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Relações de poder em Milan Kundera e Gonçalo M. Tavares

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Academic year: 2021

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MESTRADO EM ESTUDOS LITERÁRIOS, CULTURAIS E INTERARTES

RAMO DE ESTUDOS ROMÂNICOS E CLÁSSICOS: LITERATURA PORTUGUESA

Relações de poder em Milan Kundera e

Gonçalo M. Tavares

Alexandre Costa

M

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Alexandre Costa

Relações de poder em Milan Kundera e

Gonçalo M. Tavares

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, orientada pelo Professor Doutor Pedro Jorge Santos da Costa Eiras

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

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Alexandre Costa

Relações de poder em Milan Kundera e

Gonçalo M. Tavares

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, orientada pelo Professor Doutor Pedro Jorge Santos da Costa Eiras

Membros do Júri

Professora Doutora Pedro Jorge Santos da Costa Eiras Faculdade de Letras - Universidade do Porto

Professor Doutor Maria de Lurdes Morgado Sampaio Faculdade de Letras - Universidade do Porto

Professora Doutora Zulmira da Conceição Trigo Gomes Marques Coelho Santos Faculdade de Letras - Universidade do Porto

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O martelo do investigador não martela os pregos do Mistério do Mundo, martela os pregos da própria cabeça do investigador.

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Sumário

I. Introdução: o romance-reflexão e o poder………..…...8

II. Desenvolvimento: diferentes tipos de poder………..12

1 - A codificação do castigo: do controlo de pensamento à repressão………12

2 - Cárcere e vigilância: do quartel de Kundera ao hospício de Tavares……….26

3 - Corpo, domínio e castigo: do “corpo simbólico” ao “corpo biológico” ………37

4 - O poder que define a norma: da desordem à insignificância………51

5 - Da luta pela identidade kunderiana à cidade em guerra de Tavares……….63

III. Conclusão: a originalidade e as “ideias do mundo” ……….………82

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Declaração de Honra

Declaro que a presente dissertação é de minha autoria e não foi utilizada previamente noutro curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As referências a outros autores (afirmações, ideias, pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da atribuição, e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências bibliográficas, de acordo com as normas de referenciação. Tenho consciência de que a prática de plágio e auto-plágio constitui um ilícito académico.

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Agradecimentos

Este documento nunca poderia ter sido elaborado sem a contribuição de inúmeros professores. Contudo, sinto ter tido particular sorte em me ter cruzado com dois.

À Professora Maria Luísa Malato, pelo voluntarismo, sabedoria e experiência, absolutamente fulcrais no meu percurso académico.

Ao Professor Pedro Eiras, pela inspiração e eloquência, decisivos na minha vontade de avançar neste estudo. Num sentido mais prático, pela disponibilidade para colocar o seu conhecimento ao serviço de todas as fases deste trabalho.

Aos meus pais. À minha família.

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Resumo

As obras de Milan Kundera e Gonçalo M. Tavares são comummente tidas, pelos seus críticos, como exemplos de ficções com forte vertente ensaística, ou seja, relembrando o termo cunhado por Vergílio Ferreira, “romance-reflexão”. São também montra de múltiplas relações de poder entre personagens e instituições, se por poder entendermos a capacidade de uma entidade estabelecer controlo sobre a outra.

Isto acontece com recurso a diversos cenários narrativos: são temas recorrentes as sociedades totalitárias, as guerras, mas também as instituições carcerárias. Em qualquer destes contextos é comum a reflexão sobre o corpo e a identidade, e a forma como ambos se relacionam com o conceito de norma, que assume papel decisivo na caracterização de ambos.

Nesse sentido, esta dissertação explora a forma como as relações de poder surgem nas obras destes dois autores.

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Abstract

Milan Kundera’s and Gonçalo M. Tavares’ works are commonly considered, by their critics, as examples of fictions with a strong essayistic component, recalling Vergílio Ferreira’s concept, “reflection-novel”. They also show multiple relations of power between characters and institutions, if by power we mean the capacity of an entity to take control over another.

This happens resorting to multiple narrative scenarios: are recurrent scenarios like totalitarian societies, wars, but also imprisonment institutions. In any of these contexts are common the reflections about body and identity, and the way both relate to the concept of normality, that has a decisive role on their characterization.

In this sense, this dissertation explores the way relations of power appear in the works of those two writers.

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I. Introdução: o romance-reflexão e o poder

Antes de investigar diferenças e pontos de contato, importa explicar a escolha de dois autores de gerações e países diferentes para um estudo comparatista.

De um modo geral, unem-nos os géneros romanesco e ensaístico. Kundera escreve romances, ensaio, e por vezes teatro. Tavares escreve romances e, embora nos debrucemos fundamentalmente sobre a sua obra romanesca e ensaística, é curiosa a forma como algumas obras parecem mais difíceis de catalogar. Nas palavras deste autor: “os géneros literários podem ser muito limitadores do trabalho (...) se uma pessoa se sentar a pensar «agora vou escrever um conto» ou «agora vou escrever um romance» é como se sentasse com toda a tradição e com toda a formalização do que é um romance” (Tavares 2010c).

De facto, uma grande parte das obras de Tavares não parece ter fácil atribuição de género. Por exemplo, quando questionado sobre O Atlas do Corpo e da Imaginação, responde que “é um ensaio ficcional. Tenho um fascínio pelo «e» e um grande desinteresse pelo «ou»” (Tavares 2013b). Se existem ensaios ficcionais, nas suas palavras, talvez possam também existir ficções ensaísticas, ou seja, ficções cujo desenrolar da narrativa sirva para incitar a reflexões sobre os temas em causa.

Estes contornos híbridos do género são fáceis de identificar também na obra kunderiana, em que os acontecimentos da narrativa surgem, quase sempre, alternados com reflexões do narrador. Diversas situações semelhantes serão citadas nas próximas páginas, mas esta estrutura, em que a narrativa é constantemente comentada pelo narrador heterodiegético, é transversal a quase toda a obra de Kundera. Contudo, quando confrontado com a relação entre a sua forma de fazer romance e a filosofia, Kundera refuta-a, alegando que “a filosofia desenvolve a sua reflexão num espaço abstracto, sem personagens, sem situações” (1986: 28). Ou seja, o narrador kunderiano reflete com base na narrativa, com “personagens e situações”, e não “num espaço abstrato”.

Luís Mourão também defende a existência de um papel reflexivo nos romances tavarianos:

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Eles [romances de Gonçalo M. Tavares] decorrem de um lugar dentro dessa autoria, um lugar onde se pensa sob forma narrativa uma temática radicalmente diferente daquelas outras que já pertencem ao território do autor. E se insisto neste aspeto é porque ele pode revelar o quanto o romance-reflexão, hoje, vive um momento diferente do seu regime de significação. (2011: 49)

Segundo Mourão, os romances de Tavares acontecem “num lugar onde se pensa sob forma narrativa”. Tavares aclara a sua posição no panorama do “romance-reflexão”:

Tenho muito respeito pela filosofia e pelos filósofos (...), mas precisamente por esse respeito tenho de dizer que é evidente que não sou um filósofo. Penso que a filosofia e as ideias são muito importantes para a escrita, não gosto de livros que não pensam e não nos fazem pensar (...) penso que a literatura ainda é, e deve ser cada vez mais o espaço por excelência do pensamento, da reflexão, enfim, da lucidez. E não precisa de ser pensamento filosófico, nada disso. Através de uma história podemos fazer pensar. Mas claro que não é uma historieta qualquer (2007b)

Também Tavares parece, então, demarcar os seus romances da filosofia, ainda que não se identifique com “livros que não pensam e não fazem pensar”. Talvez não ser “uma historieta qualquer” implique uma procura reflexiva, uma tentativa de “fazer pensar”. Kundera parece corroborar estas afirmações:

Sejamos mais precisos: todos os romances de todos os tempos se debruçam sobre o enigma do eu. Logo que se cria um ser imaginário, um personagem, está-se automaticamente confrontado com a pergunta: o que é o eu? (…) É uma das tais perguntas fundamentais sobre as quais o romance, enquanto tal, se baseia. (1986: 37).

