odone Sanguiné (1990, p.
39, grifo do autor):
O recente aspecto histórico do Princípio da Insignificância é inafastavelmente, devido a Claus Roxin, que, no ano de 1964, o formulou como base de validez geral para a determinação do injusto, a partir de considerações sobre a máxima latina mínima non curat
praetor.
Nesse sentido também leciona Paulo Queiroz (2008, p. 51):
Por meio do princípio da insignificância, cuja sistematização coube a Claus Roxin, o juiz, à vista da desproporção entre a ação (crime) e a reação (castigo), fará um juízo (inevitavelmente valorativo) sobre a tipicidade material da conduta, recusando curso a comportamentos que, embora formalmente típicos, não o sejam materialmente, dada a sua irrelevância.
Dito isso, vamos ao conceito do princípio da insignificância. Para que serve?
Qual o seu objetivo? Há um entendimento consolidado a seu respeito?
Nas palavras de Shecaira e Corrêa Junior, citados por Nucci (2014, p. 180)
entende-se que “o princípio da insignificância, por seu turno, equivale à
desconsideração típica pela não materialização de um prejuízo efetivo, pela
existência de danos de pouquíssima importância”.
Ainda temos o conceito definido por Paulo Queiroz (2008, p. 51):
Da mesma forma, em razão do princípio da proporcionalidade, não se justifica que o direito penal possa incidir sobre comportamentos insignificantes. Ocorre que, ainda quando o legislador pretenda reprimir apenas condutas graves, isso não impede que a norma penal, em face de seu caráter geral e abstrato, alcance fatos concretamente irrelevantes.
Temos o entendimento consolidado nos Tribunais Superiores a respeito do
reconhecimento do princípio da insignificância e de seu caráter de exclusão da
tipicidade da conduta, conforme se evidencia no julgamento do REsp 234.271, Rel.
Min. Edson Vidigal:
O Superior Tribunal de Justiça, por intermédio de sua 5ª Turma, tem reconhecido a tese da exclusão da tipicidade nos chamados delitos de bagatela, aos quais se aplica o princípio da insignificância, dado que à lei não cabe preocupar-se com infrações de pouca monta, insuscetíveis de causar o mais ínfimo dano à coletividade.
Segundo entendimento jurisprudencial, o princípio da insignificância, para ser
utilizado, requer que sejam reunidas quatro condições essenciais, que são: a mínima
ofensividade da conduta, a inexistência de periculosidade social do ato, o reduzido
grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão
provocada.
É de notar, por fim, que há diversos precedentes do Supremo Tribunal Federal condicionando a adoção do princípio aos seguintes requisitos: a) mínima ofensividade da conduta; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade; d) inexpressividade da lesão jurídica. Parece-nos, porém, que tais requisitos são tautológicos. Sim, porque se mínima é a ofensa, então a ação não é socialmente perigosa; se a ofensa é mínima e a ação não perigosa, em consequência, mínima ou nenhuma é a reprovação; e, pois, inexpressiva a lesão jurídica. Enfim, os supostos requisitos apenas repetem a mesma idéia por meio de palavras diferentes, argumentando em círculo.
Esses requisitos devem ser concomitantes, perdendo sua aplicabilidade nos
casos em que se mostra ausente qualquer um deles, como nos mostra o teor da
decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Habeas
Corpus 122167, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski:
PENAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. REPROVABILIDADE DA CONDUTA DA AGENTE. ORDEM DENEGADA.I - A ré foi condenada pela prática do crime descrito no art. 155, §§ 1º e 4º, inciso II, do CP, pela subtração de um aparelho de som avaliado em R$ 70,00. O STJ apenas afastou a causa de aumento relativa ao repouso noturno. Como se sabe, a configuração do delito de bagatela, conforme têm entendido as duas Turmas deste Tribunal, exige a satisfação, de forma concomitante, de certos requisitos, quais sejam, a conduta minimamente ofensiva, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a lesão jurídica inexpressiva. II – Ocorre, contudo, que os autos dão conta da reiteração criminosa. A paciente tem em curso ações penais pelo mesmo fato, consoante certidão às págs. 58-60 do documento eletrônico 7. III – Revelada a periculosidade da paciente, não há falar na aplicação do princípio da insignificância, em razão do alto grau de
reprovabilidade do seu comportamento. IV – Ordem denegada.
(BRASIL, 2016).