A associação de ambos àquilo que Mourão denomina de “romance-reflexão” parece evidente. Vergílio Ferreira sugere este conceito em Espaço do Invisível: “dois tipos de romance, com efeito, eu julgo deverem distinguir-se: o «romance-espectáculo» e o «romance-problema»” (1987: 20). Ou seja:

O primeiro [romance-espectáculo] confronta-se particularmente com as coisas e pessoas, o segundo [romance-problema] sobretudo com as ideias. Do primeiro fica-nos em saldo uma imagem do mundo e da vida; do segundo, uma questão para reflectir (...) Em todo o caso, a distância é infinita, sob este aspecto, entre um romance de Balzac e um romance de Kafka(idem: 28).

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Ainda que as entrevistas sejam epitextos, e as ideias nelas presentes não tenham de existir nas obras do autor (cf. “às vezes é interessante não saber nada sobre o percurso do autor de um livro para não haver contaminação do percurso (…) pessoal” (Tavares 2010b)), as próprias palavras de Kundera e Tavares parecem destacar a importância da vertente ensaística para a sua arte romanesca. Aliás, quando Tavares fala em “historieta”, parece mesmo recuperar a expressão de Vergílio Ferreira:

Se a Europa está velha nós reconhecemos que desse modo a não seduzem já as expressões fáceis da narrativa, da historieta, com os seus lances de sentimentalidade, do fácil imaginário, do enredo estimulante (...) além de que o desgaste é uma lei inflexível para tudo o que é da vida humana, (...) o que nos fala à reflexão estimula-nos muito mais do que o que fala simplesmente ao interesse pelo espectáculo (Ferreira 1980: 23).

A historieta, para Ferreira, consiste em “expressões fáceis da narrativa”, num “fácil imaginário”, ou seja, algo que facilmente associaríamos ao “romance-espetáculo”, como é categorizado em Espaço do Invisível. A ligação de Kundera com esta forma de romance parece presente em diversas análises ao trabalho do escritor checo. Por exemplo, Mohsen Masoom escreve que “in his mature works of fiction, Kundera creates an independent, self-contained world, which is constantly analyzed and questioned from a philosophical point of view” (2010: 235). Essa constante análise do ponto de vista filosófico parece fundamental para o entendimento da obra de Kundera, e coloca a sua obra definitivamente naquilo que Ferreira defende ser o “romance-reflexão”, longe das “historietas” e das “expressões fáceis da narrativa”.

O facto de estas narrativas terem uma componente de reflexão sobre a própria ação torna a análise do crítico diferente da que pode ser feita a outras obras: antes de nós, já o próprio narrador reflete sobre a ação. Ainda que seja o narrador, heterodiegético e distante, e refletir sobre a narrativa, dissociar a ação da consequente reflexão é ignorar pistas úteis para a compreensão da ação, e dar-lhes demasiada ênfase pode resultar numa redução das possibilidades de análise do texto.

Esta relação entre as obras dos autores, na forma como o enredo é dependente da reflexão, parece uma evidência. Ainda que os cenários sejam diferentes, em especial na forma como Kundera explicita locais e datas, sendo Tavares é mais evasivo a esse nível, os temas predominantes nas obras dos dois autores têm algumas semelhanças. São comuns, por exemplo, os cenários de guerra, ou a ação de sistemas censórios.

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Neste estudo, analisar-se-á a forma como ambos os autores tratam o tema do poder nas suas obras, as diferenças e semelhanças, e como isto se relaciona com algumas das suas narrativas. Importa, portanto, definir o conceito de poder, para identificá-lo nas narrativas em causa.

Em “The conception of power: reconsidered”, do sociólogo americano Robert Michael Regoli, são-nos apresentadas as dificuldades inerentes à definição do conceito: “the more social scientists attempt to define power, the more complex it is found to be “power is the ability to establish control over another” (Regoli 1974: 157). Isto significa, portanto, que existem diversas definições possíveis. Entre algumas delas, destaquemos a que é atribuída a Edward C. Banfield, em Political Influence: A New Theory of Urban

Politics: “power is the ability to establish control over another” (Banfield, apud Regoli

1974: 158). Na generalidade da obra de Kundera e Tavares, o estabelecimento de controlo de uma entidade por outra é recorrente: do poder estatal ao poder emocional, de situações coletivas a grupais, a presença do poder na obra dos dois autores parece uma evidência.

Não é este, por certo, o único tema que cruza a obra dos dois romancistas. Contudo, pareceu ser esta a hipótese que oferecia possibilidades hermenêuticas mais vastas. Tal como a definição de poder citada, parece suficientemente objetiva, mas ainda assim generalista ao ponto de permitir a relação com alguns dos temas mais frequentes nas obras dos dois autores. Nesse sentido foram estruturados os temas trabalhados ao longo das seguintes páginas: o castigo, a cárcere, o corpo, a norma, e a identidade. Ainda que cada um destes temas tenha âmbito próprio, oferecendo a possibilidade de uma mais prolongada análise, todos são desenvolvidos dentro do contexto do poder.

Procura-se, nesse sentido, estudar de que forma o poder, as suas relações e influências aparecem como elemento estruturante das obras ensaísticas e romanescas de ambos os autores. Procura-se que o texto aclare essas relações, explorando possibilidades de proximidade e afastamento entre Kundera e Tavares.

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II. Desenvolvimento: diferentes tipos de poder

2.1 – A codificação do castigo: do controlo de pensamento à

repressão

Michael Foucault enuncia, em Vigiar e Punir, uma nova era para a justiça penal a partir do século XVIII, falando do “projecto ou redação de códigos «modernos»: Rússia, 1769; Prússia, 1780; Pensilvânia e Toscana, 1786; Áustria, 1788; França, 1791, Ano IV, 1808 e 1810” (1975: 11): trata-se do fim das punições eminentemente físicas. O corpo vai progressivamente saindo do foco punitivo: é dito que “desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal” (idem: 12).

Esta mudança ganha reforçada importância porque a diferença passa, então, pela tipologia do castigo, não na gravidade que lhe é imposto. Trocam-se fogueiras, chicotes e apedrejamentos por situações em que “o sofrimento físico, a dor do corpo, não são mais os elementos constitutivos da pena” (ibidem: 14). Não se trocou meramente a fogueira pelo empalamento, ou a forca pela cadeira elétrica. É Foucault quem diz que “desaparece, em princípios do século XIX, o grande espectáculo a punição física: o corpo supliciado é escamoteado; exclui-se do castigo a encenação da dor. Penetramos na época da sobriedade punitiva” (16).

Nos lugares citados no primeiro parágrafo, criou-se foco numa “nova ilegalidade”; fez-se “derivar a ilegalidade do ataque aos corpos para o desvio mais ou menos direto dos bens” (65), e isso parece ter sido decisivo para esta mudança de paradigma. Assim, surge a necessidade de encontrar um castigo que se adeque ao delito numa perspetiva moral e, simultaneamente, numa perspetiva de correção. Como diz uma das definições de poder citadas por Michael Regoli, “power is conceived of as a relationship between two actors, where one actor is able to bring about a change in the second actor” (Goldhammer e Shils, citados por Regoli 1974: 159). Ou seja, se determinados comportamentos são transgressores, necessitam de mudança para serem integrados na ordem vigente. Nesse

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sentido, o “one actor”, executor do poder, terá de encontrar o melhor caminho para transformar o comportamento do “second actor”, indivíduo punido.

Ainda assim, antes da atribuição de um castigo, importa definir aquilo que constitui, afinal, um comportamento transgressor. Como diz Foucault, o estabelecimento de “leis fixas, constantes, determinadas da maneira mais precisa, de modo que os súditos saibam a que se expõem, e que os magistrados não sejam mais do que o órgão da lei” (1976: 75), é fundamental para estabelecimento de um sistema penal.