Com isso, fica claro que a aplicabilidade do princípio da insignificância
depende de vários fatores específicos encontrados apenas no caso concreto,
servindo estes para nortear o rumo que o magistrado dará ao processo, e baseado
neste, a sua decisão.
Estes requisitos auxiliam o magistrado e também garantem um julgamento
mais igualitário e uniformizado para o cidadão, pois, pelo menos, impõem alguns
critérios que deverão ser observados para a aplicação do referido princípio, fazendo
com que os magistrados não apenas possam, mas também sejam compelidos a
utilizá-los.
Outros critérios observados para a aplicação do princípio da insignificância
são: a consideração do valor do bem jurídico em termos concretos, a consideração
da lesão ao bem jurídico em visão global, e a consideração particular aos bens
jurídicos imateriais de expressivo valor social (NUCCI, 2014, p. 181-182).
Em alguns casos temos prejuízos tão ínfimos a bens jurídicos tutelados que a
aplicação de uma pena seria infinitamente mais prejudicial ao sistema punitivo,
carcerário e principalmente ao princípio da dignidade da pessoa humana, do que o
próprio delito praticado, pois estaríamos abrindo mão de um direito sagrado que é a
liberdade para “proteger” um bem material insignificante.
Um exemplo disso é o citado por Nucci (2014, p. 181):
Com relação à insignificância (crime de bagatela), sustenta-se que o direito penal, diante de seu caráter subsidiário, funcionando como ultima ratio, no sistema punitivo, não se deve ocupar de bagatelas. Há várias decisões de tribunais pátrios, absolvendo réus por considerar que ínfimos prejuízos a bens jurídicos não devem ser objeto de tutela penal, como ocorre nos casos de “importação de mercadoria proibida” (contrabando), tendo por objeto material coisas de insignificante valor, trazidas por sacoleiros do Paraguai. Outro exemplo é o furto de coisas insignificantes, tal como o de uma azeitona, exposta à venda em uma mercearia. (...)
Porém devemos tomar cuidado para não confundir delito insignificante com
crimes de menor potencial ofensivo, como nos mostra Capez (2011, p. 31):
Não se pode, porém, confundir delito insignificante ou de bagatela com crimes de menor potencial ofensivo. Estes últimos são definidos pelo art. 61 da Lei n. 9.099/95 e submetem-se aos Juizados Especiais Criminais, sendo que neles a ofensa não pode ser acoimada de insignificante, pois possui gravidade ao menos perceptível socialmente, não podendo falar-se em aplicação desse princípio.
Até porque não é possível, muito menos correto, simplesmente punir qualquer
ato, até porque a lei é genérica, e por isso deve-se observar cada peculiaridade do
caso concreto.
Ainda temos as palavras de Nucci (2014, p. 51, grifo do autor):
Portanto, para a correta análise dos elementos do crime e, também, para inspirar a aplicação da pena, é fundamental o conhecimento do bem jurídico em questão, no caso concreto, avaliando se houve efetiva lesão ou se, na essência, encontra-se ele preservado, sem necessidade de se movimentar a máquina estatal punitiva para tanto. Exemplo disso é o emprego do princípio da insignificância (crime de bagatela), quando se percebe que, em face do bem jurídico
patrimônio, a conduta do agente, ainda que se configure em
subtração de coisa alheia móvel, é inócua para ferir, na substância, o bem jurídico protegido.
Porém um fator muito prejudicial, assim como no subtítulo anterior, é o anseio
social, fator esse que interfere muito no princípio da insignificância, pois na sua
grande maioria esse anseio é por imposições penais ao indivíduo que cometeu um
delito, muitas vezes insignificante ao bem jurídico tutelado.
E a respeito desse anseio social por punição temos os dizeres de Luiz Luisi,
citado por Nucci (2014, p. 67) sustentando que:
O Estado deve evitar a criação de infrações penais insignificantes, impondo penas ofensivas à dignidade humana. Tal postulado encontra-se implícito na Constituição Federal, que assegura direitos invioláveis, como a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade, bem como colocando como fundamento do Estado democrático de direito a dignidade da pessoa humana. Daí ser natural que a restrição ou privação desses direitos invioláveis somente se torne possível, caso seja estritamente necessária a imposição da sanção penal, para garantir bens essenciais ao homem.
Diante do exposto, fica claro que o princípio da insignificância, acima de tudo,
tem como objetivo não apenas diminuir a pena, mas afastar a tipicidade do crime,
eliminando qualquer possibilidade de punição.
Assim, temos as palavras de Bitencourt (2012, p. 441), para o qual “a
insignificância da ofensa afasta a tipicidade. Mas essa insignificância só pode ser
valorada através da consideração global da ordem jurídica”.
Concluímos, portanto, que diferentemente do princípio da intervenção mínima
que, basicamente, visa ao afastamento do Estado punitivo das relações que podem
ser resolvidas nas outras searas do direito, o princípio da insignificância busca
afastar a tipicidade da conduta do agente, eliminando qualquer possível repressão,
tanto no direito penal como em todas suas outras áreas.
2 A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA NOS JULGAMENTOS
DOS TRIBUNAIS SUPERIORES BRASILEIROS E A CONSOLIDAÇÃO DA
SELETIVIDADE PUNITIVA
O princípio da insignificância pode ser considerado um princípio relativamente
novo, isso por si só, pode ser considerado um fator importante quando falamos em
seletividade punitiva, pois dele pode decorrer a falta de critérios objetivos explícitos.
Confirmando o que foi dito temos Rebêlo (2000, p. 47) onde afirma que
“o
primeiro caso em que o princípio se viu reconhecido pela Suprema Corte é o contido
no RHC 66.869/PR, relatado pelo Ministro Aldir Passarinho, em 6.12.1988”.
Feitas essas primeiras colocações, o presente capítulo tem por objetivo
analisar a aplicação do princípio da insignificância nos julgamentos dos Tribunais
Superiores brasileiros, ou seja, analisar diversos julgados, tanto do STF quanto do
STJ, com o intuito de demonstrar a seletividade punitiva presente no nosso sistema
penal, assim como os critérios utilizados por esses tribunais para a utilização do
referido princípio, nos subitens que seguem.
2.1 A verificação da seletividade punitiva a partir da aplicação do princípio da
insignificância aos crimes fiscais e patrimoniais
A aplicação do princípio da insignificância nos Tribunais Superiores brasileiros
vem sendo uma incógnita, pois seu conteúdo não está presente em nenhuma
legislação explícita, e isso dá margem a variadas interpretações, tanto a respeito dos
requisitos da sua aplicabilidade como a respeito do próprio resultado de sua
aplicação.
Contudo, seu caráter implícito não pode ser usado como argumento para sua
não aplicação, pois como nos mostra Sarmento citado por Ivan Luiz da Silva (2011,
p. 48):
A ordem jurídica constitucional não é composta apenas pelas normas expressas em seu texto legal, mas também por princípios que subsistem em estado de latência em seu interior, denominados de
princípios implícitos. Isso se dá em razão de o texto normativo não exaurir a norma, sendo possível, portanto, extrair-se norma mesmo onde não haja texto.
Porém todos os princípios precisam ser concretizados no direito para
poderem ser elencados e localizados (SILVA, 2011, p. 138). Neste sentido também é
o entendimento de Mauricio Antônio Ribeiro Lopes (2000, p. 409), ao afirmar que
“tanto implícito como expresso, todo princípio necessita, sem exceção, ser
concretizado para ter validade em determinada ordem jurídica”.
Além da necessidade da concretização do princípio, como dito anteriormente,
temos os requisitos que devem ser observados para a sua aplicabilidade, que no
caso do princípio da insignificância são: a) mínima ofensividade da conduta; b)
nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade; d)
inexpressividade da lesão jurídica.
Neste sentido temos o entendimento do Ministro do STF, Celso de Mello no
Habeas Corpus nº 84.412, DJ. 19.11.2004:
O princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada. (BRASIL, 2017).
Em consonância com estes requisitos o princípio da insignificância deverá ser
aplicado quando reunidos esses requisitos. Entende-se que, nesses casos, a não
aplicação do referido princípio acarretará uma sanção penal, e esta será
infinitamente mais abusiva aos direitos fundamentais que tentamos proteger, do que
o próprio ato delituoso. Logo, da aplicação do princípio da insignificância não resulta
apenas a diminuição ou substituição da pena, mas sim a absolvição do réu, tornando
aquele ato atípico e excluindo totalmente sua ilicitude.
Diante do exposto, fica demonstrado que o resultado decorrente da não
aplicação do princípio da insignificância, assim como de qualquer outro princípio,
fere mais a norma penal que a pratica de um crime que se enquadre nesse princípio.