Assiste-se, então, a uma codificação mais nítida do castigo, que impeça que este seja aplicado de forma diferente, em casos semelhantes. Foucault avança com a possibilidade de um “tribunal [que] não é a expressão natural da justiça popular mas, pelo contrário, tem por função histórica reduzi-la, dominá-la, sufocá-la, reinscrevendo-a no interior de instituições características do aparelho de Estado” (1979: 13). Também Hannah Arendt diz que “o poder só nasce quando as pessoas agem em conjunto, e não quando as pessoas se fortalecem individualmente” (1991: 35). A transgressão deixa de colocar o objeto de punição contra meras vozes discordantes, individuais, cuja força é questionável, para o colocar contra um corpo social. No fundo, ficam “de um só lado todas as forças, todo o poder, todos os direitos” (Foucault 1976: 75) tornam o punido num inimigo comum.

Entende-se, então, que ao subscrever um pacto (que, quando estabelecido, pune um indivíduo sem rosto), pune-se um espectro, uma possibilidade de crime. O corpo do criminoso deixa de ser o mais relevante, e a punição lembra menos a vingança: procura-se antes que o castigado procura-seja punido com baprocura-se num código bem definido.

Ou seja: punir implica que o delito seja, antes de mais, “categorizado” entre outros delitos, sendo-lhe previsto um castigo adequado. Simultaneamente, se encararmos o castigo como forma de prevenção, ou forma de desencorajar futuros crimes, a esperança da impunidade cresce à medida que qualquer ato passa impune. Mais do que punir a disrupção à norma social, procuram-se desencorajar candidatos à sua repetição.

Talvez possamos, então, entender a punição como instrumento normativo. Se se pune para erradicar comportamentos, também se pune para normalizar outros. Nas palavras de Tavares, “o cidadão Bom é o cidadão normal” (2013a: 91). Definido o comportamento “Bom”, importa fazê-lo norma, cortando os excessos. Então, “a extravagância é intolerável ou pelo menos mal vista; a cidade é feita dos seus habitantes e o seu normal funcionamento depende do normal funcionamento dos seus habitantes”

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que ostracizar, premeia-se. Mais do que punir, valoriza-se. Existem comportamentos que, por serem contrários aos punidos, talvez possam ser valorizados:

Voltemos a Foucault, que diz que “a verdade não existe fora do poder ou sem poder” (1979: 10). A verdade parece ser produto de múltiplas coerções codificadas, combinadas e posteriormente convertidas em leis:

A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros (ibidem).

A verdade é, então, cultural, é uma aquisição posterior. Serve como forma de categorizar acontecimentos: verdadeiro e falso, bom ou mau. Existirá, então, liberdade para inverter o sistema? Ou seja: em sociedades com sistemas culturais próximos ou, arrisquemos, com “verdades próximas”, haverá a possibilidade de sobreviver num sistema de crenças contrário? Diz também Tavares que “a Verdade é uma velocidade. A Verdade passa por encontrar a velocidade certa da realidade, passa por colocar a realidade a avançar a uma certa velocidade” (2013a: 121).

Talvez o sistema punitivo seja uma forma de ajustar a “velocidade”. Depois de estabelecida a “velocidade” certa, passar-lhe os limites em qualquer um dos sentidos oferece direito a exclusão. Uma exclusão que puna o infrator mas que, simultaneamente, permita reafirmar a exposição pública da “velocidade certa”.

As ditaduras são, provavelmente, a exposição mais evidente dessa alteração consciente de “velocidade”. Numa retrospetiva história e cultural percebemos, de forma evidente, a forma como mudam os conceitos de certo e errado, de valorizado e punido: a “velocidade” certa e errada, de que fala Tavares. Contudo, quando dentro desse mesmo mundo existem “velocidades” fraturantes, os responsáveis pela imposição da “velocidade” certa podem tomar posições de força, como veremos adiante. Arendt, falando sobre organizações totalitárias, refere que:

Visam dar às mentiras propagandísticas do movimento tecidas em torno de uma ficção central – a conspiração dos judeus, dos trotskistas, das 300 famílias, etc. –, realidade operante e a construir, mesmo em circunstâncias não totalitárias, uma sociedade cujos membros ajam e reajam segundo as regras de um mundo fictício. (1958: 481)

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Talvez essa “ficção central”, de que fala Arendt, não seja mais do que uma “velocidade” imposta pelos governos autoritários. Essa “velocidade” deverá guiar comportamentos e crenças dos que a integram. Contudo, enuncia o dito popular que “cada cabeça, sua sentença”; ou, pela lógica tavariana, que falava em “velocidade”, cada indivíduo, conforme o seu sistema de crenças, poderá ter discursos “de verdade” próprios. Como reagem as organizações totalitárias às vozes disruptoras da ordem social vigente?

Este é o cenário de parte considerável das narrativas de Kundera. Como se tornará explícito mais à frente, essas narrativas têm um contexto histórico-social que quase sempre as caracteriza, quer através de referências espaciais e temporais, quer através de relatos históricos: falamos de Praga, da segunda metade do século XX. Simultaneamente, quase sempre as personagens são vítimas do sistema coercivo pela tentativa, mais ou menos deliberada, mais ou menos pessoal, de romper com esta “velocidade certa”.

Como diz Arendt, “a estabilidade do regime totalitário depende do isolamento do mundo fictício criado pelo movimento em relação ao mundo exterior” (idem 1958: 581). Ou seja, vozes discordantes, que se façam ouvir rompendo a narrativa instituída, são ameaçadoras para a homeostasia de um regime totalitário, visto que “a estabilidade do regime” depende desse isolamento.

The political condition has changed them so much that they are unable to recognise each other. This is the dehumanising impact of the forces of history and politics on the human existence under which man loses his identity and individuality. Depriving the individual of his identity is peculiar to totalitarian power. How power deprives individual of identity and freedom constitutes Kundera’s fundamental thematic obsession. (Asif 2014: 172)

Se este “depriving the individual of his identity” em contextos totalitários e o “mundo fictício” de que fala Arendt surgem amiúde na obra de Kundera, na de Tavares, talvez pela falta de conotação política dos textos, ou por a biografia do autor não ter historial direto de repressão e exílio, a informação surge de forma menos evidente. Contudo, em Jerusalém, terceiro livro da tetralogia O Reino, parte da ação parece remeter para alguns destes temas, que Muhammad Asif, em A Study of the Theme of Power in the

Works of Franz Kafka and Milan Kundera, categoriza como kunderianos.

Jerusalém inicia-se com a história de Mylia, uma mulher que tenta entrar numa

igreja durante a madrugada, sendo depois descrita a sua relação com Theodor Busbeck, médico e seu ex-marido. A dissolução de traços identitários é um dos temas abordados.

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Falando sobre coveiros, que exerciam funções num cemitério, diz Tavares: “Eram dois homens vestidos com o mesmo uniforme, o que revelava de imediato ordem e não crime” (2005: 25). O uniforme é apresentado como um instrumento do poder. Fragmenta vínculos identitários, anula particularidades, torna o sujeito num instrumento raso.

Mylia é apresentada como doente psiquiátrica. Aos dezoito anos, os pais levaram-na a um psiquiatra, Busbeck, que viria a torlevaram-nar-se seu marido. Além de ficar desde logo evidente um poder institucional inerente à posição do médico perante a paciente (atente-se nas palavras do próprio Theodor: “O médico deve estar a sós com os (atente-seus pacientes (idem: 33)), o marido parece, nos anos vindouros, exercer uma espécie de custódia sobre a mulher, que o leva a ter domínio sobre os seus destinos: “Theodor decidiu, precisamente no dia 31 de Dezembro, no oitavo ano em que viviam juntos, internar a sua esposa, Mylia, no piso dois do Hospício Georg Rosenberg, o mais conceituado da cidade” (63).

Ainda que se possa refletir sobre a possibilidade de Busbeck agir como médico ou marido de Mylia, é dito que “Theodor decidiu”, sem que a posição de Mylia sobre o assunto, ou um diagnóstico particularmente detalhado, tenha sido motivo para este desfecho. Feita a decisão de Busbeck, psiquiatra e marido, consideravelmente mais velho, não sobrou opção a Mylia senão ser internada. Parte da ação desenvolve-se, daí em diante, no Hospício Georg Rosenborg.

Este não é um tema novo: a cárcere é o mote de, por exemplo, em O Alienista, de Machado de Assis, a ação é um manicómio, tal como em Jerusalém. Escrito com mais de um século de diferença, a narrativa passa-se também num manicómio: “a loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente” (Assis 1882: 28). Noutro exemplo, em Catcher in the Rye, de J. D. Salinger, passa-se internato de um colégio. Aí o espaço é de emoções negativas: “It was a terrible school, no matter how you looked at it” (1951: 3), diz o protagonista, Holden Caulfield, antes da fuga da instituição. Em Norwegian Wood, de Haruki Murakami, o cárcere assume papel inverso, o de um refúgio: “«Just living here is the convalescence», she said. A regular routine, exercise, isolation from the outside world, clean air, quiet” (1987: 105), descreve Reiko, residente no local.

Ainda que a situação carcerária possa existir em diversas instituições de diferente índole, como hospitais, escolas, conventos, prisões ou manicómios, importa esclarecer a existência de diversos tipos de “total institutions”. Em Asylums: Essays on the Situation

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The total institutions of our society can be listed in five rough groupings. First, there are institutions established to care for persons felt to be both incapable and harmless; (…) Second, there are places established to care for persons felt to be both incapable of looking after themselves and a threat to the community (…). A third type of total institution is organized to protect the community against what are felt to be intentional dangers to it, with the welfare of the persons thus sequestered not the immediate issue (…). Fourth, there are institutions purportedly established the better to pursue some worklike task and justifying themselves only on these instrumental grounds (…) Finally, there are those establishments designed as retreats from the world even while often serving also as training stations for the religious (1961: 5).

Dentro desta categorização, o Georg Rosenberg parece encaixar entre a segunda e a terceira categorias. Protegem-se os loucos de si próprios ou enclausura-se o perigo para, cá fora, se poder viver sem problemas? A generalidade dos elementos do hospício de Jerusalém parece enquadrar-se na segunda categoria. Num dos capítulos, intitulado “Os loucos”, é feita uma descrição dos comportamentos de alguns dos pacientes. Como diz Maria Isabel Bordini, em O Poder e a Violência em O Reino, este capítulo “apresenta uma sucessão de diferentes vozes com marcas discursivas que denotam uma racionalidade que se distancia da racionalidade convencional” (2014: 68). A generalidade parece evidenciar alterações comportamentais que, no limite, os tornam desviantes do padrão comportamental vigente: “Se partir o vidro com a mão vou sentir a mão. Witold diz: se não sentes a alma parte o vidro com a alma. Ri-se.” (Tavares 2005: 80); ou ainda: “Estou a varrer o hotel, diz Marksara. O hotel está sujo, tem migalhas e tem homens. E tem beatas. Estou a varrer o hotel. Está cheio de homens, diz Marksara. E de beatas.” (idem); “Marko vê televisão o dia inteiro. Desde o momento em que se levanta até se deitar. Ninguém o consegue tirar dali. Pode acontecer qualquer coisa, diz.” (idem: 81).

Estes “loucos” parecem integrar-se na segunda categoria de Goffman, sem serem, contudo, um risco para quem os rodeia. São loucos que afirmam categoricamente cenários pouco prováveis: um chão pejado de beatas e homens, a possibilidade de usar a alma como forma de partir um vidro, o controlo de novos acontecimentos pela assistência obsessiva a uma televisão. Loucos que não se deixam convencer da sua impossibilidade do que afirmam por via argumentativa, que os fizesse acreditar na sua demência. Como diz Foucault, “não se pode supor, mesmo através do pensamento, que se é louco, pois a loucura é justamente a condição de impossibilidade do pensamento” (1972: 54).

No George Rosenberg esse procedimento parece ser substancialmente mais complexo:

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Havia, pois, como que um arredondamento da existência, o que era excessivo transformava-se em alvo médico: tentava eliminar-se essa coisa, pôr de fora, colocá-la para além desse arredondamento. Como se cada existência, exactamente como um compartimento, tivesse um caixote do lixo, um sítio específico, com formas adequadas, para onde se deveriam atirar os hábitos, acções e, se possível, os pensamentos que não interessavam. Neste caso, que não interessavam a quem vigiava: os médicos. (Tavares 2005: 104)

Talvez seja a isto que Foucault chama “a eliminação espontânea dos a-sociais” (1972: 90), ou seja, uma neutralização dos “pensamentos que não interessavam a quem vigiava”. Existe um código de conduta, o que também é condição sine qua non para a existência de um código de comportamentos a erradicar.

Mylia parece, ao longo da narrativa, funcionar como uma personagem oprimida pelo poder, do marido do Hospício (representado pelo responsável, Gomperz) e, em última instância, pelo consenso entre ambos. É o que acontece quando Mylia se envolve com outro doente, Ernst Spengler, doente esquizofrénico. A situação é exposta ao marido, que reúne de emergência com Gomperz. Sobre isto, atentemos nas palavras de Goffman:

There is another form of mortification in total institutions; beginning with admission a kind of contaminative exposure occurs. On the outside, the individual can hold objects of self-feeling - such as his body, his immediate actions, his thoughts, and some of his possessions - clear of contact with alien and contaminating things. But in total institutions these territories of the self are violated; the boundary that the individual places between his being and the environment is invaded and the embodiments of self profaned. (1961: 32)

O facto de o envolvimento de Mylia com Ernst ter sido exposto a Busbeck, seu responsável para o hospício, deixa bem claro o carácter invasivo, a vários níveis, das instituições carcerárias. Mais do que a perda do espaço corporal e do território próprio, invadido pela entidade que promove a reclusão, essa entidade parece procurar a perda de um espaço não-material: o do pensamento. A vigilância não acaba, portanto, nos atos.

Perceber aquilo que eles pensavam era também um objetivo; existia uma atenção excecional em redor daquilo que nunca se vê: o interior da cabeça. Uma das mais perturbantes perguntas do doutor Gomperz, a qualquer doente, era precisamente esta: em que está a pensar, meu caro? (Tavares 2005: 104)

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A busca do Georg Rosenberg é, então, a de um controlo holístico. As ações que importa controlar são provenientes de pensamentos errados: “Gomperz por vezes atrevia-se mesmo a colocar a um paciente a atrevia-seguinte questão: sabes em que deves pensar?” (idem: 105). Novamente, recordemos as palavras de Foucault, para quem a verdade não existe fora das relações de poder: “cada sociedade tem seu regime de verdade, sua «política geral de verdade»: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros” (1979: 10). São as relações de poder, e a inibição de certos comportamentos e ideias que legitimam a verdade instituída, que definem os comportamentos distantes dos tidos como corretos. Note-se aliás que, umas páginas adiante, as funcionárias do George Rosenberg são descritas como “portadoras de uma cabeça decente, como se dizia por ali” (Tavares 2005: 171). Pede-se, então, aos funcionários de um hospital de pessoas insanas que sejam capazes de manter a sensatez. Até porque, como diz Gonçalo M. Tavares, a saúde pode bem ser definida como “o estado em que os músculos fazem o que nós queremos e nós queremos algo de sensato” (idem: 60).

Parece haver poucas descrições de incapacidade muscular dos internados no Hospício George Rosenberg. Ao longo da narrativa, nenhuma deformidade muscular é descrita; os internados é que parecem não querer “algo de sensato”. Como refere Bordini, “o hospício parece estar a serviço da racionalidade, isto é, quer instalar a racionalidade na mente dos doentes e extrair aquilo que é irracional” (2014: 70), ou ainda, ao serviço daquilo que Tavares apelida de “velocidade certa”.