Assim também entende Rebêlo (2000, p. 11-12):
princípio é, por definição, o mandamento nuclear de um sistema, seu verdadeiro alicerce, sua causa primaria, seu germe. Por isso mesmo, violar um princípio é muito mais gravoso do que agredir uma norma ou comando determinado, porquanto implica repudio a todo um sistema.
Portanto, o princípio da insignificância, além de ser um princípio disponível ao
direito penal, é um princípio que garante a aplicabilidade dos direitos fundamentais,
tais como os princípios da liberdade, igualdade e fraternidade, como nos mostra
Silva (2011, p. 126) ao referir que,
“por seu turno, o Princípio da Insignificância
fundamenta-se nesses princípios, uma vez que, ao interpretar restritivamente o tipo
penal, visa concretizar esses princípios fundamentais do Estado de direito
democrático na seara penal”.
Assim, fica evidente que o ato mais gravoso para o indivíduo e para a
sociedade como um todo, não é aquele pequeno delito praticado, mas sim a não
observância de um direito fundamental. Decorrente disso, vemos muitas vezes a
aplicação de penas absurdas e desproporcionais,
“caracterizadoras de um
retribucionismo exagerado que mais lesam a coletividade do que a protegem”, como
salienta Rebêlo (2000, p. 7).
Como resultado disso, o cidadão é deixado a mercê de uma sociedade
induzida que clama por punição, e de um direito penal que claramente foi criado
para perseguir o indivíduo desfavorecido. É nesse momento que a justiça deixa de
ser cega para poder selecionar quem “mereça” ser punido.
Diante disso devemos lembrar que a Constituição Federal de 1988 (CF/88)
estabelece, em seu artigo 5º, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza”.
Porém não podemos ser ingênuos a ponto de acreditar que as nossas leis
são o reflexo da realidade, pois não são. A realidade é que o indivíduo pobre
representa a grande maioria do nosso sistema carcerário, e que desses, grande
parte é composta por indivíduos que cometeram um pequeno delito patrimonial, caso
no qual poderia ser aplicado o princípio da insignificância.
Contudo, a prática representa um sistema penal repleto de seletividade,
principalmente sobre indivíduos vulneráveis. Nesse sentido é o entendimento de
Cirino dos Santos citado por Nilo Batista (2007, p. 25-26), quando salienta que o
sistema penal é:
constituído pelos aparelhos judicial, policial e prisional, e operacionalizado nos 10 limites das matrizes legais, pretende afirmar-se como “sistema garantidor de uma ordem social justa”, mas seu desempenho real contradiz essa aparência. Assim, o sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas, quando na verdade seu funcionamento é seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas, integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas condutas (As exceções, além de confirmarem a regra, são aparatosamente usadas para a reafirmação do caráter igualitário).
As leis são feitas conforme sua reprovabilidade social, porém, com a ideia de
que os menos favorecidos cometem mais crimes, o que nos mostra um sistema
penal falho, pois desde a sua criação até a sua aplicação demonstra ser seletivo.
Um exemplo disso, no caso do presente trabalho, é a diferença das penas na prática
do furto e do descaminho, ambos abordados nesta pesquisa.
Os artigos 155 e 334, ambos do Código Penal, na teoria nos trazem a mesma
pena:
Art. 155 - subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa
Art. 334 - Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria: Pena – reclusão, de um a quatro anos”. (BRASIL, 2017).
Porém, na prática a realidade é totalmente diferente. Isso porque
normalmente quem sonega é de classe média alta, e a grande maioria dos
indivíduos presos por furto pertencem à classe baixa. Diante disso, a realidade nos
mostra indivíduos presos por furtarem um xampu de supermercado no valor de R$
25,00, por exemplo, e, de outro lado, indivíduos que sonegam até R$ 20.000,00 e
que permanecem em liberdade, mesmo sabendo que a pena estipulada em lei é a
mesma para ambos.
A única diferença entre esses artigos é que um (art. 334) deve ser aplicado
em consonância com a Lei 10.522/2002 e as Portarias 75 e 130/2012 do Ministério
da Fazenda, e o outro (art. 155) não possui nada expresso para definir quando sua
aplicabilidade deve ser ignorada para não ferir direitos fundamentais.
A respeito do Art. 334, CP, temos o entendimento de Rebêlo (2000, p. 31),
que diz:
O descaminho do art. 334/CP, não será certamente a posse de pequena quantidade de produto estrangeiro de valor reduzido, mas sim a de mercadoria cuja quantidade ou cujo valor indique lesão tributaria de certa expressão para o físico.
Diante disso fica claro o pensamento da sociedade em respeito a este crime.
Porém, não podemos esquecer que tanto para o furto, quanto para o descaminho a
lei estipula a mesma pena, que é de um a quatro anos de reclusão, mas que na
prática não é aplicado para um, mas é para o outro.
Ainda, além de todos os requisitos para a aplicação do princípio da
insignificância, essa seletividade no sistema punitivo brasileiro é um problema que a
sociedade enfrenta diariamente, pois o patamar elevado para a utilização do
princípio da insignificância nos delitos fiscais e a falta de um quantum que norteie as
decisões nos pequenos delitos patrimoniais é um dos principais motivos que leva ao
enorme número de julgados diferentes, com pesos e penas distintas.
A falta de orientação aos magistrados muitas vezes faz com que sejam
julgados improcedentes casos que nem poderiam ser considerados ilícitos, pois, se
utilizado o princípio da insignificância tornaria o fato atípico.
Além disso, não podemos desejar a prisão de um indivíduo por ter praticado
um fato jurídico de mínima relevância, onde, se feita esta prisão, tal fato acarrete
maior injustiça do que o próprio ato, até ali ilícito, conforme nos mostra o Habeas
Corpus (HC) 84.412, impetrado no Supremo Tribunal Federal (STF), no qual o
ministro Celso de Mello concedeu a liminar em favor do paciente, que havia sido
condenado pela Justiça paulista pelo crime de furto de uma fita de vídeo game, no
valor de R$ 25,00 (vinte e cinco reais). (BRASIL, 2017).
Percebemos que em casos de furto, o objeto pode ter valor abaixo de R$
50,00 e não se encaixar no princípio da insignificância dependendo de suas
peculiaridades, enquanto em um delito fiscal pode chegar até o valor de R$
20.000,00, conforme o art. 20 da Lei 10.522/2002 e das Portarias 75 e 130/2012 do
Ministério da Fazenda:
Art. 20. Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais). (BRASIL, 2017).
Portanto, os casos de delitos fiscais em que os valores estejam abaixo de R$
20.000,00 e que se encaixem no princípio da insignificância serão absolvidos,
conforme relatoria da Ministra Rosa Weber no Habeas Corpus 120.617 (Paraná):
Trata-se de habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de Charlie Cavaglieri contra acórdão do Superior Tribunal de Justiça, que rejeitou os embargos de declaração no agravo regimental no REsp 1.404.750/PR. O paciente foi denunciado pela suposta prática do crime de contrabando ou descaminho, tipificado no art. 334, § 1º, d, do Código Penal, por transportar
mercadorias de origem estrangeira desacompanhadas de
documentação legal, tendo elidido tributos federais no valor de R$ 11.789,90 (onze mil, setecentos e oitenta e nove reais e noventa centavos). O Juízo de Direito da 2ª Vara Federal da Subseção
Judiciária de Foz de Iguaçu/PR absolveu sumariamente o paciente, por atipicidade da conduta, forte na aplicação do princípio da insignificância. (BRASIL, 2016).
Por outro lado, temos os casos em que a utilização do princípio da
insignificância foi negada, conforme Habeas Corpus 122167 de relatoria do Ministro
Ricardo Lewandowski:
PENAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. REPROVABILIDADE DA CONDUTA DA AGENTE. ORDEM DENEGADA.I - A ré foi condenada pela prática do crime descrito no art. 155, §§ 1º e 4º, inciso II, do CP, pela subtração de um aparelho de som avaliado em R$ 70,00. O STJ apenas afastou a causa de aumento relativa ao repouso noturno. Como se sabe, a configuração do delito de bagatela, conforme têm entendido as duas Turmas deste Tribunal, exige a satisfação, de forma concomitante, de certos requisitos, quais sejam, a conduta minimamente ofensiva, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a lesão jurídica inexpressiva. II – Ocorre, contudo, que os autos dão conta da reiteração criminosa. A paciente tem em curso ações penais pelo mesmo fato, consoante certidão às págs. 58-60 do documento eletrônico 7. III – Revelada a periculosidade da paciente, não há falar na aplicação do princípio da insignificância, em razão do alto grau de
reprovabilidade do seu comportamento. IV – Ordem denegada.