Encontramos algumas semelhanças na ação de A Brincadeira, de Kundera. O romance debutante do checo evidencia, desde logo, parte considerável dos traços identitários das décadas que se seguiriam. De facto, Kundera escreve num período bem identificado nas suas narrativas, enquanto Tavares oferece menos pistas sobre o local e o tempo da narrativa. Os nomes das personagens kunderianas são checos, e as personagens estão em (ou vão para) Praga, estão em (ou vão para) Paris, cidades com relação óbvia com a biografia do autor. Neste aspeto, a obra tavariana é diferente:

Há personagens, ainda que secundárias, que passam de romance para romance, movimentando-se numa mesma cidade que não tem nome nem localização precisa, e ao longo de um tempo em que os acontecimentos charneira são, nos dois primeiros romances, a ocupação militar dessa cidade, e no terceiro romance o período imediatamente a seguir a essa ocupação. O (pouco do) quotidiano que é descrito, mas sobretudo o facto militar da ocupação mais os nomes alemães das personagens, parecem situar a ação na segunda guerra mundial e num país vizinho da Alemanha. Nos dois primeiros romances isto é apenas uma hipótese, no terceiro é uma certeza, pois há uma personagem

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que vê fotografias dos campos de concentração nazis, algo de que só tomara conhecimento com o fim da invasão. (Mourão 2011: 52)

Tavares escreve em locais que podiam existir em diversos pontos da Europa Ocidental, surgindo a identificação histórica apenas em curtas referências, que nem de perto chegam para que a narrativa possa ser identificada como romance histórico. Esta vaga identificação de um tempo e de um lugar não existe em Kundera. Em A Brincadeira, as referências a locais concretos são constantes. Atente-se: “Pavel partiu esta tarde para Bratislava, eu amanhã de manhã cedo, de avião, para Brno” (Kundera 1967: 21), ou: “até aos dezoito anos não conheci outra coisa que não fosse a casa bem ordenada da burguesia provinciana, e o estudo, (…) quando depois cheguei a Praga, em 49, (…) Praga, a faculdade, a cidade universitária” (22). Por muito que procuremos fugir aos epitextos de Kundera, são inegáveis as semelhanças entre as palavras do narrador e a biografia do checo. A narração autodiegética, ainda que seja Ludvik quem nos fala, relembra invariavelmente a biografia do checo.

Ludvik, nos seus anos de juventude, apaixona-se por Marketa, colega do aparelho partidário, descrita como “incapaz de olhar para além de uma coisa” (idem: 37), ou ainda “inocentemente cândida” (38), como se a candura desculpasse Marketa de ter “um intelecto que se recusava a funcionar” (ibidem). Esta incapacidade viria, aliás, a ser o problema que desencadeia o ponto de viragem. O protagonista considera-se como alguém com uma “funesta tendência para piadas descabidas” (35). Isto justifica a carta que Ludvik escreve a Marketa, num afastamento temporário para um estágio fora de Praga:

No fundo, bem vistas as coisas, eu estava de acordo com o que Marketa dizia, também eu acreditava até na revolução na Europa Ocidental; havia só uma coisa que eu não aprovava: que ela estivesse contente e feliz enquanto eu sentia a falta dela. Então arranjei um postal e (para ferir, chocar e confundir) escrevi: O optimismo é o ópio do género humano! O espírito são tresanda a estupidez. Viva Trotski! Ludvik. (38)

Esta brincadeira parece remeter para o título do próprio livro. Os acontecimentos sucedem-se, a relação com a ingénua rapariga termina e, meses mais tarde, já com Ludvik de volta a Praga, uma chamada telefónica requisita a sua presença nas instalações do Partido:

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Mandaram-me sentar. Sentei-me e percebi que as coisas não estavam bem. Os três camaradas, que eu conhecia bem e com quem costumava conversar alegremente, ostentavam caras impenetráveis; se é verdade que me tratavam por tu (regra entre camaradas), não era de súbito um tratamento amigável, mas oficial e ameaçador. (…) encontrava-me portanto frente a três estudantes a tratar-me por tu, que tratar-me fizeram uma pritratar-meira pergunta: se eu conhecia Marketa. Disse que sim. Perguntaram-me se tínhamos trocado correspondência. Disse que sim. Perguntaram-me se me lembrava do que tinha escrito. Disse que não me lembrava, mas de repente saltou-me diante dos olhos o postal com o texto provocatório (…) Ah não te lembras?, perguntaram eles. (…) Ela não te escreveu nada sobre o estágio?, perguntaram eles. É verdade, disse eu, escreveu. E então o quê? Que gostava daquilo. E mais o quê? (idem: 40)

Relembre-se a inquisição do doutor Gomperz, responsável do hospício de Jerusalém: “Em que estás a pensar, meu caro?”. A questão ganha um tom inquisitivo, e salta para conclusões sobre as respostas:

E prosseguiram: Um cínico também pode ser alegre?, perguntou o outro. Não, disse eu. Então quer dizer que tu não defendes a edificação do socialismo entre nós, disse um terceiro, Mas porquê?, protestei. Porque para ti o optimismo é o ópio do género humano, rebentaram eles. O quê, o ópio do género humano, disse eu ainda. Não tens safa. Escreveste isso! Marx chamou à religião o ópio da humanidade, mas para ti o ópio é o nosso optimismo! (…) Deus do céu, onde é que vocês foram inventar isso?, protestei. Negas o que escreveste? É natural que o tenha escrito a brincar, já foi há dois meses, nem me lembro. Podemos refrescar-se a memória, disseram eles, e deram-me a ler o meu postal (…) Camaradas, era só uma graça, disse eu, e senti que ninguém podia acreditar em mim. (idem: 41)

Como refere Arendt, “a detenção do poder significa o confronto direto com a realidade, e o totalitarismo procura constantemente evitar esse confronto” (1958: 519). E “evitar esse confronto” pode começar numa escala mais pequena: evitando que Ludvik comunique pensamentos que não defendam “a edificação do socialismo entre os seus pares”. Até porque “se não lutarem pelo domínio global como objetivo último, correm o sério risco de perder todo o poder que tenham conquistado” (520). Ou seja, cada opinião dissonante deve ser perseguida à exaustão, porque é a existência de cada uma que possibilita um coro de vozes discordantes.

Relembre-se, contudo, que Ludvik se expressava de forma irónica, como é patente no discurso do narrador autodiegético: “foi no momento, duas linhas para gozar” (Kundera 1967: 42). O humor parece ter uma relação trémula, então, com o poder, quando este é obcecado com o controlo das ideias dos oprimidos. Por vezes, o humor afirma sem

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realmente o dizer, e desmente, afirmando-o. Como se controlar todos os pensamentos acentuasse a dificuldade em lidar com um pensamento que se possa tornar mais difícil de catalogar. Essa catalogação parece mesmo ser o objetivo final, quando Marketa, a destinatária da carta de Ludvik, se justifica ao próprio: “És membro do Partido, e o Partido tem o direito de saber quem tu és e como pensas” (idem: 46).

Talvez este possa ser o problema do poder com o humor. Alguém que se expressa de forma irónica não revela “como pensa”; talvez revele precisamente o contrário. Essa titubeação cria problemas de ordem hermenêutica, como destaca Ricardo Araújo Pereira:

Pelos vistos, o humor tem o poder de convencer algumas pessoas de que têm verdadeiro poder. Entre essa gente crédula contam-se, por exemplo, ditadores, que o temem a ponto de o proibir. Parece que, na Alemanha nazi, havia tribunais especiais para julgar os cidadãos que chamassem Adolfo ao seu cavalo.(Pereira 2016)

Se, como diz Pereira, os ditadores proíbem o humor, é porque o identificam como agente fatal à estabilidade do status quo. Importa, como diz Arendt, que “cada fragmento de informação concreta que se infiltra através da cortina de ferro, construída para deter a sempre perigosa torrente da realidade” (1958: 519), seja bloqueado à nascença, mesmo que seja numa carta entre namorados.