(BRASIL, 2017).
Ainda temos o acordão do Habeas Corpus 124.748 MS, de relatoria da
Ministra Carmen Lúcia, que também nega a utilização do princípio da insignificância,
dessa vez em um caso de furto de R$ 240,00, alegando que essa quantia era
imprescindível para sua subsistência da vítima, e manteve este argumento mesmo
após o dinheiro ser devolvido, conforme segue:
HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PENAL. INAPLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. FURTO DE R$ 240,00 (DUZENTOS E QUARENTA REAIS) DA APOSENTADORIA DA VÍTIMA IMPRESCINDÍVEL PARA SUA SUBSISTÊNCIA. AUSÊNCIA DE PLAUSIBILIDADE JURÍDICA. MEDIDA LIMINAR INDEFERIDA. VISTA AO PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA. Relatório 1. Habeas corpus, com requerimento de medida liminar, impetrado pela DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO, em benefício de JORGE DOURADO, contra julgado da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que, em 4.9.2014, negou provimento ao Agravo Regimental no Recurso Especial n. 1.448.852, Relator o Ministro Rogerio Schietti Cruz. (BRASIL, 2017)
Com isso podemos ver os diferentes pesos que o judiciário tem dado a cada
caso: um caso refere-se ao crime de furto, delito normalmente praticado por pessoas
socialmente desfavorecidas, e que mereciam um cuidado especial por parte do
Estado, mas não o tem, e o outro caso refere-se a um delito fiscal, no qual a margem
para aplicação do princípio da insignificância pode chegar até o valor de R$
20.000,00, conforme legislação expressa, normalmente favorecendo pessoas que
ocupam espaços privilegiados na sociedade brasileira.
A situação financeira do indivíduo é um fator determinando quando falamos
em seletividade punitiva. Nesse sentido é o entendimento de Raquel Alves Rosa da
Silva (2014, p. 22):
O vetor da seletividade é flagrante, uma vez que os poucos – já que a seleção criminalizante enseja uma massa carcerária quase homogênea quanto a condições econômicas – presos que têm uma situação financeira melhor se valem de recursos não rotineiros no sistema carcerário, como o acompanhamento por advogado próprio, qualidade na alimentação, objetos pessoais e até regalias proporcionadas pela corrupção que geralmente acompanha o sistema carcerário.
Portanto, é evidente que não apenas a norma, mas todo o sistema penal está
contaminado pela injustiça, pois a máquina estatal responsável por proteger o
cidadão é a responsável por toda seletividade entranhada no sistema punitivo, como
se evidenciará na sequência, a partir de uma seleção de julgados dos Tribunais
Superiores brasileiros acerca da aplicação do princípio da insignificância nos delitos
fiscais e patrimoniais.
2.2 Os critérios adotados pela jurisprudência dos Tribunais Superiores
brasileiros para a aplicação do princípio da insignificância nos delitos fiscais
Os critérios adotados pelos Tribunais Superiores para a aplicação do princípio
da insignificância têm algumas divergências. Porém, em sua maioria, seguem uma
mesma linha de raciocínio entre os dois principais tribunais brasileiros no caso do
delito fiscal de descaminho. São eles: a) a mínima ofensividade da conduta do
agente; b) a ausência de periculosidade social da ação; c) o reduzido grau de
reprovabilidade do comportamento; d) a inexpressividade da lesão jurídica causada.
(BRASIL, 2017).
Nesse sentido é o acordão do Supremo Tribunal Federal no Agravo
Regimental no Habeas Corpus 129.813 MS, de relatoria do Ministro Luiz Fux,
julgado em 31/05/2016:
Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME DE DESCAMINHO. ARTIGO 334 DO CÓDIGO PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO CONSTITUCIONAL. INADMISSIBILIDADE. COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA JULGAR HABEAS CORPUS: CRFB/88, ART. 102, I, D E I. HIPÓTESE QUE NÃO SE AMOLDA AO ROL TAXATIVO DE COMPETÊNCIA DESTA SUPREMA CORTE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. CARACTERIZAÇÃO DA
HABITUALIDADE DELITIVA. AGRAVO REGIMENTAL
DESPROVIDO. 1. O princípio da insignificância incide quando presentes, cumulativamente, as seguintes condições objetivas: (a)
mínima ofensividade da conduta do agente, (b) nenhuma
periculosidade social da ação, (c) grau reduzido de reprovabilidade
do comportamento, e (d) inexpressividade da lesão jurídica
provocada. 2. A aplicação do princípio deve, contudo, ser precedida de criteriosa análise de cada caso, a fim de evitar que sua adoção indiscriminada constitua verdadeiro incentivo à prática de pequenos delitos. 3. O princípio da bagatela é afastado quando comprovada a contumácia na prática delitiva. (BRASIL, 2017).