Ludvik, contudo, só parece verdadeiramente preocupado com a traição aos seus princípios ideológicos numa fase inicial. Rapidamente se apercebe do absurdo da situação e começa a ter preocupações de índole mais prática:

Os meus esforços não tinham outro objectivo do que este: não ser posto fora do Partido e assim considerado como seu inimigo; viver como inimigo reconhecido daquilo que eu escolhera na adolescência, e que me era verdadeiramente caro, parecia-me desesperante. (…) A discussão que se gerou no seguimento da minha intervenção voltou-se contra mim; ninguém veio em meu auxílio, de tal modo que, no fim, todos (…), sim, todos, até ao último, levantaram a mão para aprovar não apenas a minha exclusão do Partido, mas ainda (coisa que não esperava) a proibição de continuar a estudar. (Kundera 1967: 50)

Note-se como as preocupações vão flutuando: se, numa fase inicial, Ludvik parece preocupado com a exclusão da instituição que representa as suas ideologias, rapidamente a preocupação se desloca para o seu próprio bem-estar. Ludvik é excluído do Partido e isso impede-o de continuar a estudar. Curioso é que o castigo que lhe é imposto (em

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função de ter “pensado as coisas erradas”, como podia ser dito por Gomperz, em

Jerusalém; ou em função de incorrer na “velocidade errada”, como podia ter dito Tavares)

evidencie tantas semelhanças com o dado a outra personagem, mas de Jerusalém: Mylia. Ludvik é expulso do partido e enviado para um quartel, nos arredores de Ostrava. Lá, é dito pelo narrador que os cabelos eram rapados por igual medida, que existiam uniformes próprios e generalizados, e que existiam aulas de educação política:

A despersonalização que nos infligiam parecia perfeitamente opaca nos primeiros dias. Impessoais, impostas, as funções que exercíamos substituíram todas as manifestações humanas; esta opacidade era, evidentemente, muito relativa até porque derivava não só das circunstâncias reais mas de um defeito de habituação da vista (como quando se passa de uma zona iluminada para uma zona escura); com o tempo, ela iria lentamente dissipar-se, e mesmo com a penumbra da despersonalização, o humano nos homens tornou-se pouco a pouco imperceptível. (idem: 53)

A pensamentos errados, disformes, responde-se com uma “penumbra de despersonalização”. Muito semelhante diz Gonçalo M. Tavares, quando descreve os procedimentos clínicos do Hospício Georg Rosenberg:

Havia, pois, como quem um arredondamento da existência, o que era excessivo transformava-se em alvo médico: tentava eliminar-se essa coisa, pôr de fora, colocar para além desse arredondamento. Como se cada existência, exactamente como um compartimento, tivesse um caixote de lixo, um sítio específico, com formas adequadas, para onde se deveriam atirar os hábitos, acções e, se possível, os pensamentos que não interessavam. Neste caso, os que não interessavam a quem vigiava: os médicos. (2005: 104)

Para efeitos de análise, substituamos “médicos” por “camaradas”. Mudam o oprimido e o opressor, mas o exercício de “arredondamento” ou de “despersonalização” é semelhante. E essa preocupação não existe apenas no condicionamento do discurso: trata-se, como referido, de um controlo holístico. A diferença do corpo pode ser um indício da diferença nas ideias e no discurso, e talvez o desaparecimento dos contornos individuais do corpo seja um passo para a diluição dos contornos mais perigosos do discurso e dos atos. Como diz Tavares, em Atlas do Corpo e da Imaginação, “a ideia de cegueira em relação ao próprio corpo, cegueira táctil, cegueira muscular, afasta o corpo do próprio indivíduo, torna o corpo um verdadeiro saco que se transporta” (2013a: 184). Tornar “o corpo num verdadeiro saco que se transporta” parece ser importante para a uniformização comportamental. Aliás, segundo Barthes, o corpo parece

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consideravelmente mais difícil de dominar do que a linguagem: “my body is a stubborn child, my language is a very civilized adult” (1990: 128). Essa dificuldade em escrutinar os movimentos de um corpo que pode ser uma “stubborn child” pode incentivar um cerco permanente às particularidades que este possa evidenciar.

Esta relação entre corpo e linguagem também é explorada por Tavares em

Jerusalém, quando, como acima citado, diz que é necessário “nós querermos algo de

sensato” para a existência de um estado tido como saudável. A descrição de Mylia, esposa do psiquiatra Busbeck, parece explorar essa relação:

Mylia era saudável a nível físico e a nível espiritual: tinha um corpo eficaz que obedecia por completo às suas vontades – dentro dos limites anatómicos humanos – (…) onde Mylia não era saudável (…) era na cabeça, nas vontades. Ela era doente da cabeça, como os miúdos das redondezas diziam (…) Busbeck era capaz de prever com pouco erro as suas reacções, os arrebatamentos violentos (Tavares 2005: 63)

Repare-se como os comportamentos ilógicos, exemplificativos deste seu estado mental débil, são essencialmente físicos. Os “arrebatamentos violentos” e as “reações” sugerem uma qualquer reação física vigorosa. Assim como em A Brincadeira, Ludvik é vítima de uma carta à sua paixão de então. Linhas antes, Ludvik queixa-se de que o “funcionamento psíquico e filosófico do amor é tão complicado que num determinado período da vida o homem tem de concentrar-se em controlá-lo” (Kundera 1967: 37). Mais tarde, descreve como a falta de entusiasmo de Marketa em passar algum tempo consigo o desanima. A carta que o viria a punir vem em sequência desse episódio:

Essa decisão não me convinha nada, porque eu contava exactamente com essas duas semanas para as passar sozinho com Marketa em Praga e levar a nossa relação (que até então consistira em passeios, conversas e alguns beijos) um pouco mais longe; (…) e fiquei louco de ciúmes por Marketa não partilhar da minha aflição, nem se irritar com o estágio, pior ainda, ter a coragem de me dizer que até gostava da ideia! (idem: 38)

Ainda que as punições impostas a Mylia e a Ludvik decorram, essencialmente, no âmbito daquilo a que Tavares chama “querer algo de sensato”, na sua definição de “saúde”, a relação com a corporalidade é inequívoca. Se o facto de Mylia ser “doente da cabeça”, como é descrito a certo ponto da narrativa, tem consequências diretas em ações (ou em “arrebatamentos violentos”), no caso de Ludvik a relação parece um pouco mais

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intrincada: a ação que o leva ao quartel, em Ostrava, está ligada a outro tipo de arrebatamento: o da paixão por Marketa, que o conduz a atos irrefletidos. Contudo, em ambos os casos, a punição deve-se a uma vigilância prévia, quer dos comportamentos do hospício, quer da correspondência de Ludvik com a namorada.

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2.2 – Cárcere e vigilância: do quartel de Kundera ao hospício de

Tavares

Como foi referido, Mylia e Ludvik são inseridos em sistemas de cárcere por motivos diferentes. Cada um desses sistemas apresenta tipos de organização diferentes, e para entender as suas caraterísticas parece interessante recordar o exemplo que Michael Foucault descreve, em Vigiar e Punir, com a descrição de diversos comportamentos de controlo exaustivo (com sentinelas por todas as esquinas), no relato da eclosão da peste numa cidade (não identificada) do século XVII. É especialmente curiosa uma passagem: o responsável por cada quarteirão passa na rua e “pára diante de cada casa, manda colocar todos os moradores às janelas (…) informa-se do estado de todos, um por um” (1979: 162). Mais do que proteger os potenciais infetados, assiste-se a uma espécie de condescendência que assume que os indivíduos não têm capacidade de tomar as atitudes corretas, estando distantes do jugo inquisitório dos fiscais:

Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos – isso tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar. A ordem responde à peste; ela tem como função desfazer todas as confusões; a da doença que se transmite quando os corpos se misturam; a do mal que se multiplica quando o medo e a morte desfazem as proibições. (idem: 163)

Ainda que Foucault esteja a descrever comportamentos de controlo de uma peste no século XVII, esta descrição parece condizente com a realidade dos sistemas carcerários no século XX. Também os movimentos são controlados, os acontecimentos registados, sendo o cárcere um “dispositivo disciplinar” que procura evitar comportamentos tidos como desviantes. A título de exemplo, atente-se nas palavras de Erving Goffman, quando se refere a instituições totalitárias, como prisões, manicómios ou hospitais, no século XX:

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When persons are moved in blocks, they can be supervised by personnel whose chief activity is not guidance or periodic inspection (as in many employer-employee relations) but rather surveillance - a seeing to it that everyone does what he has been clearly told is required of him, under conditions where one person's infraction is likely to stand out in relief against the visible, constantly examined compliance of the others. (…) In total institutions there is a basic split between a large managed group, conveniently called inmates, and a small supervisory staff. (1961: 7)

Tudo isto, segundo Foucault, era característico do controlo da peste no século XVII. Contudo, no século XIX, em especial na Europa, disseminou-se a circunscrição dos doentes a instituições e a edifícios específicos (além de Vigiar e Punir, já citado, descrito também em História da Loucura) em que, além de se juntarem outros indivíduos com problemas semelhantes, existiam também vigilantes (cf. Goffman 1961). Segundo Foucault, é já no século XIX que se dissemina a circunscrição aos espaços de exclusão, em que se “projectam recortes finos da disciplina sobre o espaço confuso do internamento” (1979: 165), mas, mais que isso, em que se procura “individualizar os excluídos, mas utilizar processos de individualização para marcar exclusões” (idem).

Nesse processo de individualização, está presente a ambiguidade a que já foi feita referência: mais do que proteger os indivíduos fora do espaço de internamento, vigiam-se as atitudes dos indivíduos a que são atribuídas atitudes a punir. Esta exclusão tem como objetivo a proteção dos indivíduos das próprias atitudes, especialmente em casos de problemas “mentais”. Recorrendo à definição de “saúde” de Gonçalo M. Tavares (“o estado em que os músculos fazem o que nós queremos e nós queremos algo de sensato”), nem Mylia nem Ludvik tinham músculos que não fizessem o que ambos pretendiam: o problema é que nenhum deles queria “algo de sensato” segundo a norma vigente.

Isso é o que foi regularmente realizado pelo poder disciplinar desde o começo do século XIX: o asilo psiquiátrico, a penitenciária, a casa de correcção, o estabelecimento de educação vigiada, e por um lado os hospitais, de um modo geral todas as instâncias de controle individual funcional num duplo modo: o da divisão binária e da marcação (louco-não louco; perigoso-inofensivo; normal-anormal); e o da determinação coercitiva, da repartição diferencial (quem é ele; onde deve estar; como caracterizá-lo, como reconhecê-lo; como exercer sobre ele, de maneira individual, uma vigilância constante, etc.) (1979: 165).

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Uma categorização faz-se mais facilmente por oposição a outra: assim se distingue o bom do mau, ou o fácil do difícil, satisfazendo uma economia de pensamento que evite posições intermédias sobre os assuntos em causa. A divisão binária, de que fala Foucault, acaba por influenciar de forma decisiva o dualismo irredutível a que os indivíduos, potenciais reclusos, são sujeitos. Atente-se nas palavras de Tavares, em entrevista:

Isso é algo muito perturbante, porque nós temos a cabeça muito virada para uma espécie de “sim-não”, então se alguém é classificado como maldoso, nós quase que assumimos que a pessoa é 24 horas por dia maldosa. Mas a questão basicamente perturbante é que uma pessoa pode ter durante 50 anos os hábitos mais elogiáveis, mais bonitos, interessantes e generosos, e pode por dez minutos, de repente, praticar um ato absolutamente terrível, de maldade pura. Portanto, muitas vezes essa questão de que é um homem bom ou um homem mau… Se formos às quantidades, mesmo as pessoas mais execráveis da história, na maior parte do seu tempo, tiveram atos normais, até generosos, bondosos. (Tavares 2010b)

Como desenvolveremos mais adiante, em Jerusalém e A Brincadeira ser perigoso ou inofensivo, louco ou não louco, tem consequências diretas no “onde deve estar”. Aliás, é por pensarem e agirem de forma diferente que Mylia e Ludvik são categorizados como distantes do comportamento pretendido, sendo afastados para instituições de vigilância permanente. Nessas instituições os procedimentos dos responsáveis são semelhantes aos existentes no controlo dos leprosos, na descrição de Foucault: é comum a “vigilância permanente em todos os pontos”, o registo permanente de “todos os acontecimentos”, e onde “cada indivíduo é constantemente localizado e examinado”. Existem, portanto, “um conjunto de técnicas e de instituições que assumem como tarefa medir, corrigir os anormais” (Foucault 1979: 166).

Aliás, “é a força que define o bem e o mal, de cada vez que este vocabulário parecer oportuno ao detentor da força” (Eiras 2005: 117). Mais do que punir em função da ideia fechada de certo e do errado, os próprios conceitos dependem dos interesses dos poderosos. Relembre-se o internamento de Mylia, decidido pelo “detentor da força”, Busbeck: em Jerusalém, afirma-se que “Theodor decidiu” o internamento de Mylia.

Da necessidade de “medir, corrigir os anormais”, surge o mecanismo inovador de Jeremy Bentham, o Panóptico, que Foucault descreve em Vigiar e Punir: “na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção” (1979: 166). Na estrutura de Bentham,

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idealizada no século XVIII, os detentores do poder procuram ver tudo, ininterruptamente, e sem serem vistos. Induz-se no indivíduo vigiado um estado permanente de visibilidade: trata-se de um “estado consciente e permanente (…) que assegura o funcionamento automático do poder” (idem). Essa vigilância, de tão ininterrupta, torna-se despersonalizada: mais do que o indivíduo detentor do poder ser o vigilante, é a própria arquitetura que parece responsável pelo controlo. Como diz Foucault, “quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as limitações de poder” (idem: 168). Reforcemos: quem está submetido a um local fechado, em que o código de “ideias corretas” está definido, talvez se deixe mais facilmente dominar por elas, deixando que se instituam como suas.

Em Jerusalém, na ausência de comportamentos assumidos pelos detentores do poder como saudáveis, é preciso fechar os prevaricadores num ambiente hermético, onde sejam estimulados comportamentos tidos como corretos. O mesmo se passa com Ludvik: perante a identificação, ainda que errada, da personagem enquanto trotskista, Ludvik é enviado para um quartel onde, como já vimos, existem “aulas de educação política” e uma permanente “penumbra de despersonalização”.

O que é um cárcere bem sucedido? Que procedimentos devem ser adotados para trazer os “doentes da cabeça”, designação dada a Mylia, de volta a um estado pleno, que lhes permita viver o status quo, sem grande resistência?

Certamente ele [o internamento] terá de início a função que se confiava aos hospitais no fim do século XVIII. Permitir a descoberta da verdade da doença mental, afastar tudo aquilo que, no meio do doente, possa mascará−la, confundi−la, dar−lhe formas aberrantes, alimentá−la e também estimulá−la. Mais ainda que um lugar de desvelamento, o hospital (…) é um lugar de confronto. A loucura, vontade perturbada, paixão pervertida, deve aí encontrar uma vontade reta e paixões ortodoxas. (Foucault 1979: 70)

Procura-se a ortodoxia, um pensamento “limpo” de ideias distantes da “vontade reta” imposta, e que possa criar problemas. Não parece existir nenhuma patologia de ordem física com Ludvik ou Mylia. Contudo, mais do que o corpo funcionar, importa que as ideias que o coordenam sejam as “corretas”. Como diz Tavares, “o que importa não é apenas que um indivíduo sobreviva, mas que a felicidade do indivíduo sobreviva, se mantenha. Saúde vista assim como um sinónimo de bem existir, eu diria: de bem não morrer” (2013a: 298).