Assim também é o entendimento do Superior Tribunal de justiça no Agravo
Regimental no Recurso Especial 1589303 MT, de relatoria do Ministro Jorge Mussi
em 25/04/2017:
REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. DESCAMINHO. PRINCÍPIO
DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.
REITERAÇÃO DELITIVA. REGISTRO DE AUTOS DE INFRAÇÃO FISCAL. RECURSO IMPROVIDO.
1. A aplicação do princípio da insignificância reflete o entendimento de que o Direito Penal deve intervir somente nos casos em que a conduta ocasionar lesão jurídica de certa gravidade, devendo ser reconhecida a atipicidade material de perturbações jurídicas mínimas ou leves, essas consideradas não só no seu sentido econômico, mas também em função do grau de afetação da ordem social que ocasionem.
2. Este Superior Tribunal de Justiça posiciona-se no sentido de que, para além dos requisitos objetivos, o aspecto subjetivo, consubstanciado, sobretudo, na verificação da reiteração criminosa do agente, caso reconhecida, impede a incidência do princípio da
insignificância, porquanto demonstra maior reprovabilidade de seu comportamento, circunstância suficiente e necessária a embasar a incidência do Direito Penal como forma de coibir a reiteração delitiva. 3. A habitualidade no delito de descaminho, tendo em vista a
existência de vários procedimentos administrativos fiscais
instaurados, afasta o requisito referente ao reduzido grau de reprovabilidade do comportamento das agentes, impossibilitando a aplicação do princípio da insignificância
4. Agravo regimental improvido. (BRASIL, 2017).
Outro fator primordial para o princípio da insignificância, porém desta vez para
a sua não aplicação, é a reincidência, ou seja, quando o indivíduo reiteradas vezes
pratica o mesmo fato delituoso. É incontestável que ambos os tribunais, STF e STJ,
tem o entendimento consolidado a respeito da inaplicabilidade do princípio da
insignificância quando se trata de indivíduo reincidente.
Neste sentido explica o Ministro Rogerio Schietti Cruz, do Superior Tribunal
de Justiça (STJ), no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus número
31612 / Pb em 20/05/2014:
RECURSO EM HABEAS CORPUS. DESCAMINHO. REITERAÇÃO NA OMISSÃO DO PAGAMENTO DE TRIBUTOS. EXISTÊNCIA DE
INÚMEROS PROCEDIMENTOS FISCAIS. PRINCÍPIO DA
INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE.
1. A insignificância, enquanto princípio, revela-se, na visão de Roxin, importante instrumento que objetiva restringir a aplicação literal do tipo formal, exigindo-se, além da contrariedade normativa, a ocorrência efetiva de ofensa relevante ao bem jurídico tutelado. 2. No terreno jurisprudencial, dispensam-lhe os tribunais, cada vez com maior frequência, destacado papel na tentativa de redução da intervenção penal, cujos resultados não traduzem, necessariamente, reforço na construção de um direito penal mínimo, principalmente diante do crescimento vertiginoso da utilização desse ramo do direito como prima ratio para solução de conflitos, quando deveria ser a ultima ratio.
3. Se, de um lado, a omissão no pagamento do tributo relativo à importação de mercadorias é suportado como irrisório pelo Estado, nas hipóteses em que uma conduta omissiva do agente (um deslize) não ultrapasse o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) - entendimento em relação ao qual registro minha ressalva pessoal - de outro lado, não se pode considerar despida de lesividade a conduta de quem, reiteradamente, omite o pagamento de tributos sempre em valor abaixo da tolerância estatal, amparando-se na expectativa de inserir-se nessa hipótese de exclusão da tipicidade. 4. O alto desvalor da conduta rompe o equilíbrio necessário para a perfeita adequação do princípio bagatelar, principalmente se considerada a possibilidade de que a aplicação desse instituto, em