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Os propósitos de Busbeck podem ser questionáveis. Pretende que Mylia se cure e consiga “bem não morrer”, ou pretende ver-se livre de um comportamento instável que se tornou num problema?

Ora, os propósitos do manicómio, expressos nas palavras do seu médico-gestor, Gomperz, são muito claros: “era uma casa feita para eliminar mistérios, como dizia o médico-gestor Gomperz. Procurara-se simplificar tanto os procedimentos como as coisas” (Tavares 2005: 103). Vêem-se aqui resquícios da descrição foucaldiana de manicómio: a tentativa de limar as arestas à própria existência, tornar a “vontade reta”, as “paixões ortodoxas”. Citemos o narrador: “o que era excessivo transformava-se em alvo médico: tentava eliminar-se essa coisa, pôr de fora, colocá-la para além desse arredondamento” (105). Como refere Bordini, no Georg Rosenberg “há um processo de imposição de uma determinada convencionalidade como se esta fosse racional, ou melhor, como se esta fosse a verdade, uma instância total da qual não se pode escapar” (2014: 72).

Esse arredondamento existencial relembra a obra kunderiana, e os episódios de regimes totalitaristas nela presentes. Asif diz-nos que “how power deprives individual of identity and freedom constitutes Kundera’s fundamental thematic obsession” (2014: 172). Parece difícil fazer a mesma afirmação sobre a globalidade de uma obra tão heterogénea quanto a de Gonçalo M. Tavares, mas Jerusalém convida a reparar na presença de uma mesma luta pela individualidade. Mais adiante na narrativa, aliás, descreve-se uma fuga do Georg Rosenberg por parte de Mylia, e do seu namorado, Ernst:

Mylia e Ernst, contentes com o anonimato no meio da confusão e com a sensação de que nada interrompiam com a sua fuga. Não eram assim tão loucos, nem tão doentes: não perturbavam a cidade. Sentados no café sorriam um para o outro. Estavam no mundo e ninguém reparava neles: eis a alegria. (…) A porta aberta do café deixava entrar um frio desagradável, mas que divertia aquele casal de namorados. Há quanto tempo não havia uma interferência da temperatura? (Tavares 2005: 188)

Mylia e Ernst rejubilam, longe do Georg Rosenberg, longe da vigilância permanente, como se lhes tivessem devolvido o direito aos gestos, à existência. O direito à não ortodoxia. O frio que surge pela porta aberta do café “divertia” o casal: a alegria da interferência externa, em quem se habituou a viver num ambiente altamente controlado. Existe vento, heterogeneidade e ideias diversas.

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Também Ludvik, no quartel para o qual é enviado por ideias discordantes do regime vigente, relata um ambiente que procura uma aculturação socialista. Mais do que a coerção, os responsáveis procuram o isolamento, para impedir que as ideias contagiem outros. Os reclusos participam em atividades de culto à ideologia, como se os responsáveis procurassem criar a ideia nas cabeças dos capturados:

Ainda que nos considerassem unanimemente inimigos confirmados do regime, todas as formas de vida pública corrente nas colectividades socialistas eram praticadas no quartel; nós, inimigos do regime, organizávamos reuniões improvisadas de dez minutos sob o controlo do comissário político, participávamos diariamente em conversas sobre temas políticos, tínhamos a responsabilidade dos jornais de parede, em que colávamos fotografias de políticos socialistas enfeitadas à mão com palavras de ordem, sobre o futuro radioso. (Kundera 1967: 55)

Também os responsáveis do quartel meditam sobre o que Gomperz perguntava aos seus doentes: “sabes em que deves pensar?”. Se Gomperz dá um passo mais declarado, tentando dirigir o pensamento dos internados (“como o professor de uma disciplina, como a matemática ou a gramática, fazia uma pergunta concreta sobre um determinado conteúdo” (Tavares 2005: 105)), os responsáveis pelo quartel estabelecem atividades de culto ao socialismo, como se assim fosse possível colocar as ideias do regime na cabeça dos intervenientes.

Em Asylums: Essays on the condition of the social situation of mental patients and

other inmates, Goffman aclara:

He need not constantly look over his shoulder to see if criticism or other sanctions are coming. (…) In a total institution, however, minute segments of a person's line of activity may be subjected to regulations and judgments by staff; the inmate's life is penetrated by constant sanctioning interaction from above, especially during the initial period of stay before the inmate accepts the regulations unthinkingly. Each specification robs the individual of an opportunity to balance his needs and objectives in a personally efficient way and opens up his line of action to sanctions. The autonomy of the act itself is violated. Although this process of social control is in effect in all organized society, we tend to forget how detailed and closely restrictive it can become in total institutions. (1961: 38)

Como diz Goffman, a vida dos integrados no sistema carcerário é invadida por atos impostos, na tentativa, pelos responsáveis do regime, de que os encarcerados se tornem voluntários. Os exilados no quartel dedicam-se a atividades forçadas de louvor

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aos líderes comunistas, até que este louvor suceda de forma voluntária. Gomperz procura controlar os pensamentos dos internados no Georg Rosenberg, até que estes cheguem ao que “devem pensar” autonomamente. Para os seus responsáveis, as instituições funcionam como uma luz que alumia um caminho mais equilibrado, “saudável”.

Contudo, o receio do crescimento de ideias diversas, ou das “velocidades diferentes”, de que falava Tavares, existe nos dois espaços de reclusão: “todos os quinze dias rapavam-nos a cabeça com medo de que, com os cabelos, nos nascesse alguma segurança deslocada” (Kundera 1967: 65). É o “arredondamento da existência” de que fala Jerusalém. Rapam-se os cabelos e as ideias. Promove-se o uso de uniformes e de ideias comuns, para esterilizar contornos mais perigosos do pensamento.

Ambos os romances descrevem uma relação amorosa que, por ser vivida em clausura, assume contornos de proibição. Kundera, ao falar da vida no quartel de Ostrava, relata as consequências do cárcere: “a tristeza que emanava do horizonte miserável da nossa vida amorosa, todos ou quase todos a conhecíamos” (idem: 66). Se alguns tentavam “escapar-lhe para as profundezas meditativas do seu foro interior”, outros “completavam a sua cínica caça às pegas com o mais sentimental dos romantismos”, e outros ainda “tinham em casa um amor que, à força de reminiscência concentrada, ganhava o brilho mais resplandecente”, ou, por fim, alguns que “sonhavam em segredo que a rapariga que apanharam já tonta num qualquer café nutria por eles um amor sagrado” (ibidem).

Talvez a possibilidade de períodos de evasão do quartel, em que os reclusos se procuram a vida boémia, que choca contra os trâmites apertados da vivência do cárcere, tenha mudado também a vivência da paixão comparativamente a Jerusalém. Ou, pelo contrário, talvez os curtos períodos de não escrutínio contrastem com a permanente torre panóptica erigida sobre os muros do Georg Rosenberg. Nessa vigilância, privilegia-se o “fim das grades, fim das correntes, fim das fechaduras pesadas” (Foucault 1979: 167). Talvez essa ilusão de não vigilância tenha levado Mylia e Ernst a um comportamento que Gomperz descreve assim: “foi isto: a sua esposa Mylia e um outro paciente. Fizeram-no. À frente de outros doentes” (Tavares 2005: 109). É esta a primeira referência que temos ao caso de Mylia e Ernst, que daí em diante se desenvolve durante toda a narrativa do manicómio. Essa aspereza contrasta com a forma como Ludvik conhece Lucia, quando deambula sozinho pela periferia de Ostrava, num dos dias de folga do quartel:

Foi então que vi Lúcia pela primeira vez. Ela avançava na minha direcção; ia entrar no pátio do cinema; porque não terei continuado o meu caminho ao cruzar-me com ela? Terá sido pela estranha

Referências

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